Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1044/18.1T9EVR.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
PENA DE MULTA
PODERES DE COGNIÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DOLO
DADOS PESSOAIS
REGISTO CRIMINAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA DE ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I. Realiza o crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos do art. 43.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, o fazer transitar para outro processo um CRC, contendo informação reservada e emitido para ser junto a um determinado processo, provocando esse trânsito à revelia do titular dos dados ou de decisão da autoridade judiciária competente.

II. Resultando das favoráveis condições pessoais do arguido e das demais circunstâncias - advogado, com boa inserção laboral, familiar e social, ausência de passado criminal, ausência de um propósito específico de atingir o assistente na honra e dignidade, antes tendo agido no interesse da sua cliente, divulgação do documento no estrito âmbito judiciário, comportamento posterior - um diminuto grau de culpa, justifica-se a aplicação de pena de admoestação.

III. As razões que justificam a opção por pena de admoestação, em detrimento da multa, justificam igualmente o deferimento da outra pretensão formulada no recurso, de não transcrição da condenação no certificado de registo criminal, questão que o Supremo pode decidir de imediato, pois neste quadro processual de total consenso e atento o sentido da decisão a proferir sempre inexistiria qualquer direito ao recurso a acautelar.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum n.º 1044/18.1T9EVR, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Local Criminal de... - Juiz 1, foi proferida sentença a absolver o arguido AA da prática de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, do art. 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, bem como do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente BB.

Desta decisão, o Ministério Público e o assistente interpuseram cada um o seu recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que decidiu rejeitar o recurso interposto pelo assistente BB na parte relativa às pretensões de ver alterada a matéria de facto não provada e de condenação no pedido de indemnização civil por si formulado; e dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, alterando a matéria de facto provada e condenando o arguido como autor do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, do art. 43.º n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.°, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, na pena de 140 (cento e quarenta dias) de multa á taxa diária de € 15 (quinze euros), multa global de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).

Deste acórdão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“A. O presente recurso é admissível ao abrigo das disposições conjugadas alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP;

B. O recurso é limitado à matéria penal beneficiando o arguido, neste âmbito, da proibição de reformatio in pejus estabelecida no artigo 409.º do CPP;

C. Sem prejuízo, pode o Supremo Tribunal de Justiça, oficiosamente, conhecer i) da insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada e a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que igualmente se requer;

D. O Tribunal de 1.ª Instância absolveu o arguido devido à inexistência de prova sobre o conhecimento do caráter limitado do certificado do registo criminal do assistente ao processo para o qual foi extraído;

E. Da motivação do Acórdão recorrido não resulta a evidência da prova de tal conhecimento por parte do arguido;

F. A necessidade de prova e certeza quanto ao preenchimento do elemento concreto do tipo subjectivo era indispensável para fundamentar a condenação do arguido;

G. Tanto mais que o conhecimento e/ou consciência do mesmo não estiveram presentes nas decisões judiciais que admitiram o CRC como elemento de prova e deferiram a certidão desse documento e do próprio Ministério Público na promoção de 13/02/2020 (a fls. 386);

H. Subsistindo a dúvida sobre a necessidade de conhecimento específico do alegado caráter restrito e da exigibilidade do mesmo no meio judiciário partilhado por advogados e magistrados no âmbito dos processos 10/15.3... e 310/17;

I. A dúvida sobre a ocorrência dessa certeza não é afastada com a presunção ínsita no 2.º parágrafo da página 30 do Acórdão recorrido:

“Depois, não pode ser atendida qualquer justificação por parte do arguido dada no sentido de ignorar o que legalmente se mostra estabelecido na Lei n.º 67/98 (à data dos factos, vigente na redacção estabelecida pela Lei n.º 103/2015), mormente o disposto no seu art.º 6.º, nem mesmo sob a capa da defesa do seu cliente, conhecimento aquele que se mostra exigível ao arguido atenta a qualidade de advogado.”;

J. Não é inquestionável que se mostrasse exigível ao arguido (ou aos Meritíssimos Magistrados que tiveram intervenção nos processos) o conhecimento sobre tudo o que constava na legislação sobre proteção de dados pessoais, incluindo as normas incriminadoras;

K. Outra dúvida e contradição presente na motivação do Acórdão reporta-se à identificação do fim concreto inscrito no certificado de registo criminal; o que dele consta é que se destina a “instrução de processo criminal”;

L. Resultou provado que o arguido utilizou o documento num requerimento de instrução criminal entre processos correlacionados, quando aos sujeitos processuais neles presentes, na mesma Comarca, ficando por provar que soubesse ou devesse saber que o CRC apenas poderia ser utilizado no âmbito do processo para o qual fora emitido;

M. Tanto mais que tal CRC foi apresentado no requerimento de instrução criminal juntamente com a sentença proferida no processo da sua emissão, a qual reproduzia o conteúdo do CRC na parte descritiva das condenações penais do ora assistente;

N. Este contexto traduz uma outra dúvida que é a de saber se a referência errada na fundamentação a “instrução procedimento criminal” quando o CRC tinha inscrita a expressão “instrução processo criminal” não adensa a contradição na fundamentação e incerteza quanto à motivação do arguido;

O. Nas declarações prestadas salientou o arguido que agiu motivado pela menção a instrução de processo criminal e confortado pela coincidência entre o teor do CRC e da sentença que o transcrevia como bases de licitude para a sua actuação;

P. Por este mesmo motivo, não resulta provado, ou manter-se-ia uma dúvida insanável sobre o desvio de dados pessoais porquanto a informação sobre os antecedentes criminais do assistente constava da sentença proferida no processo 10/15.3... (apresentada em fase de instrução juntamente com o CRC no mesmo requerimento);

Q. Sobre este ponto transcreve-se a sentença parcialmente revogada na parte em que especifica a natureza da sentença: “tendo um determinado documento assumido natureza pública por imperativo legal (tendo, no caso, sido vertido na respectiva sentença e acórdão proferidos no processo n.º 10/15.3... o teor do certificado de registo, sendo igualmente a sentença pública por definição), mantenha a sua natureza reservada, apresentando-se, assim, uma efectiva antilogia dos próprios termos, não resultando, por isso demonstrada a alegada natureza reservada dos dados plasmados no certificado de registo criminal”.

R. Nesta perspetiva a dúvida do arguido sobre a possibilidade de utilizar, em sede judicial, um documento cujo conteúdo já estava revelado sobressai em termos que não são esclarecidos no Acórdão recorrido que se limita, nesta parte, a enunciar que o “Mmo. Juiz incorreu em clara confusão entre “acesso e conhecimento”, de um lado, e “divulgação e utilização” por outro” (1.º parágrafo da página 31);

S. Deixando de enunciar a prova de onde extrai a certeza de o arguido ter agido com a intenção de desviar o conteúdo do CRC do assistente;

T. A imputada confusão, anotada ao Meritíssimo Juiz do Tribunal A Quo, poderia igualmente ter perpassado a motivação do recorrente/arguido;

U. É o que se extrai da prova produzida, mormente das declarações do arguido supra transcritas;

V. Outra contradição e/ou insuficiência da matéria de facto provada resulta da seguinte presunção transcrita no Acórdão recorrido: “Por outro lado, os argumentos esgrimidos pelo recorrido arguido de que obteve uma certidão da sentença proferida no indicado P.º 10/15 e do certificado que dele constava e que, posteriormente, veio a juntar ao P.º 310/17, apenas demonstram que, afinal, o arguido estava ciente de que não podia fazer a impressão desse documento através do acesso ao citius e proceder à junção desta aos autos indicados…”;

W. Quando o que ficou considerado provado nos pontos 26 a 28 é que o arguido/recorrente juntou ao processo n.º 310/17.8... para efeitos de requerimento de abertura de instrução o CRC do assistente e a sentença que reproduzia o seu conteúdo, documentos admitidos pelo MM Juiz de Instrução em 25 de Junho de 2018;

X. O que é bem diferente de ter feito uma junção posterior conforme alega o Acórdão recorrido;

Y. Fica demonstrada uma inequívoca mas muito relevante dúvida, no espírito do julgador, quanto ao momento em que o arguido/requerente requereu certidão do CRC no processo 10/15.3... e o intuito com que o fez;

Z. Outra dúvida muito relevante na motivação do arguido recorrente é a que resulta do 5.º parágrafo da página 32 – “Nessa medida, o arguido actuou com o propósito claro de usar informação que apenas poderia estar na disponibilidade do respectivo titular, o aqui assistente BB, ou da autoridade judiciária”;

AA. O arguido/recorrente usou informação que não estava apenas da disponibilidade do titular, pois já constava de uma sentença condenatória proferida no processo n.º 10/15.3... Facto dado como provado no ponto 29 e mantido integralmente pelo Acórdão recorrido);

BB. Sobressaindo a inexistência de qualquer vantagem na utilização do CRC na medida em que os elementos plasmados neste se encontravam reproduzidos na sentença proferida no processo n.º 10/15.3...;

CC. Do exposto sobressaem incontornáveis dúvidas e contradições sobre:

- a prática do crime, nomeadamente quanto ao preenchimento do elemento subjetivo;

- A imputação, ao nível da intencionalidade, tipo de dolo ou negligência;

- O preenchimento do dolo específico requerido pela norma incriminadora;

DD. E como tal não poderia ter sido revogada parcialmente a sentença para dar como provados os pontos B a E objeto do recurso do MP;

EE. Os quais mantendo-se conforme julgado pela sentença de primeira instância determinariam a absolvição do arguido ao invés de serem considerados provados em violação do artigo 127.º do CPP;

FF. Impondo-se no julgamento deste recurso o cumprimento do princípio in dúbio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, concluindo pela absolvição do recorrente/arguido;

GG. O arguido encontra-se acusado da prática do crime previsto no artigo 43.º, n.º1, alínea c) da LPDP, que pune o DESVIO ou UTILIZAÇÃO intencionais de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização;

HH. No plano do tipo subjetivo de ilícito, trata-se de um crime doloso, ao qual acresce, ainda, a existência da aludida intenção específica de utilização de dados em desvio teleológico;

II. Entende-se oportuno referir que não existiu intenção específica do arguido recorrente em efetuar o dito desvio ou utilização incompatível na medida em que o CRC foi apresentado num processo judicial juntamente com a sentença que o reproduzia;

JJ. Os dados pessoais em causa não eram reservados à data da prática dos factos, pois constavam da sentença pública;

KK. Não houve qualquer intenção específica de revelar tais dados pessoais, num contexto em que os mesmos não fossem já conhecidos;

LL. O exposto resulta no processo documentado a fls 19-66 e fls 476, bem como fls 428 e 1090;

MM. Do exposto resulta a violação dos artigos 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, 13.º e 14.º do Código Penal com a condenação do recorrente/arguido na prática de um crime doloso;

NN. o arguido/recorrente circunscreveu a sua conduta ao meio judiciário, entre processos da mesma Comarca, visando exclusivamente instruir um processo crime, em fase de instrução, com um documento que havia sido produzido para outro processo do qual este segundo processo emergia;

OO. Materialmente, o conteúdo do certificado do registo criminal do assistente, nomeadamente os dados relativos aos antecedentes criminais, já se encontrava exposto num documento autêntico de acesso público e irrestrito, como seja a sentença de processo 10/15.3... no qual foi condenado;

PP. No sentido útil das palavras “instrução de processo criminal” o arguido utilizou o CRC exclusivamente para essa finalidade - instruir (na acepção “fornecer ou obter informações ou esclarecimentos”) um processo de natureza criminal, no caso, o processo n.º 310/17.8... – pelo que é excessivo e contrário aos factos alegar que o com culpa “algo elevada, porque animada de dolo directo”;

QQ. Esta valoração não tem suporte na prova adquirida para o processo, nomeadamente nas declarações do arguido quando confrontado sobre os factos;

RR. As circunstâncias da atuação do arguido também mereceriam outro tipo de valoração por comparação com a conduta de outros sujeitos processuais, à semelhança do sucedido em 1.ª instância: “o posicionamento, perante realidades semelhantes, de dois magistrados (um, no processo n.º 10/15.3..., outro, no processo n.º 310/17.8...), licenciados em Direito como o arguido (o que decorre de imperativo legal), suscita as mais sérias dúvidas a respeito do conhecimento generalizado da alegada norma proibitiva, mesmo entre círculo dotados de especiais conhecimentos técnicos e, também, exercício de profissões forenses”;

SS. Ou seja, a dúvida assumida pelo arguido e a decisão pela utilização do certificado do registo criminal do assistente, num âmbito processual muito circunscrito, foi valorada em termos semelhantes por dois magistrados judiciais que não identificaram na utilização do dito CRC, para fins alheios ao processo em que foi emitido, uma atuação contrária ao direito;

TT. Questiona-se, então, por que motivo este quadro factual não mereceu qualquer ponderação na fixação concreta da pena por parte dos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora…

UU. Apesar de ter sido o próprio Acórdão recorrido, na sua motivação, que referiu que “Não obstante, o despacho proferido sobre tal documento que consta de fls 356 a 376 e a ponderação do documento em causa no processo 310/17.8... apenas poderiam servir para, quando muito, fixar em concreto a medida da pena do arguido”;

VV. Na fundamentação da determinação da pena, o Tribunal A Quo omitiu por completo a referência à conduta do arguido ao longo do processo e à sequência factual;

WW. E sobre as declarações do arguido dúvidas não se mostram que as mesmas deveriam ser merecedoras de crédito (como foi reconhecido na sentença em primeira instância) na medida em que se mostram objetivamente corroboradas pela demais prova produzida;

XX. Além de não ter ficado provada, e de não ser verdadeiro, que o arguido/recorrente tenha querido lesar o assistente ou ofendê-lo na honra e dignidade;

YY. É comum ao arguido e aos meritíssimos juízes dos processos n.º 310/17 e n.º 10/15 o entendimento de que para efeitos probatórios em processos correlacionados a utilização do CRC do arguido não configuraria um crime por inexistência da intenção de utilizar de modo desviante dados sensíveis do assistente;

ZZ. Decorre do exposto que o arguido não agiu com culpa num patamar elevado!;

AAA. Antes pelo contrário, agiu com um padrão de conduta que preservou a divulgação do documento ao estrito âmbito judiciário e suportado numa sentença que corroborava o conteúdo do CRC;

BBB. Por estes mesmos motivos, o bem jurídico em causa – a reserva dos dados pessoais do assistente – não foi posto em causa pelo arguido;

CCC. A preocupação de contenção verbal na referência ao CRC e ao assistente são manifestas no requerimento de abertura de instrução, de onde se extrai que o sentimento manifestado na sua atuação foi de índole objetiva e profissional;

DDD. Portanto, as consequências da conduta do arguido/recorrente foram inexistentes;

EEE. Tanto mais que o arguido não deu ao CRC qualquer utilização extraprocessual;

FFF. Submetendo sempre a utilização desse documento à direção do processo-crime detida pelo Meritíssimo magistrado de instrução Criminal.

HHH. Mesmo quando confrontado com a eventual quebra de deveres legais e deontológicos, o arguido diligenciou na obtenção de uma certidão do CRC conformando a sua atuação com a tutela sobre o dito documento exercido por outro Meritíssimo Magistrado Judicial;

III. Acresce a ausência de antecedentes criminais e inexistência de prática de qualquer ilícito relacionado com o dos presentes autos;

JJJ. Em relação às condições pessoais do arguido/recorrente importa frisar que exerce em exclusividade a profissão de advogado, sendo estigmatizante e prejudicial para o resto da sua vida o averbamento de uma pena fixada acima da média da moldura aplicável;

KKK. A manter-se uma condenação ao arguido/recorrente deveria ser significativamente inferior a metade da moldura penal média suscetível de ser aplicada;

LLL. O Acórdão violou o n.º 2 do artigo 47.º do CP ao identificar como critério na fixação do valor diário da multa a relação entre os rendimentos do arguido e o valor do rendimento social de inserção;

MMM. Tal relação não tem sequer cobertura legal;

NNN. A mens legis é claramente outra: adaptar a multa à situação económica e financeira do arguido e aos seus encargos pessoais;

OOO. Ficou provado que o arguido tem encargos mensais fixos de 2.100 euros com necessidades básicas como custo de condomínio, educação e sustento de filha menor, alimentação, locação de automóvel, seguro de saúde, contribuições para a caixa de previdência de advogados e solicitadores e despesas de escritório;

PPP. A que se somam outras não provadas mas que decorrem das regras de experiência comum relacionadas com a própria alimentação e vestuário do próprio arguido;

QQQ. Pelos motivos expostos consideramos que o Acórdão recorrido violou os números 1 e 2 do artigo 71.º e 47.º, n.º 2 do CP;

RRR. Decorrendo também da motivação do Acórdão recorrido uma violação do Princípio da Proibição da Dupla Valoração;

SSS. Num primeiro momento – o do julgamento da matéria de facto - o Acórdão indicia que a conduta do arguido deriva de uma “personalidade indiferente ou de uma atitude contrária aos valores, pelo que a culpa do agente, para além de dolosa é censurável”;

TTT. Porquanto, segundo refere, mostra-se indubitável o dolo do tipo e culpa e que o arguido conhecia as características do objeto da sua acção (certificado de registo criminal) que obteve e usou sem autorização (página 37 do Acórdão recorrido);

UUU. Num segundo momento – o da fixação concreta da pena – o Tribunal a Quo retoma a valoração da conduta do arguido no que concerne ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo – “pouca sensibilização para a necessidade de observância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros, mesmo que para a defesa do seu cliente” – para concluir pela existência de culpa num patamar elevado;

VVV. Ora, o n.º 2 do artigo 71.º do CP (no segmento “não fazendo parte do tipo”) proíbe esta prática judiciária, em obediência ao princípio da proibição de dupla valoração, que decorre de um outro princípio com tutela constitucional – ne bis in idem – previsto no n.º 5 do artigo 29.º da CRP: “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo tipo de crime” (Código Penal Parte Geral e Especial, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Almedina, 3.ª Edição, p. 428);

WWW. Norma que, por este motivo, se mostra violada pelo Acórdão recorrido;

XXX. Na eventualidade de ser mantida a condenação do arguido requer-se a aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, na parte que permite decidir a não transcrição da sentença nos certificados para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, quando estejam em causa pena não privativa da liberdade, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“4.º Da análise das 76 Conclusões da Motivação de Recurso interposto, resulta que as questões colocadas a este Venerando Tribunal, circunscrevem-se a saber se:

1 – Ocorreu violação do princípio in dubio pro reo

2 – O Recorrente agiu com dolo

3 – O Recorrente praticou o crime por que foi condenado crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43º n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43°, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98

4 – Ocorreu violação do critério legal da escolha e medida da pena;

5 – Não deve ser transcrita a condenação no certificado de registo criminal do recorrente

5º Pretende o Recorrente «que existem dúvidas e contradições insanáveis na motivação do julgamento da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de Évora, impondo-se a aplicação do Princípio in dúbio pro reo»

6º No provimento do recurso do Mº Pº quanto à alteração da matéria de facto provada, a douta decisão recorrida decidiu «merece acolhimento a impugnação dos factos não provados suscitada pelo recorrente M.° P.°, impondo-se em consequência dar como provados os seguintes factos:

O arguido sabia que o aludido certificado de registo criminal foi emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo nº 10/15.3...

O arguido sabia que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.

Os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentam natureza reservada.

Que o arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

7º No texto da decisão ora recorrida, não se vislumbra que o Tribunal tivesse dúvidas e tenha escolhido a tese desfavorável ao Arguido ora Recorrente.

8º Inexistiu, pois, violação deste princípio, sendo descabida a referência ao mesmo, o que leva à rejeição do recurso, nesta parte, por manifesta improcedência – artº 420.º, n.º 1, do CPP.

9º Entende o Recorrente:

«O arguido encontra-se acusado da prática do crime previsto no artigo 43° n°1, alínea c) da LPDP, que pune o DESVIO ou UTILIZAÇÃO intencionais de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização;

… trata-se de um crime doloso, ao qual acresce, ainda, a existência da aludida intenção específica de utilização de dados em desvio teleológico;

Não houve qualquer intenção específica de revelar tais dados pessoais, …

… resulta a violação dos artigos 43°, n° 1 e n° 2, da Lei n° 67/98, 13° e 14° do Código Penal com a condenação do recorrente/arguido na prática de um crime doloso;»

10º Porém, como bem se refere no douto aresto impugnado, «mostra-se indubitável o dolo do tipo e culpa e que o arguido conhecia as características do objecto da sua acção (certificado de registo criminal) que obteve e usou sem autorização.»

«o arguido tinha conhecimento da natureza dos dados, da sua utilização restrita e a consciência que atentava os padrões normativos. A consciência ética do arguido não enferma de um qualquer vício ou deficiência que o impossibilite de alcançar a ilicitude da conduta e facto, nos termos do art° 17° do Cód. Penal.»

«o arguido teve conhecimento e vontade de violar a norma e todos os seus pressupostos fácticos»

«o arguido conhecia as características do objecto da sua acção (certificado de registo criminal) que obteve e usou sem autorização»

«deve-se exigir a esse profissional que actuou no contexto de profissional forense formado e licenciado em direito, não deixe de reconhecer a privacidade da informação contida no certificado de registo criminal e dos condicionalismos na aquisição e utilização de tais documento nem o poderia ignorar face ao que se mostra inserido na sua página de rosto quando se especifica a finalidade da respectiva emissão »

«Assim, o arguido ao obter e juntar o documento num outro processo conhecia e quis preencher a previsão penal ora imputada que, para tanto, extraiu de um processo sem a autorização da respectiva autoridade judiciária.»

11º Dúvidas não subsistem da verificação da «intenção específica de utilização de dados em desvio teleológico»

12º O douto Tribunal bem justificou a sua decisão, considerando que a matéria fáctica provada integra todos os elementos típicos do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43º n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43°, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98

13º Consequentemente, não merece reparo a condenação do Recorrente pela prática do referido crime.

14º Ao contrário do entendimento do Recorrente na fixação da pena o douto acórdão impugnado cumpriu os critérios plasmados nos artºs artº 40º, 70º, 71º e 47º, todos do C. Penal, porquanto a pena concreta se mostra justa e adequada

15º Mostram-se verificados os requisitos, para que o Recorrente beneficie da não transcrição no registo criminal da condenação, para os fins a que se referem os nsº5 e 6 do Artº 10 da Lei 37/15 de 05/05

16º Assim, deve o recurso deve ser julgado procedente quanto à não transcrição da condenação dos presentes Autos no registo criminal e improceder quanto à parte restante julgando o recurso procedente quanto à não transcrição da condenação dos presentes Autos no registo criminal e improcedente na restante parte.”

O assistente respondeu ao recurso, concluindo:

“A) Pelas razões de facto e de Direito a propósito invocadas, entende o Assistente/Recorrido dever ser reconhecida a imputação incriminatória ao arguido, designadamente que o mesmo praticou, em autoria material, os factos de que vem acusado e pelos quais foi judicialmente pronunciado;

B) Devendo ser reconhecido que o arguido praticou objetivamente um acto voluntário, ilícito e doloso, incorrendo na previsão do art.43.º, n.º1, al. c) da LPDP, que pune a utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha, incriminando-se “o uso de dados pessoais para fins diferentes daqueles que se propôs prosseguir quem procedeu à sua obtenção e organização;

C) Devendo ainda ser reconhecido que não existiu qualquer violação do Princípio “In dubio pro Reo”, dado que a prova produzida em audiência de julgamento e a sua correta interpretação, corrobora a intencionalidade do arguido, no sentido de descredibilizar a intervenção processual do Assistente, resultando, de forma lógica, na sua humilhação e amesquinhamento;

D)Não devendo ser reconhecida credibilidade ao depoimento do arguido no concernente à ausência de dolo na respetiva atuação e ainda ao respetivo desconhecimento da Lei, bem como ao seu desconhecimento sobre o caráter reservado e confidencial das informações constantes do documento por si apresentado no Proc. n.º 310/17.8...;

E)Devendo ser proferida decisão em que, não sendo dado provimento ao recurso ora interposto, no mínimo seja mantida a condenação do arguido nos termos plasmados no douto Acórdão recorrido.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“Verifica-se que o recorrente, em grande parte do seu recurso da decisão condenatória proferida pelo Tribunal da Relação, contrapõe ao por este decidido em termos de facto, com base ao entendimento que a 1ª instância havia tido e que lhe havia sido favorável.

Ora, como já se referiu atrás, o recurso para o STJ versa apenas acerca de matéria de direito, não sendo lícito alterar a matéria de facto apenas com base – como sucede – numa argumentação que mais não passa senão da tentativa de impor uma diferente conclusão acerca da prova produzida. Aliás, se fosse admissível recurso (um novo) acerca da matéria de facto, sempre a motivação de recurso teria de conter todos os elementos exigidos no artº 412º, nº 3, do CPP, o que nem se vê suceder.

Isto para dizer que a matéria de facto dada como provada se tem de entender como fixada.

O que logo afasta a argumentação aduzida pelo recorrente no ponto I atrás mencionado (Sobressaírem incontornáveis dúvidas e contradições sobre a prática do crime, nomeadamente quanto ao preenchimento do elemento subjetivo, quanto à imputação, ao nível da intencionalidade, tipo de dolo ou negligência e quanto ao preenchimento do dolo específico requerido pela norma incriminadora), pois que os elementos objetivos do tipo de crime se mostram dados como provados (como o haviam sido já em 1ª instância), bem assim como os subjetivos (que faltavam para se ver preenchido aquele tipo de crime) se entenderam como provados em de decisão do Tribunal da Relação.

Assim, a factualidade provada passou a ser a seguinte (no que ao crime respeita):

- a já dada como provada em 1ª instância:

1. AA exerce a profissão de advogado, encontrando-se inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional n.º ...98....

2. O arguido exerceu o mandato forense no âmbito do processo comum singular n.º 10/15.3..., a correr termos no Juízo local Criminal de ... – Juiz 1, na sequência de poderes que lhe foram conferidos por administrador da universidade de ....

3. No referido processo comum singular n.º 10/15.3..., o assistente BB assumiu a qualidade processual de arguido.

4. No dia 15/11/2017 foi emitido e junto ao processo comum singular n.º 10/15.3... o certificado de registo criminal do ora assistente BB, onde constava uma inscrição, tendo em vista instruir o referido processo, uma vez que BB assumia a qualidade de arguido nesse processo.

5. Em data não apurada mas colocada no tempo entre 15/11/2017 e 30/04/2018, o arguido acedeu à plataforma informática dos Tribunais Citius e acedeu ao conteúdo do processo comum singular n.º 10/15.3...

6. Após, o arguido acedeu ao certificado de registo criminal do assistente BB, que estava associado electronicamente ao referido processo, e imprimiu o referido certificado de registo criminal, com o objectivo de usar esse documento no âmbito do inquérito n.º 310/17.8..., o qual corria termos na 1.º Secção do DIAP de ....

7. No inquérito n.º 310/17.8..., o assistente BB assumia a qualidade de assistente, ao passo que CC assumia a qualidade de arguida e tinha como advogado constituído o arguido.

8. No dia 30/04/2018, em representação de CC, o arguido requereu a abertura de instrução no referido inquérito n.º 310/17.8..., tendo, para o efeito, elaborado requerimento, sendo que um dos documentos que juntou com esse requerimento foi uma cópia do documento referido em 4).

9. O certificado de registo criminal do assistente BB foi emitido em 15/11/2017 com a finalidade exclusiva de instruir o processo criminal n.º 10/15.3..., onde este assumia a qualidade de arguido.

10. O arguido sabia que o certificado de registo criminal havia sido emitido com a finalidade de instruir o processo comum singular n.º 10/15.3...

11. Não obstante esse conhecimento, quis utilizar o certificado de registo criminal no requerimento de abertura de instrução que dirigiu ao inquérito n.º 310/17.8... que corria termos na 1.ª Secção do DIAP de ..., o que concretizou, apesar de saber que se tratava de documento que continha informação e dados pessoais do assistente BB.

12. O arguido quis divulgar o conteúdo inscrito no certificado de registo criminal de BB em autos de processo onde este era assistente e que diziam respeito a factos estranhos ao conteúdo daquele certificado de registo criminal.

13. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.

26. Em 25/06/2018, foi proferido despacho pelo Senhor Juiz de Direito do Juízo de Instrução Criminal no processo n.º 310/17.8..., com o seguinte teor: “Admito a junção aos autos dos documentos de fls. 427 a 466 – arts. 291.º, n.º 1 e 291.º, n.º 1, ambos do Cód. de Proc. Penal”.

27. Em 08/06/2019, o arguido apresentou junto do processo n.º 10/15.3... do Juízo Local Criminal de ..., requerimento de certidão de peças do processo, com o seguinte teor: “A certidão deste documento destina-se a provar a sua existência neste processo-crime, bem como o modo como o requerente/signatário/mandatário do assistente tomou conhecimento do mesmo. A prova será produzida em processo disciplinar originado por participação do arguido à Ordem dos Advogados”, mais se identificando um documento de 15/11/2017, designado certificado de registo criminal, com a referência n.º ......90.

28. Em 12/06/2019 foi emitida pelo processo n.º 10/15.3... certidão com o código de acesso GHKA-0K2F-IVKX-..A8, com o seguinte teor: “certifica que neste juízo correm termos os autos acima identificados e que os atos processuais que fazem parte integrante desta certidão, certificado de registo criminal do arguido, emitido pelo Sistema de Informação de Identificação Criminal e junto aos autos em 15/11/2017, com a referência ......90, estão conformes aos correspondentes dados da tramitação do processo. A peça processual ora certificada consta dos autos em formato digital e em papel, a fls. 523-525 do 2.º volume dos autos”, integrando a certidão a cópia do documento referido em 4).

29. No processo n.º 10/15.3... foi proferida, pelo Juízo Local Criminal de ..., sentença em 7/02/2018, a qual consta o seguinte teor: “(…) Da matéria de facto provada: (…) Das condições pessoais do arguido (…) 55. Foi condenado por sentença proferida em 21.11.204 [2014], transitada em julgado em 16.09.2015 no âmbito do processo comum perante o Tribunal Colectivo número 1102/07.8... do Juízo Central Criminal de ... – Juiz 5 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa pela prática, em 01.06.2008, de quatro crimes de injúria, de dois crimes de denúncia caluniosa, de quatro crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, de três crimes de dano simples, de três crimes de difamação, de cinco crimes de ameaça, de um crime de furto simples, de um crime de coacção agravada e de um crime de gravações e fotografias ilícitas, na pena única de quatro anos de prisão suspensa na sua execução por igual período (…)”.

- e a que, não tendo sido dada como provada em 1ª instância, passaram a entender-se como estando, na decisão do Tribunal da Relação:

O arguido sabia que o aludido certificado de registo criminal foi emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.3...

O arguido sabia que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.

Os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentam natureza reservada.

Que o arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Com base nesta matéria de facto provada, acabam por ser irrelevantes os argumentos esgrimidos no sentido de que:

- não teria resultado provado, ou manter-se-ia dúvida insanável quanto ao arguido ter, por sua vez, dúvida quanto à possibilidade de utilizar em sede judicial um documento que já se encontrava revelado (conclusão R, que parece pretender resumir as anteriores, e ainda conclusões RR e SS);

- teria ficado «demonstrada uma inequívoca mas muito relevante dúvida, no espírito do julgador, quanto ao momento em que o arguido/requerente requereu certidão do CRC no processo 10/15.3... e o intuito com que o fez» (conclusão Y);

- não teria existido qualquer vantagem na utilização do CRC, por este se encontrar já plasmado na sentença proferida no processo 10/15.3..., não havendo qualquer intenção específica de revelar tais dados pessoais, num contexto em que os mesmos não fossem já conhecidos (Conclusões BB, JJ, KK, LL, NN, OO, PP); e que

- não teria ficado provado que o arguido tenha querido lesar o assistente ou ofendê-lo na honra e dignidade (Conclusão XX), tendo o sentimento manifestado sido de índole objetiva e profissional (Conclusão CCC).

Porque, como se disse, estes elementos estão dados como provados, sendo de lembrar que o dolo constitui matéria de facto, não cabendo nos recursos para este Supremo Tribunal - veja-se, a título de exemplo, o acórdão de 12.03.2009 – processo 08P3781 – Relator – Raúl Borges – no qual são referenciadas inúmeras decisões no mesmo sentido que nos dispensamos aqui de reproduzir.

É certo que o recorrente, relativamente ao que foi dado como provado parece - embora em sítio algum da sua motivação/conclusões expressamente o invoque – lançar mão da possibilidade aberta pela parte final do arº 434º, do CPP, quando ali, depois de se referir que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, permite a invocação dos vícios referidos no artº 410º, nºs 2 e 3.

Serão os casos em que, no recurso, se alega:

-- Não ter resultado provado, ou manter-se dúvida insanável quanto ao arguido ter, por sua vez, dúvida quanto à possibilidade de utilizar em sede judicial um documento que já se encontrava revelado (conclusão R, que parece pretender resumir as anteriores, e ainda conclusões RR e SS).

Quanto a isto (insuficiência da matéria de facto provada), o que o recorrente pretende é diverso do vício previsto na alínea a) do nº 1 do artº 410º mencionado: pretende que se entenda pela existência de dúvida quando a mesma não existiu na mente dos julgadores.

Ou seja, o recorrente, para fazer aqui apelo ao princípio in dúbio pro reo, ‘arranja’ uma dúvida inexistente… Pelo que inconsequente é a alegação em questão;

- Verificar-se insuficiência ou contradição da decisão por se ter referido “Por outro lado, os argumentos esgrimidos pelo recorrido arguido de que obteve uma certidão da sentença proferida no indicado P.º 10/15 e do certificado que dele constava e que, posteriormente, veio a juntar ao P.º 310/17, apenas demonstram que, afinal, o arguido estava ciente de que não podia fazer a impressão desse documento através do acesso ao citius e proceder à junção desta aos autos indicados…” e o provado nos pontos 26 a 28, quando ali ficou dito que juntou ao processo n.º 310/17.8... para efeitos de requerimento de abertura de instrução o CRC do assistente e a sentença que reproduzia o seu conteúdo, documentos admitidos pelo Mmº Juiz de Instrução em 25 de Junho de 2018 (conc. V a X);

Aqui parece o recorrente pretender encontrar outro vício, o da alínea b) do artº 410º do CPP – a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Sucede que não se vislumbra onde se localiza tal alegada contradição (que o recorrente acaba por qualificar igualmente como «insuficiência»), pois que a atividade do arguido/recorrente não deixa de ser crime por o juiz do processo ter determinado a junção do documento ao processo, pois que tão não leva a – como referido no acórdão - «legalizar» a obtenção nos moldes dados como provados nos pontos 5 e 6.

- Verificar-se errada decisão, quando se refere que «o arguido actuou com o propósito claro de usar informação que apenas poderia estar na disponibilidade do respectivo titular, o aqui assistente BB, ou da autoridade judiciária”, quando essa informação já constava de uma sentença condenatória proferida no processo n.º 10/15.3... Facto dado como provado no ponto 29 (Conclusões Z e AA);

Também aqui não colhe o argumento (que, ao que se entende, pretenderá invocar uma qualquer contradição): Como se referiu expressamente na decisão recorrida «A argumentação da relação entre o processo à ordem do qual o certificado foi emitido e o processo no qual o mesmo foi junto como prova não colhe. Essa relação não significa minimamente a existência de legitimidade ou de motivo para violar as normas erigidas para proteger dados pessoais, nomeadamente, as referentes aos antecedentes criminais.»

Daqui que, para além de não se poder agora alterar a matéria de facto dada como provada apenas com base em diferente perspetiva do arguido acerca da prova produzida (perspetiva, obviamente, que lhe era favorável), também não o é com base em qualquer um dos demais argumentos aduzidos na motivação de recurso e que parecem pretender invocar alguns dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP.

Ou seja – não deverá, no que a esta parte respeita, ser julgado procedente o recurso.

II. Quanto a ter, na escolha da medida da pena, o acórdão violado o Princípio da Proibição da Dupla Valoração (Conclusão RRR, explicitadas nas conclusões SSS, TTT, UUU e VVV), implicando igualmente violação do princípio ne bis in idem:

Ao que resulta da leitura da motivação, o recorrente entende pela violação destes princípios por na fundamentação da matéria de facto se referir no acórdão que a conduta do arguido deriva de uma “personalidade indiferente ou de uma atitude contrária aos valores, pelo que a culpa do agente, para além de dolosa é censurável” e, depois, num segundo momento – o da fixação concreta da pena – se ter retomado a valoração da conduta do arguido no que concerne ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo – “pouca sensibilização para a necessidade de observância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros, mesmo que para a defesa do seu cliente” – para concluir pela existência de culpa num patamar elevado.

Ora, sempre salvo o devido respeito, parece existir alguma confusão por parte do recorrente no que a esta matéria tange: quando no acórdão se refere aquela expressão é na frase: «O art.º 17.º, do Código Penal, relativo ao erro sobre a ilicitude, proclama que a deficiente consciência ética do agente não permite apreender os valores jurídicos-penais e orientar-se para a observância do direito, excepto se essa deficiência derivar de uma personalidade indiferente ou de uma atitude contrária aos valores, pelo que a culpa do agente, para além de dolosa, é censurável.», ou seja, não se refere sequer ao aqui arguido/recorrente, mas apenas se enuncia o que deve ser entendido como erro sobre a ilicitude, pelo que afastada fica a alegada dupla valoração (Aliás, mesmo que se referisse ao arguido, à sua atuação, nunca isso levaria a uma qualquer dupla incriminação – o que ali se referiu serviu apenas para afastar a existência do erro, nada mais).

III. Quanto a ter-se verificado omissão, na escolha da pena, relativamente a factos que deveriam ter sido entendidas como atenuantes (Conclusão TT):

Relativamente a esta parte, mais uma vez o recorrente pretende alterar a matéria de facto dada como provada, por exemplo ao referir não se ter atendido à conduta do arguido ao longo do processo (Conclusão VV.), em que negou a intenção de utilizar de modo desviante dados sensíveis do assistente (Conclusões WW e XX).

Tais elementos, por não provados, nunca poderiam, nem podem, ser atendidos na escolha da pena.

Já os demais invocados mostram-se atendidos na decisão recorrida, quando nesta se refere que as exigências de prevenção geral não são elevadas (o modo de cometimento do crime mostra-se restringido pela acessibilidade do arguido ao sistema Citius) e que no âmbito das necessidades de prevenção especial, o arguido não tem antecedentes criminais e das suas condições pessoais não emerge nenhum facto desabonatório ou comprometedor do sucesso da pena não detentiva, tendo em vista as finalidades da punição, logo tendo o coletivo optado pela pena de multa. E, depois, na quantificação dessa multa, tiveram em conta os elementos apontados pelo recorrente, referindo: «entendemos como relevantes para a determinação da pena a culpa do arguido tida como algo elevada, porque animada de dolo directo.

Por outro lado, não deixaremos de ter como influenciadora da medida da pena as razões que determinaram a conduta do arguido – no exercício da defesa do cliente -, a personalidade do arguido revelada na conduta que aponta para pouca sensibilização para a necessidade de observância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros, mesmo que para a defesa do seu cliente, as condições pessoais do arguido a nível da inserção profissional, familiar e social – tudo resultante do que se mostra fixado nos factos provados 17 a 25.

Situando-se a sua culpa num patamar elevado a sua pena deverá, proporcionalmente, situar-se ligeiramente acima do ponto médio moldura, ou seja, em 140 dias.»

Não vemos motivos para que este STJ proceda a qualquer correção daquela pena, tendo em conta que, a possibilidade desta correção em sede de recurso apenas tem justificação quando se verifica «o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis (…), [se] tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, página 197).

IV. Quanto a ter-se verificado violação do artº 47º, nº 2, do CP, ao identificar como critério de fixação do valor diário da multa a relação entre os rendimentos do arguido e o valor do rendimento social de inserção, devendo o valor da multa ser reduzido:

Alega o recorrente que o preceito legal não manda atentar ao valor do rendimento social de inserção, pelo que não se justificaria a alusão que é este é efetuada no acórdão recorrido.

Ora, se é certo que o artº 47º, nº 2 do CP não faça qualquer referência àquele valor, não se vê em que medida possa ser entendida a alusão ao mesmo como proibida: o douto acórdão do Tribunal da Relação apenas o utilizou como ponto de referência para achar o montante diário da multa, como poderia ter usado outros índices, como o poderia fazer com outros, como o índice de preços ao consumidor, ou outros (nomeadamente os acessíveis no portal do Instituto Nacional de Estatística). E fê-lo em conjugação com os elementos que o recorrente indica como relevantes – os rendimentos e despesas fixas.

Inexiste, assim, a nosso ver, qualquer censura a efetuar à decisão, também nesta parte.

V. Quanto ao pedido, a final (Conclusão XXX), de aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, na parte que permite decidir a não transcrição da sentença nos certificados para fins de emprego, público ou privado:

Embora com algumas dúvidas quanto a ser este o local próprio para formular tal pedido, [pois que não foi a questão objecto de análise na decisão recorrida e poder entender-se que fica impedido o arguido de recorrer da decisão que acerca da matéria for proferida], a sê-lo aqui, certo é que, por se entender pela resposta positiva a tal pedido – por preenchidas as exigências contidas no artº 13º da Lei nº 37/2015, nomeadamente a inexistência de receio da prática de novos crimes, atentas as circunstâncias que, no caso, rodearam a sua prática, entendemos dever ser – nesta parte – julgado procedente o recurso (tal como o entendeu o MºPº no Tribunal da Relação).

Em conclusão, é parecer do Ministério Público que o recurso interposto pelo arguido AA, à exceção do pedido que formula quanto à não transcrição da decisão no CRC (a entender-se este o momento apreciado para apreciar tal decidir), não deverá merecer procedência, antes se mantendo a decisão condenatória que lhe foi imposta pelo Tribunal da Relação de Évora, não sendo admissível, como pretendido, alterar a matéria de facto dada como provada (tendo em conta a natureza do recurso para o STJ e a inexistência de qualquer dos vícios referidos no artº 410º, nº 2, do CPP), não se tendo verificado, como alegado, qualquer dupla valoração de elementos agravantes da pena, nem violação do princípio ne bis in idem, não tendo deixado o coletivo de ter em conta todas as circunstâncias atenuantes na escolha da pena de multa imposta e, para fixação desta, não ter incorrido na prática de qualquer ilegalidade ou irregularidade.”

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor:

“Da sentença recorrida consta, na parte ora relevante:

“FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa, resultaram do julgamento da causa provados os seguintes factos:

1. O arguido AA exerce a profissão de advogado, encontrando-se inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional n.º ...98....

2. O arguido exerceu o mandato forense no âmbito do processo comum singular n.º 10/15.3..., a correr termos no Juízo local Criminal de ... – Juiz 1, na sequência de poderes que lhe foram conferidos por administrador da universidade de ....

3. No referido processo comum singular n.º 10/15.3..., o assistente BB assumiu a qualidade processual de arguido.

4. No dia 15/11/2017 foi emitido e junto ao processo comum singular n.º 10/15.3... o certificado de registo criminal do ora assistente BB, onde constava uma inscrição, tendo em vista instruir o referido processo, uma vez que BB assumia a qualidade de arguido nesse processo.

5. Em data não apurada mas colocada no tempo entre 15/11/2017 e 30/04/2018, o arguido acedeu à plataforma informática dos Tribunais Citius e acedeu ao conteúdo do processo comum singular n.º 10/15.3...

6. Após, o arguido acedeu ao certificado de registo criminal do assistente BB, que estava associado electronicamente ao referido processo, e imprimiu o referido certificado de registo criminal, com o objectivo de usar esse documento no âmbito do inquérito n.º 310/17.8..., o qual corria termos na 1.º Secção do DIAP de Évora.

7. No inquérito n.º 310/17.8..., o assistente BB assumia a qualidade de assistente, ao passo que CC assumia a qualidade de arguida e tinha como advogado constituído o arguido.

8. No dia 30/04/2018, em representação de CC, o arguido requereu a abertura de instrução no referido inquérito n.º 310/17.8..., tendo, para o efeito, elaborado requerimento, sendo que um dos documentos que juntou com esse requerimento foi uma cópia do documento referido em 4).

9. O certificado de registo criminal do assistente BB foi emitido em 15/11/2017 com a finalidade exclusiva de instruir o processo criminal n.º 10/15.3..., onde este assumia a qualidade de arguido.

10. O arguido sabia que o certificado de registo criminal havia sido emitido com a finalidade de instruir o processo comum singular n.º 10/15.3...

11. Não obstante esse conhecimento, quis utilizar o certificado de registo criminal no requerimento de abertura de instrução que dirigiu ao inquérito n.º 310/17.8... que corria termos na 1.ª Secção do DIAP de ..., o que concretizou, apesar de saber que se tratava de documento que continha informação e dados pessoais do assistente BB.

12. O arguido quis divulgar o conteúdo inscrito no certificado de registo criminal de BB em autos de processo onde este era assistente e que diziam respeito a factos estranhos ao conteúdo daquele certificado de registo criminal.

13. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.


*


Resultaram demonstrados os seguintes factos referentes ao pedido de indemnização civil:

14. O assistente exerce funções como ... e ..., sendo reconhecido pelos seus pares.

15. O assistente sentiu-se pessoalmente humilhado.

16. Após conhecimento do referido em 8), o assistente sentiu-se triste e afectado na sua capacidade de trabalhar.


*


Resultaram provados os seguintes factos a respeito da situação pessoal e económica do arguido:

17. O arguido não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal.

18. Exerce como profissional liberal a actividade de advogado, auferindo mensalmente e em média a quantidade líquida de € 3000,00.

19. Reside com a cônjuge em imóvel do qual é proprietário, liquidando mensalmente o valor de €175,00 a título de condomínio.

20. Tem uma filha com 14 anos de idade, a qual reside consigo em regime de residência alternada, relativamente à qual despende mensalmente a quantia de €700,00 para pagamento da instituição de ensino.

21. Despende mensalmente a quantia de €250,00 pela locação de veículo automóvel ligeiro de passageiros.

22. Despende mensalmente e em média a quantia de €600,00 para pagamento de contribuições para a Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores.

23. Despende mensalmente, ainda, cerca de €50,00 para seguro de saúde e a quantia de €400,00 para comparticipação de despesas de escritório.

24. Encontra-se ainda registado como proprietário de uma moradia.

25. É licenciado em Direito e mestre em gestão, sendo pós-graduado em direito das sociedades comerciais.


*


Resultaram ainda provados os seguintes factos emergentes da defesa:

26. Em 25/06/2018, foi proferido despacho pelo Senhor Juiz de Direito do Juízo de Instrução Criminal no processo n.º 310/17.8..., com o seguinte teor: “Admito a junção aos autos dos documentos de fls. 427 a 466 – arts. 291.º, n.º 1 e 291.º, n.º 1, ambos do Cód. de Proc. Penal”.

27. Em 08/06/2019, o arguido apresentou junto do processo n.º 10/15.3... do Juízo Local Criminal de ..., requerimento de certidão de peças do processo, com o seguinte teor: “A certidão deste documento destina-se a provar a sua existência neste processo-crime, bem como o modo como o requerente/signatário/mandatário do assistente tomou conhecimento do mesmo. A prova será produzida em processo disciplinar originado por participação do arguido à Ordem dos Advogados”, mais se identificando um documento de 15/11/2017, designado certificado de registo criminal, com a referência n.º ......90.

28. Em 12/06/2019 foi emitida pelo processo n.º 10/15.3... certidão com o código de acesso GHKA-0K2F-IVKX-..A8, com o seguinte teor: “certifica que neste juízo correm termos os autos acima identificados e que os atos processuais que fazem parte integrante desta certidão, certificado de registo criminal do arguido, emitido pelo Sistema de Informação de Identificação Criminal e junto aos autos em 15/11/2017, com a referência ......90, estão conformes aos correspondentes dados da tramitação do processo. A peça processual ora certificada consta dos autos em formato digital e em papel, a fls. 523-525 do 2.º volume dos autos”, integrando a certidão a cópia do documento referido em 4).

29. No processo n.º 10/15.3... foi proferida, pelo Juízo Local Criminal de ..., sentença em 7/02/2018, a qual consta o seguinte teor: “(…) Da matéria de facto provada: (…) Das condições pessoais do arguido (…) 55. Foi condenado por sentença proferida em 21.11.204 [2014], transitada em julgado em 16.09.2015 no âmbito do processo comum perante o Tribunal Colectivo número 1102/07.8... do Juízo Central Criminal de ... – Juiz 5 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa pela prática, em 01.06.2008, de quatro crimes de injúria, de dois crimes de denúncia caluniosa, de quatro crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, de três crimes de dano simples, de três crimes de difamação, de cinco crimes de ameaça, de um crime de furto simples, de um crime de coacção agravada e de um crime de gravações e fotografias ilícitas, na pena única de quatro anos de prisão suspensa na sua execução por igual período (…)”.


*


3.1.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Resultaram não provados os seguintes factos:

A. Que ao actuar nos termos descritos, o arguido tenha pretendido atingir o bom nome, honra e consideração do assistente BB.

B. Que o arguido soubesse que o aludido certificado de registo criminal tivesse sido emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.3...

C. Que o arguido soubesse que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.

D. Que os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentassem natureza reservada.

E. Que o arguido tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.


*


1. Impugnação da matéria de facto:

(…)

Ante o exposto, este Tribunal conclui que o arguido teve conhecimento e vontade de violar a norma e todos os seus pressupostos fácticos e verifica-se no caso em concreto uma conduta dolosa e culposa.

Tudo visto, merece acolhimento a impugnação dos factos não provados suscitada pelo recorrente M.º P.º, impondo-se em consequência dar como provados os seguintes factos:

O arguido sabia que o aludido certificado de registo criminal foi emitido com a finalidade exclusiva de instruir o processo n.º 10/15.3...

O arguido sabia que não podia utilizar o certificado de registo criminal para finalidade diversa.

Os dados referidos em 11), no aludido contexto, apresentam natureza reservada.

O arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.


*


2. Se o arguido se constituiu autor material do crime por que se encontrava pronunciado:

Alterada a matéria de facto provada nos termos que acabámos de referir, importa proceder, para dilucidação da questão agora em apreço, ao enquadramento jurídico desses mesmos factos, dirigindo-o directamente ao crime de que se encontrava pronunciado o arguido e de que veio a ser absolvido.

Com interesse para esta subsunção, valemo-nos das considerações, porque relevantes, desenvolvidas na sentença recorrida acerca do tipo legal do crime de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98 (actualmente por referência ao artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019).

“A Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio (doravante designada por LIC), veio estabelecer, em observância do ordenamento jurídico comunitário, os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, actividade de natureza pública que tem como desiderato a recolha, tratamento e a conservação de extractos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes.

Para o efeito, atribui o regime jurídico a competência para realização de aludida actividade pública aos serviços de identificação criminal (artigo 3.º, n.º1 da LIC), determinando a organização do registo criminal mediante constituição “em ficheiro central informatizado, constituído por elementos de identificação dos arguidos, comunicados pelos tribunais e pelas demais entidades remetentes da informação ou recolhidos pelos serviços de identificação criminal, e por extractos das decisões criminais sujeitas a inscrição no registo criminal àqueles respeitantes” (artigo 5.º, n.º1 da LIC), sendo considerados como elementos de identificação de condenados pessoas singulares “nome, sexo, filiação, naturalidade, data de nascimento, nacionalidade, estado civil, residência, número de identificação civil ou, na sua falta, do passaporte ou de outro documento de identificação idóneo e, quando se trate de decisão condenatória, estando presente o arguido no julgamento, as suas impressões digitais e assinatura” (artigo 5.º, n.º2, al. a) da LIC), sendo sujeitas a registo por extracto, entre outras, as decisões que apliquem penas e medidas de segurança (artigo 6.º e 7.ºda LIC).

Pese a finalidade do sistema de identificação criminal se centre na publicidade da situação jurídico-penal dos cidadãos e pessoas colectivas, o acesso à aludida informação, consubstanciada através da emissão do certificado de registo criminal (artigo 9.º, n.º1 da LIC) encontra-se relativamente limitado, sendo exclusivamente permitida a consulta da informação de registo criminal ao titular da informação, bem como a entidades e/ou autoridades públicas no exercício das respectivas funções, no estrito âmbito da respectiva actuação (artigo 8.º, n.º1 e 2 da LIC).

Tendo em consideração a natureza dos dados, é atribuída ao director-geral da Direcção Geral da Administração da Justiça a responsabilidade pelas bases de dados de identificação criminal (artigo 38.º, n.º 1 da LIC).

O aludido diploma é, paralelamente, densificado pelo Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto, o qual regulamenta e desenvolve o sistema de identificação criminal (doravante designado por RLIC).

Neste diploma, clarifica-se que o sistema de informação de identificação criminal (SICRIM) consubstancia o ficheiro central informatizado que reúne a informação relativa aos registos a cargo dos serviços de identificação criminal (artigo 2.º, n.º 1 do RLIC), sendo organizado um registo onomástico único por cada cidadão ou pessoa colectiva, comum a todos os registos que existam no sistema relativamente ao mesmo titular, no qual são registados os elementos de identificação comunicados pelos tribunais e pelas demais entidades remetentes da informação ou recolhidos pelos serviços de identificação criminal.

Feito o aludido enquadramento normativo, estabelece o artigo 43.º, n.º 1 da LIC, na sua redacção originária, que “a violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal ou de contumazes é punida nos termos do disposto na secção III do capítulo VI da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro”.

A aludida norma corresponde, ipsis verbis, ao disposto no artigo 21.º, n.º 1 da Lei n.º 57/98, de 11 de Agosto, na redacção estabelecida pela Lei n.º 114/2009, a qual vigorou até ser sido revogado pela LIC.

Em anotação à citada norma da Lei n.º 57/98, salientava PAULO DÁ MESQUITA In: PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE/JOSÉ BRANCO (coord.), Comentário das leis penais extravagantes, I, UCP Ed., 183 ss. que o aludido normativo não cumpria qualquer outra função que ultrapassasse o carácter meramente informativo porquanto remete, em bloco, para o disposto na secção III do capítulo VI da Lei n.º 67/98, que estabelecia a Lei da protecção de dados pessoais (doravante, LPDP).

Identificava o aludido autor, todavia, como bens jurídicos protegidos, a legalidade da administração e o sigilo das bases de dados de identificação criminal, não abrangendo, apenas, a violação do dever dos funcionários, mas também o segredo das informações cujo acesso, divulgação ou utilização indevidos colide com as finalidades legais.

Prosseguindo o iter normativo, a aludida remissão para a secção III do capítulo VI da Lei n.º 67/98 (à data dos factos, vigente na redacção estabelecida pela Lei n.º 103/2015), prevê, nos artigos 43.º a 47.º, sete tipificações penais, a saber, não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados, acesso indevido, viciação ou destruição de dados pessoais, inserção de dados falsos, desobediência qualificada e violação do dever de sigilo.

Com relevo para o caso, estabelece o artigo 43.º, n.º1 e 2 da LPDP que “é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias quem intencionalmente: a) omitir a notificação ou o pedido de autorização a que se referem os artigos 27.º e 28.º; b) fornecer falsas informações na notificação ou nos pedidos de autorização para o tratamento de dados pessoais ou neste proceder a modificações não consentidas pelo instrumento de legalização; c) desviar ou utilizar dados pessoais, de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização; d) promover ou efectuar uma interconexão ilegal de dados pessoais; e) depois de ultrapassado o prazo que lhes tiver sido fixado pela CNPD para cumprimento das obrigações previstas na presente lei ou em outra legislação de protecção de dados, as não cumprir; f) depois de notificado pela CNPD para o não fazer, mantiver o acesso a redes abertas de transmissão de dados a responsáveis pelo tratamento de dados pessoais que não cumpram as disposições da lei”, sendo agravadas as penas para o dobro nos seus limites mínimos e máximos quando se tratar de tratamentos de dados sensíveis, prevendo o artigo 8.º da LPDP que “a criação e a manutenção de registos centrais relativos a pessoas suspeitas de actividades ilícitas, infracções penais, contra-ordenações e decisões que apliquem penas, medidas de segurança, coimas e sanções acessórias só podem ser mantidas por serviços públicos com competência específica prevista na respectiva lei de organização e funcionamento, observando normas procedimentais e de protecção de dados previstas em diploma legal, com prévio parecer da CNPD”, só sendo possível o tratamento de dados quando seja necessário à execução de finalidades legítimas do seu responsável, desde que não prevaleçam os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.

Conforme ensina PEDRO VERDELHO In: PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE/JOSÉ BRANCO (coord.), Comentário das leis penais extravagantes, I, UCP Ed., 439 ss., “na generalidade, as alíneas do tipo de crime (…) podem ser praticadas por aqueles que procedem ao tratamento de dados pessoais, ou têm acesso aos mesmos no decurso desse tratamento e, por alguma das formas previstas naquelas alíneas, violam as regras que regem esse tratamento de dados ou as suas obrigações, decorrentes desse tratamento de dados perante a Comissão Nacional de Tratamento de Dados”.

Aproximando-se do caso, o disposto no artigo 43.º, n.º 1, al. c) da LPDP pune a utilização de dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha, incriminando-se “o uso de dados pessoais para fins [diferentes] daqueles que se propôs prosseguir quem procedeu à sua obtenção e organização. Aflora aqui o estruturante princípio da finalidade, um dos fundamentais princípios do tratamento de dados pessoais (…), o qual supõe que os dados sejam recolhidos apenas para prosseguirem finalidades determinadas, não podendo ser tratados de forma incompatível com essas finalidades”.

Aqui chegados, impõe-se recordar que, nos termos do artigo 3.º, al. a), b) e f) da LPDP, se define, respectivamente, como:

- dados pessoais “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social;

- tratamento de dados pessoais “qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição”; e

- terceiro, “a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, não sendo o titular dos dados, o responsável pelo tratamento, o subcontratante ou outra pessoa sob autoridade directa do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, esteja habilitado a tratar os dados”.

Conforme prevista o artigo 6.º da LPDP, “o tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para: a) execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados seja parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou declaração da vontade negocial efectuadas a seu pedido; b) cumprimento de obrigação legal a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito; c) protecção de interesses vitais do titular dos dados, se este estiver física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento; d) execução de uma missão de interesse público ou no exercício de autoridade pública em que esteja investido o responsável pelo tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados; e) prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados”.

Recorde-se o enquadramento normativo propiciado pelo artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente pelo n.º 3, o qual estabelece que “é proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei”.

Deste modo, tendo em consideração os elementos do ilícito penal, consubstanciam elementos integradores do tipo:

a) O acto de desviar ou utilizar dados pessoais;

b) Através da violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal;

c) A utilização ou desvio de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização;

d) A intenção de desviar ou utilizar dados pessoas de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha.

No plano do tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades, à qual acresce, ainda, a existência da aludida intenção específica de utilização de dados em desvio teleológico


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Com eventual relevância, tendo em consideração a sucessão de leis no tempo, impõe-se ainda aludir ao seguinte:

a) Em função da alteração introduzida na Lei n.º 37/2015 (LIC) pela Lei n.º 14/2022 (vigente a partir de 31/10/2022), passou o artigo 43.º, n.º 1 a estabelecer que “a violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal ou de contumazes é punida nos termos do disposto:

a) no capítulo vii da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto; ou b) nos capítulos vii e viii da Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto, quando esteja em causa o tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, detecção, investigação ou repressão de infracções penais ou de execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública”;

b) Em função da revogação da Lei n.º67/98 (LPDP) e consequente aprovação da Lei n.º58/2019, vigente a partir de 09/08/2019, estabelece o artigo 46.º, n.º1 e 2 do citado diploma que “quem utilizar dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”, sendo a pena “agravada para o dobro nos seus limites quando se tratar dos dados pessoais a que se referem os artigos 9.º e 10.º do RGPD”, aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, inscrevendo-se no último normativo o “tratamento de dados pessoais relacionados com condenações penais e infracções ou com medidas de segurança conexas”.


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Iniciando a análise pela aplicação do Direito no tempo, recorde-se que, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do Código Penal, “as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”, razão pela qual se mostra juridicamente relevante o direito vigente no momento da incriminação.

Excepciona-se, todavia, o referido comando normativo quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, caso em que “é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior” – artigo 2.º, n.º4 do Código Penal.

No caso, o tipo incriminador vigente no momento da prática dos factos encontra-se ancorado no artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na redacção originária, por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98.

Ora, pese embora na situação dos autos seja irrelevante a alteração normativa implementada no artigo 43.º, n.º1 da Lei n.º 37/2015 (que mantém a técnica remissiva, desta feita para a Lei n.º 58/2019), a verdade é que visto o artigo 46.º, n.º1 da Lei n.º 58/2019, o preenchimento da norma se mostra menos restritivo em comparação ao disposto no artigo 43.º, n.º1 da Lei n.º 67/98, na redacção estabelecida pela Lei n.º 103/2015, na medida em que a omissão, no tipo de ilícito, da intencionalidade a respeito da conduta determina um manifesto alargamento do tipo de ilícito, com a eliminação de um pressuposto específico da incriminação, razão pela qual, pela sua menor exigência no preenchimento do tipo, considera-se o artigo 46.º, n.º 1 da Lei n.º 59/2019 objectivamente menos favorável para o arguido, razão pela qual se mostra inaplicável no caso por intermédio do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal.

Dito isto e revertendo ao caso, inexistem dúvidas que o arguido, através da sua actuação, proveu à utilização do certificado de registo criminal do assistente BB, o qual consubstancia, nos termos da lei, um ficheiro informatizado de identificação criminal tendo em consideração o disposto na Lei n.º 37/2015 e do Decreto-Lei n.º 171/2015 a respeito da constituição do sistema de identificação criminal, mormente através da criação de um registo onomástico quanto a cada pessoa singular e colectiva que seja objecto de decisões transitadas em julgado que determinem a inscrição em sede de registo criminal.

Resultou ainda demonstrado que, ao actuar nos termos descritos, o arguido proveu ao tratamento de dados pessoais (nos termos previstos no artigo 3.º, al. a) e b) da LPDP, na medida em que realizou uma operação de utilização e, ainda, os elementos em causa se qualificam como dados pessoais, na respectiva alusão normativa).

Da factualidade demonstrada resulta evidenciado que o arguido actuou nos termos descritos, no exercício da qualidade de advogado, tendo o aludido certificado de registo criminal sido empregue como documento coadjuvante do requerimento de abertura de instrução apresentado em representação de CC.”

Passando ao aspecto divergente das considerações desenvolvida na sentença recorrida, em resultado da alteração/aditamento aos factos provados nos moldes acima descritos, concluímos que o arguido teve conhecimento e vontade de violar a norma e todos os seus pressupostos fácticos e verifica-se no caso em concreto uma conduta dolosa e culposa.

Inexiste qualquer factualidade que permita sustentar a existência de causas de justificação e/exculpação.

Assim, encontram-se preenchidos os elementos constitutivos do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado p. e p. pelo artigo 43.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, com pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias.

Estabelecida a responsabilidade penal do arguido/recorrido pelo ilícito criminal acima identificado, porque os autos dispõem de todos os elementos para tal, impõe-se, face ao AFJ 4/2016, in DR, 1.ª série, n.º 36, de 22 de Fevereiro de 2016 [Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.], passar a determinar a medida concreta da pena.

A tarefa de escolha e determinação da medida da pena envolve diversos tipos de operações, começando por se determinar a moldura penal abstracta e, em seguida, dentro dela, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.

Mas, no caso, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa (de prisão ou multa), deve-se proceder a uma escolha prévia da pena, dando preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a, a favor da prisão, na hipótese inversa.

É o que decorre da regra de escolha da pena prevista no artigo 70º do Código Penal, o qual consagra o princípio da preferência pela pena não privativa de liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

O artigo 40º do nosso Código Penal, a propósito das finalidades das penas e medidas de segurança, estabelece que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração na sociedade” (n.º 1), e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2).

Essas finalidades reconduzem-se à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade.

A protecção dos bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, ou seja, na utilização da pena como instrumento para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração), atendendo-se sobretudo ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade. Já a prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.

Por seu turno, a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, reporta-se à chamada prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes, pretendendo-se obter a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), atendendo-se a diversas variáveis como por exemplo a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente -Figueiredo Dias, In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas -Editorial Notícias, pág. 331/333.

Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 5ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, pág. 400, refere que «a escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas (…). O tribunal deve, pois, ponderar, apenas as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto suscite (…). A articulação entre estas necessidades deve ser feita do seguinte modo: em princípio, o tribunal deve optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme com as necessidades de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) impuserem a aplicação da pena de prisão (…). Esta regra vale quer para a escolha entre penas alternativas quer para a escolha de penas substitutivas».

É, pois, ponto assente que a escolha entre a pena de prisão e a pena alternativa de multa ou a substituição daquela por qualquer das penas de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, sendo, pois, o único critério a atender o da prevenção.

Mostra-se pacifico que neste caso as exigências de prevenção geral não são elevadas (o modo de cometimento do crime mostra-se restringido pela acessibilidade do arguido ao sistema Citius). E no âmbito das necessidades de prevenção especial, o arguido não tem antecedentes criminais e das suas condições pessoais não emerge nenhum facto desabonatório ou comprometedor do sucesso da pena não detentiva, tendo em vista as finalidades da punição.

Assim, manifestamos a nossa opção por pena não privativa de liberdade.

Passando à operação de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites da lei estipulados para a pena de multa aplicável ao caso como acima já se disse, aquela é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.ºs 71º, n.º 1 e 40º, n.º 2, do CP).

E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art.º 71º, n.º 2, do CP, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito. Por outro lado, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40º, n.º 1, do CP).

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244, a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida óptima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exacto da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção« acabada de referir actuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).

A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».

Conforme salienta o Ac. do STJ de 11MAI2000, in CJ Acs. do STJ, de 2000, Tomo II, pág. 188., “A função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa.

E, citando o Ac. do STJ de 01MAR2000, in Proc. nº 53/200 – 3ª Secção, afirma-se no citado aresto, «A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto, o seu limite mínimo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção».

Devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal, a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.

Continuando a citar, o mesmo Ac. do STJ de 01MAR2000, «Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto (‘moldura de prevenção’) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social».

Tendo por escopo as considerações tecidas, entendemos como relevantes para a determinação da pena a culpa do arguido tida como algo elevada, porque animada de dolo directo.

Por outro lado, não deixaremos de ter como influenciadora da medida da pena as razões que determinaram a conduta do arguido – no exercício da defesa do cliente -, a personalidade do arguido revelada na conduta que aponta para pouca sensibilização para a necessidade de observância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros, mesmo que para a defesa do seu cliente, as condições pessoais do arguido a nível da inserção profissional, familiar e social – tudo resultante do que se mostra fixado nos factos provados 17 a 25.

Situando-se a sua culpa num patamar elevado a sua pena deverá, proporcionalmente, situar-se ligeiramente acima do ponto médio moldura, ou seja, em 140 dias.

No que concerne ao quantitativo diário, temos de ponderar que o arguido é advogado, auferindo mensalmente a quantia de € 3.000, vivendo em casa própria.

Apresenta como despesas que poderemos categorizar como fixas um montante total de cerca de € 2.100.

No apuramento da taxa diária deve-se atender igualmente que a multa é uma verdadeira reacção criminal de índole económica, não sendo nem um crédito jurídico-público a favor do Estado, sendo, por isso, insusceptível de compensação ou de transmissão contratual ou sucessória, face à sua natureza estritamente pessoal, nem um laxante com repercussões económicas, pelo que a sua aplicação deve ser submetida a critérios de igualdade de sacrifícios e ónus, originando uma agravação da situação económica do condenado.

No que concerne aos encargos e perante o mesmo princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, deverá fazer-se uma avaliação diferenciada dos mesmos, distinguindo-se aqueles que revelam custos indispensáveis para a sustentação do condenado e dos seus familiares dependentes, os quais devem ser deduzidos no rendimento, daqueles que revelam alguma prodigalidade ou luxúria e que não devem beneficiar da mesma ponderação dedutiva, antes pelo contrário.

Tudo isto leva a que se reservem os quantitativos mínimos para aquelas pessoas que vivem abaixo ou no limiar da subsistência, designadamente por carência de rendimentos próprios ou de quaisquer outros, escalonando-se a partir daí todos os demais.

Ora, se para quem não tem proventos ou rendimentos para que possa beneficiar do rendimento social de inserção é proporcional uma taxa diária a partir dos € 5, em relação ao arguido, que tem um rendimento mensal que ronda os € 3.000, ainda que ilíquido, essa taxa não pode ser inferior à taxa diária de € 15, pelo que se condena o arguido, como autor material de um crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, previsto e punido pelo artigo 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, na pena de 140 (cento e quarenta dias) de multa à taxa diária de € 15 (quinze euros), o que perfaz a multa global de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).”

2. Fundamentação

2.1. Do objecto do recurso

Da delimitação do objecto do recurso e da sua circunscrição a matéria exclusivamente de direito

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitariam a: (a) impugnação da matéria de facto provada respeitante aos factos que realizam o tipo subjectivo; (b) vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP: contradição insanável e insuficiência da matéria de facto provada; (c) violação do princípio do in dubio pro reo; (d) erro de subsunção; (e) escolha e medida da pena; (f) transcrição da condenação no certificado de registo criminal.

Tendo sido o arguido absolvido em 1.ª instância do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado, do art. 43.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, e tendo o acórdão da Relação revertido a decisão de absolvição em condenação, a recorribilidade mostra-se evidente (art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP). Mas da manifesta recorribilidade da decisão não resulta que o recurso tenha (ou possa ter) a abrangência visada pelo recorrente.

Com efeito, os poderes de cognição do Supremo não compreendem, no presente caso, toda a matéria impugnada pelo arguido. Ou seja, o recurso não pode ter a amplitude visada, pois não foi essa a opção do legislador de 2021 ao estabelecer aqui a recorribilidade, como resulta da letra da lei e dos elementos sistemático e histórico de interpretação.

O recorrente exerceu o direito ao recurso pretendendo, desde logo, uma reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, impugnando-a em várias vertentes, embora não propriamente através da utilização da via ampla ou alargada de impugnação, prevista no art. 412.º, n.º 3, do CPP.

Assim, no que respeita ao “acórdão de facto”, arguiu os vícios do art. 410.º, nº 2, do CPP (contradição insanável da fundamentação e insuficiência da matéria de facto provada) e invocou a violação do princípio do in dubio pro reo, sempre por referência à decisão sobre a matéria de facto. Ou seja, estes temas enunciados versam sobre, e respeitam exclusivamente a (impugnação da decisão sobre a) matéria de facto.

Já em sede de discordância em matéria de direito - matéria de direito que, esta sim, o arguido pode trazer irrestritamente - a impugnação centrou-se no erro de subsunção, escolha e medida da pena, e transcrição da condenação no certificado de registo criminal.

Como se adiantou, uma coisa é a recorribilidade do acórdão inovatoriamente condenatório da Relação, outra, dissemelhante, a definição dos poderes de cognição do Supremo quando julga em terceiro grau de jurisdição e em segundo grau de recurso, no enquadramento do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP.

A doutrina pronunciou-se recentemente no sentido da possibilidade de recurso (amplo) da matéria de facto, também nos casos da al. b), do n.º 1, do art. 432.º.

Em “a REVISTA”, Supremo Tribunal de Justiça, “A Revista Penal em Revista”, p. 147, Helena Morão defende: “Apesar de, neste caso, já duas instâncias se terem pronunciado sobre a causa, diversamente do que ocorre na situação da al. a), a primeira decisão é uma absolvição e, assentando a decisão condenatória da Relação numa apreciação distinta da prova, esta discordância em matéria de facto só poderá ser correctamente dirimida num recurso sobre essa matéria. O direito ao recurso da defesa configura, deste modo, um limite constitucional à função de mero tribunal de revista penal do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em atenção que outra interpretação redundaria numa estruturação do sistema de recursos contrária à presunção de inocência, i.e., em que à acusação é conferida uma melhor oportunidade de obter uma inversão de absolvição em recurso (designadamente, um pleno recurso em matéria de facto) do que ao arguido para afastar uma condenação em recurso (simples recurso de revista ampliada), o que não se pode aceitar.”

No caso sub judice, o arguido não pretendeu lançar mão deste modo (amplo) de impugnação da matéria de facto. Mas visou discuti-la. No entanto, e independentemente da concreta via escolhida, crê-se que a opção do legislador de 2021 foi claramente a da circunscrição do objecto do recurso a matéria exclusivamente de direito. No que respeita à definição do objecto do novo recurso e à delimitação dos poderes de cognição do Supremo, continua a justificar-se o entendimento de que, no estado actual da legislação e da jurisprudência, o recurso se circunscreve aqui a matéria exclusivamente de direito.

O recurso não tem a abrangência pretendida pelo recorrente, desde logo porque não foi essa a opção do legislador de 2021, na alteração agora operada à norma à luz da qual se recorre. E assim, o presente recurso só pode versar sobre matéria exclusivamente de direito, pois foi essa a determinação do legislador ao passar a prever a “nova recorribilidade”.

Como elemento histórico de interpretação, importa remirar o regime que vigorou até à presente alteração cirúrgica ao regime dos recursos em processo penal.

E começa por se recordar que o Pleno do Tribunal Constitucional sempre considerou constitucionalmente admissível a limitação do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça nos casos de aplicação de penas não privativas da liberdade pelas Relações, quando em recurso proferem uma decisão inovatoriamente condenatória.

Em inúmeros acórdãos, observou aquele Tribunal não se revelar desproporcionado ou excessivo que o arguido fique circunscrito à faculdade de influir ex ante no juízo decisório da Relação e sem a possibilidade de uma impugnação ex post, atenta a menor gravidade da sanção e a necessidade de racionalização do acesso ao Supremo. Esta jurisprudência constitucional foi afirmada em três acórdãos do Pleno, todos de 13 de Julho de 2021, nos quais este Tribunal se pronunciou, por três vezes, no sentido da conformidade constitucional da tese da irrecorribilidade, posição sempre seguida, uniformemente, pelo Supremo Tribunal de Justiça, até à presente alteração legislativa.

Assim, e no que agora mais releva, no acórdão n.º 524/2021, o Pleno do Tribunal Constitucional decidiu “Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condenem os arguidos em pena de prisão não superior a cinco anos, suspensa na sua execução.”

Em conformidade com a norma legal ordinária expressa e a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça entendia, unissonamente, ser irrecorrível o acórdão da Relação, que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em primeira instância, condena o arguido em pena de prisão não superior a cinco anos, suspensa na execução.

Assim resultava de norma processual penal expressa: a então redacção do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, que preceituava não ser admissível recurso de “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos” e a al. b), do n.º 1, do art. 432.º, do mesmo código, que dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de “decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.º”.

Na fundamentação do referido acórdão do Pleno do Tribunal Constitucional desenvolveu-se, sempre na linha da jurisprudência anterior, que “O direito fundamental ao recurso não é um direito absoluto, não sendo, portanto, imune a restrições legais. Tal como acontece com os restantes direitos, liberdades e garantias inscritos na Constituição, às restrições a este direito aplica-se o regime decorrente do artigo 18.º da Constituição. Isto significa, nomeadamente, que a restrição é possível em caso de colisão com outros bens constitucionais, devendo, nesse caso, proceder-se a uma ponderação entre os sacrifícios impostos ao arguido e os ganhos de racionalidade, celeridade, eficácia e eficiência do sistema de administração da justiça, globalmente considerado.

Nesta análise, não pode ser esquecido que existe uma correlação entre o direito fundamental ao recurso e os direitos fundamentais caracteristicamente restringidos pela pena, já que é a gravidade da pena que se reflete na esfera pessoal do arguido. Não é, por isso, indiferente ao julgamento da questão de constitucionalidade da restrição do direito ao recurso qual a pena aplicada ao arguido pela decisão em causa.

A gravidade da pena de prisão impede a conformidade constitucional da irrecorribilidade da decisão da Relação que, inovadoramente relativamente à absolvição da primeira instância, condena o arguido em prisão efetiva. Foi essa a conclusão a que o Tribunal Constitucional chegou no Acórdão n.º 595/2018.

Estando em causa a aplicação de uma pena não privativa da liberdade, como é o caso da pena de prisão suspensa na sua execução, o carácter inovador da apreciação empreendida pelo Tribunal da Relação da matéria de facto, e consequentemente da matéria de direito, não implica consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade.

Sendo uma pena de substituição, tem, por isso, autonomia face à pena de prisão efectiva substituída. (…) Este facto não permite reclamar para o momento da condenação em pena suspensa um regime igual ou análogo ao das decisões condenatórias em pena de prisão efetiva.

A norma em apreciação restringe o direito ao recurso à faculdade de influir ex ante no juízo decisório que o Tribunal ad quem terá de desenvolver para fixar os termos da respectiva responsabilidade. Todavia, em face das garantias de defesa que são reconhecidas ao arguido, condenado em pena de prisão suspensa, é de concluir que a restrição ao conteúdo do direito ao recurso traduzida na impossibilidade de impugnar as consequências jurídicas do crime impostas na decisão condenatória proferida em recurso, quando estas se traduzem na imposição de uma pena de prisão suspensa, representa um sacrifício dos direitos fundamentais do arguido que não compromete as garantias de defesa e encontra ainda justificação necessária e suficiente no propósito legítimo de propiciar uma racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Saía assim reforçada a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, no sentido da irrecorribilidade, sendo ainda de notar a conformidade da solução propugnada com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que não contém norma expressa sobre o direito ao recurso, mas que no art. 2.º do Protocolo n.º 7 da CEDH (1984) veio reconhecer o «direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal», consagrando no n.º 1 o direito de acesso de «qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal» a «uma jurisdição superior» que reexamine «a declaração de culpabilidade ou a condenação». Este direito, porém, pode ser limitado pelas excepções previstas no n.º 2, em que se incluem as «infracções menores, definidas nos termos da lei» e as situações em que «o interessado [tenha sido] declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição».

Reconhecendo-se alguma restrição do direito ao recurso do arguido numa situação como a que vigorava anteriormente, considerava-se, no entanto, tal restrição como ainda razoável e proporcional, na que foi a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça.

Veja-se por exemplo o acórdão do STJ de 30-10-2019 (Rel. Lopes da Mota), em que se notou que “não parece que, no estado actual da legislação e da jurisprudência, sólida e consequentemente se possa fundar um juízo de inconstitucionalidade conducente à não aplicação da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP na dimensão normativa que agora releva, de modo a admitir-se o presente recurso”, impondo-se “em consequência, concluir que pela não admissibilidade do recurso, de acordo com o disposto na primeira parte da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação que apliquem pena não privativa da liberdade.”

Embora nos três mencionados acórdãos do Pleno do Tribunal Constitucional se tenha aceitado como constitucionalmente tolerável a restrição ao conteúdo do direito ao recurso traduzida na impossibilidade de impugnar as consequências jurídicas do crime num caso como o presente (quando aquelas consequências se traduzem na imposição de uma pena que não a prisão efectiva), na fundamentação do acórdão n.º 595/2018, em que Tribunal Constitucional declarara “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efectiva não superior a cinco anos (…)” não deixa de se notar a destrinça que a este propósito deve ser feita entre a “questão da culpabilidade” e a “questão da determinação da sanção”.

Este elemento afigura-se importante, também na interpretação da alteração legislativa ora operada.

No contexto da decisão final condenatória, o Código de Processo penal distingue a “Questão da culpabilidade” (art. 368.º do CPP) da “Questão da determinação da sanção” (art. 369.º do CPP). Estes preceitos legais, numa disciplina próxima da césure, constituem sinal claro da autonomia e do protagonismo que a pena e a sua determinação assumem no processo. E este protagonismo adjectivo é resultado da importância material da pena, no contexto global da decisão condenatória.

No acórdão do TC n.º 595/2018, censurou-se a irrecorribilidade da decisão da Relação apenas na parte relativa à determinação da sanção. E deste acórdão retira-se a destrinça clara a fazer entre a “questão da culpabilidade” e a da “determinação da sanção”, agora na fase do recurso e do exercício do direito ao recurso. Matéria que se reveste de particular interesse na definição dos actuais poderes de cognição do Supremo (face à lei nova) e da conformidade constitucional da posição que se prossegue.

No regime anterior, que vedava totalmente o acesso ao Supremo num caso como o presente, clarificando e relacionando o binómio “garantias de defesa” e “direito ao recurso”, o Tribunal Constitucional circunscreveu o problema da (des)conformidade constitucional à parte da decisão relativa à determinação da sanção. Assim se retira, designadamente, dos seguintes excertos do acórdão:

“(…) para se aferir sobre a respetiva conformidade constitucional importa determinar em que medida a norma sub judicio afecta as garantias de defesa do arguido. Neste plano, na linha do que acima se deixou consignado a respeito da relação existente entre direito ao recurso e duplo grau de jurisdição, é imprescindível verificar se a norma permite a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto, para depois determinar se corresponde a uma tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

(…) Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.

Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.

(…) Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efectiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo».

(…) Nestas circunstâncias, a irrecorribilidade do acórdão do tribunal de 2.ª instância tem como consequência que a tão relevante matéria da determinação da espécie e medida da pena seja apreciada uma única vez – pelo tribunal de recurso – e escape, assim, ao controlo de uma segunda instância (…)Nessa parte, não se encontra garantindo, na verdade, um duplo grau de jurisdição.

(…) Essa parte da decisão da 2.ª instância é, por definição, inovatória. Desta forma, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.

(…) esse sacrifício do direito ao recurso não é compensado pela possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público ou assistente da decisão absolutória da 1.ª instância ou através da garantia do contraditório. Nestes casos de reversão no tribunal de recurso de uma absolvição em condenação as consequências jurídicas do crime só são definidas no julgamento do recurso. Assim, apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo.” (itálicos nossos)

Como se vê, o Tribunal Constitucional censurou a negação da possibilidade de “poder recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido”, ou seja, a parte relativa à determinação da sanção, distinguindo-a claramente da outra parte da decisão, que o arguido pôde discutir e debater no contraditório do recurso.

Em suma, o Tribunal Constitucional nunca considerou desconforme à Constituição a irrecorribilidade do acórdão da Relação inovatoriamente condenatório na parte em que decidiu sobre matéria de facto, desde logo porque, como o afirmou expressamente em vários acórdãos (designadamente nos quatro acórdãos do Pleno citados) as garantias de defesa se consideram suficientemente asseguradas pelo duplo grau de jurisdição e a possibilidade de alegar e contra-alegar em recurso (no recurso para a Relação) sobre a matéria de facto. E no que respeita à garantia constitucional do direito ao recurso, sempre o Tribunal Constitucional destrinçou a parte da decisão referente à culpabilidade, da parte relativa à determinação da sanção.

O legislador esteve necessariamente atento a esta jurisprudência.

E antes de se passar à aplicação do regime processual penal vigente ao caso sub judice, importa ainda relembrar a jurisprudência do Supremo a respeito da (impossibilidade de) invocação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

É conhecida a jurisprudência uniforme e constante no sentido de a invocação de tais vícios não poder constituir fundamento de recurso para o Supremo, podendo este Tribunal, no entanto, deles conhecer oficiosamente. Vejam-se, entre muitos e a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 20.12.2014 (Rel. Raul Borges), o acórdão do STJ de 07-06-2017 (Rel. Maia Costa), o acórdão do STJ de 25-10-2018 (Rel. Manuel Braz), o acórdão do STJ de 14-10-2020 (Rel. Manuel Matos).

Com a recente alteração legislativa ao regime dos recursos, esta jurisprudência caducou, mas apenas em parte. E mantém-se actual no caso presente, como passa a justificar-se.

À semelhança do que sucede com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, também as decisões do Supremo são conhecidas do legislador, sobretudo quando tais decisões constituem jurisprudência sedimentada, há muito consolidada.

É neste quadro de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional que entra em vigor a Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, procedendo às alterações do que se considerou dever ser alterado.

Assim, o art. 434.º do CPP passou a estatuir que “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432”, segmento final ora aditado.

Esta norma continua a estipular, como regra geral, que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Passou, no entanto, a exceptuar duas (únicas) situações, que são as que resultam das als. a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP.

O art. 432.º, n.º 1, al. a) do CPP, estabelece agora a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, segmento final aditado, e a al. c), “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, segmento final aditado também.

Nestes dois casos, trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo (o que justifica a diferente solução legislativa).

Já no caso sub judice, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância. Trata-se, sim, de um recurso interposto de um acórdão da Relação que decidiu já recurso anterior. E, neste caso, nada foi legislativamente alterado no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º.

Se a admissibilidade do recurso é agora evidente, como se disse no ponto anterior, no que respeita ao âmbito do recurso e aos poderes de cognição do Supremo, o recurso interposto pelo arguido segue a regra geral, dado encontrar-se fora da previsão das (únicas) alíneas que prevêem a excepção ao regime-regra.

Ou seja, o recurso de acórdão da Relação que decide em recurso, continua a poder visar apenas o reexame em matéria (exclusivamente) de direito. E os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se circunscritos a este conhecimento.

A alteração legislativa surge, aliás, na linha da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tendo ido, até, além dela. Circunscreveu o direito ao recurso a matéria exclusivamente de direito, mas este pode ter como fundamento qualquer questão exclusivamente de direito, que não apenas a da determinação da sanção. Como seja a tipicidade, a ilicitude, a culpa, a escolha e a medida da pena, a indemnização…

Do exposto resulta que todas as questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido relativas à decisão da matéria de facto excedem os poderes de cognição do Supremo. Supremo que conhece aqui apenas em matéria exclusivamente de direito, sendo o recurso de rejeitar na parte restante.

A impossibilidade de conhecimento abrange assim (a) a impugnação da matéria de facto provada respeitante aos factos que realizam o tipo subjectivo, (b) os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, (c) a violação do princípio do in dubio pro reo, problematizados sempre por referência à decisão sobre a matéria de facto.

Ou seja, os três temas enunciados versam sobre, e respeitam exclusivamente a (impugnação da decisão sobre a) matéria de facto. Como tal, eles não podem valer como impugnação em matéria de direito e como suscitação de questões em matéria de direito. O que se visa sempre sindicar, em todos eles, é um juízo probatório, o juízo concretamente formulado pela Relação no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto, na decisão do recurso da sentença.

No sentido do enquadramento do in dubio pro reo na decisão da matéria de facto, veja-se, por exemplo o acórdão do STJ de 23.11.2022 (Rel. Pedro Branquinho Dias) e o acórdão do STJ de 15.02.2023 (Rel. a presente).

E constitui jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça que a irrecorribilidade de uma parte da decisão cobre todas as questões suscitadas que lhe digam respeito, ou seja, que respeitem à parte irrecorrível da decisão impugnada.

Veja-se (embora a outro propósito, mas transponível para o caso presente), o acórdão do STJ de 11.03.2020 (Rel. Nuno Gonçalves), em que se desenvolveu que a “irrecorribilidade é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação”, “incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo (…) Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais (…) Trata-se de jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, adoptada e seguida no recente Ac. de 19/06/2019, desta mesma secção, onde se decidiu: “As questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto (…), não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”.

Das questões subjacentes à irrecorribilidade não pode o Supremo conhecer. E no caso presente, a recorribilidade circunscreve-se às questões trazidas ao recurso que versam matéria exclusivamente de direito, uma vez que é aí que se situa “o círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível”.

No entanto, não deixa de se consignar que, no exercício da eventual detecção oficiosa de vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, procedeu-se a leitura atenta de todo o acórdão da Relação, incluindo a parte da decisão em que se conheceu do recurso da matéria de facto, não enfermando a decisão de qualquer um desses vícios, nem de nulidade ou outra anomalia de que cumprisse igualmente conhecer oficiosamente.

2.2. Do erro de subsunção

O recorrente defende que o acórdão incorreu em erro de direito, na vertente do erro de subsunção, dado que os únicos factos que poderiam e deveriam ter sido considerados como provados seriam insuficientes para realizar o tipo de crime da condenação. Ou seja, e sempre na sua alegação, os factos que interessam ao dolo do tipo (e da culpa) teriam ficado por demonstrar. E por essa razão, o crime não se teria realizado.

Como se vê, a refutação surge na estrita decorrência da impugnação da matéria de facto, pelo que, da completa estabilização dos factos provados constantes do acórdão recorrido, nos moldes referidos no ponto precedente, decorrerá igualmente a improcedência do recurso nesta parte.

Se o recorrente não discute o enquadramento jurídico dos factos provados enquanto tal, antes peticionando a absolvição na sequência de uma impugnação de matéria de facto que não logrou poder fazer, pouco haverá a acrescentar, mormente perante a exaustão e clareza de fundamentação do enquadramento jurídico dos factos efectuada no acórdão recorrido. Esta fundamentação encontra-se integralmente transcrita (em 1.2.) e para lá se remete, dispensando-se repetições.

Assim, não importa considerar toda a argumentação desenvolvida no recurso respeitante aos factos, afinal provados, que relevam para o dolo e o tipo subjectivo de crime. Apenas um dos argumentos apresentados pelo arguido poderá ter alguma autonomia relativamente à discussão precedente sobre a factualidade, e merecer alguma apreciação mais. Esse argumento respeita ao tipo objectivo.

Se bem o alcançámos, defende o recorrente a propósito que da circunstância de ter “circunscrito a sua conduta ao meio judiciário, entre processos da mesma Comarca, visando exclusivamente instruir um processo-crime, em fase de instrução, com um documento que havia sido produzido para outro processo do qual este segundo processo emergia” decorreria uma atipicidade da conduta (e consequentemente também a ausência de demonstração dos factos do dolo).

Ou seja, no seu entendimento, não seria tipicamente ilícito provocar o trânsito, para outro processo, de um documento (o CRC) contendo informação de natureza reservada e emitido para ser junto a um determinado processo. Provocando esse trânsito à revelia do titular dos dados ou de decisão da autoridade judiciária competente.

Não tem razão.

Não se encontra controvertida em recurso a natureza de “dados pessoais“ atribuída à informação contida em CRC, e ela encontra-se suficientemente justificada no acórdão.

No acórdão explicou-se também, correctamente, que consubstanciam elementos que realizam o tipo: a) O acto de desviar ou utilizar dados pessoais; b) Através da violação das normas relativas a ficheiros informatizados de identificação criminal; c) A utilização ou desvio de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização; d) A intenção de desviar ou utilizar dados pessoais de forma incompatível com a finalidade determinante da recolha. E no referente ao tipo subjectivo, trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades, à qual acresce, ainda, a existência da aludida intenção de utilização de dados em desvio teleológico.

Os factos provados realizam o tipo objectivo e subjectivo do crime da condenação, pois, como se disse no acórdão recorrido, “o arguido actuou com o propósito claro de usar informação que apenas poderia estar na disponibilidade do respectivo titular, o assistente BB, ou da autoridade judiciária. Nem outra conclusão se poderia obter pois inexiste qualquer pedido formal no processo a solicitar a entrega de cópia do certificado de registo criminal.

O documento em causa, como se disse e em face do regime previsto na Lei n.º 37/2015, tem natureza necessariamente reservada, especificamente para o processo onde foi determinada a sua emissão e onde foi junto.

(…) inexistem dúvidas que o arguido, através da sua actuação, proveu à utilização do certificado de registo criminal do assistente BB, o qual consubstancia, nos termos da lei, um ficheiro informatizado de identificação criminal tendo em consideração o disposto na Lei n.º 37/2015 e do Decreto-Lei n.º 171/2015 a respeito da constituição do sistema de identificação criminal, mormente através da criação de um registo onomástico quanto a cada pessoa singular e colectiva que seja objecto de decisões transitadas em julgado que determinem a inscrição em sede de registo criminal.

Resultou ainda demonstrado que, ao actuar nos termos descritos, o arguido proveu ao tratamento de dados pessoais (nos termos previstos no artigo 3.º, al. a) e b) da LPDP, na medida em que realizou uma operação de utilização e, ainda, os elementos em causa se qualificam como dados pessoais, na respectiva alusão normativa).

Da factualidade demonstrada resulta evidenciado que o arguido actuou nos termos descritos, no exercício da qualidade de advogado, tendo o aludido certificado de registo criminal sido empregue como documento coadjuvante do requerimento de abertura de instrução apresentado em representação de CC.

Inexiste qualquer factualidade que permita sustentar a existência de causas de justificação e/exculpação.

Assim, encontram-se preenchidos os elementos constitutivos do crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado p. e p. pelo artigo 43.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio, na data dos factos por referência ao artigo 43.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, com pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias.”

Em suma, nenhuma das circunstâncias invocadas no recurso fragiliza a correcção do juízo subsuntivo efectuado no acórdão. O enquadramento jurídico dos factos provados é correcto.

De notar também que o comportamento ulterior do arguido, designadamente o ter apresentado posteriormente junto do processo n.º 10/15.3... do Juízo Local Criminal de ...– J1, requerimento de certidão de peças do processo, já não releva para a tipicidade, pois respeita a actividade desenvolvida após a consumação do crime. Isto, sem prejuízo desta circunstância, e de outras alegadas em recurso, poderem vir a relevar, não já no juízo sobre a tipicidade, mas na determinação do grau de culpa, como se apreciará.

2.3. Da escolha e medida da pena

O recorrente pugna pela redução da pena de multa em que foi condenado, quer no referente aos dias de multa, quer à taxa diária.

Para tanto, invoca as suas boas condições pessoais, de inserção laboral, familiar e social, a ausência de passado criminal, a indemonstração de um propósito específico de ofender o assistente na honra e dignidade, a preservação da divulgação do documento no estrito âmbito judiciário e suportado numa sentença que corroborava o conteúdo do CRC, o agir no interesse da sua cliente, o seu comportamento posterior (quando confrontado com a quebra de deveres legais e deontológicos, diligenciou pela obtenção de uma certidão do CRC conformando a sua actuação com a tutela sobre o dito documento).

O Ministério Público, na Relação e no Supremo, pronunciou-se pela confirmação da pena aplicada.

O crime de violação de normas relativas a ficheiros e impressos agravado do art. 43.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio, é punido com prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias.

Fazendo aplicação do AFJ n.º 4/2016, a Relação procedeu à determinação da pena, e perante pena abstracta compósita alternativa (de prisão ou multa). justificou a opção pela multa.

Para tanto, considerou as exigências de prevenção geral não elevadas (por o modo de cometimento do crime se mostrar restringido pela acessibilidade do arguido ao sistema Citius), bem como as necessidades de prevenção especial, por o arguido não ter antecedentes criminais e das suas condições pessoais não emergir nenhum facto desabonatório ou comprometedor do sucesso da pena não detentiva, tendo em vista as finalidades da punição. Nenhum reparo a fazer até aqui.

Mas seguidamente acrescentou-se que “tendo por escopo as considerações tecidas, entendemos como relevantes para a determinação da pena a culpa do arguido tida como algo elevada, porque animada de dolo directo” e censurou-se “a personalidade do arguido revelada na conduta que aponta para pouca sensibilização para a necessidade de observância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros (…) situando-se a sua culpa num patamar elevado”.

Dos factos provados, que incluem efectivamente os que o arguido agora destaca em recurso, não resulta porém qualquer “culpa elevada”, já que a medida da culpa não se retira apenas da concreta modalidade do dolo (do tipo).

Na verdade, a concreta personalidade do arguido revelada nos factos, não evidencia um grau de culpa elevado, lembrando-se que as considerações que possam fazer-se sobre a personalidade do arguido se cingem sempre à sua personalidade revelada no facto, pois “o agente deve ser punido pelo que fez, não por aquilo que é como pessoa, ou aquilo em que se tornou por sua culpa” (Vaz Patto, Os Fins das Penas e a Prática Judiciária, www.tre.pt).

E respeitando à culpa, tais considerações não podem deixar de ser incluídas no processo de determinação da pena, mas a sua ponderação tem de respeitar o princípio da proibição da dupla valoração (art. 72.º, n.º 2 do CP). Assim, a forma dolosa do crime faz já parte do tipo, assim como “a inobservância de limites no respeito de normas que protegem direitos de terceiros”, pois não fora essa inobservância não ocorreria condenação.

Em suma, a culpa revelada no facto não se apresenta em concreto elevada, desde logo porque da globalidade dos factos provados, quer dos relativos à culpabilidade, quer dos relativos à personalidade do arguido e ao seu comportamento posterior, não se retira que o arguido revele uma grande falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada nos factos que quis praticar e praticou. E que essa falta exija uma censura através da aplicação de uma pena de multa.

Partindo dos dispositivos nucleares dos arts 40.º e 71.º, n.º 1 do CP, relacionando os princípios da culpa e da prevenção, no quadro constitucional da proibição do excesso, tendo como certo que a finalidade primeira da aplicação da pena reside na prevenção geral, a pena deve sempre “ser medida basicamente com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto”, e o “desvalor do facto deve ser valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização do agente” (Anabela Rodrigues, A Medida da Pena Privativa da Liberdade pp. 570-576).

No caso concreto, são pequenas as necessidades de prevenção geral e especial, como se disse no acórdão, e é diminuto o grau de culpa do arguido, contrariamente ao ali afirmado.

Assim, considera-se mais proporcionada e ainda perfeitamente adequada às finalidades da punição uma pena de admoestação, sanção prevista no art. 60.º do CP.

Por esta razão, e uma vez que se verifica a previsão dos n.ºs 1 a 3 do art. 60.º do CP - não dever ser aplicada multa superior a 240 dias, inexistência de dano a reparar, ausência de antecedentes criminais -, atentos ainda os princípios que regem a pena, mormente o da necessidade e o da proibição do excesso, deve ser a admoestação a pena a aplicar ao arguido.

2.4. Da (não) transcrição da condenação no certificado de registo criminal

Por último, o recorrente peticiona a aplicação do disposto no n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, argumentando que exerce em exclusividade a profissão de advogado, “sendo estigmatizante e prejudicial para o resto da sua vida o averbamento” da presente condenação.

A norma invocada permite efectivamente decidir a não transcrição da sentença nos certificados para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou actividade em Portugal, para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, quando esteja em causa pena não privativa da liberdade, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.

O Ministério Público, na Relação e no Supremo, pronunciou-se pela procedência do recurso nesta parte, ou seja, inexiste controvérsia a este propósito. Também por esta razão, pode o Supremo decidir de imediato a questão, dispensando a devolução da decisão à 1.ª instância para esse efeito, pois em concreto, e neste quadro processual de total consenso, atento o sentido da decisão a proferir inexistiria qualquer direito ao recurso a acautelar.

Na verdade, as razões que justificaram a opção por pena de admoestação, em detrimento da pena de multa, justificam agora, igualmente, o deferimento da pretensão formulada.

Preceituando a norma cuja aplicação se pretende que “os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º”, resta constatar o preenchimento da previsão da norma e deferir, à luz dela, a pretensão formulada no recurso.

O que se decide.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se o acórdão na parte em que condenou o arguido em multa, antes o condenando na pena de admoestação, determinando-se a não transcrição no CRC (art. 13.º da Lei n.º 37/2015), mantendo-se no mais o acórdão.

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario).

Lisboa, 28.02.2024

Ana Barata Brito, relatora

Maria Teresa de Almeida, adjunta

Pedro Branquinho Dias, adjunto