Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
| Descritores: | UNIÃO DE FACTO INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL SUBSÍDIO POR MORTE PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA DIVÓRCIO | ||
| Data do Acordão: | 01/12/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I. A união de facto caracteriza-se pela vivência de duas pessoas em condições análogas às de cônjuges. II. Para efeito de reconhecimento do direito a prestações sociais por morte de beneficiário da Segurança Social é necessário que se apurem factos reveladores de uma situação de união de facto que perdure há mais de 2 anos à data do óbito do beneficiário. III. É de qualificar como união de facto a situação em que o beneficiário falecido, no estado de divorciado, tinha com a R. recorrente uma relação afetiva que se consubstanciava no facto de pernoitar na sua casa, com ela partilhar o leito e tomar refeições, sendo ambos reconhecidos como se fossem marido e mulher. IV. Não descaracteriza a situação de união de facto com a R. nem traduz a existência de uma segunda união de facto a circunstância de o falecido frequentar ainda a casa da sua ex-mulher, de quem tinha filhos, e de manter com a mesma uma relação de cordialidade, sem que se tenha provado, no entanto, que com a mesma mantivesse comunhão de leito, mesa e habitação. | ||
| Decisão Texto Integral: |
I - O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP, instaurou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que fosse julgada não reconhecida a vivência em união de facto de CC com qualquer das RR. à data da morte deste. Alegou que CC era beneficiário da Segurança Social e da Caixa Nacional de Pensões e que, tendo falecido, cada uma das RR. requereu junto do A. que lhe fossem atribuídas as prestações por morte na qualidade de unidas de facto daquele, suscitando-se a dúvida que fundamenta a propositura da presente ação. As RR. contestaram e cada uma invocou ter vivido com CC em união de facto, há mais de dois anos, com referência à data do óbito. Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e declarou que nenhuma das RR. vivia em situação de união de facto com CC, à data do óbito deste. A 1ª R. conformou-se com a sentença, mas a 2ª R. BB apelou, recurso que a Relação julgou procedente, revogando a sentença na parte em que declarou que a 2ª R. BB não vivia em união de facto com CC à data do óbito deste. O A. interpôs recurso de revista em que concluiu essencialmente que: Um dos requisitos necessários à união de facto será forçosamente o da coabitação e da partilha de recursos. Com a atribuição de pensão de sobrevivência pretende-se compensar a perda de rendimentos daqueles que vivam em situações análogas às dos cônjuges provocada pela morte do beneficiário. Uma vez que os cônjuges ou aqueles que vivam numa situação análoga à dos cônjuges têm uma situação de economia comum, ou seja, têm despesas do agregado que são pagas com os rendimentos de ambos e a perda desses rendimentos pode ser devastadora para a parte sobreviva. Ora, o conceito de “união de facto” ou de vivência “em condições análogas às dos cônjuges” tem de ser preenchido por via da alegação e prova de factos concretos que caracterizem o modo de vida próprio dos cônjuges, como sejam, a partilha da mesma habitação, cama, mesa e economia: tem que haver um esforço conjunto, a contribuição para as despesas comuns, colaboração na vida quotidiana. Além do mais, é necessário que a relação seja vista, para aqueles que rodeiam os membros da união de facto e com eles convivam, como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas. E define-se essencialmente como uma comunhão de habitação, mesa e leito, sem um vínculo de casamento, sendo que as duas figuras diferem, essencialmente, no facto de que o casamento se realiza dentro de um quadro legal pré-definido e a união de facto fora desse quadro legal. Sendo que a caracterização destas situações estáveis, consolidadas, notórias, de convivência de casa, exige, como elemento essencial, a comunhão de residência, a comunhão de habitação. Não havia um contributo fixo ou variável para despesas comuns do casal, ou seja, com a recorrida BB, para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos. A recorrida e CC até podiam ter uma relação de grande afetividade, de grande carinho e de grande cumplicidade, mas não tinham uma relação em tudo análoga à dos cônjuges, pois não tinham uma vida em comum, não partilhavam casa nem responsabilidades, apenas momentos da vida quotidiana, sendo certo que a partilha da mesma habitação e de recursos é essencial para a existência de uma situação de união de facto. Embora CC e a R. BB tivessem relações sexuais e este pernoitasse quase sempre em casa daquela, certo é que mantinha a sua casa na residência da sua ex-mulher, onde dormia pontualmente, tomava refeições e onde mantinha os seus objetos. Por outro lado, embora pudesse também partilhar as refeições com a BB, não havia comunhão patrimonial: nada se referiu relativamente às compras, quem as custeava, por um e pelo outro, bem como as despesas de renda, água, luz e gás de cada uma das suas casas. Houve contra-alegações. Cumpre decidir. II – Factos provados: 1) CC nasceu em ...-...-40, e era filho de DD e de EE, tendo falecido em ...-6-15. 2) Foi casado com a 1ª R. AA, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado em ...-5-05, por sentença transitada em julgado. 3) Faleceu no estado de divorciado. 6) CC foi beneficiário do ISS/CNP, com o nº .... Factos provados quanto à 1ª R: 4) A 1ª R. AA nasceu em ...-...-53, é filha de FF e de GG, e é divorciada. 7) A 1ª R. requereu em 8-7-15 junto do A. a atribuição das prestações por morte, na qualidade de “unida de facto”, tendo apresentado com tal pedido: – uma declaração datada de 30-3-17, emitida pelo Presidente da Junta de Freguesia de ..., donde resulta declarado que a R. viveu em união de facto com CC desde ...-7-77 até ...-6-15; e – uma declaração preenchida e assinada pela própria, sob compromisso de honra, onde afirma que viveu com CC em condições análogas às dos cônjuges, no período entre 2005 e ... de Junho de 2015 na Rotunda ..., na freguesia e concelho de .... 9) Nos dois anos que antecederam a data do óbito, CC deslocava-se, com regularidade não apurada, à habitação sita na Rotunda ..., na freguesia e concelho de ..., onde passava partes do dia. 10) Onde tomava refeições com a 1ª R. 11) Passeavam juntos. 12) Mantinha pertences seus na referida habitação. 13) CC deslocava-se à habitação da Rotunda ..., na freguesia e concelho de ... nas épocas festivas, onde passava parte do dia/noite com a 1ª R. e os filhos comuns. 14) CC e a 1ª R. eram reconhecidos como marido e mulher no círculo de pessoas que os conheciam em comum. 15) Foi a 1ª R. e os familiares em comum que trataram do funeral de CC. Factos relativos à 1ª R. que foram julgados não provados: a) Nos dois anos que antecederam a data do óbito, CC pernoitava na Rotunda ... (morada da 1ª R.) na freguesia e concelho de .... b) Contribuía com a pensão que recebia para as despesas dessa habitação. c) Partilhava o mesmo leito com AA, relacionando-se com esta afetiva e sexualmente. d) Passavam férias juntos. e) Tinham o mesmo círculo de amigos. f) A 1ª R. AA tratou de CC quando este se achou doente, acompanhava-o às consultas médicas, aos exames e tratamentos. Factos provados quanto à 2ª R., ora recorrida: 5) A 2ª R. BB nasceu em ...-...-62, é filha de HH e de II, e é solteira. 8) A 2ª R. requereu em 20-7-15 junto do A. a atribuição das prestações por morte, na qualidade de “unida de facto”, tendo apresentado com tal pedido: – uma declaração datada de 17-7-15, emitida pelo Presidente da Junta de Freguesia de ..., donde resulta declarado que a R. viveu em união de facto com CC desde ...-8-08 até ...-6-15; e – uma declaração preenchida e assinada pela própria, sob compromisso de honra, onde afirma que viveu com CC em condições análogas às dos cônjuges, no período entre Agosto de 2008 e ...-6-15 na R. ..., no .... 16) CC e a 2ª R. mantiveram uma relação afetiva, desde data não determinada, até à data do óbito. 17) Desde data não determinada, mas seguramente antes dos dois anos que antecederam a data do óbito, CC pernoitava na R. ..., no .... 18) Onde tomava refeições. 19) E partilhava o leito com a 2ª R. 20) Mantinha pertences. 21) Convivia com os vizinhos e conhecidos desta, perante quem eram reconhecidos como marido e mulher. 22) CC faleceu na R. ..., no .... Facto não provado quanto à 2ª R.: g) CC contribuía com a pensão que recebia para as despesas da habitação da 2ª R., BB. III – Decidindo: 1. Fixada definitivamente a matéria de facto provada e não provada, a única questão que importa apreciar é se é possível concluir pela existência de uma situação qualificável como união de facto entre a 2ª R. BB e CC que tenha perdurado além dos dois anos que precederam o falecimento deste. Com efeito, sendo o falecido beneficiário da Segurança Social/CNP, o reconhecimento do direito da 2ª R. a prestações sociais depois do óbito daquele depende da sua demonstração. Ora, o A. foi confrontado com duas pretensões relativas ao mesmo beneficiário apresentadas por duas diferentes mulheres, cada uma a invocar a existência de uma situação de união de facto, tendo instaurado a presente ação para dirimir as dúvidas que a situação suscita. Como refere Rita Lobo Xavier, em “O “Estatuto Privado” dos Membros da União de Facto”, em RJLB, ano 2, nº 1, p. 1521 - https://www.cidp.pt - “tratar-se-á de uma ação de simples apreciação negativa, pelo que, embora o ónus da propositura da ação incumba à entidade responsável, competirá ao membro sobrevivo da união de facto comprovar os factos constitutivos do seu direito, nos termos do art. 343º, nº 1, do CC”. As instâncias tiveram a respeito da enunciada questão entendimentos não coincidentes, pois enquanto a 1ª instância negou o estatuto de unidas de facto a qualquer das RR., a Relação, no recurso de apelação interposto unicamente pela 2ª R. BB, reconheceu que se verificava em relação a esta a alegada situação de união de facto. 2. A união de facto constitui uma realidade sociológica cada vez mais frequente sustentada numa multiplicidade de fatores ou de circunstâncias de ordem objetiva e subjetiva, à qual o direito vem atribuindo paulatinamente certos efeitos jurídicos. Não prosseguindo o legislador o objetivo de estabelecer uma total equiparação da união de facto ao casamento, a opção passa pelo reconhecimento de certos direitos ou consequências jurídicas, como ocorre relativamente ao recebimento de prestações da segurança social por morte do outro elemento da união de facto que seja beneficiário. Refere Rossana Martinho Cruz, “União de facto: a pertinência do registo, a problemática da separação de pessoas e bens e a contagem do prazo de convivência”, em Casamento e União de Facto: Questões da Jurisdição Civil, em www.cej.mj.pt, que: “Em Portugal, a união de facto - não raras vezes - surge inorganicamente como uma alternativa informal à conjugalidade. É essa informalidade que levanta muitas questões quando depois se concedem efeitos jurídicos a um relacionamento que existe e se mantém por um comportamento tácito das partes. Outros ordenamentos jurídicos tratam a união de facto, na sua génese e constituição, de forma distinta” (p. 67). Acrescenta que o diploma legislativo português que enquadra a figura da união de facto (a Lei nº 7/01, de 11-5) “pressupõe que a convivência more uxorio (enquanto mera realidade de facto), por si só e sem mais, gera determinados efeitos e direitos. É certo que só poderão ser opostos pela(s) parte(s) que se queira(m) arrogar deles. Mas basta que um pretenda beneficiar dessas prerrogativas que o poderá fazer sem que o outro tenha de concordar” (p. 68). Como refere a mesma autora, entre nós “não existe um regime jurídico denso e vigoroso justamente porque é difícil saber onde nos devemos posicionar entre o respeito pela liberdade de viver na sombra da solenidade e, concomitantemente, não desproteger aqueles que materialmente vivem como pessoas casadas. Como tal, a preocupação tem residido em acautelar situações de crise” (p. 70). No caso, o reconhecimento da união de facto suscitado depois de um dos elementos ter falecido coloca maiores dificuldades no apuramento da situação que realmente se verificava à data do óbito do beneficiário falecido tendo por ponto de referência o relacionamento que é próprio do casamento. Ainda assim, a invocação da situação de união de facto para além de dois anos antes do falecimento do outro elemento surge precisamente no radar das situações de crise que o legislador procurou proteger, fazendo recair sobre quem invoca essa relação o ónus de demonstrar os factos relevantes para o efeito. E, na verdade, segundo Rita Lobo Xavier, ob. cit., p. 1539, “o conjunto de direitos e deveres reconhecidos pela lei no âmbito das relações familiares justifica-se pela importância social das funções que realizam, em regra associadas à solidariedade entre gerações, em geral, e em relação aos filhos, em especial”. 3. A proteção por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime de segurança social pela atribuição da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte está prevista no art. 3º, al. e), da Lei nº 7/01, de 11-5, e no DL nº 322/90, de 18-10. Segundo o art. 8º deste último diploma, o direito às prestações é extensivo às pessoas que vivam em união de facto, situação cuja prova é efetuada nos termos previstos pela Lei nº 7/01. Tendo em conta as alterações introduzidas pela Lei nº 23/10, de 30-8, a atribuição de tais prestações ao membro sobrevivo da união de facto basta-se com a prova da união de facto por mais de 2 anos à data do óbito do beneficiário, tendo deixado de se exigir a prova da necessidade de alimentos. Para se poder afirmar a existência de uma união de facto juridicamente relevante importa que estejam verificados os elementos definidores previstos no art. 1º, nº 2, da Lei nº 7/01, sendo necessário que se esteja perante uma situação jurídica em que duas pessoas vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de 2 anos, sem que se verifique qualquer dos requisitos de exclusão enunciados no art. 2º. O art. 2º-A regula a prova dos factos, destacando a declaração emitida pela Junta de Freguesia, elemento probatório que, em geral, é insuficiente na medida em que se limita a atestar a existência de uma determinada morada comum, facto que no caso nem sequer pôde ser totalmente valorizado, atenta a incompatibilidade decorrente de, na mesma ocasião, outra Junta de Freguesia também ter emitido, a pedido da 1ª R., uma declaração semelhante que atestava que o falecido residia, afinal, com a 1ª R. com quem foi casado. Certo é que, não fora o facto de a 1ª R. ter disputado com a 2ª R. o reconhecimento do direito ao recebimento de prestações sociais por morte do falecido, apresentando também nos serviços do A. um pedido de reconhecimento da situação de união de facto, não haveria muitas dúvidas de que tal relação de facto acabaria por ser reconhecida à 2ª R. em face da declaração emitida pela Junta de Freguesia que a mesma apresentou, associada ao compromisso que subscreveu ao abrigo do art. 2º-A, nº 4, da lei nº 7/01. 4. Confrontados com os factos apurados e também com a falta de prova de outros factos que foram alegados, podemos afirmar que a realidade que deles transparece não corresponderá seguramente ao paradigma de uma união de facto participada pelo falecido e pela 2ª R. BB, quer se tenha em atenção o relacionamento que o falecido continuou a manter com a 1ª R., de quem se divorciara, mas de quem tinha filhos comuns, quer se evidencie a falta de outros factos que caracterizassem com mais pormenor o relacionamento existente com a 2ª R., designadamente os atinentes à existência de uma economia comum. Todavia, em contraponto, também podemos asseverar que a figura jurídica do casamento em que assenta a relação de conjugalidade relativamente à qual deve ser feita a “analogia” a que a lei apela, embora implique um conjunto de deveres legalmente estabelecidos (respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência - art. 1672º do CC) e pressuponha também a escolha de uma residência de família (art. 1673º do CC), não deixa de constituir uma relação multifacetada, na medida em que existe um sem-número de situações que, embora não se encaixem nesse paradigma, não desfiguram a existência de uma relação jurídica de casamento. Para que se afirme a existência de união de facto, o que seguramente deve exigir-se é que exista uma relação de comunhão conjugal manifestada exteriormente por diversos sinais, com especial destaque para a comunhão de habitação, de leito e de mesa que no caso está substancialmente demonstrada. Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5ª ed., p. 56, “a circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns efeitos atribuídos à união de facto. Relações sexuais fortuitas, passageiras, acidentais, não configuram, pois, uma união de facto. A união de facto distingue-se igualmente do concubinato duradouro, por mais longo que este seja”. São, aliás, estes os elementos que verdadeiramente definem uma situação de facto análoga ao casamento, realidade que, assumindo diversas denominações noutros ordenamentos jurídicos, é traduzida em geral pela “vivência em comum na forma simplificada de habitação acompanhada da existência de relações sexuais” (França Pitão, União de Facto no Direito Português, p. 25). Vivência que, como refere este autor, para ser legalmente tutelada, não deve corresponder a “uma relação fugaz, uma aventura amorosa ou encontros esporádicos”, sendo “necessário que a relação adquira contornos tais que seja ou possa ser vista, não só pelos intervenientes, mas também pelas pessoas que os rodeiam e com eles convivem como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas” (p. 28). No mesmo sentido Geraldo da Cruz Almeida, Da União de Facto – Convivência More Uxorio em Direito Internacional Privado, pp. 78 e ss. Como refere Igor Almeida, em A União de Facto no Direito de Proteção Social, p. 10, em https://run.unl.pt: “A dificuldade está em definir o que se deve entender por viver em condições análogas às dos cônjuges e, neste aspeto, a generalidade da doutrina considera que viver em condições análogas às dos cônjuges é viver em comunhão de mesa, leito e habitação”. Mais adiante conclui que a “coabitação é o principal efeito pessoal da união de facto, na medida em que não pode entender-se uma sem a outra. No que toca ao dever de assistência e de cooperação, a lei, efetivamente, é omissa quanto a saber-se se o dever de assistência na sua outra subcategoria de contribuição para os encargos da vida familiar assume alguma relevância na constância da união de facto. Porém tende-se a considerar a existência de um recíproco dever entre os membros da união de facto em contribuírem para os encargos da vida familiar, sem qualquer carácter sancionatório ou cominatório”. (p. 68). Assim já se decidira também no Ac. do STJ, 22-3-18, 6380/16, www.dgsi.pt: I. A união de facto pressupõe uma comunhão de vida análoga à dos cônjuges, ou seja, uma coabitação, na tripla vertente de comunhão de leito, mesa e habitação. II. A vivência em “condições análogas às dos cônjuges” deve ser aferida segundo critérios de normalidade e de vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos. III. Por economia comum, entende-se a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos. Também é relevante enunciar o que foi decidido num caso paralelo no Ac. do STJ, 9-7-14, 3076/11, www.dgsi.pt: 1. A união de facto pressupõe, além do mais, que exista intimidade, a maior parte das vezes sexual, entre os unidos. 2. Alegando a R. que vivia em união de facto com um homem, entretanto falecido, sem aludir expressamente a intimidade entre eles, mas referido que coabitaram a mesma casa, vinham observando os deveres próprios do casamento, nomeadamente o de fidelidade, se respeitavam mutuamente e não tiveram, em todo o tempo que durou a coabitação qualquer outra relação ou compromisso pessoal, deve considerar-se – atenta a necessária elasticidade processual em benefício do fundo sobre a forma – que está alegada a intimidade aludida em 1. 5. No caso concreto, não existem motivos para divergir do que a Relação decidiu quando concluiu pela existência de uma situação de união de facto entre o beneficiário e a R. BB. Com efeito, está provado que o falecido e a 2ª R. mantiveram uma relação afetiva desde data não determinada até à data do óbito, a qual durava seguramente há mais de dois anos antes da data do óbito. Esse relacionamento afetivo traduzia-se no facto de o falecido pernoitar na R. ..., no ..., onde vivia a 2ª R., com quem partilhava o leito e tomava refeições, aí mantendo pertences seus, convivendo com os vizinhos e conhecidos da 2ª R., sendo ambos eram reconhecidos como marido e mulher. Foi nessa morada, aliás, que CC veio a falecer. É verdade que não está completamente demonstrado se tinham ou não uma economia comum, ou seja, se o falecido e a 2ª R. BB partilhavam as despesas domésticas. Não se provou, aliás, que aquele contribuísse com a pensão que recebia para as despesas da habitação. Todavia, não podemos olvidar que a apreciação da natureza jurídica da situação de facto existente entre o falecido e a 2ª R. ocorre no âmbito da mesma ação em que, contra o que também fora alegado pela 1ª R., ex-mulher do falecido, não ficou demonstrado que pernoitasse na sua casa, que partilhasse com ela o leito, que com ela se relacionasse afetiva e sexualmente, que contribuísse com a sua pensão para as despesas comuns ou que passassem férias juntos ou tivessem o mesmo círculo de amigos. Enfim, não se provaram factos que revelassem que a situação de união de facto se tivesse estabelecido com a 1ª R., sendo insuficientes os factos relacionados com a existência de uma proximidade entre ambos justificada pelo anterior casamento que fora dissolvido pelo divórcio e pela existência de filhos comuns. 6. Refere Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, 2ª ed., p. 384, “uma pessoa só pode viver em união de facto com outra, não com duas ou mais”, sendo relevante, isso sim, que exista uma “vivência «em condições análogas às dos cônjuges»”. Por seu lado, segundo Sandra Passinhas, “A União de Facto em Portugal”, acessível através de https://idibe.org, p. 112, “a vivência em condições análogas às dos cônjuges implica a comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mensae et habitationis) e pressupõe ainda a unidade ou exclusividade”, acrescentando em nota que “não encontram tutela neste regime as situações de policonvivência ou de poliamor”. Refere Francisco Pereira Coelho, Estatuto patrimonial da união de facto: possibilidade e limites da extensão (teleológica) do regime do casamento”, na revista Julgar nº 40, p. 100, que “os atos que, no casamento, consubstanciam a execução do «programa contratual» de desenvolvimento de uma plena vida em comum são os mesmos que são praticados no decurso da união de facto e lhe dão corpo, correspondendo precisamente esta união a uma convivência «em condições análogas às dos cônjuges”. Ora, sendo relevante para o reconhecimento de uma situação de união de facto que o comportamento de ambos os elementos seja semelhante ao que deve ocorrer na vigência do casamento, especialmente através de atuações que traduzam analogamente o acatamento dos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência e da existência de uma residência comum, a caracterização como união de facto da relação que se estabelecera entre o falecido e a 2ª R. BB não é infirmada pelo relacionamento de bastante proximidade que o falecido mantinha com a 1º R. de quem se divorciara em 2005. A respeito daquele relacionamento que completa o quadro de vivência do falecido nos últimos anos da sua vida apurou-se apenas que nos dois anos que antecederam a data do óbito, CC deslocava-se com regularidade não apurada à habitação da 1ª R. e especificamente nas épocas festivas, onde passava parte do dia/noite com a 1ª R. e os filhos comuns. Também com regularidade não apurada aí passava partes do dia, onde tomava refeições com a 1ª R., passeavam juntos e mantinha pertences seus na referida habitação, sendo reconhecidos como marido e mulher no círculo de pessoas que os conheciam em comum. Apesar de este nível de relacionamento interpessoal não constituir uma situação muito comum quando se trata de duas pessoas que foram casadas e que entretanto se divorciaram, no caso concreto a justificação da manutenção dos laços com a 1ª R. não pode dissociar-se da circunstância de existirem filhos comuns, propiciando a manutenção de laços de convivialidade, mas sem ultrapassar a barreira das relações de intimidade próprias do casamento que, em face da matéria de facto apurada, existiam entre o falecido e a 2ª R. Se é verdade que a 1ª R. afirmou a exclusividade no relacionamento que mantinha com o falecido, tanto assim que pretendia que lhe fosse reconhecida a situação de união de facto, não logrou demonstrar factos que alegou e que, se tivessem sido demonstrados, revelariam uma situação análoga à de bigamia que acabaria por descaracterizar ambas as relações como “uniões de facto” suscetíveis de serem tuteladas pelo direito, pois, como refere Jorge Duarte Pinheiro, apenas a demonstração da existência de duas relações correspondentes a duas “uniões de facto” poderia determinar a negação de tutela jurídica a qualquer delas. Refere o mesmo autor em O Direito da família Contemporâneo, 2008, p. 645, que “não é concebível que o legislador tenha abdicado do princípio da monogamia quando estão em causa somente uniões de facto. 7. Ora, no caso concreto, para além de não se ter apurado que existisse uma segunda união de facto com a 1ª R., constata-se ainda que o relacionamento mais forte e aquele em que verdadeiramente se revelava a relação de conjugalidade de facto relevante para a presente ação, em termos análogos às que emergem do casamento, era mantido com a 2ª R., tendo em conta a comunhão de habitação, de leito e de refeições e o facto de serem reconhecidos pelos vizinhos e conhecidos da 2º R. como marido e mulher. É ademais significativo o facto de ter sido na sua casa que CC veio a falecer, apesar do que ficou a constar do registo de óbito que foi promovido pelos seus familiares e apesar de ter sido a 1ª R. os filhos dela e do falecido que trataram do funeral. Por isso, tal como o reconheceu a Relação, os factos que se apuraram relativamente à 2ª R. BB fornecem os elementos bastantes para integrar a figura da união de facto que, ademais, não é descaracterizada pelos factos que se apuraram relacionados com a ligação mantida com a 1ª R. IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas da revista a cargo do A. Notifique. Lisboa, 12-1-21 Abrantes Geraldes (relator) Tomé Gomes Maria da Graça Trigo |