Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ00037989 | ||
| Relator: | MIRANDA GUSMÃO | ||
| Descritores: | ACÇÃO POPULAR CASO JULGADO INTERESSES DIFUSOS | ||
| Nº do Documento: | SJ199911180008952 | ||
| Data do Acordão: | 11/18/1999 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL COIMBRA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 1968/98 | ||
| Data: | 04/13/1999 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Área Temática: | DIR PROC CIV. | ||
| Legislação Nacional: | CADM40 ARTIGO 369 ARTIGO 822. CONST89 ARTIGO 60 ARTIGO 84. CCIV66 ARTIGO 1360. L 83/95 DE 1995/08/31. | ||
| Sumário : | I - A identidade jurídica, requisito da excepção de caso julgado, verifica-se nas acções que possam ser havidas como a emanação de um direito de acção popular. II - O objecto da acção popular é antes de mais, a defesa de interesses difusos: os radicados na própria colectividade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I 1 - No Tribunal de Círculo de Castelo Branco, A e mulher B, e C e mulher D, intentaram acção declarativa com processo ordinário contra E e F, alegando, em síntese, que: - os co-autores A e mulher B são donos do prédio urbano sito na Rua do Cabeço, freguesia de S. Vicente da Beira, concelho de Castelo Branco, e os co-autores C e mulher D são donos do prédio urbano sito na mesma Rua - entre as duas casas existe um largo com cerca de 5 (cinco) metros de largura por 8 (oito) de comprimento, que se situa a norte da casa dos 1ºs autores e a sul da dos 2ºs autores; - também voltada para a Rua do Cabeço, por detrás da casa dos 1ºs co-autores existe uma casa de habitação de que são proprietários os Réus e onde a Ré reside e que tem à frente um logradouro que dá directamente para o referido largo, - este largo é público e pois desde tempos imemoriais que é utilizado por todos aqueles que o entendem, designadamente por vizinhos e restante população da aldeia, sem qualquer oposição e sem que ninguém sobre o referido largo se arrogue quaisquer direitos de uso exclusivo ou de propriedade; - no dia 7 de Janeiro de 1995, os Réus iniciaram no referido largo a construção de uma obra nova, que consistiu na colocação de dois pilares em cimento armado, com cerca de 2,5 metros de altura, junto às respectivas esquinas das casas dos co-autores, encostados à parede, pretendendo os Réus fazer a ligação desses pilares por um portão; - concluem por pedir, além de outros, que deve ser julgado que o largo referido, com cerca de 5 metros de largura e 8 de comprimento pertence ao domínio público, e os Réus condenados a reconhecer isso mesmo. 2 - Os Réus contestaram, por excepção, invocando o caso julgado, em virtude de o objecto da presente acção já ter sido decidido, com trânsito em julgado noutra acção - Processo nº 174/95, que correu termos pelo 3º Juízo, 2ª Secção, do Tribunal Judicial de Castelo Branco, e por impugnação, defendendo a improcedência da acção, em virtude de o largo em questão lhes pertencer e consistir na entrada da sua casa, sendo a ligação entre esta e a Rua do Cabeço. 3 - Foi proferido o despacho saneador que, julgando verificada a excepção de caso julgado, absolveu os Réus do pedido. 4 - Os Autores recorreram. A Relação de Coimbra, por acórdão de 13 de Abril de 1999, deu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido. 5 - Os Réus pedem revista, formulando as seguintes conclusões: 1) A presente acção é a cópia fiel da acção nº 174/94 que correu termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco e que já transitou em julgado. 2) Não obstante na primeira acção figurar como autora a G e na segunda, dois casais de particulares, existe identidade de sujeitos já que estes ocupam a mesma posição jurídica. 3) Há identidade de sujeitos quando as partes ocupam a mesma posição jurídica quanto à relação substancial e não quanto à posição processual. 4) Existe entre as duas acções identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, pelo que se verifica a excepção de caso julgado. 6 - os recorridos apresentaram contra-alegações onde defendem que a decisão proferida na acção interposta pela G não constitui caso julgado para a presente acção, uma vez que a primeira não se caracteriza como uma acção popular. Corridos os vistos, cumpre decidir. II Questões a apreciar no presente recurso. A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise da questão de saber se se verifica a excepção de caso julgado. Abordemos tal questão. III Se se verifica a excepção de caso julgado. Elementos de facto a tomar em conta: 1. Correu termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco a acção sumária nº 174/95, em que foi autora a G e Réus, os aqui réus, E e F. 2. Nessa acção a Autora formulou os seguintes pedidos: a) deve ser julgado que o largo referido, sito na Rua do Cabeço, no lugar da Partida, com cerca de 8 metros de largura e 14 de comprimento pertence ao domínio público, e os Réus condenados a reconhecer isso mesmo; b) deve ser julgado que o mencionado largo tem uma natureza paroquial, ou seja pertence à freguesia G, e os Réus condenados a reconhecer isso mesmo; c) dever ser julgado que os Réus procederam ilegalmente e de má fé à construção de obras nesse largo, e os Réus condenados a reconhecer isso mesmo; d) devem ser os Réus condenados a abrir imediatamente mão do referido largo e à demolição das obras que nele fizeram, designadamente dos dois pilares para suporte do portão; e) devem ser os Réus condenados a abster-se de, por qualquer forma, realizar quaisquer construções ou obras no referido largo, designadamente aquelas que se destinam à apropriação do mesmo; f) devem ser os Réus condenados a abster-se de, por qualquer meio, obstar ou dificultar o uso público do referido largo. 3. A acção foi julgada improcedente e, após recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, foi a sentença confirmada por acórdão de 15 de Abril de 1997, tendo a decisão transitado em julgado. 4. Posição das Instâncias e dos recorrentes. 4.a) A 1ª instância decidiu existir a excepção de caso julgado dado que, para além de identidades de "causa de pedir" e do "pedido", verificava-se identidade de "sujeitos" (mau grado a diversidade na identidade física dos demandantes), dado que, face ao artigo 2º, nºs 1 e 2 da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto (que consagrou o direito de participação procedimental e de acção popular) extraia-se argumentos, certos e seguros de que, em ambas as acções, se estar perante um mesmo direito que pode ser encabeçado ou exercido, a todos vinculando, por uma qualquer pessoa ou entidade referidas nessa disposição legal. 4.b) A Relação de Coimbra decidiu que não se verifica a identidade jurídica dos sujeitos das duas acções, não ocorrendo, assim, a excepção de caso julgado, porquanto, por um lado, não se estar perante "acção popular" do tipo das previstas na Lei nº 83/95, de 31 de Agosto. Por outro lado, a presente acção não reveste a forma de acção popular proposta ao abrigo da referida Lei, uma vez que esta (acção popular) reveste um carácter e uma conotação publicista e os Autores não visaram com a presente acção a defesa do interesse público e dos interesses difusos conexos, mas antes um interesse pessoal e concreto, derivado do facto de os seus prédios confinarem com o largo em questão, que, segundo eles, é público, e os Réus estarem a fazer nele obras, afirmando que poderão vedar as janelas dos Autores, afectando-os, portanto directamente no seu património. 4.c) Os Réus/recorrentes sustentam que verifica-se a excepção de caso julgado por existir entre as duas acções identidade de sujeitos, porquanto as partes ocupam a mesma posição jurídica quanto á relação substancial: em ambas as acções se defendem os mesmos interesses, tendo por base os mesmos factos. Que dizer? 5. Consabido o conceito de excepção de caso julgado e do seu âmbito de aplicação (cfr. Teixeira de Sousa, o Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, in BMJ nº 325, páginas 171-179). Dúvidas não existem de que a questão em apreciação se encontra bem colocada: se existe excepção de caso julgado por em ambas as acções se verificar o requisito identidade de sujeitos, sendo certo que os demais, os referidos nos nºs 3 e 4 do artigo 498º, não se encontram questionados. Colocada a questão na sua verdadeira dimensão, a resposta terá de ser negativa, sendo certo que para esta resposta não se tomou em consideração quer o artigo 369º do Código Administrativo quer a Lei nº 83/95, de 31 de Agosto. 5.a) A presente acção não podia, nem pode, ser enquadrada na acção popular definida no artigo 369º do Código Administrativa por a primeira acção (a proposta pela Junta de Freguesia G) comprovar que na presente acção não se assiste a um alargamento de legitimidade activa, ou doutro modo, "os autores não se apresentam como substitutos processuais da autarquia, cujos direitos prosseguem (cfr. Robim de Andrade, A Acção popular no Direito Administrativo Português, 1967, página 132). 5.b) A presente acção não podia, nem pode ser enquadrada na acção popular definida na Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, na medida em que esta Lei só entrou em vigor em momento posterior á propositura das acções. 6. A resposta negativa à questão colocada entronca na afirmação de não haver identidade jurídica em ambas as acções, conforme se passa a evidenciar. 7. Só haveria identidade jurídica se ambas as acções pudessem ser havidas (qualificadas) como a emanação de um direito de acção popular nos termos e com a extensão prevista no nº 3 do artigo 52º da Constituição. Gomes Canotilho e Vital Moreira, numa análise interpretativa da norma, escrevem: "a acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa... "o objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais direitos. E acrescentam: "a acção popular não tem de limitar-se aos casos individualizados no nº 3... ela permite dar cobertura desde logo aos casos de acção popular no âmbito do poder local - artigos 369º e 822º, do Código Administrativo. "as mesmas razões podem reclamar a extensão da acção popular à defesa dos direitos dos consumidores (CRP, artigo 60º), à defesa do domínio público (CRP, artigo 84º) e a outros casos" - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, páginas 281-283. 8. A doutrina estrutura o "interesse difuso" como "a refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada" (G.Canotilho e V. Moreira, obra citada, páginas 282); ou "como o interesse, juridicamente reconhecido, de uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos que, potencialmente, pode incluir todos os participantes da comunidade geral de referência, o ordenamento legal cuja normatividade protege tal tipo de interesse (cfr. Colaço Antunes, a Tutela dos Direitos Difusos em Direito Administrativo, páginas 20-21); ou "como os radicados na própria colectividade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos... reportando-se a bens por natureza indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual (Lopes Rego, na Revista do Ministério Público, 1990, caderno 5, página 203; Luís Lingnau Silveira, a acção popular, no BMJ nº 448, página 19). 9. Sobre determinado bem convergem, ou podem convergir, para além de interesses difusos, diversos interesses: a) o interesse individual - o direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo; b) o interesse público ou interesse geral - subjectivado como interesse próprio do Estado e dos demais entes territoriais; e c) o interesse colectivo, isto é, o interesse particular comum a certos grupos e categorias - cfr. G.Canotilho e V. Moreira, obra citada, página 282. 10. Face às considerações expostas em 7) a 9), em conjugação com a matéria fáctica fixada, temos de precisar que as acções em causa (a intentada pela Junta de Freguesia G contra.... e a intentada pelos Autores contra... os mesmos RR da 1ª acção) não têm por objecto a defesa de interesses difusos. Enquanto a primeira tem por objecto a defesa de um interesse público ou geral (ou seja, o reconhecimento de uma parcela de terreno como pertença da autarquia por integrar o domínio público paroquial), a presente acção tem como objecto a defesa de interesses individuais, ou seja, o reconhecimento de que o direito de propriedade dos Autores não estar sujeito às restrições legais derivadas de confinarem directamente com prédio vizinho - artigos 1360 e seguintes do Código Civil. Conclui-se, assim, não haver identidade jurídica em ambas as acções, o que equivale a dizer que não se verifica a invocada excepção de caso julgado. IV Conclusão: Do exposto, poderá extrair-se que: 1) a identidade jurídica, requisito da excepção de caso julgado, verifica-se nas acções que possam ser havidas (qualificadas) como a emanação de um direito de acção popular nos termos e com a extensão prevista no nº 3 do artigo 52º da Constituição. 2) o objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos: os radicados na própria colectividade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos... reportando-se a bens por natureza indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual. Face a tais conclusões, em conjugação com a matéria fáctica fixada, poderá precisar-se que: 1) não há identidade jurídica entre a acção intentada pela Junta de Freguesia G contra E e F, e a presente acção, intentada por particulares contra os mesmos Réus. 2) a falta de identidade jurídica entre as duas acções determinou a inverificação da excepção de caso julgado. 3) o acórdão recorrido não merece censura dado não ter inobservado o afirmado em 1) e 2). Termos em que se nega provimento ao recurso. Custas pelos recorrentes. Lisboa, 18 de Novembro de 1999. Miranda Gusmão, Sousa Inês, Nascimento Costa. |