Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9560/14.8TDPRT-O.G1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: TRIBUNAL DA RELAÇÃO
RECUSA DE JUÍZ
JUÍZ DESEMBARGADOR
JUIZ NATURAL
IMPARCIALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
I - As regras da independência e imparcialidade são inerentes ao direito de acesso aos tribunais – art. 20.º, n.º 1, da CRP –, constituindo ainda, no processo criminal português, atenta a sua estrutura acusatória – art. 32.º, n.º 5, da CRP –, uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa – art. 32.º, n.º 1 da CRP – e, mesmo do princípio do juiz natural – art. 32.º, n.º 9, da CRP.
II - Do ponto de vista da comunidade não há o risco ou aparência do não reconhecimento público da imparcialidade e isenção dos Juízes desembargadores que intervêm em processo onde se discute a mesma realidade de um outro processo em que já intervieram, como relator e adjunto.
III - Não pode, por isso, deferir-se a recusa dos Juízes desembargadores de intervir em processo da sua competência legal, sob pena de violação do princípio do juiz natural.
Decisão Texto Integral:


RECUSA

Processo n.º 9560/14.8TDPRT-O.G1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA, arguido e requerente nestes autos, formulou pedido de recusa dos Senhores Juízes Desembargadores, Dra. BB e Dr. CC, intervenientes como Adjuntos nos autos, com os seguintes fundamentos:

“1. Apresentou o arguido uma Reclamação à conferência que ainda não foi decidida, pelo que é o incidente de recusa tempestivo nos termos do art.º 44.º do C.P.P. porque apresentado antes da conferência.

2. Tomou o arguido conhecimento que os Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos destes autos processuais, Dra. BB e Dr. CC, se encontram nomeados para decidir uma mesma causa processual (recurso sobre a nulidade da acusação), no mesmo exacto processo 9560/14.8TDPRT-N.G1 no Tribunal da Relação, em apenso diferente, em que é recorrente o arguido DD.

3. Ora, o art.º 40.º alínea c) do C.P.P., por aplicação do art.º 43.º n.º 2 do C.P.P. que preceitua que “pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos previstos no artigo 40.º” ensina o seguinte: se um Juiz participou ou se encontra a participar – como é o caso – numa decisão de recurso num mesmo processo que se encontra no Tribunal da Relação em que a matéria a ser decidida em ambos os Apensos é a mesma (Recurso sobre a nulidade da acusação), ainda que os recorrentes sejam diferentes mas a base de todo o processado recursório seja a mesma (até porque a mandatária dos arguidos recorrentes é a mesma) não se pode aceitar, com o devido respeito, que dois Srs. Juízes Desembargadores se cruzem em ambos os apensos.

4. Os dois Exmos. Srs. Juízes que se encontram nos presentes autos para decidir em conferência (Dra. BB e Dr. CC) não podem decidir no presente processo e nos outros autos processuais, sob pena de, o que vier a ser decidido naqueles autos poder contaminar a decisão nos presentes ou vice-versa.

5. Os arguidos têm direito a que não exista nenhuma influência em qualquer decisão, e dúvidas não restam que com dois Srs. Juízes Desembargadores nestes autos que são os mesmos que estão nos autos 9560/14.8TDPRT-N.G1 em que é recorrente o arguido DD, não reúnem as condições absolutas de isenção e de imparcialidade suficientes para permanecerem nos presentes autos, sob pena de, a decisão que vier a ser proferida por aqueles naquele apenso vir a reflectir-se neste apenso, uma vez que fazem parte dum e doutro processo de recurso, ocorrendo assim uma contaminação de decisões por coincidência de dois Juízes Desembargadores.

6. Basta atentar no facto de cada apenso ter 3 Juízes Desembargadores, dois apensos terão 6 Juízes Desembargadores, mas na realidade temos apenas 4, pois dois cruzam-se em ambos os apensos, e fazem maioria, logo o que decidirem naquele apenso N, bem ou mal, vincarão no presente apenso, impedindo o aqui recorrente de ter o direito a ter uma decisão justa e isenta, tomada por outros Srs. Juízes que não tenham um mesmo recurso de um mesmo processo, em simultâneo, no mesmo tribunal da relação.

7. Assim, deve considerar-se que, um juiz que tenha participado ou esteja a participar num mesmo processo de recurso, ainda que sejam recorrentes diferentes, mas sendo o objecto do recurso o mesmo e relativamente ao mesmo processo 9560/14.8TDPRT onde se discute a nulidade da acusação – todos os juízes que se encontrem nomeados nuns autos de apenso não poderão decidir no outro apenso para analisar e decidir o mesmo recurso.

Face a todo o exposto, deve o presente incidente de recusa ser deferido e os Srs. Juízes Desembargadores Dra. BB e Dr. CC, por estarem nomeados para proferir decisão do recurso sobre a nulidade da acusação no Apenso N do mesmo processo 9560/14.9TDPRT-N.G1 devem ser substituídos por outros Srs. Juízes, seus substitutos, por existir perigo de influência de decisão, coarctando o direito do arguido a livre apreciação e interpretação por outros Srs. Juízes Desembargadores da matéria de direito em causa.”.

2. Os Senhores Juízes Desembargadores visados pronunciaram-se sobre o requerimento de recusa nos seguintes termos:

a. A Senhora Juiz Desembargadora BB, disse:

BB, juiz do Tribunal da Relação de Guimarães, confrontada com o requerimento de recusa apresentado pelo recorrente AA, vem declarar que inexiste, no meu entender, qualquer motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a minha imparcialidade.

O requerente invoca o disposto no artigo 43º, nºs 1 a 3 do C.P.P., que dispõe :

1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente

ou pelas partes civis.

A intervenção do juiz noutro processo ou em fase anterior do mesmo processo não implica necessariamente desconfiança acerca da sua imparcialidade.

Segundo Henrique Gaspar, in Código de Processo Penal comentado, 2022 - 4ª edição revista, Almedina, p. 127, «…dada a extensão enunciativa do artigo 40º, é razoável ter como assente que só excepcionalmente ocorrerão outras intervenções sucessivas no processo susceptíveis de integrar os motivos para afectação da imparcialidade objectiva.».

A imparcialidade pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo prévio em relação à matéria a decidir e relativamente às pessoas a julgar. E não basta que o sujeito processual que requer a recusa, subjectivamente, se convença da falta de imparcialidade do julgador, esta tem de resultar da conduta processual do juiz, ou das suas atitudes extra-processuais.

No caso presente, importa referir que quando foi requerida a minha recusa, ainda não havia proferido qualquer decisão no apenso N do processo nº 9560/14.8tdprt, que apenas teve lugar no passado dia 22/2/2023.

Depois, é verdade que a matéria a decidir em ambos os apensos é a mesma, e que os diferentes recorrentes estão representados pela mesma srª advogada. Sendo a mesma matéria a ser decidida, é natural que os juízes, sendo os mesmos, profiram a mesma decisão nos dois apensos !

Contudo, a mera intervenção do mesmo juiz em vários recursos do mesmo processo não pode constituir, em si mesmo, motivo da sua recusa, sob pena de, a não se entender assim, estar encontrada a maneira fácil de contornar o princípio do juiz natural, afastando-se o juiz porque ele não agrada.

Mais, em processos como o processo nº 9560/14.8tdprt, com mais de cinco dezenas de arguidos, bastava que todos os arguidos interpusessem, separadamente, recursos exactamente iguais sobre a mesma decisão, para se conseguir o afastamento de todos os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães !

Deste modo, não vislumbro qualquer causa para a requerida recusa.”.O Senhor Juiz Desembargador CC, disse:

“CC, juiz desembargador nesta Relação de Guimarães visado no presente incidente de recusa, pronuncia-se sobre o requerimento de recusa nos seguintes termos:

Confirmo que participei na qualidade de 2.º adjunto na decisão do recurso proferida no apenso N.

Conforme resulta do artigo 43.º do CPP e constitui jurisprudência uniforme não basta um puro convencimento subjectivo por parte de quem pede a escusa ou formula o pedido de recusa para que se tenha por verificada a ocorrência de suspeição, como não basta, para tal, a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz pois o motivo tem que ser sério e grave.

No caso em apreço e aderindo à posição assumida pela minha Ex.a colega, Desembargadora BB não vislumbro qualquer fundamento para a pretendida recusa.”.

Considerando ambos os Senhores Juízes Desembargadores não haver razão para suscitar qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.

3. Dos elementos constantes dos autos, com interesse para a presente decisão, extrai-se que:

a. Por decisão sumária proferida nestes autos no dia 25/01/2023, foi determinado alterar-se “(…) o efeito e o regime de subida do presente recurso interposto pelos arguidos EE e AA, determinando-se que o mesmo tem efeito meramente devolutivo e subirá e será julgado oportuna e conjuntamente com o recurso que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa”;

b. Desse despacho no dia 06-02-2023, o ora requerente reclamou para a conferência;

c. Os Senhores Juízes Desembargadores, BB e CC intervieram, respectivamente, como Relatora e como Adjunto, no tribunal colectivo que julgou o recurso sobre a invocada nulidade da acusação, no Apenso N, do mesmo processo 9560/14.9TDPRT-N.G1, a correr termos no Tribunal da Relação de Guimarães, e no qual foi proferido o acórdão no dia 22/2/2023.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O pedido de recusa foi efectuado por quem tem legitimidade e em tempo.

Todavia, o pedido de recusa será sempre de indeferir, não podendo ser admitido, por ser evidente que o requerimento apresenta manifesta falta de alegação de factos ou circunstâncias relevantes para a recusa de juiz, conforme exige o art.º 43.º, n.º 1, do CPP.

Com efeito, o requerente não alega, e nem sequer concretiza, qualquer facto, dado ou circunstância que objetivamente constitua motivo sério, grave e adequado a gerar suspeita sobre a intervenção dos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães ou contra qualquer outro visado, não se descortinando qual o receio objetivo que estes Senhores Juízes Desembargadores suscitam no caso concreto, para que, do ponto de vista do cidadão comum a sua intervenção nos autos possa gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade ou isenção ou, sequer, que participação tiveram estes nos autos aqui em causa que coloque em crise a imparcialidade e a isenção de qualquer um deles.

Acresce que o requerimento de recusa se reconduz, em substância, à arguição de uma pretensa desconfiança sobre a contaminação de decisões por coincidência de dois Juízes Desembargadores, geradora de motivo de recusa por, nessa tese do recorrente, tal afetar a imparcialidade dos juízes.

O incidente de recusa, preordenado e regulado em função de conhecimento de motivo sério e grave, de natureza pessoal, de relação com o processo ou com os sujeitos processuais, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (artigo 45.º, n.º 1, do CPP), exige que a análise do pedido deve ser feita, ponderando as circunstâncias de cada caso concreto, a partir de factos objetivos, de acordo com as regras da experiência comum, com equilíbrio e adequação, não sendo o meio de reagir contra decisões com as quais os sujeitos interessados possam eventualmente vir a discordar.

As regras da independência e imparcialidade são inerentes ao direito de acesso aos tribunais – art.º 20.º, n.º 1, da CRP –, constituindo ainda, no processo criminal português, atenta a sua estrutura acusatória – art.º 32.º, n.º 5, da CRP –, uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa – art.º 32.º, n.º 1 da CRP – e, mesmo do princípio do juiz natural – art.º 32.º n.º 9, da CRP.

No caso, perante o circunstancialismo apurado, sempre é de concluir que não há o risco de ser considerada suspeita a intervenção dos Senhores Juízes Desembargadores, nestes autos de apenso, processo 9560/14.8TDPRT-O.G1, onde se discute a mesma realidade. Se assim não fosse entendido haveria um grave atropelo às regras da competência e ao princípio do juiz natural.

De resto, nem sequer foram invocados quaisquer factos, diretamente relacionados com o requerente, que sejam suscetíveis de constituir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes.

Em face do exposto, nem sequer do ponto de vista da comunidade há o risco ou aparência do não reconhecimento público da imparcialidade e isenção dos Juízes Desembargadores em causa. Não pode, por isso, deferir-se a recusa dos Juízes Desembargadores de intervir em processo da sua competência legal, sob pena de violação do princípio do juiz natural.

Tanto basta, para que se deva indeferir o pedido de recusa ora em apreço.

III – DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:

a) Indeferir o pedido de recusa apresentado pelo requerente AA contra os Senhores Juízes Desembargadores BB e CC, do Tribunal da Relação de Guimarães;

b) Custas pelo incidente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s, nos termos da tabela III, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 09 de Março de 2023

Leonor Furtado (Relatora)

Agostinho Torres (Adjunto)

José Eduardo Sapateiro (Adjunto)

Eduardo Loureiro (Presidente)