Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7712/16.5T8PRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
VALOR DA CAUSA
CASO JULGADO FORMAL
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
CONHECIMENTO DO MÉRITO
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DA PERSONALIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA / GARANTIAS DA COMPETÊNCIA - INSTÂNCIA .
DIREITO ADMINISTRATIVO - PROCESSO ADMINISTRATIVO - TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS - TRIBUNAIS.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 70.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 64.º, 96.º, ALÍNEA A), 99.º, N.º 1, E 278.º, N.º 1, ALÍNEA A), 370.º, N.º 2, 621.º, 757.º, N.º 3, 878.º A 880.º.
CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS (CPTA), APROVADO PELA LEI N.º 15/2002, DE 22-02, NA VERSÃO REPUBLICADA EM ANEXO DO INDICADO DEC.-LEI N.º 214-G/2015, DE 02-10: - ARTIGOS 2.º, N.º 2, 37.º, N.ºS 1 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 66.º, N.º 1, 211.º, N.º 1, 212.º, N.º3.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF), APROVADO PELA LEI N.º 13/2002, DE 19/02, NA VERSÃO REPUBLICADA EM ANEXO AO DEC.-LEI N.º 214-G/2015, DE 02-10: - ARTIGO 4.º.
LEI N.º 19/2014, DE 14-04: - ARTIGO 5.º.
LEI N.º 62/2013, DE 26-08 (LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGO 40.º, N.º 1.
REGIME JURÍDICO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE ATIVIDADES DE COMÉRCIO, SERVIÇOS E RESTAURAÇÃO (RJACRS), APROVADO PELO DEC.-LEI N.º 10/2015, DE 16-01: - ARTIGOS 142.º, 144.º E 146.º.
REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO, APROVADO PELO DEC.-LEI N.º 9/2007, DE 17-01: - ARTIGOS 26.º, 27.º E 29.º.
RJUE, APROVADO PELO DEC.-LEI N.º 555/99, DE 16-12: - ARTIGOS 107.º, 108.º.
Sumário :
I. No âmbito da tutela cível da personalidade genericamente definida no artigo 70.º do CC, com fundamento em ameaça de ofensa ou em ofensa consumada dos direitos ao repouso, ao descanso e ao sono, a violação de prescrições administrativas, nomeadamente de proteção ambiental, de prevenção do ruído e poluição sonora ou de licenciamento da atividade comercial tida por ofensiva, traduz-se, de algum modo, num reforço da ilicitude civil, na medida em que tais prescrições contenham também níveis de proteção, ainda que indireta ou reflexa, dos interesses individuais, nomeadamente dos direitos de personalidade.    

II. A convocação de tais prescrições não retira a natureza cível da pretensão, quando centrada, em sede de causa de pedir, na ameaça de ofensa ou violação dos direitos de personalidade, visando obter medidas adequadas à sua prevenção, atenuação ou cessação, para o que são materialmente competentes os tribunais judiciais.  

III. Todavia, os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para ordenar medidas de fiscalização ou de intervenção que sejam da competência própria das autoridades administrativas.

IV. A qualificação jurídica da pretensão judicial dada para efeitos de fixação do valor da causa não produz efeitos de caso julgado formal fora desse âmbito decisório, não vinculando, por isso, o juiz do processo a adotar, em decisões ulteriores, a mesma qualificação nomeadamente para efeitos de verificação dos pressupostos processuais ou de conhecimento do mérito.

V. Assim, a decisão que indefere um incidente de intervenção principal de terceiro por considerá-lo infundado, dado estar em causa uma pretensão de tutela da personalidade, não ofende o caso julgado formal de decisão anterior que fixou o valor da ação, pressupondo que essa pretensão se estribava na violação do direito de propriedade.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (1.ª Requerente) e BB (2.ª Requerente) instauraram, em 19/10/2016, procedimento cautelar comum contra a sociedade CC - Empreendimentos Hoteleiros, Lda., alegando, em resumo, que:  

. A 1.ª e a 2.ª Requerentes são, respetivamente, proprietária da fração autónoma L e comproprietária da fração AL ambas do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do P… sob o n.º 28…/19… da freguesia de …, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida … n.º 47…, 48…e 4…, e na Rua de … n.º 43…, 4…9, 4…3 e 4…7;

. Por sua vez, a Requerida é arrendatária do prédio urbano contíguo àquele, sito na Avenida … n.º 4…8, 5…4 e 5…2 da mesma freguesia, de cuja caderneta predial consta que se destina a armazéns e atividade industrial;

. Porém, a Requerida destinou este imóvel a estabelecimento de restauração e bebidas, não dispondo das licenças necessárias ao seu funcionamento;

. As sobreditas frações autónomas das Requerentes têm vãos de janelas voltados para a parte posterior do edifício arrendado à Requerida, sendo afetadas pelo sistema de ventilação, exaustão e ar condicionado colocado ao nível do 2.º andar e cobertura daquele edifício e que não se encontram licenciados;

. Tais equipamentos são inestéticos e as respetivas condutas perturbam as Requerentes, de forma séria, grave e reiterada, devido ao ruído que produzem e às vibrações provocadas na estrutura do prédio em que se integram as frações daquelas;

. O estabelecimento da Requerida funciona também como espaço de diversão nocturna, com organização de diversos eventos e festas, alguns dos quais duram até altas horas da madrugada, causando um barulho ensurdecedor e impedindo o descanso das Requerentes.

. Desse modo, o referido sistema de ventilação, exaustão e ar condicionado, bem como a utilização do estabelecimento da Requerida com atividades de diversão, violam os direitos ao repouso, ao descanso e ao sono das Requerentes, ínsitos nos seus direitos de personalidade garantidos pelos artigos 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 70.º, n.º 1, do CC, sendo ainda objeto de proteção nos termos dos artigos 3.º, 5.º, 7.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 21.º da Lei n.º 19/2014, de 14-04, e do Dec.-Lei n.º 9/2007, de 17-02 (Regulamento Geral do Ruído) com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 278/2007, de 01-08.

Pediram as Requerentes que:

i) – Fosse ordenado o encerramento de toda a atividade do estabelecimento da Requerida no dia imediato ou seguinte ao da notificação da decisão, devendo esta apresentar, no referido prazo, requerimento nos autos a declarar ter procedido a tal encerramento;

Para a hipótese do não encerramento voluntário pela Requerida que fosse notificada a ASAE com vista ao encerramento coercivo do estabelecimento no prazo de cinco dias, o qual, subsidiariamente, poderá ser promovido pelas requerentes, indicando para o efeito o agente de execução (…)

ii) – Fosse ordenada a remoção de todos os aparelhos e condutas dos sistemas de exaustão, ventilação e ar condicionado da fachada posterior e cobertura do prédio ocupado pela Requerida, remoção essa a executar pela e a expensas da mesma Requerida, a ocorrer no prazo máximo de 15 dias a contar da notificação da decisão, conforme proposta de despacho do Vereador com o Pelouro da Fiscalização e Proteção Civil no sentido da remoção de todos os aparelhos e condutas dos sobreditos sistemas, devendo a Requerida apresentar, no dito prazo, requerimento nos autos a declarar ter procedido à aludida remoção;

Fosse notificada a Câmara Municipal do P… para, na ausência de remoção voluntária dentro do indicado prazo, tomar a posse administrativa do imóvel, nos termos dos artigos 107.º e 108.º do RJUE e proceder à remoção dos aparelhos no prazo de 30 dias a contar do incumprimento da Requerida;

iii) – Fosse notificada a Requerida de que lhe fica vedado o direito de reabrir o estabelecimento enquanto não possuir, cumulativamente, licença de utilização do edifício em referência, exigíveis pelo RJUE, designadamente nos termos do artigo 6.º-A, n.º 2, alínea b), e licença para o exercício de atividade de restauração e bebidas, nos termos do Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16-01, emitida pelas entidades competentes e bem assim o cumprimento da Lei Geral do Ruído, através da adoção de medidas de insonorização adequadas e eficazes;

iv) - Subsidiariamente, para o caso de não proceder o pedido formulado em i), fosse ordenado o encerramento provisório do estabelecimento até que sejam adotadas as medidas de correção das alegadas incomodidades atestadas em relatório junto aos autos.

Após a implementação dessas medidas e antes da reabertura, seja a requerida obrigada a, previamente, promover a realização de relatórios de ensaio, através do Laboratório de Ruído da Câmara Municipal do P… que atestem a conformidade com a legislação em vigor, em diferentes horários, notificando as requerentes do mesmo;  

v) – Fosse ainda fixada à Requerida uma sanção compulsória, no montante diário de € 500,00, a favor das Requerentes, para o caso de incumprimento das medidas que forem decretadas.

2. A Requerida deduziu oposição em que, além de impugnar os fac-tos alegados pelas Requerentes:

. Invocou a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal judicial, por considerar que a causa se inscreve no âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos, nos termos dos artigos 4.º do ETAF e 37.º, n.º 3, do CPTA.

. Deduziu a exceção de incompetência territorial, por entender que, atenta a sede e administração principal da Requerida sita no Município de Penafiel, era competente o Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Este e não o do Porto;

. Impugnou o valor da causa indicado pelas Requerentes, em função do que seria competente a secção cível da instância central;

. Deduziu a intervenção principal de DD, comproprietária da fração da 2.ª Requerente, como associada desta, por considerar tratar-se de uma situação de litisconsórcio necessário.       

Concluiu a Requerida, no respeitante à exceção de incompetência material, pela sua absolvição da instância.

3. As Requerentes responderam às exceções deduzidas e ao incidente de intervenção no sentido da sua improcedência, mas aceitaram a alteração do valor da causa com a consequente remessa dos autos à instância central cível.   

4. Quanto ao valor do procedimento cautelar foi proferida a decisão reproduzida a fls. 253-255/v.º, de 12/07/2016, a fixar tal valor em € 169.720,01 e a declarar competente a Instância Central Cível do Porto.

5. Subsequentemente, foi proferida a decisão reproduzida a fls. 459-469, datada de 23/09/2016, na qual foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias de incompetência material e territorial e não foi admitido o incidente de intervenção principal deduzido pela Requerida.

6. Inconformada com os segmentos decisórios respeitantes à incompetência material e à não admissão do incidente de intervenção principal, a Requerida apelou para o Tribunal da Relação do Porto que confirmou a decisão recorrida, conforme o acórdão de fls. 275-278, datado de 12/01/ 2017.

7. De novo inconformada, a Requerida vem pedir revista sobre aqueles dois segmentos decisórios, invocando a violação das regras da competência em razão da matéria e ofensa do caso julgado, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A presente revista vem interposta ao abrigo dos artigos 370.º, n.º 2, e 671.º, n.º 2, alínea a), ambos do CPC com referência ao disposto no art.º 629.º, n.º 2, alínea a), do mesmo corpo de leis e tem por fundamento (i) a violação das regras de competência em razão da matéria; e (ii) a violação do caso julgado.

2.ª - As requerentes sustentam a pretensão cautelar que deduziram na pretensa violação de diversas normas de direito do urbanismo e do ambiente, bem como a passividade e inoperância das autoridades municipais para pôr cobro a tais pretensas violações;

3.ª - A título meramente secundário e incidental, as recorridas invocam no pedido cautelar uma pretensa violação de seus direitos pessoais; mas a título principal a pretensão das recorridas é inequivocamente uma pretensão de tutela da legalidade urbanística e da lei geral do ruído;

4.ª - O objetivo prosseguido no processo cautelar pelas recorridas, aferido, como se impõe, pelo pedido e causa de pedir que deduzem - subingressa no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos;

5.ª - Com efeito, a pretensão das requerentes, ora recorridas, recai exatamente no âmbito da previsão do art.º 37.º, n.º 3, do CPTA;

6.ª - Deste preceito legal resulta a atribuição à jurisdição dos tribunais administrativos da competência para conhecer de litígios entre particulares, no âmbito de relações de direito privado, em que venha invocada a lesão de direitos e interesses por uma conduta, do demandando, violadora de normas de direito administrativo sem que as autoridades administrativas competentes tenham, tempestivamente, atuado para pôr cobro à conduta do particular lesante. É esse precisamente o caso dos presentes autos.

7.ª - O art.º 37.º, n.º 3, do CPTA é muito claro: na factispecie desta norma em causa litígios de direito privado entre particulares em que se verifica que a conduta de um particular, por ser violadora de normas de di­reito administrativo, é lesiva dos direitos (de direito privado) de outro particular, por esse via se submetendo um litígio privado entre particulares à jurisdição dos tribunais administrativos precisa­mente porque a ilicitude da conduta invocada como causa da lesão que se pretende fazer cessar, ou reparar, resulta da violação de norma de direito administrativo, em particular de normas do direito do urbanismo ou de direito do ambiente;

8.ª - Portanto, ainda que se esteja no quadro de uma relação de responsabilidade aquiliana envolvendo dois particulares, precisamente porque se invocou como fundamento da pretensa ilicitude do compor­tamento da recorrente a violação de diversas normas do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e do Regulamento Geral do Ruído, a efetivação dessa responsabilidade, seja pela via ressarcitória pura, seja (como pretendem as recorridas) pela via da injunção a comportamentos que façam cessar o comportamento ilícito, cabe à jurisdição administrativa;

9.ª - É assim o Tribunal “a quo” materialmente incompetente para conhecer das pretensões cautelares deduzidas nos autos;

10.ª - Mesmo que fosse de prevalecer o entendimento sufragado pelo acórdão recorrido de que a invocação pelas recorridas da tutela da legalidade urbanística e ambiental é feita a título meramente acessório e incidental, sempre resultaria ainda assim a necessidade de reduzir o objeto processual àquelas questões (pedido/causa de pedir) que não contendam com a legalidade administrativa;

11.ª - Assim, sempre teria esse STJ de conceder parcial provimento à presente revista e, concomitantemente, absolver da instância a recorrente Espuma relativamente aos seguintes pedidos:

   -  Pedido deduzido no 2.º parágrafo da alínea I do petitório;

   - Pedido deduzido no 2.º parágrafo da alínea II do petitório;

   - Pedido deduzido na alínea III do petitório;

   - Pedido deduzido no 2.e parágrafo da alínea IV do petitório.

 12.ª - Trata-se, portanto, de pedidos que, mesmo segundo a doutrina perfilhada pelo acórdão sob revista, não podem validamente permanecer nos autos e em relação aos mesmos deve a recorrente Espuma ser absolvida da instância.

13.ª - E quanto aos demais pedidos apenas poderão validamente permanecer nos autos na medida em que venham suportados numa causa de pedir que assente, apenas e exclusivamente, na tutela de direitos de personalidade - isto é: os pedidos em relação aos quais não houver absolvição da instância só poderão ser conhecidos pela jurisdição dos tribunais comuns no que concerne à causa de pedir que assenta numa relação pura de direito privado. Ficará assim excluída toda, mesmo em relação ao petitório que permaneça validamente no objeto da instância, a causa de pedir que assente na violação de normas de direito administrativo, maxime na pretensa violação do RJUE e do RGR.

   Sem prescindir

 14.ª - No outro segmento decisório objeto da presente revista, o acórdão recorrido confirmou o despacho que, na 1.ª instância, indeferiu o incidente de intervenção principal provocada deduzido pela ora recorrente na sua oposição.

 15.ª - Para assim decidir estribou-se o acórdão recorrido no seguinte excurso argumentativo (cfr. fls. 281-282, realce adicionado):

  "Na presente providência, porém, não é pretendida ou está em causa qualquer tutela do direito de propriedade da 2.ª Requerente sobre o imóvel de que é co-titular, nem o exercício do seu direito de propriedade, mas antes a tutela dos seus direitos de personalidade, cuja violação invoca"; "É certo que também é referida a desvalorização das frações do seu prédio, pelo facto da vista das mesmas ter agora um terraço com aparelhos de ar condicionado e de ventilação, contudo, esta alegação, em sede de providência cautelar, surge como meramente conclusiva e acessória, não integrando os factos essenciais que constituem a causa de pedir. [§] Avaliando a situação em presença, à luz das normas mencionadas, verificamos que a relação material controvertida configurada pelas Requerentes no requerimento inicial, se estabelece apenas entre as Requerentes, pessoas singulares, e a R„ sendo centrada na invocada violação dos seus direitos ao sossego, ao repouso e ao sono, sendo por isso irrelevante na relação em litígio, a sua qualidade de proprietárias das frações autónomas (quando muito relevará o facto das Requerentes habitarem nas mesmas e estarem por essa razão expostas ao resultado da atividade da Requerida)";

  "Tendo em conta o pedido formulado pelas Requerentes e a causa de pedir, integrada pelos factos por elas alegados, já se vê que a relação material controvertida não se foca no direito de propriedade das Requerentes ou em qualquer violação de tal direito real antes se dirige à violação dos seus direitos de personalidade, enquanto pessoas singulares, alegadamente afetadas nos termos em que alegam. [§] Não está em questão a violação de qualquer direito de propriedade, em concreto sobre a fração autónoma de que a 2ª Requerente é co-titular, ou a prática de qualquer ato inerente ou lesivo de tal direito, não tendo por isso aplicação ao caso o art.º 1405.º, n.º 1, do CC, que a Recorrente invoca. Não estamos perante uma relação jurídica controvertida em que a lei exige a intervenção de vários interessados, sendo a falta de qualquer deles, motivo de ilegitimidade, como dispõe o art.º 33.º, n.º 1, do CPC"

 16.ª - Sucede porém que tal excurso argumentativo fere o caso julgado formal que se formou nos autos de processo cautelar a que o presente apenso diz respeito;

 17.ª - Com efeito, o processo cautelar a que o presente apenso diz respeito foi proposto na Instância Local do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e nessa Instância Local foi proferido em 12/7/2016 o despacho com a referência Citius n.º 370654789 e que consta de fls. 370/372-v.º dos autos do processo cautelar e de fls. 81/83-v.º da certidão incorporada no presente apenso), no qual se julgou procedente - de resto, com a confissão das próprias requerentes ora recorridas - o incidente de verificação do valor da causa e a exceção de incompetência em razão do valor, ordenando a remessa dos autos ao Juízo Cível da Instância Central do mesmo Tribunal;

 18.ª - Para assim decidir, o referido despacho assentou no seguinte excurso argumentativo (cfr. fls. 82/82-v.º da cit. certidão, realce adicionado):

  "Na petição inicial as Requerentes para além de invocarem danos não patrimoniais ou interesses imateriais que pretendem tutelar (tendo atribuído o valor de 30.000,01 euros, nos termos do artigo 303 do CPC) alegam também pretender evitar um alegado dano patrimonial que atribuem também á conduta da Requerida": "Resulta que as Requerentes fazem uma cumulação de pedidos onde para além dos alegados danos não patrimoniais  (interesses imateriais) invocam danos patrimoniais que contêm com a alegada desvalorização de uma fração":

  "Neste caso tal como invoca a Requerida está em causa um alegado prejuízo patrimonial (invocada desvalorização da fração) e a tutela de interesses imateriais, sendo uma cumulação de pedidos, implicando a sua soma (artigo 297.º, n.º 2, do CPC).

  [§] Estando em causa para além dos invocados prejuízos não patrimoniais ou a tutela de interesses imateriais (e neste ponto o valor de € 30.000,01 é considerado), o pretender acautelar ou pretender manter o valor da fracção sem desvalorização":

  "Assim, no caso em apreço, atenta a tutela jurisdicional pretendida pelas Requerentes e, bem assim o que resulta dos documentos referidos, e atentos os critérios do artigo 304.º do CPC, o valor da presente acção será a soma face á cumulação dos dois pedidos, ou seja o valor atinente ao alegado prejuízo patrimonial atinente á invocada desvalorização do imóvel, e o valor dos interesses imateriais contendentes nomeadamente com o direito ao sossego e repouso."

19.ª - Este despacho foi notificado às partes por ofício expedido via Citius em 13/7/2016 e, consequentemente, a notificação presume-se realizada a 18/7/2016. Não tendo dele sido interposto recurso, o mesmo transitou em julgado em 2/8/2016;

 20.ª - Formou-se assim caso julgado formal quanto às questões nele decididas - cfr. art.º 620.º, n.º 1, do CPC - e nele decidiu-se, precisamente, a delimitação da causa de pedir cautelar avançada pelas recorridas, requerentes nos autos a que o presente apenso diz respeito: decidiu-se que por via do processo cautelar que propôs, a recorrida Inês - além da tutela dos direitos imateriais ao sossego e ao repouso - visou direta e imediatamente obter a tutela do seu direito de propriedade sobre a fração AL, em especial prevenir o alegado prejuízo material decorrente da desvalorização do valor de mercado da fração de que é comproprietária;

 21.ª - E tanto assim foi que a Instância Local do Porto julgou procedente o incidente de verificação do valor da causa e fixou o valor da ação de modo a abarcar a dimensão económica correspondente ao dano patrimonial;

 22.ª - Não pode, pois, no âmbito do mesmo processo permitir-se que permaneçam em vigor duas decisões totalmente contraditórias no que concerne à delimitação do objeto da relação processual e, em particular, à delimitação da causa de pedir avançada nos autos: o despacho da Instância Local do Porto entendeu que dos factos essenciais avançados pelas requerentes, ora recorridas, resultava que a causa de pedir cautelar abarcava a tutela do direito de propriedade da recorrida Inês e dos alegados danos patrimoniais que ela invoca ter sofrido ou estar sofrendo; o Acórdão recorrido, ao delimitar também a causa de pedir cautelar avançada nos autos, excluiu terminantemente qualquer pretensão de tutela do direito de propriedade e de danos de natureza patrimonial.

23.ª - Há, pois, entre ambas as decisões proferidas no mesmo processo uma clara contradição.

 24.ª - Ora, em face desta contradição entre duas decisões que versam sobre a mesma questão concreta da relação processual não pode deixar de se concluir que o acórdão sob revista está ferido de vício de ofensa do caso julgado, gerador da respetiva ilegalidade, circunstância que determina que, na procedência deste fundamento da presente revista, esse STJ deverá determinar a revogação do acórdão recorrido, no segmento decisório ora sob impugnação.

 25.ª - Está portanto assente nos autos de processo cautelar a que o presente apenso diz respeito - por força do caso julgado formal formado pelo despacho com a referência Citius n.º 370654789 - que a recorrida Inês se apresenta a pretório invocando não apenas a tutela da pretensa lesão do seu direito ao sossego, como também a tutela dos danos patrimoniais consubstanciados na lesão do direito de propriedade que detém sobre a fração de que é comproprietária.

  26.ª - Sucede que esta recorrida é, como se disse, comproprietária da fração AL, detendo nela a quota de ideal de um meio

 27.ª - Na nossa ordem jurídica a compropriedade é confi­gurada como um direito único com uma pluralidade de titulares, o que determina que o legislador preveja que "[o]s comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular" (art. 1405.º, n.º 1, do CC);

 28.ª - Deste n.º 1 do art.º 1405.º do CC resulta uma regra de litisconsórcio necessário legal, impondo aos compro­prietários o exercício conjunto dos direitos que per­tencem ao proprietário singular (salva a exceção do n.º 2 do mesmo preceito legal);

  29.º - Por outro lado, do campo de aplicação do art. 33.º, n.º 2, do CPC que legislador impôs o litisconsórcio necessário natural naqueles casos em que a falta na relação processual de algum ou alguns dos interessa­dos na relação material controvertida não impede que a decisão judicial a proferir produza algum ou alguns efeitos úteis, mas impede que ela produza, em carácter definitivo, o seu efeito útil corrente, regular ou normal.

  30.ª - No caso do presente, o que se impõe é que a decisão a proferir no presente processo cautelar, relativa à tutela que a recorrida Inês visa prosseguir, possa regular de forma definitiva a situação concreta de todos os interessados envolvidos na relação material controvertida - isto é, da recorrente Espuma no confronto de todos os comproprietários da fração em causa, sob pena de, a não ser assim, nunca o litígio relativo à relação material controvertida relativa à tutela do mesmo direito de propriedade sobre o mesmo objeto mediato ficar definitivamente assente, pois não sendo partes processuais todos os sujeitos da relação material controvertida, sempre se permitiria a reapreciação do mesmo litígio por intermédio de novas e sucessivas ações, em clara violação do princípio da economia processual, na sua dimensão de economia de processos;

  31.ª - Assim sendo, apenas será possível regular de forma definitiva a situação concreta das partes relativamente ao pedido de tutela do interesse patrimonial correspondente à pretensa desvalorização da fração AL com a intervenção de ambas as comproprietárias da aludida fração;

  32.ª - Dispõe-se no art. 310.º, n.º 1, do CPC que, "[ocorrendo preterição do litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária."

  33.ª - Pelo que a decisão de indeferimento do incidente de intervenção principal provocada está ferida, além do já citado vício de ofensa de caso julgado, de erro de julgamento;

  34.ª - O acórdão sob revista, nos segmentos decisórios objeto da presente revista, viola o disposto no art.º 37.º, n.º 3, do CPTA e os artigos 96.º e 99.º n.º 1, do CPC, quanto ao primeiro segmento decisório; bem como, relativamente ao segundo segmento decisório, o art. 1405.º, n.º 1, do CC e os artigos 33.º, n.º 2, 316.º, n.º 2, 620.º, n.º 1, e 625.º, n.º 2, todos do CPC.

Pede a Recorrente que se revogue o acórdão recorrido, reformando-o por decisão que julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal a quo e determine a sua absolvição da instância e por decisão que admita o incidente de intervenção principal provocada e ordene a baixa do apenso ao Tribunal a quo para, nada mais a isso obstando, aí prosseguirem os termos do referido incidente e os do processo cautelar.

8. As Recorridas não apresentaram contra-alegações.

9. Já depois terem sido os autos conclusões ao aqui Relator, deu entrada o requerimento da Recorrente deduzido a fls. 253-256 a pedir a junção do documento de fls. 257 e seguintes, consistente em requerimento apresentado pelas Requerentes, na 1.ª instância, em 21/02/2017, com base no qual a Recorrente pretende demonstrar que a presente providência cautelar se inscreve no âmbito da jurisdição administrativa.     


     Cumpre apreciar e decidir.


      II – Fundamentação


1. Delimitação das questões a resolver

                 

Das conclusões da Recorrente, em função das quais, nos termos dos 635.º, n.º 3 e 4, e 639.º, n.º 1 e 2, do CPC, se delimita o objeto do recurso, colhe-se que a presente revista incide sobre os segmentos decisórios, confirmados pelo Tribunal da Relação, em que:

   i) – foi julgada improcedente a exceção de incompetência material do tribunal da causa; 

  ii) – não foi admitida a intervenção principal provocada de DD, comproprietária da fração da 2.ª Requerente, como associada desta. 

   A impugnação destes segmentos decisórios estriba-se nos fundamentos especiais de recorribilidade irrestrita consistentes, respetivamente, em violação das regras de competência absoluta, em razão da matéria, e em ofensa de caso julgado, previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.  

       Debrucemo-nos então sobre cada um deles.


2. Quanto à questão da exceção de incompetência material


Neste capítulo, ambas as instâncias consideraram que a pretensão cautelar deduzida pelas Requerentes se inscreve, nuclearmente, no âmbito da tutela dos direitos de personalidade, ainda que tenham sido também invocadas, a título marginal, a falta de licenciamento do estabelecimento da Requerida e a falta de cumprimento de regras, quer relativas ao horário de fecho do mesmo, quer respeitantes à lei do ruído.   

Nessa base, concluíram pela competência material do tribunal da causa para conhecer daquela pretensão, julgando assim improcedente a referida exceção dilatória suscitada pela Requerida.

Por seu lado, a Recorrente persiste em sustentar:

a) – Em primeira linha, que a pretensão cautelar das Requeridas é, a título principal, inequivocamente, de tutela da legalidade urbanística e da lei geral do ruído, para cujo conhecimento é competente a jurisdição administrativa, ainda que envolva a responsabilidade aquiliana de particulares;

b) – Mesmo que assim não fosse de todo, pelo menos o será quanto aos segmentos enunciados nos segundos parágrafos das alíneas i), ii) e iv) e na alínea iii) do petitório;

 c) – No limite, a competência material do tribunal da causa deverá ser circunscrita à tutela da personalidade, com exclusão do peticionado em sede de violação de normas de direito administrativo, maxime, na pretensa violação do RJUE e do RGR.


Vejamos.


Como é sabido, segundo doutrina e jurisprudência pacíficas, o pressuposto processual da competência material, fixado à data da propositura da ação, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se, pois, por base a relação material controvertida, tal como vem formulada pelo impetrante

Assim, no domínio das providências cautelares, dada a sua instrumentalidade funcional em relação às pretensões de tutela definitiva cujo efeito útil visam acautelar (art.º 2.º, n.º 2, in fine, e 364.º, n.º 1, do CPC), a competência material afere-se pelo critério determinativo da competência do tribunal para conhecer da ação principal.


Ora, o n.º 1 do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República consigna que:

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

   E o n.º 3 do art.º 212.º da mesma Lei Fundamental, determina que:

  Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

        

Já em sede infra-constitucional, no que aqui releva, o artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), consigna que:

Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

    E o mesmo se encontra editado no artigo 64.º do CPC.

        

    Por seu lado, o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, na versão republicada em Anexo ao Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02-10, densifica o âmbito da jurisdição administrativa, no que aqui poderá interessar, nos seguintes termos:

1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa (…) a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas a:

a) - Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

i) - Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

n) - Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

   E o n.º 2 do artigo 2.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22-02, na versão republicada em Anexo do indicado Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02-10, enumera como direito ou interesse legalmente protegido a que corresponde tutela adequada junto dos tribunais administrativos, entre outros, os seguintes efeitos:   

i) – A condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime;

q) – A adoção das providências cautelares adequadas para assegurar o efeito útil das decisões a proferir em processo declarativo.      


Segundo o artigo 37.º, n.º 1, do CPTA, seguem a forma de ação administrativa, entre outras, as pretensões de:  

b) - Condenação à prática de atos administrativos devidos, nos termos da lei ou de vínculo contratualmente assumido;

h) - Condenação à adoção ou abstenção de comportamentos pela Administração Pública ou por particulares;

i) - Condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime.

      E, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo:

  Quando, sem fundamento em ato administrativo impugnável, particulares, nomeadamente concessionários, violem vínculos jurídico-administrativos decorrentes de normas, atos administrativos ou contratos, ou haja fundado receio de que os possam violar, sem que, solicitadas a fazê-lo, as autoridades competentes tenham adotado as medidas adequadas, qualquer pessoa ou entidade cujos direitos ou interesses sejam diretamente ofendidos pode pedir ao tribunal que condene os mesmos a adotaram ou a absterem-se de certo comportamento, por forma a assegurar o cumprimento dos vínculos em causa.


    No caso dos autos, as Requerentes deduziram pretensão cautelar visando, nuclearmente, obter:

A – Em primeira linha, medidas que ordenem: 

a) - O encerramento de toda a atividade do estabelecimento da Requerida;

b) - A remoção de todos os aparelhos e condutas dos sistemas de exaustão, ventilação e ar condicionado da fachada posterior e cobertura do prédio ocupado pela Requerida, a executar pela e a expensas da Requerida, no prazo máximo de 15 dias a contar da notificação da respetiva decisão, conforme proposta de despacho do Vereador com o Pelouro da Fiscalização e Proteção Civil no sentido da remoção de todos os aparelhos e condutas dos sobreditos sistemas;

B - Subsidiariamente, para o caso de não proceder o pedido de encerramento enunciado em A - alínea a), a medida de encerramento provisório do estabelecimento até que sejam adotadas as medidas de correção das alegadas incomodidades.

C – Cumulatiuvamente, a fixação à Requerida de uma sanção compulsória, no montante diário de € 500,00, a favor das Requerentes, para o caso de incumprimento das medidas que forem decretadas.


     Mas, num segundo plano ou acessoriamente, as Requerentes pediram que: 

i) - Para a hipótese do não encerramento voluntário pela Requerida, fosse notificada a ASAE com vista ao encerramento coercivo do estabelecimento no prazo de cinco dias;            

ii) – Para o caso da Requerida não proceder à remoção voluntária  de todos os aparelhos e condutas dos sistemas de exaustão, ventilação e ar condicionado da fachada posterior e cobertura do prédio ocupado por ela, fosse notificada a Câmara Municipal do P… para tomar a posse administrativa do imóvel, nos termos dos artigos 107.º e 108.º do RJUE e proceder à remoção dos aparelhos no prazo de 30 dias a contar do incumprimento da Requerida;

iii) – Fosse notificada a Requerida de que lhe fica vedado o direito de reabrir o estabelecimento enquanto não possuir, cumulativamente, licença de utilização do edifício em referência, exigíveis pelo RJUE, designadamente nos termos do artigo 6.º-A, n.º 2, alínea b), e licença para o exercício de atividade de restauração e bebidas, nos termos do Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16-01, emitida pelas entidades competentes e bem assim o cumprimento da Lei Geral do Ruído, através da adoção de medidas de insonorização adequadas e eficazes;

iv) - Após a implementação dessas medidas e antes da reabertura, fosse a Requerida obrigada a, previamente, promover a realização de relatórios de ensaio, através do Laboratório de Ruído da Câmara Municipal do P… que atestem a conformidade com a legislação em vigor, em diferentes horários, notificando as requerentes do mesmo.  

 

     As Requerentes estribaram tais pretensões, fundamentalmente, em sede da tutela dos seus direitos de personalidade, sustentando que a atividade que a Requerida desenvolve, como arrendatária, no prédio sito na Avenida … n.º 49…, 50… e 51…, da freguesia …, contíguo àquele em que elas habitam, e o modo como utiliza o arrendado se consubstanciam em violação dos direitos daquelas ao repouso, ao descanso e ao sono, garantidos pelos artigos 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 70.º, n.º 1, do CC.

      Ora, segundo o citado artigo 70.º, n.º 1 e 2, do CC, a ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física ou moral de qualquer pessoa é juridicamente suscetível de ser prevenida ou reprimida por medidas jurisdicionais adequadas a evitar a consumação da ameaça, ou a atenuar ou fazer cessar os efeitos de ofensa já cometida, sem prejuízo da reparação a que haja lugar a título de responsabilidade civil. E, como é sabido, no âmbito dos direitos de personalidade cabem, nomeadamente, os fragmentários direitos ao repouso, ao descanso e ao sono, especificamente invocados pelas Requerentes.

      Trata-se de um meio de tutela cível correspondente aos direitos subjetivos absolutos de personalidade, independentemente da proteção reflexa que possa advir para tais direitos por via de outros meios de tutela, mormente de natureza pública, como são a tutela administrativa, penal ou contra-ordenacional. E para o exercício da ação daquele meio de tutela cível existe a forma de processo especial prevista e regulada nos artigos 878.º a 880.º do CPC.

     Assim, a ilicitude dos atos atentatórios dos direitos de personalidade é aferível função do próprio conteúdo destes direitos, intuitu personae, sem estar, pois, condicionada por outros tipos de ilicitude que aqueles atos possam envolver, por exemplo, em sede de prescrições administrativas ou de natureza penal. Não obstante isso, a violação destas prescrições podem traduzir-se num reforço da ilicitude civil, na medida em que tais prescrições, visando a proteção do interesse geral, traçam um padrão latitudinário de comportamento social que favorece, embora indiretamente, os interesses individuais.

     Assim, as normas de proteção ambiental entrosam-se com os direitos de personalidade na medida em que garantem o direito de qualquer pessoa a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, conforme o consagrado no artigo 66.º, n.º 1, da Constituição da República e no artigo 5.º da Lei n.º 19/2014, de 14-04, que define as bases da política de ambiente. De igual modo, as normas respeitantes à prevenção do ruído e ao controlo da poluição sonora, constantes do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 9/2007, de 17-01, servem de baluarte protetor da tutela da personalidade. E também a legislação administrativa que regula as atividades económicas e o licenciamento de estabelecimentos comerciais tende a conjugar os modos como se exerce a iniciativa privada com a esfera de proteção dos demais interesse individuais, em particular dos direitos de personalidade.

    Nessa perspetiva, não se mostra despiciendo que as Requerentes, embora centrando a sua pretensão na tutela da personalidade, tenham convocado também o seu direito ao ambiente, a violação da regulamentação sobre o ruído e a falta de licenciamento do estabelecimento comercial da Requerida.

     Tal convocação não retira a pretensão cautelar das Requerentes da órbita da tutela da personalidade, como sustenta a Requerida, na medida em que o objeto dessa pretensão, nas suas linhas essenciais consubstanciadas na causa de pedir e no pedido, se centra na alegada ofensa aos seus direitos ao repouso, ao descanso e ao sono, como dimensões específicas dos direitos de personalidade.

Neste contexto, a alegada violação de normas de natureza administrativa reguladoras da atividade em causa, dirigidas à proteção do interesse geral mas alcançando, por via indireta ou reflexa, a proteção dos interesse individuais, apresenta-se aqui como um reforço da ilicitude daquela ofensa, muito embora o nível de proteção da tutela da personalidade, aferível como é intuitu personae, possa ir para além do nível de proteção do interesse geral.   

É, pois, na leitura do teor essencial da petição inicial, quanto possível objetiva, que se deve situar a interpretação e qualificação do perfil normativo da pretensão cautelar, sem apelo a considerações subjetivas sobre uma hipotética vontade das impetrantes, como parece enveredar a Recorrente, tanto mais que é esse o critério de interpretação dos atos processuais, sujeitos como estão a determinadas formas e formalidades legais. 

Por isso mesmo, não se vê relevância em centrar a discussão nessa vontade conjetural, nomeadamente com referência à peça articulada por elas deduzidas ulteriormente conforme reprodução junta pela Recorrente a fls. 257 e seguintes.

Em suma, o que de essencial se colhe do requerimento inicial deduzido pelas Requerentes é a configuração de uma pretensão cautelar fundada, nuclearmente, na alegação de uma factualidade consubstanciadora da ofensa ou ameaça de ofensa futura aos seus direitos de personalidade, nas dimensões específicas dos direitos ao repouso, ao descanso e ao sono, imputada à Requerida, e tendente a obter medidas provisórias, de natureza preventiva e em parte restaurativa, em ordem a acautelar o efeito útil da tutela definitiva em sede de ação principal.

Para tanto, são materialmente competentes os tribunais judiciais em que se integra o tribunal da causa, nos termos dos artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (LOSJ), e 64.º do CPC.


Todavia, as Requerentes não se limitaram a pedir as medidas cautelares de “encerramento”, definitivo ou subsidiariamente provisório, da atividade do estabelecimento da Requerida, a remoção de todos os aparelhos e condutas dos sistemas de exaustão, ventilação e ar condicionado da fachada posterior e cobertura do prédio ocupado e a fixação judicial de sanção pecuniária compulsória. 

Além disso, pediram, complementar ou acessoriamente, como se deixou acima enunciado, que:

i) - Para a hipótese do não encerramento voluntário pela Requerida, fosse notificada a ASAE com vista ao encerramento coercivo do estabelecimento no prazo de cinco dias;

ii) – Para o caso da Requerida não proceder à remoção voluntária  de todos os aparelhos e condutas dos sistemas de exaustão, ventilação e ar condicionado da fachada posterior e cobertura do prédio ocupado por ela, fosse notificada a Câmara Municipal do P… para tomar a posse administrativa do imóvel, nos termos dos artigos 107.º e 108.º do RJUE e proceder à remoção dos aparelhos no prazo de 30 dias a contar do incumprimento da Requerida;

iii) – Fosse notificada a Requerida de que lhe fica vedado o direito de reabrir o estabelecimento enquanto não possuir, cumulativamente, licença de utilização do edifício em referência, exigíveis pelo RJUE, designadamente nos termos do artigo 6.º-A, n.º 2, alínea b), e licença para o exercício de atividade de restauração e bebidas, nos termos do Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16-01, emitida pelas entidades competentes e bem assim o cumprimento da Lei Geral do Ruído, através da adoção de medidas de insonorização adequadas e eficazes;

iv) - Após a implementação dessas medidas e antes da reabertura, fosse a Requerida obrigada a, previamente, promover a realização de relatórios de ensaio, através do Laboratório de Ruído da Câmara Municipal do P… que atestem a conformidade com a legislação em vigor, em diferentes horários, notificando as requerentes do mesmo.  

Nesta parte, afigura-se que as Requerentes fazem alguma confusão ou mistura entre a pretendida tutela cível e medidas que já inscrevem no âmbito da tutela administrativa.

    Com efeito, caso seja julgada procedente a pretensão deduzida, competirá ao juiz determinar as medidas cautelares que se mostrem adequadas a garantir o efeito útil da tutela definitiva dos direitos de personalidade invocados que possa vir a ser obtida em sede da ação principal. Essas medidas implicarão porventura prestações de facto positivo ou negativo por parte da Requerida.

    Não sendo tais prestações realizadas voluntariamente, haverá então lugar ao seu cumprimento coativo mediante as competentes vias executivas, no âmbito das quais poderá ser, se necessário, solicitada a cooperação das autoridades policiais, nos termos previstos no artigo 757.º, n.º 3, do CPC.


     Diversa é a pretensão no sentido de ser o tribunal a ordenar medidas de fiscalização ou de intervenção da competência própria das autoridades administrativas no exercício do ius imperii que lhes está legalmente atribuído, como são as competências de fiscalização da ASAE ou das autoridades camarárias e que extravasam o âmbito da função jurisdicional cometida aos tribunais judiciais. 

     Em especial, as medidas de posse administrativa ou de execução coerciva atribuída ao presidente da câmara municipal, nos termos dos artigos 107.º e 108.º do RJUE, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16-12, integram-se no âmbito dos meios de tutela da legalidade urbanística do foro próprio daquele órgão autárquico, portanto fora da esfera da função jurisdicional.

De igual modo, sucede, no âmbito do Regime Jurídico de Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviços e Restauração (RJACRS), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16-01, no respeitante às competências atribuídas às autoridades administrativas, nomeadamente à ASAE, em matéria de aplicação de medidas cautelares ou sanções acessórias e de fiscalização (artigos 142.º, 144.º e 146.º do referido diploma); ou ainda no domínio de fiscalização e de aplicação de medidas cautelares e sanções acessórias no âmbito do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 9/2007, de 17-01 (artigos 26.º, 27.º e 29.º deste diploma).

E mesmo que se equacionasse a hipótese de intervenção jurisdicional com vista à condenação da Administração a adotar as condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime, tal competência é do âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF e artigos 2.º, n.º 2, alíneas i) e q), e 37.º, n.º 1, alínea i), e n.º 3, do CPTA.


Assim sendo, os tribunais judiciais, em que se inclui o tribunal da causa, são incompetentes, em razão da matéria, para ordenar qualquer das medidas complementares ou acessórias acima transcritas, o que implica a absolvição da instância da Requerida nessa parte, em conformidade com o preceituado nos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC.

Termos em que procede a revista neste particular.     


3. Quanto à invocada ofensa de caso julgado


Vem a Recorrente também impugnar o segmento decisório do acórdão recorrido que confirmou a decisão da 1.ª instância de não admitir a intervenção principal, deduzida pela Recorrida, de DD, comproprietária da fração de que é também contitular a 2.ª Requerente.

    Neste aspecto particular, para além da ocorrência de dupla conforme, mas sobretudo face à inadmissibilidade de revista nos procedimentos cautelares, nos termos do n.º 2 do artigo 370.º do CPC, a Recorrente lançou mão do fundamento especial de ofensa de caso julgado previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), parte final, do mesmo Código.

Para tanto, considera a Recorrente que essa decisão de não admissão daquele incidente, fundada como está na qualificação da pretensão em sede de tutela da personalidade, ofende o caso julgado formal da anterior decisão reproduzida a fls. 253-255/v.º, de 12/07/2016, que fixou o valor em € 169.720,01, declarando competente a Instância Central Cível do Porto, tendo-se alicerçado no facto de estar em causa também o prejuízo patrimonial incidente sobre a referida fração autónoma.   

Ora, conforme o disposto no artigo 621.º do CPC, o alcance do caso julgado, mesmo formal, define-se nos precisos limites e termos em que julga. Como á sabido, o caso julgado recai incisivamente sobre o dispositivo decisório, embora com o limite objetivo resultante dos seus fundamentos. Não se constitui, pois, efeito de caso julgado única e autonomamente sobre tais fundamentos e muito menos sobre meras qualificações jurídicas.

No caso presente, o caso julgado formal invocado recai sobre a fixação do valor da causa e só em relação a este opera o fundamento ali considerado.

Assim, a qualificação da pretensão dada pelo tribunal para efeitos de atribuição do valor da causa não vincula o juiz a adotar, em decisões ulteriores, a mesma qualificação nomeadamente para efeitos de verificação dos pressupostos processuais ou de conhecimento do mérito. Significa isto que o fundamento assumido para a atribuição do valor da causa não produz efeito de caso julgado fora do âmbito decisório em que foi configurado.

Nesta linha de entendimento, a decisão de não admissão do incidente de intervenção principal em causa não ofende, de modo algum, o caso julgado formal constituído sobre a decisão que fixou o valor da causa.

Nestes termos, não se verificando o fundamento especial de recorribilidade, face ao preceituado no artigo 370.º, n.º 2, do CPC, não se toma conhecimento do objeto da revista quanto ao segmento decisório de não admissão da intervenção principal deduzida pela Requerida.


III – Decisão

        

    Pelo exposto, acorda-se em:

    A – Não tomar conhecimento do objeto da revista quanto ao segmento decisório do acórdão recorrido que confirmou a decisão da 1.ª instância de não admitir a intervenção principal de DD, deduzida pela Requerida;

     B – Conceder, em parte, a revista quanto à questão da exceção de incompetência material, decidindo-se que o tribunal da causa é incompetente, em razão da matéria, para:

a) – Na hipótese do não encerramento voluntário pela Requerida, ordenar a notificação da ASAE com vista ao encerramento coercivo do estabelecimento no prazo de cinco dias;           

b) – No caso da Requerida não proceder à remoção voluntária de todos os aparelhos e condutas dos sistemas de exaustão, ventilação e ar condicionado da fachada posterior e cobertura do prédio ocupado por ela, ordenar a notificação da Câmara Municipal do P… para tomar a posse administrativa do imóvel, nos termos dos artigos 107.º e 108.º do RJUE, e proceder à remoção dos aparelhos no prazo de 30 dias a contar do incumprimento da Requerida;

c) – Fora do âmbito das medidas cautelares cíveis, ordenar a notificação da Requerida para não reabrir o estabelecimento, como exclusiva medida administrativa exigível pelo RJUE, nos termos do artigo 6.º-A, n.º 2, alínea b), do Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16-01, ou para, como medida da mesma natureza, cumprir a Lei Geral do Ruído;   

d) - Após a implementação dessas medidas e antes da reabertura, ordenar que a Requerida fique obrigada a, previamente, promover a realização de relatórios de ensaio, através do Laboratório de Ruído da Câmara Municipal do P… que atestem a conformidade com a legislação em vigor, em diferentes horários;

   C – Por consequência, absolver a Requerida da instância quanto às providências descritas em B;

    D – Confirmar no mais a decisão recorrida.

As custas ficarão a cargo das partes na proporção de ¾ para a Recorrente e ¼ para as Recorridas. 

 

Lisboa, 1 de Junho 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

        

João Luís Marques Bernardo