Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B072
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GIL ROQUE
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 44/2001
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
Nº do Documento: SJ2007051000727
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NAGADO
Sumário :
I - Na determinação da competência judiciária internacional relativamente a acção, fundada no incumprimento de contrato celebrado entre uma sociedade fornecedora portuguesa (autora), contra uma sociedade espanhola (ré), que encomendara as mercadorias, cujo local de entrega final era a Espanha, são aplicáveis os arts. 2.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22-12, dos quais resulta serem os tribunais espanhóis os competentes.
II - Tendo a acção sido instaurada no tribunal português sem que a ré, que apresentou contestação, tenha arguido nessa peça processual a excepção de incompetência absoluta, em razão da nacionalidade, ocorreu a prorrogação tácita de competência prevista no art. 24.º do referido Regulamento, pelo que os tribunais portugueses também são internacionalmente competentes para conhecer do litígio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Na presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinária, intentada em 14-02-2003, a Autora, AA, LDA., pede a condenação da Ré, BB, S.A., a pagar-lhe as quantias de 162.602,62 €, 27.632,04 € e 23.200,00 €, acrescidas de juros de mora, alegando, em síntese, que, no exercício da sua actividade, fabricou e forneceu à ré, por encomenda desta, diversas peças de ferro fundido ligado com crómio e molibidénio, discriminadas nas facturas juntas aos autos de arresto (entretanto apensos), não tendo a Ré efectuado o pagamento do respectivo preço, correspondente aos valores dos 1.° e 2.° pedidos, sendo que as peças relativas ao segundo pedido não foram levantadas, suportando a autora as despesas - a que se refere o 3.° pedido - com a armazenagem das mesmas e dos modelos da ré entregues para o seu fabrico.
A Ré contestou, defendendo-se por excepção peremptória - o não cumprimento do contrato e a compensação - e por impugnação.
A Autora replicou.
Foi realizada uma tentativa de conciliação, que se frustrou e, depois,veio a Ré apresentar o requerimento constante de fls. 355 a 357, suscitando a incompetência dos tribunais portugueses para julgar a causa, alegando para tanto, em síntese, que: - o processo está em conexão com a ordem jurídica de dois Estados - o Estado Português e o Estado Espanhol;
- tem aplicação o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de
2000;
- está em causa o fornecimento de bens pela autora à ré, a entregar na sede desta, em Madrid;
- logo, por força dos arts. 2.°, n.º 1, e 5.°, n.º 1, al. b), os tribunais espanhóis são os internacionalmente competentes.
A Autora respondeu, a fls. 369 a 374, sustentando, em suma, que:
- ao abrigo do art. 5.°, n.º 1, al. a), do Regulamento, a Autora podia demandar a Ré no tribunal português, por ser o do domicílio do credor, já que o litígio diz respeito à obrigação de pagamento do preço de mercadorias, que deveria ser pago na sede da Autora;
- o negócio em causa, de compra e venda de mercadorias, foi celebrado em território português, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes por força do art. 65.°, n.º 1, al. c), do CPC;
- a Ré possui bens em Portugal susceptíveis de serem penhorados, alguns dos quais já foram arrestados, o que constitui outro elemento de conexão com o ordenamento jurídico português para efeitos do art. 65.°, n.º 1, al. d), do CPC.
A excepção foi julgada procedente, com a consequente absolvição da instância da Ré da instância.
A Autora agravou desta decisão e juntou aos autos o parecer de fls. 765 a 806.
Provendo o agravo, a Relação do Porto revogou o despacho da 1.a Instância e declarou o Tribunal português internacionalmente competente para julgar a causa.
É agora a vez de a ré recorrer para este Tribunal, pedindo a revogação do acórdão da 2.a Instância, formulando as seguintes conclusões:
1.ª - a ora recorrente era parte no processo em que foi proferido o recente Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2005 publicado na Base de dados da DGSI- proc.05B316, no qual em situação totalmente idêntica à dos presentes autos, se decidiu em sentido totalmente oposto.
2.a - A decisão recorrida adoptou o entendimento segundo o qual houve extensão da competência aos tribunais portugueses por força do disposto no artigo 24.° do Regulamento (CE) n.º 44/2001 pelo facto de a Ré e ora recorrente ter comparecido perante o tribunal português e não se ter limitado a arguir a incompetência.
3.a - Mas foi precisamente isto também o que sucedeu no caso anterior, em que a Ré e ora recorrente contestou a acção defendendo-se do mérito da causa e só mais tarde veio a suscitar a questão de incompetência internacional, conforme lhe era permitido pelo artigo 102.°, n.º 1, do Código de Processo Civil.
4.a - A disposição do artigo 24.° do Regulamento (CE) 44/2001, ao admitir a extensão tácita da competência internacional no caso em que o Requerido compareça apenas para arguir a excepção de incompetência é incompatível com o actual ordenamento jurídico, segundo o qual, toda a defesa deve ser deduzida na contestação (artigo 489.°, n.º 1, do CPC) e ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição - artigo 490.°, n.º 1, do CPC.
5.ª - Assim, obrigando a Lei Nacional a deduzir toda a defesa na contestação, a comparência da ré que se defendeu do mérito da causa só teria efeito cominatório sobre a aceitação da competência internacional do Tribunal se no acto da citação tivesse sido advertida de que a falta de contestação importaria a confissão dos factos articulados pela autora a menos que a ré optasse pela arguição da incompetência internacional do tribunal português conforme previsto no artigo 24.° do Regulamento.
6.a - A extensão da competência internacional nos termos do artigo 24.° do Regulamento quando o requerido compareça em juízo apenas para arguir a incompetência do tribunal é incompatível com o actual quadro legislativo nacional que obriga a deduzir toda a defesa na contestação e permite que sejam deduzidas posteriormente as excepções que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso da incompetência internacional;
7.ª • Deverá, pois, ser revogado o acórdão recorrido e confirmada a sentença do Tribunal de Vila Nova de Famalicão que declarou a incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da presente acção.
A agravada contra-alegou no sentido da negação de provimento ao agravo.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

*

Os factos relevantes para a solução do recurso são os que constam do relatório supra e que aqui se dão por reproduzidos.
A única questão a resolver é a da atribuição da competência em razão da nacionalidade para o julgamento da presente acção:
- se aos tribunais espanhóis, como decidiu a 1.a Instância;
- ou aos tribunais portugueses, como decidiu a 2.a Instância.

*
Desde já adiantamos que a decisão correcta é a do acórdão sob recurso.
Vejamos porquê:
É ponto assente que a presente acção apresenta conexão com duas ordens jurídicas distintas - a portuguesa e a espanhola - colocando-se uma questão de competência internacional a dirimir nos termos previstos nos arts. 65.°­A do CPC e no Regulamento (CE) n.º44/2000, de 22 de Dezembro, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Com efeito, por força do disposto no art. 249 do Tratado da Comunidade Europeia, o Regulamento em causa é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados-Membros, entre os quais se inclui Portugal, prevalecendo as suas normas sobre normas de natureza idêntica constantes do art. 65.° do CPC - cfr. art. 3.°, n.º 2, do Regulamento, e art. 8.°, n.º 3, da CRP (1) (2).
O Regulamento veio substituir, entre os Estados-Membros (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas (art. 68, n.º 1, do Regulamento). Saliente-se que a Convenção de Lugano não prejudica a aplicação do Regulamento às relações entre os Estados-Membros da Comunidade Europeia, sendo aquela Convenção aplicável sempre que as regras dela constantes atribuírem competência aos tribunais de um Estado contratante que não seja membro da Comunidade Europeia, isto é, a Islândia, a Noruega, a Polónia e a Suíça.
A presente acção preenche os diferentes âmbitos de aplicação do Regulamento (3).
Com efeito, tem indiscutível natureza civil, atento o seu objecto, pois, em traços gerais, funda-se na responsabilidade contratual, enquadrando-se, por isso, no âmbito material de aplicação do Regulamento(cfr.art.1.°, n.ºs 1 e 2, do Regulamento).
Foi demandada uma sociedade cuja sede se situa em Espanha, Estado ­Membro, pelo que também se está no âmbito de aplicação territorial e espacial (ou subjectivo) do Regulamento (cfr. arts.1.°, n.º 3, 3.°, n.º 1, 4.° e 60.° do Regulamento). .
A acção foi instaurada no dia 14-02-2003, estando assim abrangida no âmbito temporal de aplicação do Regulamento (cfr. arts. 66.° e 76.° do Regulamento) .
Vejamos então quais as normas do Regulamento aplicáveis, na presente acção, para aferir da (in)competência internacional dos tribunais portugueses.
Nos termos do Regulamento, a regra geral é a de que as pessoas (singulares ou colectivas) domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado - artigo 2.°, n.º 1.(4).
Porém, conforme resulta do art. 3.°, n.º 1, do Regulamento estão previstas, nas secções 2 a 7 do Capítulo II, outras regras de atribuição de competência, designada mente, e com relevância para o caso sub judice, em matéria contratual, prevendo-se que o autor tem a faculdade de intentar a acção no tribunal do lugar onde a obrigação, que serve de fundamento ao pedido, foi ou deva ser cumprida (al. a) do n.º 1 do artigo 5.º).
O art. 24.0 do Regulamento prevê ainda uma prorrogação ou extensão tácita da competência jurisdicional, preceituando que "Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal. com competência exclusiva por força do artigo 22.0."
Portanto, o legislador comunitário entendeu que quando o requerido compareça perante o tribunal do Estado-Membro em que foi demandado, excepto se o fizer com o objectivo de arguir a incompetência do tribunal ou se a acção for da competência exclusiva dos tribunais de outro Estado membro por força do art. 22.º, não se justifica a declaração oficiosa de incompetência, reconhecendo a autonomia da vontade como um princípio fundamental em torno do qual está estruturado o regime instituído pelo Regulamento no que respeita à repartição da competência internacional. (5)
Com efeito, se a parte é demandada no tribunal de um Estado-Membro que não seria competente à luz das regras do Regulamento, mas opta por comparecer nesse tribunal, e não invoca, como é seu direito, a excepção de competência, o tribunal não deve declarar-se incompetente, mas conhecer da acção, por ser de considerar que tacitamente as partes acordaram quanto à sua competência. Logo, não há qualquer incompetência internacional que deva ser declarada. (6)
Por outras palavras, esta prorrogação tácita da competência funda-se na presunção de que ao comparecer perante o tribunal incompetente, sem arguir a incompetência desse tribunal, o demandado aceita tacitamente ser julgado por essa jurisdição. (7)
Cumpre então determinar se, face às referidas regras do Regulamento (CE) n.º 44/2001, os tribunais competentes para conhecer da presente acção são os portugueses ou os espanhóis. Saliente-se que as disposições do Regulamento devem ser interpretadas autonomamente, tomando por referência o seu sistema e os seus objectivos (assim, Ac. TJCE de 13-07-2006, proc. C-103/05).
A primeira conclusão que se impõe é a de que, sendo a Ré uma sociedade cuja sede se situa em território espanhol, deveria ter sido demandada nos tribunais espanhóis, ao abrigo do disposto nos arts. 2.°, n.º 1, e 60.°, n.º 1, a!. a), do Regulamento, cuja interpretação e aplicação ao caso dos autos não suscita quaisquer dúvidas.
Vejamos agora qual a solução a que se chega pela aplicação do art. 5.°, que prevê competências especiais em matéria contratual.
Para tanto, importa qualificar o contrato celebrado entre as partes.
A 1.ª instância considerou que se tratava de contrato misto de compra e venda e prestação de serviços, pois a Ré encomendou peças à Autora que as fabricou, o que era pretendido eram as peças em si, o resultado do trabalho desenvolvido pela Autora, sendo essas peças posteriormente vendidas à Ré; os bens eram entregues em Espanha, no domicílio da Ré, cumprindo-se aí o serviço que se contratara prestar. Assim, aderiu à posição sufragada no Acórdão do STJ de 03-03-2005, que considerou aplicável a caso idêntico o art. 5.°, n.º 1, al. b}, do Regulamento. (8)
A Relação do Porto não conheceu da questão da qualificação do contrato e sua subsunção numa das alíneas do n.º 1 do art. 5.° do Regulamento. Considerou que a mesma ficava prejudicada, pois, não tendo sido oportunamente suscitada a excepção de incompetência absoluta, o tribunal português era competente por se ter verificado a extensão da competência nos termos do art. 24.° do Regulamento.
Ora, não é metodologicamente correcta a ordem pela qual a Relação procedeu à análise das questões enunciadas no acórdão recorrido - a da prorrogação tácita da competência dos tribunais portugueses nos termos do art. 24.° do Regulamento e a da eventual violação do art. 5.°, n.º 1, al. c}, do Regulamento (supomos que se pretendia dizer alínea b) do n.º 1 do art. 5.°).
Efectivamente, em ambos os agravos, a questão a decidir é a mesma: a de saber se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para conhecer da presente acção. A resposta a essa questão implica, como já referimos, a análise das regras de competência internacional dos tribunais portugueses do direito de origem interna e de origem externa, nomeadamente as referidas regras do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro.
Mas há que começar por analisar em que termos se aplica ao caso o referido art. 5.° e só na hipótese de se concluir que da aplicação desse normativo resulta serem competentes os tribunais espanhóis/incompetentes os tribunais portugueses é que cabe apreciar se, não obstante isso, estes últimos são competentes, por força da extensão de competência prevista no art. 24.°.
Na verdade, conforme já frisámos, este preceito baseia-se na formação de um acordo tácito das partes para atribuição de competência aos tribunais de determinado Estado-Membro que eram incompetentes, segundo as regras do Regulamento ou do direito comum da competência internacional do foro. (9) Assim, para que se possa concluir pela competência dos tribunais portugueses decorrente da aplicação do art. 24.° do Regulamento é necessário que previamente se tenha considerado que os tribunais de outro Estado-membro (no caso os espanhóis) eram os competentes (designadamente por força dos arts. 2.°, n.º 1, e 5.°, n.º 1, do Regulamento).
A Relação do Porto considerou aplicável ao caso o art. 5.°, n.º 1, do Regulamento, mas sem explicitar em que termos, designadamente sem precisar qual das alíneas do n.º 1 era aplicável, o que supunha a prévia qualificação do contrato. (10)
Mas é fundamental que o façamos, analisando, para o efeito, o núcleo fáctico que de relevante se extrai do alegado pela autora na petição inicial e dos documentos referidos na mesma (11).
A Autora, ora recorrida, é uma sociedade portuguesa, com sede em Portugal.
A Ré, ora recorrente, é uma sociedade espanhola, com sede em Espanha.
A Autora alegou, na petição inicial que, no exercício da sua actividade, fabricou e forneceu à Ré, por encomenda desta, diversas peças de ferro fundido ligado com outros metais, discriminadas nas facturas juntas aos autos de arresto (entretanto apensos), não tendo a Ré efectuado o pagamento do respectivo preço, correspondente aos valores dos 1.° e 2.° pedidos, sendo que as peças relativas ao segundo pedido não foram levantadas, suportando a Autora as despesas - a que se refere o 3.° pedido - com a armazenagem das mesmas e dos modelos da Ré entregues para o seu fabrico.
Assim, a responsabilidade contratual imputada à Ré advém, no fundo, do incumprimento dos contratos, com o prejuízo resultante da falta de pagamento do preço e do levantamento de parte das mercadorias.
Não tem razão a Autora recorrida quando defende que o elemento prevalente do contrato de fornecimento em apreço nos autos é a prestação de serviços. Na verdade, os contratos em questão, ditos de fornecimento, reconduzem-se, tanto no ordenamento jurídico português (cfr. art. 874.° do CC), como no ordenamento jurídico espanhol (cfr. art. 1445.° do Código Civil Espanhol) a contratos de compra e venda, com a obrigação por parte da Autora de entrega dos bens - por si fabricados - e com a obrigação por parte da Ré de pagamento do respectivo preço (12).
Efectivamente, muito embora as vendas digam respeito a peças fabricadas pela Autora, por encomenda da Ré, o núcleo essencial dos negócios, radica, conforme alegado na petição inicial, no fornecimento de determinadas mercadorias, discriminadas nas facturas juntas aos autos. Veja-se, aliás, que não foi facturada uma qualquer prestação de serviços, mas as próprias peças de metal encomendadas.
Estamos, pois, na presente acção, perante contratos de compra e venda (internacional), em que é vendedora uma sociedade portuguesa (a Autora) e é compradora uma sociedade espanhola (a Ré), alegadamente não cumpridos por esta, designadamente quanto à obrigação de pagar o preço das mercadorias, que aquela fabricou e forneceu.
Logo, na determinação da competência judiciária, é aqui aplicável o art. 5.°, n.º 1, do Regulamento, nos termos do qual é (facultativamente) competente o tribunal do "lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão" - al. a) -, explicitando-se - na ai. b) - que no caso da venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação é o lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
Saliente-se que só quando o critério da alínea b) não puder operar é que será de ter em contra o critério da alínea a), atinente ao lugar do cumprimento determinado de acordo com as regras do direito internacional privado, nomeadamente as regras da lei reguladora do negócio. (13)
Assim, face à qualificação do ajuizado contrato, fica afastada a aplicação, nos presentes autos, do critério previsto na 2.a parte da alínea b) do n.º 1 do art. 5.° - aplicável no caso da prestação de serviços - e irreleva o critério - da alínea a) do n.º 1 - do lugar onde devia ser cumprida a obrigação de pagamento do preço.
Concluímos, pois, que a presente acção, destinada a exigir à Ré o cumprimento coercivo da obrigação de pagamento do preço das mercadorias vendidas pela Autora (e de indemnização pelo incumprimento contratual) poderia, nos termos do Regulamento, ter sido proposta pela Autora fornecedora/vendedora:
- ou perante os tribunais onde se encontra domiciliada a Ré devedora, ou seja, perante os tribunais espanhóis;
- ou perante os tribunais do lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
A Autora sustenta (na sua alegação de recurso) ter optado por esta segunda via (facultativa, como se disse).
Mas importa saber qual o lugar da entrega dos bens, aqui residindo a discordância entre as partes:
- a Ré, ora recorrente, insiste que o local de entrega dos bens era Espanha;
- a Autora, ora recorrida, sustenta que se trata das suas próprias instalações, em Portugal.
Saliente-se que esta afirmação da Autora é posterior à decisão da 1.ª instância sobre a excepção em apreço. Na verdade, dos seus articulados e documentos juntos com os mesmos, resulta claro que as peças fornecidas pela Autora se destinavam ao mercado espanhol, ou seja, a serem exportadas para Espanha. Aliás, nos articulados as partes aceitam que decorreram negociações com vista à celebração de um protocolo comercial, no decurso das quais a Autora manifestou não aceitar a cláusula de exclusividade pretendida pela Ré. A documentação junta aos autos demonstra-o, podendo ver-se, por exemplo, a carta de fls. 323 e 324, assinada pelo gerente da Autora, engenheiro ..., em que este reconhece a Ré Aceros como distribuidora em Espanha e afirma que a Autora pretende poder vender na Galiza e numa faixa de território espanhol de cerca de70 Km contados a partir da fronteira.
No requerimento de tis. 355 a 357, em que foi suscitada a excepção de incompetência em apreço, foi alegado pela Ré que as mercadorias eram entregues em Espanha (cfr. arts. 10.°, 13.°, 15.° e 16.°), o que não foi refutado pela Autora, na sua resposta.
Na alegação de recurso para a Relação veio a Autora defender que o local da entrega era a sua fábrica, em Vila Nova de Famalicão, ficando a mercadoria aí à disposição do destinatário. Mas reconhece, também aí (cfr. art. 20.10), que as mercadorias ficavam nas "instalações do expedidor" (a agravante, só por lapso se refere "apelante") para ser entregue ao transportador. Mais refere que "se nenhuma das partes tivesse alegado o que quer que fosse sobre o lugar da entrega dos bens, o direito aplicável seria, de acordo com a Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 18 de Junho de 1980 (cfr. n.º 2 do artigo 4.°), o português." (vd. art. 20.13).
Ora, não é necessário recorrer a esta Convenção, uma vez que as partes se pronunciaram nos autos sobre o lugar da entrega dos bens e o art. 5.°, n.º 1, al. b), do Regulamento, ao estabelecer um conceito autónomo de lugar do cumprimento da obrigação em duas situações precisas, visou precisamente "atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro" (14), devendo entender-se que o lugar da entrega relevante, para efeitos do referido art. 5.°, n.º 1, al. b), é o da entrega efectiva, ou seja, o destino final dos bens, e não o local onde estes sejam colocados à disposição pelo fornecedor para posterior transporte (15).
De outro modo, o critério especial da alínea b) do n.º 1 do art. 5.°, adoptado no caso de venda de bens conexa com o ordenamento jurídico de diferentes Estados-Membros, teria reduzido interesse prático. Na verdade, é sabido que na grande maioria dos contratos de compra e venda internacional, o transporte das mercadorias é assegurado por empresa transportadora. Logo, admitir que o local de entrega possa ser o do Estado-Membro exportador, implicaria desconsiderar completamente o elemento de conexão com o Estado ­Membro importador, esvaziando de sentido a referida alínea b), e contrariando a prioridade atribuída pelo legislador comunitário ao critério da alínea b) em detrimento do critério da alínea a), prioridade que resulta claramente da alínea c) do n.º 1 do art. 5.°.
Destarte, concluímos que, contrariamente ao sustentado pela Autora, ora recorrida, nada permite concluir que o local de entrega das mercadorias fosse Portugal, antes resultando dos autos que esse local era em Espanha. Consequentemente, não pode a Autora prevalecer-se do referido art. 5.°, n.º 1, al. b), aplicável ao caso, para demandar a Ré nos tribunais portugueses. Deste normativo, tal como do art. 2.°, n.º 1, do Regulamento, resulta serem internacionalmente competentes para dirimir a presente acção os tribunais espanhóis.
É agora altura de apreciar se existiu prorrogação tácita de competência nos termos do art. 24.° do Regulamento, como decidiu a Relação.
Sabemos que a presente acção foi intentada no tribunal português, que não era competente segundo as regras do Regulamento.
A Ré "compareceu", constituindo mandatário judicial, apresentando contestação e fazendo-se representar na tentativa de conciliação. Não arguiu então a incompetência do tribunal, apenas o tendo feito posteriormente.
Assim, à partida, parece que se mostra preenchida a previsão do art. 24.°.
Vejamos melhor os requisitos de aplicação deste normativo.
É incontroverso que para que se aplique o art. 24.° é necessário que a acção se enquadre no âmbito material, territorial e temporal do Regulamento (16), o que se verifica no caso sub judice, conforme supra referido.
Por outro lado, inexistindo na situação em apreço um acto de jurisdição e não tendo a acção sido proposta no tribunal competente por força do Regulamento (arts. 2.°, n.º 1, e 5.°, n.º 1), para que se aplique o art. 24.° é ainda necessário que o demandado tenha domicílio no território de um Estado-membro (17), o que também sucede nos presentes autos.
A extensão tácita de competência é afastada, nos termos da 2.ª parte art. 24.° se: a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do art. 22.° do Regulamento. É indiscutível que o presente litígio incluído não está incluído na previsão do art. 22.°.
Mas já é menos claro se a comparência da Ré representa (ou não) uma verdadeira aceitação tácita da jurisdição do tribunal português, ou seja, saber se teve como "único objectivo arguir a incompetência".
As dúvidas quanto ao sentido desta expressão colocaram-se já a propósito das várias versões linguísticas do art. 18.° da Convenção de Bruxelas, que o art. 24.° do Regulamento basicamente reproduz. A jurisprudência firmada pelo T JCE a esse propósito foi no sentido de considerar que o demandado pode comparecer defendendo-se, não apenas com a excepção de incompetência, mas também, embora a título subsidiário, quanto ao fundo do litígio e com reconvenção, sendo a arguição da incompetência feita o mais tardar no primeiro acta de defesa, qualificado como tal pela lei do foro (18).
O legislador comunitário acolheu esta jurisprudência no art. 24.°, muito embora a disparidade de versões linguísticas continue a suscitar alguma polémica.
Em particular, a versão portuguesa envolve algumas dificuldades interpretativas, por apresentar divergências com as demais versões linguísticas, designadamente com a referência a "único" objectivo.
No entanto, à luz da jurisprudência do TJCE, deverá entender-se que o art. 24.° permite ao demandado arguir a incompetência do tribunal e, subsidiariamente, prevenindo a hipótese de improcedência da excepção, apresentar a sua defesa em relação ao mérito da causa, bem como deduzir pedido reconvencional (19).
Ou seja, a excepção à regra da extensão de competência enunciada no art. 24.°, 1.a parte, deve ser interpretada no sentido de se permitir ao demandado não apenas arguir a incompetência do tribunal, mas também, à cautela, apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa, de forma subsidiária, sem que com isso fique excluída a hipótese de procedência da excepção de incompetência.
Quanto ao momento em que deve ser suscitada a excepção de incompetência para que possa excluir-se a formação tácita de acordo judiciário, terá de se atender à lei do foro, no caso às regras constantes dos arts. 101.°, 102.°, n.º 1, e 489.°, do Código de Processo Civil português, mas com a limitação explicitada na referida jurisprudência do TJCE.
Assim, embora a excepção de incompetência absoluta, por violação das regras de competência internacional legal, possa ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado, se estiver em causa a derrogação de disposições do Regulamento (CE) n. o 44/2001 (sendo de conhecimento oficioso nos termos do art. 26.° do Regulamento), a excepção não poderá proceder quando tenha sido deduzida após a ter sido apresentada a primeira defesa. Nesse caso, a comparência do demandado ao apresentar essa defesa (em regra, a contestação) teve como efeito a formação tácita de acordo quanto à competência judiciária, acordo que já não pode ser destruído pela posterior arguição da excepção. (20)
Transpondo estas considerações para o caso vertente, concluímos que quando a Ré compareceu em juízo, apresentado a sua contestação, mas sem arguir aí excepção de incompetência absoluta do tribunal de vila Nova de Famalicão, este tornou-se competente, verificando-se a prorrogação da sua competência, em consequência de acordo tácito entre as partes, nos termos previstos no art. 24.º do Regulamento.
Ora, tendo-se verificado o efeito atributivo da competência resultante da comparência da Ré em juízo, na contestação, sem aí ter suscitado a aludida excepção, já não é possível afastar esse efeito. De outro modo, estar-se-ia a destruir o pacto de jurisdição tacitamente formado.
Os tribunais portugueses são, pois, internacionalmente competentes para conhecer do presente litígio, improcedendo a excepção de incompetência em apreço.

DECISÃO
Por todo o exposto nega-se provimento ao agravo e declara-se que são os tribunais portugueses os internacionalmente competentes para julgar a causa.
Custas pela agravante.
Lisboa, 10 de Maio de 2007
Gil Roque (relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva


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(1) Do referido preceito do Tratado que institui a Comunidade Europeia resulta também, implicitamente que, no seu específico âmbito de aplicação, o Regulamento prima sobre as normas do Direito interno dos Estados membros, exceptuadas, nos termos do art. 67 do Regulamento, as que visem harmonizar as leis nacionais em conformidade com o disposto em actos comunitários (assim Dário Moura Vicente, pág. 360 do estudo "Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001", publicado na revista Scientia Juridica, n.º 293, págs. 347 a 379).
(2) Assim, Ac. ST J de 03-03-2005, proc. 05B316, www.dgsi.pt
(3) Vd. Dário Moura Vicente, págs. 374 a 377 do estudo citado; Miguel Teixeira de Sousa, págs. 684 a 687 do estudo "Âmbito de Aplicação do Regulamento n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000 (Regulamento Bruxelas I)", in "Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço", Vol. 11, págs. 675 a 691; e Sofia Henriques, in "Os Pactos de Jurisdição no Regulamento (CE) n.º 44/2001", Coimbra editora, 2006, págs. 27 a 31.
(4) Nas palavras do saudoso Conselheiro Neves Ribeiro, "O artigo 2.° constitui um preceito fundamental do regulamento, à semelhança do que sucede com o preceito paralelo da Convenção de Bruxelas (e de Lugano), que reproduz integralmente. É a regra geral do domicílio do requerido, como critério fundamental de conexão, para fixação da competência judiciária independentemente da nacionalidade do requerido." (in "Processo Civil da União Europeia", I Vol., Coimbra Editora, 2002, pág. 59).
(5) Os outros princípios relevantes são o da protecção das pessoas domiciliadas nos Estados membros e o da soberania estadual.
(6) Assim Ac. ST J de 03-03-2005, proc. 4283/04-1.a Secção.
(7) Neste sentido, Sofia Henriques, ob. cit., pág. 94.
(8) Embora não seja indicado o n.º do processo, trata-se certamente do proc. n.º 058316, disponível para consulta em www.dgsi.pt. também invocado pela ora recorrente na sua alegação.
(9) Por todos, pode ver-se Sofia Henriques (ob. cit., págs. 92 e ss.), explicando, a dado passo, que o "artigo 24.° dá um efeito atributivo de competência ao contrato judiciário que se forma entre as partes, em que uma das partes propõe uma accão num tribunal de um Estado-membro incompetente (segundo as regras do Regulamento ou do direito comum da competência internacional do foro), e a outra aceita defender-se perante esse tribunal, excepto nos casos de competência exclusiva, em que o contrato judiciário é ineficaz e o juiz deve oficiosamente considerar-se incompetente." (págs. 93 e 94; o sublinhado é nosso).
Ao apresentar as conclusões da sua obra, a autora retoma esta ideia ­chave, afirmando; "Nos termos do artigo 24.°, sempre que o demandante proponha a acção num tribunal de um Estado-membro, em princípio, incompetente pelas regras do Regulamento ou do direito internacional comum aplicável, e o demandado compareça e não conteste a competência do tribunal, este torna-se competente, considerando-se que há uma prorrogação da competência desse tribunal, em consequência de um acordo tácito entre as partes" (ob. cit., pág. 143; o sublinhado é nosso).
(10) O douto parecer junto aos autos enferma do mesmo vício de precedência lógica nas suas conclusões, ao afirmar que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes por ter ocorrido prorrogação tácita de competência nos termos do art. 24.° do Regulamento, mas ainda que não tivesse ocorrido tal prorrogação tácita de competência, sempre seriam internacionalmente competentes para conhecer do litígio, visto a qualificação mais correcta do contrato verbal ajuizado ser a de um contrato de empreitada e o lugar do cumprimento da prestação dos serviços, nos termos contratuais, ser o lugar de execução da obra, e ainda que a melhor qualificação do contrato fosse a de compra e venda internacional, o lugar da entrega das peças se situar em Portugal, nas instalações fabris da Autora.
Ora, a ordem lógica seria afirmar que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, porque, face às duas referidas possíveis qualificações do contrato em apreço, a autora podia optar por propor a acção no tribunal do foro do contrato (art. 5.°, n.º 1, b), do Regulamento). Mas ainda que se preconizasse serem os tribunais espanhóis os competentes para conhecer da presente acção, por força da aplicação dos arts. 2.°, n.º 1, e 5.°, n.º 1, do Regulamento, sempre teria ocorrido a prorrogação tácita de competência para os tribunais portugueses por via do referido art. 24.°.
(11) Como é consabido, a competência, pressuposto processual, cuja falta acarreta a absolvição do réu da instância - cfr. arts. 101.° a 105.° do CPC ­afere-se face à relação material controvertida tal como é configurada pelo autor. A título exemplificativo, Ac. ST J de 18-02-1999, agravo n.º 1194/98 – 2ª Secção: "A competência do tribunal afere-se pelo modo como o autor delineia a lide na sua petição inicial, tal como a generalidade dos pressupostos processuais, designadamente a legitimidade e a adequação ou o erro na forma do processo."; Ac. ST J de 12-02-2004, agravo n.º 128/04 - 7.8 Secção: "à semelhança do que acontece quanto aos demais pressupostos processuais, é em função do modo como a causa é delineada na petição inicial e não pela controvérsia que venha a resultar da acção e da defesa que a competência do tribunal se averigua.".
(12) O ST J pronunciou-se no mesmo sentido no Ac. de 03-03-2005, numa situação idêntica.
(13) Neste sentido, para além do já referido Ac. de 03-03-2005, pode ver­se também o Ac. do ST J de 11-05-2006, proc. 068756, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
(14) Conselheiro Neves Ribeiro, ob. cit., pág. 68.
(15) Neste sentido o já citado Ac. ST J de 11-05-2006. (16) Assim, Sofia Henriques, ob. cit., pág.94.
(17) É a tese de Sofia Henriques, segundo a qual quando está em causa a derrogação de competência legal, a aplicação do art. 24.° exige os requisitos do art. 2.°, ou seja, que o demandado tenha domicílio no território de um Estado ­Membro, mas quando se trata de derrogar a competência convencional, basta que qualquer uma das partes tenha domicílio no território de um Estado-Membro. Isto porque o art. 4.° apenas excepciona os artigos 22.° e 23.°, mas já não o artigo 24.°, o que poderia ter feito (ob. cit., págs. 94 a 97).
(18) Vejam-se, por todos, os acórdãos citados por Sofia Henriques, ob. cit. págs., 98, 101 e 102.
(19) É a posição de Sofia Henriques, ob. cit., pág. 101.
(20) No mesmo sentido, Sofia Henriques, ob. cit., págs. 102 e 103.