Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1727
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ALTERAÇÃO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ200310020017272
Data do Acordão: 10/02/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8175/02
Data: 11/14/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : É inadmissível a alteração, através do processamento da jurisdição voluntária, do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado por sentença transitada em julgado, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" requereu, no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, contra B, a presente providência de jurisdição voluntária de alteração do acordo de atribuição da casa de morada de família e a fixação, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2001, de uma renda devida pela requerida no montante de 90.000$00/mês.
Alegou, para tanto e em síntese, ter sido acordado no processo de divórcio por mútuo consentimento, a atribuição, a título gratuito, da casa de morada de família, propriedade exclusiva do requerente, à requerida e até ao termo normal de formação escolar dos filhos comuns, mas desconhecendo o requerente, em absoluto, o mercado de arrendamento a que teve de recorrer para satisfazer as suas necessidades de habitação, foi confrontado com a necessidade de arrendar, por 200.000$00/mês, uma casa semelhante à que foi atribuída à requerida, valor imprevisível, criando grave desproporção à sua situação económica em relação à da requerida.
Posteriormente, ampliou o pedido no sentido de abarcar a obrigação da requerida pagar a pretendida renda, acrescida da aplicação do coeficiente de actualização anual legal e ainda do valor da comparticipação extraordinária para a administração do condomínio no valor de 32.000$00, entre 1 de Julho de 2001 e 30 de Junho de 2002.
Contestando, a requerida pugnou pela inalterabilidade do acordo, salvo pela superveniente alteração das circunstâncias, o que não acontece in casu.
Frustrada a tentativa de conciliação e instruído o processo, foi proferida sentença a julgar improcedente o pedido, decisão que veio a ser confirmada pela Relação de Lisboa com a negação do provimento à apelação interposta pelo requerente, que, inconformado, pede agora revista do correspondente acórdão, formulando as seguintes conclusões:
1. O acórdão recorrido é nulo ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. d) do CPC, pois, embora tenham sido alegados diversos motivos de deficiência da decisão sobre a matéria de facto a fls. 365, nomeadamente nos pontos 14, 15 e 16 das alegações,
2. O acórdão recorrido é nulo ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. d) do CPC pois, embora tenha sido alegada a imprecisão da decisão sobre a matéria de facto, na parte em que considerou provado o facto relacionado sob o nº. 14 do acórdão recorrido;
3. O acórdão recorrido é nulo ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. d) do CPC por não ter apreciado nem decidido a questão suscitada pelo requerente da errada decisão da 1ª instância sobre os incidentes processuais e o condenou indevidamente nas custas, pois aquele obteve vencimento (ao abrigo do disposto nos artigos 446º, nº. 1 e 543º do CPC);
4. O acórdão recorrido ainda é nulo ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. d) do CPC por não ter apreciado a questão suscitada pelo requerente do erro de julgamento quanto a custas ao ter fixado o valor da acção em 20.000,00 euros.
5. O acórdão recorrido violou o artigo 515º do CPC desconsiderando o princípio da aquisição processual nele estabelecido ao decidir que não era relevante para a decisão dos presentes autos o facto alegado pela requerida no artigo 16º da réplica do apenso;
6. O acórdão ainda é nulo ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. c) do CPC ao ter considerado a existência de erro na decisão da matéria de facto, mas tendo concluído pela inexistência de obscuridade da decisão;
7. O acórdão recorrido incorreu em nulidade nos termos do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. d) do CPC por ter deixado sem resposta grande parte da fundamentação das alegações do requerente, suportada por referência a vasta doutrina e jurisprudência, segundo a qual a 1ª instância errou na aplicação da norma jurídica aplicável ao caso sub judice;
8. O acórdão recorrido também merece censura do ponto de vista da aplicação do direito, por violação do disposto nos artigos 437º, 1778º e 1793º, todos do Código Civil;
9. O artigo 437º não é a norma adequada para dirimir os normais litígios, como é o caso dos autos, concernentes às concretas condições de utilização da casa de morada de família, em que se deve acautelar devidamente os interesses dos cônjuges e dos filhos, sob pena de recusa de homologação judicial, o que constitui um desvio fundamental ao princípio da liberdade de contratar consagrado no artigo 405º do CC;
10. O conteúdo desses acordos, na parte em que apenas estejam em causa os interesses dos cônjuges, tal como sucede no conflito sub judice, está sujeito ao critério legal da equidade;
11. O artigo 1778º deve considerar-se aplicável por interpretação extensiva à hipótese dos autos, em que se requer a modificação do acordo atributivo da casa de morada de família, por a sua execução se revelar altamente lesiva dos legítimos interesses do recorrente, o que é proscrito pelo critério legal de equidade ali acolhido;
12. Caso assim não se entenda, deverá então aplicar-se o preceituado no artigo 1793º, nº. 2 do CC, segundo o argumento a maiori ad minus;
13. Nada impede a aplicação do artigo 1793º, nº. 2 à hipótese dos autos, também por via de interpretação extensiva, em consonância com o preceituado no artigo 11º do CC;
14. Do negócio jurídico que atribuiu o gozo gratuito da casa de morada de família à recorrida não nasceu necessariamente um direito real de habitação;
15. Havendo dúvidas sobre qual tenha sido o sentido da declaração, deve aplicar-se o critério normativo oferecido pelo artigo 237º do CC, o qual determina que, em sede de negócios gratuitos, prevalece o que for menos gravoso para o disponente, em conformidade, aliás, com os critérios legais constantes do artigo 1778º;
16. O gozo gratuito pela recorrida da que foi a casa de morada de família faz as vezes de uma obrigação alimentar no montante correspondente ao seu valor locativo, a qual é modificável em conformidade com o artigo 2012º do CC;
17. Deve ser modificado o acordo atributivo da casa de morada de família, porque visa colmatar a situação de necessidade económica em que se encontra, sendo integralmente compatíveis com os níveis de rendimento da recorrida.

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Vêm provados os seguintes factos:
1º- O requerente e a requerida acordaram, em audiência de discussão e julgamento, no dia 6 de Novembro de 2000, na acção de divórcio litigioso, intentada pela requerida contra o requerente, em converter o divórcio para mútuo consentimento e quanto à utilização da casa de morada de família, nos seguintes termos:
1. A casa de morada de família, sita na rua ..., em Lisboa, que é bem próprio do requerente, fica a ser utilizada por ambos os requerentes até ao dia 30 de Junho de 2001, e a partir dessa data apenas pela requerida;
2. A utilização da casa de morada de família pela requerida será gratuita e perdurará pelo tempo razoável para que ambos os filhos menores do casal completem a sua educação, entendendo-se como tal o prazo razoável para a obtenção de licenciatura em curso superior ou equivalente;
3. O requerente e a requerida declararam ainda, no mesmo acto, que o exercício do poder paternal relativo aos filhos menores, nascidos nos dias 12 de Setembro de 1984 e 4 de Julho de 1986, foi regulado na acção de regulação do exercício de poder paternal que correu termos sob o nº. 191-A/96, na 3ª secção do 2º Juízo do Tribunal de Família de Lisboa, a obrigar-se reciprocamente a, no prazo de dez dias, a contar do trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de divórcio, requerer por apenso ao processo de regulação do exercício do poder paternal, a alteração da regulação nos termos seguintes:
1º O poder paternal dos seus filhos menores será exercido conjuntamente por ambos os pais;
2º Cada um dos menores, em conjunto ou separadamente, passará com cada um dos pais, os períodos de tempo que entender;
3º Até 30 de Junho de 2001, mantém-se a comparticipação de cada progenitor nos encargos com o sustento e educação dos menores, nos exactos termos da regulação do exercício do poder paternal actualmente em vigor;
4º A partir de 1 de Julho de 2001, correrão por conta de cada progenitor os encargos com a alimentação em sentido próprio, nos períodos em que coabitarem os menores;
5º A partir de 1 de Julho de 2001, as semanadas dos menores serão pagas, alternadamente por um e outro dos progenitores, sendo actualizadas a partir daquela data, para 6.000$00;
6º A partir de 1 de Julho de 2001, os encargos com a educação e saúde dos filhos correrão por conta do pai, consignando-se que as despesas de educação incluem as actividades desportivas;
7º A partir de 1 de Julho de 2001, as despesas de vestuário e calçado dos menores serão suportadas pela mãe;
8º No dia 1 de Julho de 2001, os menores cessarão a frequência do Colégio ... e ingressarão no ensino público;
3º- Os acordos referidos em 1º e 2º foram definitivamente homologados por decisão de 6 de Novembro de 2000, na qual também se decretou o divórcio por mútuo consentimento entre o requerente e a requerida e se declarou dissolvido o casamento que entre si celebraram, sob o regime de separação de bens no dia 21 de Janeiro de 1983, que transitou em julgado no dia 1 de Março de 2001;
4º- A habitação actual do requerente, composta por quatro divisões, cozinha e casa de banho, localizada na rua ..., apartamento ..., freguesia de N. Senhora de Fátima, foi tomada de arrendamento, por aquele, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2001, pela renda mensal de 200.000$00;
5º- A habitação referida em 4º é de nível equivalente à utilizada pela requerida;
6º- O requerente auferia, em Dezembro de 2000, como professor associado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, a remuneração líquida mensal de 486.411$00, que, em 2001, foi aumentada para 511.833$00 mensais líquidos;
7º- O requerente lecciona nas instalações da Universidade Nova na Caparica, o que obriga a uma deslocação diária, 22 úteis por mês, de ida e volta de 32 Km, que importam numa despesa global mensal de cerca de 40.000$00;
8º- O requerente suporta os encargos com o condomínio, a contribuição autárquica e a taxa de conservação de esgotos da casa utilizada pela requerida, que, em 2000, representou um encargo de 224.000$00;
9º- A assembleia de condóminos do prédio no qual se situa a casa utilizada pela requerida deliberou, no dia 6 de Junho de 2001, a fixação de uma comparticipação mensal extraordinária, devida a partir de 1 de Julho de 2001 até 30 de Junho de 2002, para financiar obras de conservação do imóvel, tendo o requerente pago a primeira prestação mensal, no valor de 32.000$00, no dia 30 de Junho de 2001;
10º- A comparticipação referida em 9º acresce às prestações normais trimestrais de condomínio, que, em 2001, eram de 34.759$00;
11º- O requerente era titular, em 19 de Dezembro de 2001, de 37.180 certificados de aforro Série B, com o valor global de resgate de 22.729,14 euros - 44.653.183$00;
12º- O requerente é titular e administra vários prédios, designadamente urbanos, que estão arrendados, dos quais recebe rendimentos e administra e explora, com um irmão, uma empresa agrícola em Almeirim;
13º- A empresa agrícola referida em 12º tem apresentado, nos últimos cinco anos, prejuízos que são cobertos pelo requerente com os rendimentos prediais que percebe;
14º- O requerente faz despesas com a sua alimentação, vestuário, calçado, material de estudo e recriação e suporta encargos com o sustento, a alimentação, educação e saúde dos seus filhos, tendo deixado de suportar, com a passagem destes para o ensino oficial, uma despesa, com as propinas do colégio ..., de cerca de 120.000$00 mensais;
15º- A requerida é professora do quadro de nomeação efectiva, lecciona na Escola Secundária José Gomes Ferreira e aufere, actualmente, como único rendimento, o vencimento ilíquido de 389.800$00 e líquido de cerca de 284.083$00;
16º- A requerida suporta sozinha o custo dos fornecimentos de água, gás, electricidade e telefone da casa que habita e despende, com a semanada dos filhos, que passaram a frequentar o ensino oficial, 24.000$00;
17º- A requerida suporta 50% das despesas dos filhos, tem feito despesas com material, livros escolares e com o passe daqueles e adquiriu, para os filhos, um computador pessoal no valor de 99.900$00;
18º- Na sequência da saída do requerente de casa e para se adaptar à nova realidade, a requerida adquiriu alguns electrodomésticos, mobiliário e cortinados e procedeu a reparações, pintura, consertos no soalho e à substituição de torneiras e canos;
19º- A petição inicial desta acção deu entrada na secretaria judicial no dia 13 de Julho de 2001.

O recorrente termina a sua extensa e não menos douta alegação com as dezassete conclusões acima transcritas, onde - nas sete primeiras - assaca ao acórdão recorrido várias nulidades, quer por omissão de pronúncia (artigo 668º, nº. 1, al. d), do Código de Processo Civil) quer por contradição entre a fundamentação e a decisão (al. c) do mesmo normativo) e - nas restantes dez - critica a decisão de fundo com o fundamento de que houve errada interpretação do direito substantivo, designadamente das normas dos artigos 437º, 1778º e 1793º do Código Civil.
O conhecimento de todas estas questões ficará, no entanto, prejudicado, nos termos do nº. 2 do artigo 660º, ex vi artigos 713º, nº. 2 e 726º, todos do Código de Processo Civil, se decidirmos, como iremos decidir, pela inadmissibilidade da alteração, através do processamento da jurisdição voluntária, do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado por sentença transitada em julgado e proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento.
No acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Fevereiro de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, tomo I, páginas 150-151, relatado pelo ora relator e também subscrito pelo Exmo. Conselheiro, ora 1º Adjunto, foi defendido este entendimento, o qual tem vindo a ser perfilhado pela jurisprudência conhecida e com pronúncia sobre o caso - acórdãos da Relação do Porto, de 2/5/95, CJ XX-III-97 e de 17/2/2000, BMJ 494º-398 e do STJ, de 19/3/2002, proferido no Agravo nº. 555/02, da 2ª Secção, com sumário publicado nos «Sumários de Acórdãos Cíveis» do Gabinete dos Juízes Assessores.
Consideramos que se mantêm perfeitamente válidas as razões aduzidas em todos esse arestos como suporte deste entendimento.
Efectivamente, conforme se dissecou no citado acórdão da Relação de Lisboa, enquanto, relativamente aos restantes acordos previstos e exigidos no artigo 1775º do Código Civil, existe previsão legal da possibilidade da sua posterior alteração - artigos 2012º do Código Civil e 1121º do Código de Processo Civil para o acordo sobre a prestação de alimentos e artigos 1920º-A do Código Civil e 182º da Lei da Organização Tutelar de Menores para o acordo sobre o exercício do poder paternal - , já quanto ao acordo objecto do presente recurso nada se prevê quanto à possibilidade da sua alteração, nem na lei substantiva, nem na lei adjectiva.
Como aí se escreveu, «cremos que se fosse desejo do legislador possibilitar a alteração do acordo sobre o destino da morada de família posteriormente à sentença de divórcio que o homologou, tê-lo-ia expresso claramente em letra de lei, tal como fez com os outros dois acordos exigidos pelo nº. 2 do artigo 1775º do C. Civil.
E tê-lo-ia feito, designadamente aquando da Reforma de 1997, que, como salienta P. Coelho, in RLJ ano 122, pág. 137, foi claramente dirigida a que o quadro legal que o nosso direito oferece se apresente conforme, de um modo geral, à política de protecção da casa de morada da família com carácter global e integrado.
Se fosse essa a sua intenção, com certeza que introduziria no regime jurídico do instituto em análise uma disposição semelhante à última parte do nº. 2 do artigo 1793º do C. Civil no sentido de se poder fazer caducar o arrendamento (da casa de morada de família, própria ou comum), «quando circunstâncias supervenientes o justifiquem».
Sendo certo que o cariz excepcional desta norma posterga, definitivamente, a sua aplicação analógica ao caso que nos ocupa (ou a qualquer outro) - artigo 11º do Código Civil.».
Também e mais recentemente - acrescentamos nós agora, em reforço desta argumentação - com a Reforma de 1995, operada pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, poderia ter sido dada redacção ao artigo 1413º do Código de Processo Civil por forma a que, na atribuição da casa de morada de família e para além das situações nele reguladas (previstas nos artigo 1793º do Código Civil e 84º do RAU), também fosse incluída a da faculdade de alteração do acordo em causa, por superveniência de circunstâncias justificativas.
«Além disso nenhum argumento se pode tirar do artº. 1793º, nº. 2 no sentido da modificabilidade do acordo quando aí se diz que o arrendamento pode caducar quando as circunstâncias o justifiquem. Uma coisa é a caducidade e outra a modificabilidade do direito atribuído. E bem se compreende a caducidade se se tiver em conta que a constituição do direito ao arrendamento tem uma natureza injuntiva, como resulta do sentido que lhe atribui A. Varela...» - supra citado acórdão do Supremo, de 19/3/2002.
De facto, este ilustre civilista considera que «por imposição do Estado (ou seja, do Tribunal) é constituído um novo arrendamento com um dos cônjuges, quer a casa de morada de família seja comum, quer própria do outro cônjuge...», havendo assim «...uma verdadeira expropriação prévia, embora limitada aos poderes do contitular ou do proprietário singelo, para, com base neles, celebrar o contrato de arrendamento» - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV-570.
Tudo isto deriva, como é sabido, da preocupação do legislador em proteger a estabilidade familiar, nomeadamente a partir da publicação do DL 496/77, de 25 de Novembro, que deu a actual redacção, entre outros, aos analisandos artigos 1775º e 1793º do Código Civil.
Nem se diga que, com esta interpretação, resulta um tratamento desigual para acordos previstos e regulados na mesma espécie de jurisdição - a voluntária -, onde impera o principio da alteração das resoluções, por superveniência de circunstâncias que a justifiquem, nos termos do nº. 1 do artigo 1411º do Código de Processo Civil.
É que, por um lado, a cada um dos acordos previstos e exigidos pelo nº. 2 artigo 1775º do Código Civil subjazem interesses completamente distintos entre si, sendo apodítico que, enquanto a natural variabilidade circunstancial, pelo decurso do tempo, quer da necessidade do alimentando (subjacente à prestação de alimentos), quer do interesse do menor (subjacente à regulação do exercício do poder paternal) justificam a alteração dos respectivos acordos, já a referida estabilidade familiar (subjacente à utilização da casa de morada de família) impõe que o respectivo acordo não possa ser alterado, ao abrigo do referido princípio estabelecido no nº. 1 do artigo 1411º do CPC.

Por outro lado, parafraseando o Prof. Castro Mendes, citado no supra citado acórdão da Relação do Porto, de 2/5/95, a jurisdição voluntária está ainda por explicar, sendo certo que, no capítulo do Código de Processo Civil consagrado a processos desta natureza, estão incluídos processos de jurisdição contenciosa e fora dele processos de jurisdição voluntária.
Daí que, reiterando o que foi afirmado no citado acórdão da Relação de Lisboa, de 18/2/93, não se possa considerar absoluto o principio estabelecido no nº. 1 do artigo 1411º do CPC, sendo inadmissível que, sob a sua égide, possa, por exemplo, vir a ser alterada a sentença que decretou o próprio divórcio por mútuo consentimento.
Conclui-se, assim, que o acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado por sentença transitada, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento, tal como a decisão do próprio divórcio, está acobertado pela força do caso julgado, nos termos do artigo 673º do Código de Processo Civil, pelo que só poderá ser atacado por via do recurso de revisão da própria sentença homologatória, nos casos do artigo 771º do mesmo Código, designadamente no da sua alínea d), depois de obtida sentença transitada em julgado a declarar nulo ou anulado o acordo, por falta ou vício da vontade das partes, nos termos dos nºs. 1 e 2 do artigo 301º do CPC.
Tanto basta, como se disse logo no início desta análise crítica, para a inexorabilidade da improcedência da revista e para que se considere prejudicado o conhecimento das questões que o recorrente coloca nas suas conclusões.
Não resistimos, porém, a tecer um breve comentário sobre as questões de natureza formal, já que as de natureza substantiva se podem considerar respondidas (ao menos reflexamente), no sentido da sua improcedência, com a exposição acabada de fazer e com a conclusão dela extraída.
Assim e muito esquematicamente:
- as nulidades imputadas ao acórdão, para além de inexistentes (quer porque, e principalmente, o recorrente não fez incluir as questões, alegadamente omitidas, nas conclusões do recurso de apelação, quer porque, e apesar disso, o acórdão recorrido conheceu algumas delas), dizem respeito - tal como a suposta violação do artigo 515º do CPC alegada na conclusão V - à decisão sobre matéria de facto, cuja censura, fora das excepções (nenhuma delas verificada in casu) previstas no nº. 2 do artigo 722º do Código do Processo Civil, escapa aos poderes do Supremo, sendo certo ainda que, tendo sido a presente acção proposta em 13 de Julho de 2001, das decisões da Relação ao abrigo do artigo 712º do citado Código não é admissível recurso, conforme prescrição expressa do nº. 6 do mesmo artigo, introduzido pelo DL 375-A/99, de 20/9;
- o tribunal só tem que se pronunciar sobre questões (artigo 660º, nº. 2 do CPC), entendendo-se como tal as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os simples argumentos, opiniões, motivos, razões, pareceres ou doutrinas expendidos pelas partes, pelo que falece, em absoluto, a conclusão 7, quando nela se afirma que o acórdão recorrido incorreu na nulidade do disposto no artigo 668º, nº. 1, al. d) do CPC «por ter deixado sem resposta grande parte da fundamentação das alegações de apelação do Requerente, suportada por referência a vasta Doutrina e Jurisprudência».
DECISÃO
Pelo exposto nega-se a revista, com custas pelo recorrente.

Lisboa, 2 de Outubro de 2003
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho (com voto de vencido em anexo)
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1. O douto acórdão que antecede, na linha de outras decisões das Relações e deste Supremo Tribunal nele citadas, decidiu ser inadmissível, através do procedimento da jurisdição voluntária, a alteração da atribuição da casa da família, a que se procedeu mediante acordo dos cônjuges em acção de divórcio por mútuo consentimento, homologado na respectiva sentença com trânsito em julgado.
Salvo o maior respeito, não posso acompanhar o ponto de vista que fez vencimento, pelas razões que seria devido explanar, mas a escassez de tempo não permite senão aflorar muito sumariamente.
2. A acção de divórcio por mútuo consentimento é um dos processos de jurisdição voluntária regulados no respectivo Capítulo XVIII, do Título IV, do Livro III, do Código de Processo Civil (cfr. a Secção III; artigos 1419º a 1424º).
E assume essa específica natureza jurídico-processual, quer na vertente nuclear da decisão de divórcio em sentido estrito, quer nos diversos aspectos que substantivamente vão implicados na dissolução do vínculo conjugal por mútuo consentimento - tais a regulação do poder paternal, a prestação de alimentos, o destino da casa de morada da família, todos também por mútuo consenso - (cfr. apenas os artigos 1775º, 1776º, nº. 2, e 1778º do Código Civil, e os artigos 1419º e 1421º, nº. 2, do Código de Processo Civil).
Ora, um dos princípios estruturantes da jurisdição voluntária obtém consagração no artigo 1410º do Código de Processo Civil - subordinado à elucidativa epígrafe Critério de julgamento -, segundo o qual, «nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.».
Em sintonia evidentemente com este princípio, é na jurisdição voluntária, por seu turno, de preceito - e neste sentido o dispõe explicitamente o nº. 1 do artigo 1411º - que «as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração» ((itálicos meus) - relevando, aliás, neste sentido tanto a superveniência objectiva, quanto uma superveniência subjectiva, quiçá qualificada (cfr., na verdade, em contraponto, v. g., o nº. 2 do artigo 506º).
É, por conseguinte, de concluir que a decisão homologatória do acordo relativo à atribuição da casa de morada da família, em processo de divórcio por mútuo consentimento, pode ser modificada nos termos do citado normativo, com observância, bem entendido, das exigências nele definidas.
3. Nas condições expostas desnecessariamente se preocupará o intérprete partindo em busca de especial permissão para o efeito.
Bem ao invés preocupante seria a existência de normação que interditasse uma similar alteração, cuja conformidade com os ditames da autonomia privada, e com os princípios de acesso à justiça, da jurisdição e do Estado de direito democrático não poderia então deixar de se questionar.
Não se objecte, salvo o devido respeito, com o bem jurídico da estabilidade familiar, um parâmetro a ponderar necessariamente pelo juiz da jurisdição voluntária dentro da ampla margem de investigação (artigo 1409º, nº. 2) e decisão (artigo 1410º) que lhe assiste, e valor paradoxalmente susceptível, em casos concretos, de aconselhar por si a alteração da situação anteriormente definida.
Lucas Coelho