Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/12.3GDMDL-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ARGUIDO
DIREITO AO SILÊNCIO
IMPEDIMENTOS
MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA
RECURSO DE REVISÃO
TESTEMUNHA
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: DENEGADA A REVISÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / COMPETÊNCIA POR CONEXÃO - PROVA - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS.
Doutrina:
- Medina de Seiça, O Conhecimento Probatório do Arguido, p.35 e seguintes.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 24.º, N.ºS 1 E 2, 126.º, N.º1 E N.º2, AL. D), 449.º, 460.º, 465.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: - ARTIGO 29.º, N.º6.
Referências Internacionais:
PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS DE 1966: - ARTIGO 14.º, N.º3, AL. G).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
- N.º 376/2000.
Sumário :

I - Os fundamentos do recurso extraordinário de revisão estão taxativamente enunciados no art. 449.º, n.º 1, do CPP.
II - A proibição do arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação ou exclusão dos mecanismos de constrangimentos inerentes à prova testemunhal (juramento, dever de responder com verdade penalmente sancionado), constitui uma expressão do privilégio contra a auto-incriminação, como decorre do art. 14.º, n.º 3, al. g), do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.
III -O impedimento relativo ao arguido surge quando é convocado a depor como testemunha quando não o podia, nem o devia fazer, colocando em causa o direito ao silêncio que lhe assiste enquanto arguido, mas que não tem lugar na qualidade de testemunha.
IV -A negação do direito ao silêncio como arguido, a pretexto da invocação de uma outra qualidade processual, consubstancia um método proibido de prova nos termos da al. d) do n.º 2 do art. 126.º do CPP.
V - Os métodos absolutamente proibidos de prova, por se referirem a bens indisponíveis determinam que a prova seja atingida por uma nulidade insanável, consagrada no n.º 1 do art. 126.º do CPP, com a expressão imperativa “não podem ser utilizadas”.
VI -O recorrente não tem legitimidade para arguir esta proibição de prova, enquanto fundamento do recurso extraordinário de revisão, quando nem a testemunha em causa se sentiu afectada em qualquer um dos seus direitos, nem o detentor da acção penal considerou a sua conduta relevante como integrante dum tipo criminal.
Decisão Texto Integral:

                           Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, Arguido nos autos à margem referenciados, veio, interpor Recurso Extraordinário de Revisão de Sentença proferida pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Mirandela, em 9 de Abril de 2013, de fls 262 a 279, com trânsito em julgado em 18/12/2013, após Recurso Ordinário para a Relação do Porto, nos termos do Art. 449 nº 1Al) D) e E) do C.P.P e Art. 29 nº 6da C.R.P e com os seguintes fundamentos expressos nas conclusões da respectiva motivação de recurso:

O Arguido AA, por sentença datada de 9 de Abril de 2013, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 13/11/2013, já transitado em julgado, foi condenado por:

- Um crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231 nº 1 do C.P, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão efectiva,

- Condenado, parcialmente, no pagamento do pedido cível deduzido pela Demandante Medida XXI- Sociedade de Construções, Lda., na quantia que vier a ser liquidada em sede do incidente previsto nos artigos 378º e ss do C.P.C, quanto ao valor dos objectos identificados no facto provado nº 1, com exclusão dos descritos a fls 47-51 da sentença do Tribunal de Mirandela.

Da Audiência de discussão e Julgamento, resultou uma alteração substancial dos factos e da sua qualificação jurídica.

Os sujeitos processuais, acordaram pela continuação do julgamento.

Da sentença, resultaram os seguintes factos dados como provados:
1. “No dia 12/02/2012, em hora não concretamente apurada, o arguido vendeu À Sociedade “Centro de Reciclagem ... Lda”, com sede no Lugar ... Chaves, representada por BB, nas instalações daquela Sociedade, pelo preço de 597,03 Euros, mediante entrega do cheque com o nº ..., sacado sobre a conta da aludida Sociedade do ..., com o nº ..., os seguintes objectos: (…)” – Ver quadro da Sentença.
2. “Os objectos indicados em 1 perfaziam um peso global de cerca de 2.800 kg, tinham sido subtraídos por desconhecidos, no período compreendido entre os dias 10/02/2012 e 12/02/2012, no estaleiro da demandante, sito na Pedreira, Ponte de Pedra, Torre D. Chama e foram parcialmente restituídos à demandante.”
3. “Ao actuar do modo descrito o arguido agiu com intenção de obter para si o produto da venda de bens que não desconhecia terem sido obtidos mediante facto ilícito contra o património, agindo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que sua conduta é proibida e punida por Lei Penal.”

Para formar a sua convicção sobre a matéria de facto provada e não provada,  o Tribunal considerou os depoimentos das testemunhas D...C..., C...P..., O...L..., V...O..., F...R... e X...S...  a fls 268 da Sentença

A testemunha F...R..., sócio-gerente da Sociedade Centro Reciclagem ..., Lda, asseverou  “que foi o arguido quem lhe vendeu material de ferro velho, pelo preço aposto no cheque de fls 19, na data aposta nesse título de crédito. A respeito da descrição do material que adquiriu ao arguido, explicou que corresponderia a cerca de 2.800 kg de ferro, tendo confirmado que corresponde ao material indicado no auto de apreensão de fls 24.” A fls 269 da Sentença.

Acresce, ainda que, da analise critica da prova testemunhal produzida em sede de Audiência discussão e Julgamento, resulta das fls 270 e 271 da Sentença que:
1. “(…) Importa ter presente que a testemunha X...S... foi peremptório em afirmar que  o material subtraído, pelas suas dimensões e peso não poderia ser transportado por uma só pessoa, sendo necessária a intervenção de várias pessoas, uma vez que não pôde ser utilizado maquinaria”.
2. “Finalmente, para além da venda do material na sociedade Centro de Reciclagem ...., não existe qualquer outro meio de prova que evidencie uma ligação do arguido aos factos que lhe foram imputados.”
3. “Por último, a respeito da materialidade indicada no facto provado nº 3, foram tidos em apreço juízos de experiência e de normalidade, assentes na ponderação da demais factualidade provada, pois um homem médio, colocado  na  posição do arguido, que tivesse adoptado as suas condutas, teria querido e representado a sua actuação, nos termos indicados.”

O depoimento da testemunha F...R... foi determinante para a convicção do Tribunal, nomeadamente, reproduzindo a fls 269 da Sentença “ (…) Sendo certo que o depoimento da testemunha F...R..., conjugado com o recibo de fls 18 e as cópias dos cheques de fls19, permitiu infirmar as declarações do arguido (…)”

Dispõe o número 2 do Art. 231º do C.P que:

“Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legitima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer titulo, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património, é punido com pena até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.”

10º

F...R..., CONFESSOU que, adquiriu 2800 kgs de ferro ao aqui Recorrente

11º

Tendo para o efeito subscrito um cheque que se encontra junto aos autos.

12º

F...R... confirmou ser dono da sucata, Centro de Reciclagem ..., Lda.

13º

As testemunhas, D...C..., C...P..., O...L..., V...O... e X... S..., afirmam todos que, o material objecto dos autos, foi encontrado e apreendido na sucata do Sr F...R....

14º

F...R..., foi testemunha no Processo nº 8/12.3GDMDL que correu termos no Tribunal Judicial de Mirandela.

15º

Testemunha essencial e determinante para a condenação do Recorrente.

16º

As declarações prestadas por F...R... na presença do Exmº Procurador do Ministério Publico e do Meritíssimo Juiz “a quo”, tem natureza criminal, pelo que, não podia assumir a qualidade de testemunha.

17º

A confissão da prática de um crime obrigada à constituição de Arguido.

18º

O tribunal valorou o depoimento da testemunha F...R..., não o podia ter feito, porque constitui, ilegalidade da prova obtida.

19º

A conduta de F...R... subsume-se no nº 2 do Art. 231º do C.P, pelo que, devia a mesma testemunha ter sido ouvida como arguido e não como testemunha.

20º

Contudo, o tribunal “não se apercebeu” que as declarações das testemunhas a incriminavam a si e ao aqui Recorrente, permitindo que, o seu depoimento prosseguisse.

21º

O depoimento da testemunha F...R... foi colhido de forma ilegal.

22º

O Sr. Procurador, não requereu a promoção do processo, nos termos dos Art. 48º do C.P.P e  Art. 219º da C.R.P.

23º

 Estamos perante a nulidade absoluta insanável, plasmada na Al) b) do Art. 118º do C.P e nº 1 do Art. 219ª da C.R.P, fundamento do presente recurso.

24º

Nulidade que, por força da aplicação do Art. 122º do C.C.P torna inválido o acto em que se verificou e os restantes conexos.

25º

Não existe outra solução que, a declaração de nulidade e a, consequente, repetição de Julgamento.

26º

As declarações da testemunha que deveria ser Arguido, foram determinantes para a decisão condenatória conforme se transcreve a fls 270 da sentença.

27º

Assim, as declarações prestadas por alguém que não é suspeito, mas que, no decorrer das mesmas se verifica que, existem suspeitas,  mais do que, fundadas da sua responsabilidade criminal nos factos em julgamento, terá de  se respeitar a disciplina dos artigos 48º, 57.º a 67.º e 144.º do Código de Processo Penal.

28º

As declarações prestadas fora do quadro  legal que integra o estatuto do arguido não podem ser valoradas contra si e nem podem ser aproveitadas contra outros sujeitos processuais.

29º

Nem tão pouco, contra o aqui Recorrente, como veio a suceder.

30º

Em sede de audiência e, na fase de inquérito, órgãos de polícia criminal e o Ministério público fizeram tábua rasa das declarações prestadas pelo Sr F...R....

31º

Constituindo prova proibida as declarações da testemunha não podem ser valoradas.

32º

Por isso, não podem servir para a fundamentação quanto à decisão de facto como acontecera.

33º

O tribunal “a quo” ao ter dado como provada a matéria de facto constante dos pontos supra mencionados, dos factos provados, errou na apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

34º

E, não podem ser valoradas, porque, nascem de um método proibido de prova e por isso constituem prova proibida e fundamento do presente recurso nos termos da Al) e) do Art.449º do C.P.C.

35º

Com efeito, a decisão de que se recorre extraordinariamente, suscita graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

36º

O aqui Recorrente, foi injustamente condenado.

37º

Tendo o direito à revisão de sentença, constitucionalmente consagrado no nº 6 do Art. 29º e ainda a uma justa indemnização pelos danos sofridos.

38º

A não promoção por parte do Ministério Publico, face ás declarações prestadas pela testemunha F...R..., viola, grosseiramente, o Principio da Igualdade consagrado na Constituição da República Portuguesa, nos nº 1 e 2 do Art. 13º, que prevê a mesma dignidade social e igualdade para todos os cidadãos perante a Lei.

39º

O Sr F...R... não foi constituído Arguido, quando o deveria ter sido e julgado em conformidade, juntamente, com o aqui Recorrente, o que, não sucedeu.

40º

Teve, claramente, um tratamento privilegiado e beneficiado face ao aqui Recorrente, o que, num Estado de Direito, não pode suceder.

41º

Este recurso extraordinário constitui um Direito Fundamental do aqui Recorrente, por ser, à Luz da CRP e do Direito Penal, um cidadão injustamente julgado.

42º

O propósito deste Direito constitucionalmente consagrado, é de, prosseguir as exigências da verdade material e de justiça.

43º

Na Lei Processual Penal, este equilíbrio é conseguido a partir do reconhecimento que o caso julgado tem que ceder, como o caso sub judice.

44º

In casu, o caso julgado está ferido de nulidade insanável e foram valoradas provas obtidas de forma ilegal.

45º

Foram violados, Princípios constitucionalmente consagrados, a saber o Principio da Igualdade e o Dever de promoção por parte do Ministério Público, plasmados nos Artigos 13º e 219º nº 1 da C.R.P.

46º

Por todo o exposto, não subsistem dúvidas de que, a condenação destes autos convence da sua injustiça, havendo fundamentos para a rever, nos termos das Alíneas d) e e) do Art. 449º do C.P.

Termina pedindo a procedência do presente Recurso Extraordinário de Revisão, devendo ser declarado nulo todo o processado nos autos nº 8/12.3GDMDL, 1º Juízo do Tribunal Judicial de Mirandela, com as legais consequências, nomeadamente, pela imediata suspensão da execução e ainda, a fixação de justa indemnização a ser liquidada em execução de sentença.

O Ministério Público veio nos termos do disposto no art. 413°, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, apresentar a sua resposta ao recurso interposto nos autos à margem referenciados concluindo que:

1.         O recurso interposto não tem qualquer fundamento legal;

2.         Com efeito, os fundamentos taxativos deste recurso extraordinário, enunciados no artigo 449º do Código de Processo Penal, não estão preenchidos no caso dos autos;

3.         Nesta concomitância, o recurso interposto deverá ser considerado totalmente improcedente.

            No sentido da improcedência se pronunciou a Exª Srª Procuradora Geral Adjunta.

                                    Os autos tiveram os vistos legais

                                                           *

I

-Conforme já tivemos ocasião de referir (vide, por todos decisão proferida no recurso 543/08) dispõe o nº 6 do artigo 29.° da Constituição, os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

Uma decomposição do normativo revela o facto de o mesmo pretender atingir o equilíbrio entre dois conceitos caros ao processo penal: -por um lado o direito a uma decisão justa, que faz parte do património de qualquer cidadão, e, por outro, a necessidade de revestir a mesma decisão judicial da estabilidade que conforta a certeza e segurança da definição jurídica e social.

Por alguma forma Figueiredo Dias nos dá notícia da necessidade de superação desta antinomia referindo que a justiça é, por certo, fim do processo penal, no sentido de que este não pode existir validamente se não for presidido por uma directa intenção ou aspiração de justiça. Isto não obsta, porém, a que institutos como o do «caso julgado», ou mesmo princípios como “o in dubio pro reo”, indiscutivelmente de reconhecer em processo penal, possam conduzir, em concreto, a condenações e absolvições materialmente injustas.

Continuar a afirmar, perante hipóteses destas, que a justiça foi, em absoluto, fim do processo penal respectivo, pode ser, ainda, ideal e teoreticamente justificável- v. g. porque se argumente que as exigências de segurança surgem ainda como particular modus de realização do Direito e, por conseguinte, do «justo», quando este se lança no contexto amplo de todos os interesses sociais conflituantes -, mas é também, seguramente, renunciar à obtenção de um critério prático adequado de valoração das normas e problemas processuais.

Mais adianta o mesmo Mestre que também a segurança é fim do processo penal O que não impede que institutos como o do «recurso de revisão» contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania aos puros valores da «justiça» e da «segurança», não cedendo à tentação fácil de os absolutizar: é um facto comprovado nada haver de mais perigoso que a absolutização de valores éticos singulares, pois aí se inscreverá a tendência irresistível para uma santificação dos meios pelos fins.

Importa sim reconhecer que se está aqui, como em toda a autêntica «questão-de-direito», mesmo no cerne de uma ponderação de valores conflituantes, cujo resultado há-de corresponder ao ordenamento axiológico do Direito, há-de constituir a síntese das antinomias entre justiça e segurança encontrada no degrau mais elevado da ordem jurídica.

De novo, porém, surge a pergunta: como tirar desta verificação um critério prático prestável para a valoração das singulares normas e problemas processuais?

Se persistirmos em traduzir numa fórmula o resultado da ponderação de valores que no processo penal conflituam, cremos que, com razoável exactidão, poderemos ver o fim do processo penal em obstar à insegurança do direito que necessariamente existe «antes» e «fora» daquele, declarando o direito do caso concreto, i. é, definindo o que para este caso é, hoje e aqui, justo. O processo penal, longe de servir apenas o exercício de direitos assegurados pelo direito penal, visa a comprovação e realização, a definição e declaração do direito do caso concreto, hic et nunc válido e aplicável.

Esta necessidade de justiça no caso concreto e de superação de situação que encerra uma insuportável violação da mesma leva o legislador á consagração do recurso de revisão, prevendo a quebra do caso julgado e, portanto uma severa limitação ao princípio de segurança jurídica inerente ao Estado de Direito. Porém, como se referiu só circunstâncias “substantivas e imperiosas” devem permitir a quebra de caso julgado por forma a que este recurso extraordinário não se revele numa apelação “disfarçada”

Como refere o acórdão 376/2000 do Tribunal Constitucional trata-se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito, consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar.

No novo processo não se procura a correcção de erros eventualmente cometidos no anterior, e que culminou na decisão revidenda, porque para a correcção desses vícios terão bastado, e servido, as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias. Isto é; os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são o indício indispensável para a admissibilidade de um erro judiciário carecido de correcção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento (cf. artigo 460º do CPP), tal como, nos casos em que for admitida a revisão de despacho que tiver posto ao processo, o Supremo Tribunal de Justiça declara sem efeito o despacho e ordena que o processo prossiga, obviamente que no tribunal a quo (artigo 465º).

Compreende-se a esta luz que a lei não seja permissiva ao ponto de banalizar e, consequentemente, desvalorizar a revisão, transformando-a na prática em recurso ordinário, endo-processual neste sentido – a revisão não pode ter como fim único a correcção da medida concreta da pena (nº 3 do artigo 449º) e tem de se fundar em graves dúvidas lançadas sobre a justiça da condenação.

    II

É, assim, dentro deste enquadramento, que, no caso vertente, se devem perspectivar os fundamentos do recurso de revisão, ou seja, a circunstância de os mesmos configurarem uma ultrapassagem da certeza e segurança inscritas no princípio do caso julgado a qual só admissível em função da comprovação uma situação prevista no normativo citado. A revisão visa, não uma reapreciação do anterior julgado, mas sim uma nova decisão assente em novo julgamento da causa, com base em novos dados de facto.

Versa sobre a questão de facto.

Os fundamentos taxativos deste recurso extraordinário vêm enunciados no artigo 449º do Código de Processo Penal e são apenas estes:

Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

 Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

 Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

 Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos nºs 1 a 3 do artigo 126°;

 Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça

No caso concreto o requerente refere, no essencial, que a conduta da testemunha  F...R... se subsume no nº 2 do Art. 231º do C.P, pelo que deveria a mesma testemunha ter sido ouvida como arguido e não como testemunha. Conclui, assim, que estamos perante a nulidade absoluta insanável, plasmada na al) b) do Art. 118º do C.P e nº 1 do Art. 219ª da C.R.P, fundamento do presente recurso e essa nulidade que, por força da aplicação do Art. 122º do C.P.P torna inválido o acto em que se verificou e os restantes conexo pelo que não existe outra solução que, a declaração de nulidade e a, consequente, repetição de julgamento.

Significa o exposto que o recorrente pretende esgrimir com uma eventual proibição de prova resultante da circunstância de uma testemunha dever ser, em seu entender, ouvida como testemunha uma vez que existem elementos que a incriminam pela prática dum crime conexo ou seja argumenta-se com a circunstância de terem servido de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos nºs 1 a 3 do artigo 126°.

A norma em causa alude, nos seus números 1 e 2, ao conceito “co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos” e “arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo”. A situação de co-arguido resulta da circunstância de se responder criminalmente conjuntamente com outrem que detém a mesma qualidade A conexão processual a que se alude resulta da aplicação do artigo 24 do Código de Processo Penal.

            Como refere Medina de Seiça (O Conhecimento Probatório do Arguido pag 35 e seguintes) a justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha encontra a sua razão de ser essencial na ideia de protecção do próprio co-arguido. Fazendo apelo á formulação do Supremo Tribunal Federal alemão (BGH), «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo o preço», pelo que se sublinha que um dos mais marcantes limites à investigação passa pelo respeito da liberdade de declaração que o Estado tem de reconhecer aos diversos participantes processuais, sob pena de a "verdade" alcançada ser comunitariamente insuportável.

            A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação ou exclusão dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal (juramento, dever de responder com verdade penalmente sancionado), constitui uma expressão do privilégio contra a auto-incriminação, como decorre do art. 14.°, n° 3, alínea g), do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 onde se refere que «qualquer pessoa acusada de uma infracção criminal terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias: ( ... ) a não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada».

            O impedimento expresso no artigo, adianta o Autor citado, não se traduz, apenas, na limitação ao testemunho contra si próprio por parte do arguido, na medida em que o seu direito a não responder abrange todas as perguntas que lhe sejam feitas, independentemente do conteúdo intrínseco da resposta. O alargamento do impedimento – ou seja, o alargamento do direito do arguido ao silêncio e a não ser punido por crime de falsas declarações - ao próprio co-arguido emerge desta matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão privilegiada do direito de defesa, entendida neste contexto como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a «defender-se não provando através do testemunho sobre facto de outro, circunstância que poderia comprometer a própria posição processual”. Consubstancia-se aqui, tal como no direito ao silêncio do arguido tout court, a consagração do impedimento representa uma renúncia por parte do Estado à «colaboração forçada» na investigação e condenação de factos criminosos de quem é alvo precisamente dessa investigação.

Em ultima análise o recorrente pretende chamar á colação o numero 2 do artigo 133 do CPP que consagra o principio da não auto incriminação da testemunha e, consequentemente, o seu direito ao silencio. Como referem Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos (O Direito a não Auto-incriminação (Nemo Tenetur se Ipsum Accusare) No Processo Penal e Contra-Ordenacional Português; Coimbra; Coimbra Editora; pag. 20) “a testemunha deve prestar juramento e deve responder com verdade às perguntas que lhe forem feitas, salvo se das respostas resultar a possibilidade da sua responsabilização penal. Sempre que isto acontecer a testemunha pode remeter-se ao silêncio e, querendo, requerer a sua constituição como arguida. Deste modo se evita que um suspeito seja chamado a depor como testemunha e, por estar vinculado ao dever de verdade, seja obrigado a declarar contra si próprio e a auto-incriminar-se.”

Pode-se concluir que, no sistema processual penal português, e titular do direito ao silêncio o arguido e, além dele, todas as pessoas que, não o sendo, podem ser determinadas por agentes da administração da justiça penal a declararem contra si mesmas.

                                                                   *

Refere Medina de Seiça (Conhecimento Probatório do arguido pag. 94) lei, ao prescrever o impedimento do arguido de depor como testemunha não lhe comina qualquer sanção. Todavia, dessa omissão não pode concluir-se que a violação do preceito apela tão-somente para o ténue regime das irregularidades processuais e, pelo contrário, o desrespeito pela proibição de testemunho convoca uma autêntica proibição de prova. Com efeito ao prescrever o impedimento de co-arguido depor como testemunha o legislador determina que esse conhecimento não deve chegar ao processo pela forma estabelecida para o depoimento testemunhal, definindo, pela negativa, os actos admissíveis de testemunho.

Desta forma a violação configura uma proibição de produção de prova na forma de proibição de meio de prova. Esta, por seu turno, convoca uma verdadeira proibição de valoração. No mesmo sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário…4a edição pag. 373) para quem o artigo prevê uma verdadeira proibição de prova no que respeita ao depoimento do arguido.

            A proibição de prova resultaria da intromissão na vida privada do arguido submetido a inquirição como testemunha na medida em que viola o seu direito ao silêncio. Para o mesmo Autor a violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo consentimento do titular do direito, isto e, do arguido indevidamente ouvido como testemunha (artigo 126, nº 3 do CPP).Dito de outro modo o declarante pode, querendo, ratificar o anterior depoimento, prestado na qualidade de testemunha, depois de ter sido devidamente esclarecido do seu direito a recusar depoimento

Perfilhamos, assim, o entendimento de que o impedimento relativo ao arguido surge quando o mesmo e convocado a depor como testemunha quando não o podia, nem o devia fazer, colocando em causa directamente o direito ao silêncio que lhe assiste enquanto arguido, mas que não tem lugar na qualidade de testemunha. A negação do direito ao silêncio como arguido, a pretexto da invocação de uma outra qualidade processual, consubstancia um método proibido de prova nos termos do nº 2 alínea d) do artigo 126o do Código de Processo Penal.

 Porém, para que tal sucede é necessário que se conclua que a testemunha em causa assuma um lugar processual incorrecto porquanto deveria estra presente como arguido e tal não aconteceu, nem acontece no caso vertente e certamente que não é o recorrente que, substituindo-se à autoridade judiciária vem definir quem assume os diferentes papeis no desenrolar do processo.

                                                                *

III

Continuando a elaborar sobre a invocada existência duma proibição de prova importa salientar que a nulidade resultante da prova proibida pode ser de conhecimento oficioso ou sujeita a arguição dos sujeitos processuais. Se a mesma ofende o direito a integridade a que alude o artigo 126º nº 1 e 2 do Código de Processo Penal pode ser conhecida oficiosamente ou a requerimento; se em causa estiver o direito a privacidade a que alude o nº 3 do mesmo normativo então o seu conhecimento depende da invocação do titular do direito colocado em causa Na verdade, e como afirma Conde Correia (ibidem) o legislador constitucional consagrou um regime de invalidades segundo o qual quanto maior for a gravidade do vício de que enferma o acto, maior deve ser a sanção processual aplicável e menor a possibilidade de sobrevivência do acto ser praticado (...) e em que os casos mais graves são enumerados expressa e restritivamente, ao lado de uma cláusula geral válida para outras situações”.

Os métodos absolutamente proibidos de prova, por se referirem a bens absolutamente indisponíveis determinam que a prova seja atingida por uma nulidade insanável qual esta consagrada na expressão imperativa “não podem ser utilizadas” consagrada no art. 126º nº 1 do CPP. Efectivamente, há casos de atentados extremos a pessoa humana de tal modo que os meios de prova obtidos com violação daqueles e intolerável; há, no entanto, outros em que, dentro de certos condicionalismos, e de admitir a sua ponderação com outros valores de igual, ou superior, dignidade axiológica, abandonando o legislador ordinário aquela tutela absoluta, e incontornável, para cair numa inadmissibilidade meramente relativa de tais meios de prova como forma de salvaguardar valores de irrecusável prevalência transcendentes aos meros interesses da perseguição (Costa Andrade, in Sobre os Meios de Prova em Processo Penal, pág. 45; cf. ainda Conde Correia, in RMP, Ano 20, Julho /Setembro, 1999, pág. 53).

Importa, porem, salientar que um dos principais argumentos utilizados, anteriormente a reforma encetada pela Lei 48/2007, no estabelecer da distinção entre a necessidade, ou não, da arguição como característica genética diferenciadora entre o regime da proibição do no 1 e no 3 residia no facto de este ultimo não conter a referencia a proibição de utilização. Sucede que, com a alteração introduzida pela referida lei, também a proibição do no3 tem associada a expressa proibição de valoração. Porem, como refere Costa Andrade (Bruscamente no Verão Passado….Coimbra, Coimbra Editora,2009 pág. 136 e 137) “é certo que entre o nº 1 e o nº 3 do artigo 126º mediava – e continua a mediar – uma significativa diferença. Só que ela não se situava ao nível da consequência jurídica (nulidade/proibição de valoração), mas antes ao nível da fattispecie ou hipótese legal. O n º 1 do artigo 126º proíbe e sanciona os atentados mais graves e intoleráveis à dignidade e integridade pessoais e tal sucede independentemente do consentimento da pessoa concretamente atingida que é irrelevante. Na verdade, à face do actual estádio civilizacional, tais proibições (v. g., da tortura)  não se revestem apenas de uma valência pessoal-individual e são, também, “instituições” irrenunciáveis do processo penal do Estado de Direito e são, por isso, indisponíveis.”

Ainda na esteira deste Autor pode-se afirmar que, em relação ao nº 3 do presente artigo, só a coerção e o arbítrio, isto é, só a ausência de consentimento, determinam a reacção contrafáctica da proibição de valoração; em relação ao nº 1 e 2, a lei prescreve a proibição de valoração, em nome de uma presunção geral, abstracta e não elidível, de arbítrio e coerção. De um lado, o que releva é o atentado à autonomia individual; no outro é (também) o atentado contra valores supra-individuais fundamentais, pertinentes ao núcleo irredutível do Estado de Direito e, mesmo, da civilização. Consequentemente, e logica a conclusão de que, nesta hipótese, e a vontade do titular do direito, expressa no consentimento, ou na arguição da nulidade resultante da proibição de prova, que constitui, também, o elemento essencial do respectivo regime processual. (no mesmo sentido Código de Processo Penal dos Magistrados do Ministério Publico do Porto, Coimbra, Coimbra Editora; 2009 pág. 325 e Paulo Pinto de Albuquerque Comentario ao Codigo de Processo

Penal, 4a edição, pág. 335 e seg.)

  Sucede que, no caso vertente nem a testemunha em causa se sentiu afectada em qualquer um dos direitos constantes do respectivo catálogo nem o detentor da acção penal considerou a sua conduta relevante como integrante dum tipo legal criminal.

 É o recorrente o único interveniente que vem argumentar com a eventual duplicidade da posição processual da testemunha o que, como tal, é absolutamente irrelevante para a consideração da existência duma proibição de prova.

Em suma, o recorrente vem a arguir uma proibição de prova sendo certo que não tem legitimidade para tal arguição 

                                                                      *

IV

Na sua relevância para a procedência do recurso de revisão importa ponderar que pelo recorrente foi requerida a produção de prova testemunhal como fundamento de um juízo de existência de graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Tal prova resume-se à indicação de prova testemunhal sem que esclareça de qual o seu objectivo.

            Efectivamente, no que concerne a este específico segmento da norma fundamentadora do juízo de revisão os “factos” ou “meios de prova novos” são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderam ser apresentados antes deste ("aqueles que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado", nos termos do citado acórdão do TC nº 376/2000). Consequentemente, é insuficiente que os factos sejam desconhecidos do tribunal, devendo exigir-se que tal situação se verifique, paralelamente, em relação ao requerente.

            Os factos, ou provas, devem ser novos e novos são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderam ser apresentados antes do julgamento e apreciados neste. A "novidade" dos factos deve existir para o julgador (novos são os factos ou elementos de prova que não foram apreciados no processo) e, ainda, para o próprio recorrente.

            Na verdade, consubstanciaria uma afronta do princípio da lealdade processual admitir que o requerente da revisão apresentasse os factos como novos não obstante ter inteiro conhecimento no momento do julgamento da sua existência. Tal entendimento, que não se sufraga, faria depender a revisão de sentença de um juízo de oportunidade do requerente, formulado á revelia de princípios fundamentais como é o caso da verdade material ou da referida lealdade. A prova que já se conhecia, mas foi sonegada ao conhecimento do Tribunal, seria apresentada para fundamentar o recurso de revisão, desqualificando, e tornando trivial, uma estratégia processual sem ética, ou valores, em que apenas vingaria um princípio da oportunidade no sentido mais negativo

            Se o requerente tem conhecimento, no momento do julgamento, da relevância de um facto, ou meio de prova, que poderiam coadjuvar na descoberta da verdade e se entende que o mesmo lhe é favorável deve informar o Tribunal. Se não o fizer, jogando com o resultado do julgamento, não pode responsabilizar outrem, que não a sua própria conduta processual. Se, no momento do julgamento, o requerente conhecia aqueles factos, ou meios de defesa, e não os invocou, não se pode considerar que os mesmos assumem o conceito de novidade que o recurso de revisão exige, encontrando-se precludida a mesma invocação.

            Como refere Paulo Pinto Albuquerque a lei não permite que a inércia voluntária do arguido em fazer actuar os meios ordinários de defesa seja compensada pela atribuição de meios extraordinários de defesa ou, como se diz no acórdão do TC nº 376/2000, "No novo processo, não se procura a correcção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou na decisão revidenda, porque para a correcção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias". Só esta interpretação faz jus à natureza excepcional do remédio da revisão e, portanto, aos princípios constitucionais da segurança jurídica, da lealdade processual e da protecção do caso julgado.

   Conclui-se assim que, inexistem quaisquer factos ou meios de prova susceptíveis de suscitar graves dúvidas sobre a justiça da decisão pelo que se determina a improcedência do presente recurso.  

 Custas pelo recorrente.

Taxa de Justiça 4 UC


Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
Pereira Madeira