Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
324/14.0TELSB-FK.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: HELENA FAZENDA
Descritores: ESCUSA
INDEPENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
IMPARCIALIDADE
Data do Acordão: 01/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O princípio fundamental da independência dos tribunais, consagrado no artigo. 203.º da CRP- “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” - relaciona-se com a caracterização dos mais importantes direitos dos cidadãos (direitos, liberdades e garantias), tem como corolário o princípio da imparcialidade, definida, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10.º, cfr. art. 30.º), como uma garantia fundamental de cada ser humano - “toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativamente julgada por um tribunal independente e imparcial”, proclamado também pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art. 6.º, n.º 1).

II - A garantia de independência dos tribunais é complementada pela independência dos juízes e pela obrigação de imparcialidade que sobre estes recai, destas decorrendo a sua irresponsabilidade.

III - Por seu turno, o art. 4.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08), seguindo o comando do art. 216.º, da lei fundamental, determina que «os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei», encontrando-se a sua independência assegurada no mesmo art. 4.º, «não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores».

IV - Tendo em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objetiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça, a lei adjetiva regule a questão atinente à capacidade subjetiva do juiz, no CPP vigente sob a epígrafe “Dos Impedimentos, Recusas e Escusas”.

V - Enquanto o impedimento afeta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afetar essa imparcialidade e independência.

VI - Como corolário de tal diversidade decorre que, no caso de impedimento, ao julgador está sempre vedada a intervenção no processo (arts. 39.º e 40.º, do CPP), enquanto no caso de suspeição tudo dependerá das razões e fundamentos que lhe subjazem (art. 43.º, n.º 1, do CPP).

VII - Por isso no caso de impedimento, o juiz deve declará-lo imediatamente no processo, sendo irrecorrível o respetivo despacho, sendo que no caso de suspeição poderá e deverá aquele requerer ao tribunal competente que o escuse de intervir no processo (arts. 41.º, n.º 1 e 43.º, n.º 3, do CPP).

VIII - O princípio norteador do instituto da suspeição é o de que a intervenção do juiz só corre o risco de ser considerada suspeita, caso ocorra motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

IX - Não definindo a lei o que se considera gravidade e seriedade dos motivos, que geram a desconfiança sobre a sua imparcialidade, será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas. Entre o «motivo» e a «desconfiança» terá de existir uma situação relacional lógica que justifique o juízo de imparcialidade, de forma clara e nítida, baseado na seriedade e gravidade do motivo subjacente.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3ª Secção Criminal



1. RELATÓRIO:

1.1. O Exm. Juíz … AA, Juiz Adjunto nos autos de recurso penal n° …., vindos da Secção Única do Tribunal Central de Instrução Criminal, em que é recorrente BB veio formular pedido de escusa nos termos do art. 43º, nºs 1 e 4 do Código do Processo Penal,[1] alegando que sua intervenção no processo pode ser considerada suspeita, com os seguintes fundamentos (transcrição):

“O ora signatário, em virtude de distribuição dos autos de recurso penal n.° …, vindos da Secção Única do Tribunal Central de Instrução Criminal, ao Exmo. … CC, teve vista nos autos como Juiz Adjunto com vista à decisão, em conferência, do recurso objecto dos mesmos.

Nos referidos autos é recorrente DD, invocando a qualidade de lesado e denunciante nos autos, incidindo o recurso interposto sobre o despacho, datado de 05.05.2021, do Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal que indeferiu o pedido por si formulado de constituição de assistente.

Os autos principais, conforme consta da acusação referida pelo recorrente, abrangem a subscrição por este de acções da …, … e/ou …, empresas que mantinham relações com o Grupo …, em virtude de acordo de parceira estratégica estabelecida entre o Grupo … e o Grupo …, através do qual este se tornou accionista de referência daquele. Nesses autos figuram como arguidos, dentre outros, EE e FF.

A consulta da certidão instrutória do recurso em questão, permitiu-nos chegar à conclusão, até pela numeração do próprio processo de onde o apenso é oriundo, que a matéria em questão, subjacente ao despacho recorrido, diz respeito a movimentações/operações no âmbito de empresa integrante do Grupo … e cuja valorização se mostra afectada por actos cometidos pelos administradores indicados pelo e no Grupo … no tocante à viciação de resultados financeiros.

O signatário, se bem que não tenha qualquer relação com o recorrente ou directamente com alguns dos arguidos/suspeitos nos autos, integra a longa lista de lesados pelo referido grupo económico na medida em que foi cliente do … - Sucursal em Portugal, S.A., entidade bancária que se encontra em liquidação judicial, de que é Administrador da Insolvência GG.

Nessa liquidação judicial, o signatário veio a reclamar créditos em virtude de depósito que mantinha naquela instituição de que, na sua perspectiva, tem direito a ser pago.

No âmbito dessa liquidação judicial veio ainda o signatário a impugnar a lista de credores para o Processo …, …, da Ia Secção de Comércio, da Instância Central de Lisboa, decisão que já foi proferida em primeira instância e que, apesar de lhe ser favorável, ainda não se mostra transitada em julgado por interposição de recurso para este TRL por parte de outros reclamantes que se viram afastados da reclamação, tanto quanto consegue saber de um modo actualizado.

As circunstâncias expostas configuram, no entendimento do signatário, a existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade do ponto de vista de um cidadão médio, representativo da comunidade, em particular aos sujeitos processuais envolvidos e, como tal, correr o risco de a sua intervenção nos referidos autos de recurso n.° … ser considerada suspeita nos termos do art.° 43° n.°s 1 e 4 do CPP.

Idêntico pedido de escusa foi já formulado junto desse Venerando Tribunal no âmbito dos recursos penais (Arresto) n.° … tendo sido concedida por acórdão de 13/04/2016, da 3ª Secção em que foi relator o Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes e 324/14.OTELSB-BJ.LI (medidas de coacção a arguido), da 3ª Secção tendo sido concedida por acórdão de 06/06/2018 em que foi relator o Exmo. Juiz Conselheiro Vinício Ribeiro, decisões essas consultáveis em www.dgsi.pt/isti e 324/14.0TELSB-AA.L3-A.S1 datada de 2.12.2021 em que foi relator o Exmo. Conselheiro Orlando Gonçalves.

Termos em que se solicita seja concedida escusa ao signatário para continuar a intervir nos referidos autos.


Contudo, V. Exas., como sempre, dirão o que for de Justiça.


Junta cópia do requerimento de interposição do recurso.”

1.2. Teve lugar a conferência.

2. O DIREITO

2.1. Como é sabido, o princípio fundamental da independência dos Tribunais, consagrado no art. 203º da Constituição da República Portuguesa - “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” - relaciona-se com a caracterização dos mais importantes direitos dos cidadãos (direitos, liberdades e garantias), tem como corolário o princípio da imparcialidade, definida, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10º, cfr. art. 30º), como uma garantia fundamental de cada ser humano - “toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativamente julgada por um tribunal independente e imparcial”, proclamado também pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º, nº 1).

A garantia de independência dos tribunais é complementada pela independência dos juízes e pela obrigação de imparcialidade que sobre estes recai, destas decorrendo a sua irresponsabilidade.

Por seu turno o art. 4º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26AGO), seguindo o comando do art. 216º, da lei fundamental, determina que «os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei», encontrando-se a sua independência assegurada no mesmo art. 4º, «não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores».

Daí que, tendo em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objetiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça, a lei adjetiva regule a questão atinente à capacidade subjetiva do juiz, no CPP vigente sob a epígrafe “Dos Impedimentos, Recusas e Escusas”.

2.2. O art. 43º, nº1, do CPP determina que «A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade», dispondo o nº4 do mesmo normativo que «O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2».

A lei não define o que caracteriza a gravidade e a seriedade dos motivos de modo a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Com efeito enquanto o impedimento afeta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afetar essa imparcialidade e independência.

Como corolário de tal diversidade decorre que no caso de impedimento ao julgador está sempre vedada a intervenção no processo (arts. 39º e 40º, do CPP), enquanto que no caso de suspeição tudo dependerá das razões e fundamentos que lhe subjazem (art. 43º, nº1, do CPP).

Por isso no caso de impedimento, o juiz deve declará-lo imediatamente no processo, sendo irrecorrível o respetivo despacho, sendo que no caso de suspeição poderá e deverá aquele requerer ao tribunal competente que o escuse de intervir no processo (arts. 41º, nº 1 e 43º, nº 3, do CPP).

O princípio norteador do instituto da suspeição é o de que a intervenção do juiz só corre o risco de ser considerada suspeita, caso ocorra motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são suscetíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objetivamente consideradas. Com efeito, não basta um puro convencimento subjetivo por parte do Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição.

Não definindo a lei o que se considera gravidade e seriedade dos motivos, que geram a desconfiança sobre a sua imparcialidade, será a partir do senso e experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas.

Entre o «motivo» e a «desconfiança» terá de existir uma situação relacional lógica que justifique o juízo de imparcialidade, de forma clara e nítida, baseado na seriedade e gravidade do motivo subjacente.

2.3. Perante a comunidade, a confiança na administração da justiça, assenta também, nas máximas garantias de objetividade e de imparcialidade na jurisdição, no sentido de que as decisões proferidas por um juiz têm que ser norteadas por critérios objetivos, jurídicos, em obediência apenas à lei.

A independência do juiz, traduz-se essencialmente na sua exclusiva sujeição à lei, não como uma qualidade pessoal, mas como uma garantia da realização da justiça que passa pelo escrupuloso respeito pela lei, pelo rito processual e pelos princípios éticos da função, em suma como uma garantia constitucional do cidadão.[2]

Contudo, não basta a objetiva independência e imparcialidade subjetiva do juiz; não basta sê-lo, importa também parecê-lo (Justice must only be done; it must also be seen to be done). Ou seja, os mecanismos de impedimentos, escusas e recusas, têm também, por fim assegurar a imparcialidade no julgamento de uma causa, de forma que o juiz não seja eventualmente tentado a decidir contra a lei para satisfação de interesses particulares dele ou de terceiros, ou não se crie a suspeita da sua falta de isenção[3].


2.4. Como consta do pedido de escusa, o Exmo. …, Juiz Adjunto, entende que a apreciação que terá de fazer sobre os factos que são objeto do processo em que é recorrente BB, incidindo o recurso interposto sobre o despacho do Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal, datado de 05.05.2021, que indeferiu o pedido por aquele formulado de constituição de assistente, invocando a qualidade de lesado e denunciante nos autos, é matéria relacionada com a subscrição realizada pelo recorrente de acções da …, … e/ou …, empresas que mantinham relações com o Grupo …, em virtude de acordo de parceira estratégica estabelecida entre o Grupo … e o Grupo …, através do qual este se tornou accionista de referência daquele. Nesses autos figuram como arguidos, dentre outros, EE e FF.

Mais refere o Exmo … que, da consulta da certidão instrutória do recurso em questão se chega à conclusão, até pela numeração do próprio processo de onde o apenso é oriundo, que a matéria em questão, subjacente ao despacho recorrido, respeita a movimentações/operações no âmbito de empresa integrante do Grupo …, cuja valorização se mostra afectada por actos cometidos pelos administradores indicados pelo e no Grupo … no tocante à viciação de resultados financeiros.

Salienta igualmente o Exmo … que, se bem que não tenha qualquer relação com o recorrente ou directamente com alguns dos arguidos/suspeitos nos autos, integra a longa lista de lesados pelo referido grupo económico na medida em que foi cliente do … Sucursal em Portugal, S.A., entidade bancária que se encontra em liquidação judicial, de que é Administrador da Insolvência GG.

Nessa liquidação judicial, o Exmo …. veio reclamar créditos em virtude de depósito que mantinha naquela instituição de que, na sua perspectiva, tem direito a ser pago.

E acrescenta que, no âmbito dessa liquidação judicial, veio ainda a impugnar a lista de credores para o Processo …, …, da Ia Secção de Comércio, da Instância Central de Lisboa, decisão que já foi proferida em primeira instância e que, apesar de lhe ser favorável, ainda não se mostra transitada em julgado por interposição de recurso para este TRL por parte de outros reclamantes que se viram afastados da reclamação, tanto quanto consegue saber de um modo actualizado.


2.5 Ora, tais factos são suscetíveis de pôr em crise qualquer decisão que venha a ser proferida pelo Exmo Juíz … AA no recurso penal n° …., correndo o risco de a mesma ser considerada suspeita. Ou seja, segundo o senso e as regras da experiência comum, tal facto é suscetível de constituir motivo sério e grave adequado a gerar a desconfiança pública sobre a imparcialidade Exmo Juíz … AA, no recurso penal n° …. em que é recorrente BB.

Tal como se afirma no acórdão de 13/04/2016, da 3ª Secção em que foi relator o Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, no âmbito do recurso penal (Arresto) n.° 324/14.0TELSB-Y.L1, em que foi concedida ao Exmo … AA a escusa, «a circunstância de o … recorrente ter sido cliente de um dos bancos do grupo … (… – Sucursal de Portugal), fazendo parte do grupo de lesados por aquele referido grupo, e mantendo litígio judicial para ressarcimento dos danos sofridos, leva-nos a concluir que a sua participação enquanto relator do recurso em que é recorrente HH é suscptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Naturalmente que o mesmo racíocínio se aplica à sua intervenção enquanto Juíz Adjunto nos supra menconados autos.

Neste sentido, tendo em atenção o disposto no citado art. 43º, nºs 1 e 4, do CPP e com os fundamentos expostos, defere-se o pedido de escusa.


3. DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a requerida escusa.

Sem tributação.


Lisboa, 26 de janeiro de 2022


Maria Helena Fazenda  (relatora)

José Luis Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

______

[1] Doravante designado pelas iniciais CPP.
[2] Cf. acórdão – PROC 324/14.0TELSB-Y.L1-A.S1 (relatora Conceição Gomes)
[3] Vide Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Ed. Verbo, Vol. I, pág. 215.