Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2279
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: SJ200707050022795
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
1 – Quando o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a questão de facto deve dirigir-se, à Relação que tem competência para tal, como dispõem os art.ºs 427.º e 428.º, n.º 1 do CPP. O recurso pode então ter a máxima amplitude, abrangendo toda a questão de facto com vista à modificação da decisão da 1.ª Instância sobre essa matéria, designadamente quando, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, nº 3 [art. 431.º, al. b)].

2 – Para além da já referida impugnação alargada da decisão de facto, pode sempre o recorrente, em todos os casos, dirigir-se à Relação e criticar a factualidade apurada, com base em qualquer dos vícios das alíneas do n.º 2 do art. 410.º, como o consente o art. 428.º n.º 2 do CPP.

3 – É essa a ordem pela qual a Relação deve conhecer da questão de facto: primeiro da impugnação alargada e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Mas se a Relação as conheceu por ordem inversa, mas as apreciou a ambas, não se pode falar em nulidade por omissão de pronúncia.

4 – Se recorrente invoca que foi violado o princípio in dubio pro reo, tem de impugnar a decisão da Relação, contrariando-a e afirmando e demonstrando que o Tribunal ficara na dúvida e mesmo assim decidira contra si (o arguido).

5 – Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

6 – Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto, mas que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.

7 – O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que as instâncias podem tirar conclusões ou ilações da matéria de facto directamente provada e que são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.

8 – O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção. Por isso que, em sede de apreciação, a prova testemunhal não dispensa um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.

9 – As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto, o que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo¸este princípio é que constitui o limite daquelas.

10 – Quando só a defesa interpõe recurso de uma decisão condenatória e a mesma vem a ser anulada, devem ser consideradas as implicações processuais, por via do princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP: trata-se de saber se na decisão a proferir na sequência dessa anulação, podem os arguidos vir a ser sancionados em pena mais severa do que aquela que lhes havia sido imposta.

11 – Considera-se que integra hoje o processo justo, o processo equitativo, marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, a estrutura acusatória do processo (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP).

12 – O princípio da acusação subjacente à estrutura acusatória do processo, impõe que os casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem necessariamente limitados os parâmetros da decisão, estabelecendo-se com o recurso, em tais casos, uma vinculação intraprocessual, no sentido de que fica futuramente condicionado intraprocessualmente o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido.

13 – Nesse caso, a decisão constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do tribunal ad quem e também, por isso mesmo, para obviar à reformatio in pejus indirecta, limite à jurisdição do tribunal de reenvio, nos casos de anulação ou de reenvio.

14 – O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente. 16

15 –A circunstância de a norma que contém a proibição da reformatio in pejus se situar no domínio dos recursos, só significa que esse problema só surge naquela formulação no âmbito dos recursos, o que não lhe retira carácter de princípio processual.

Decisão Texto Integral:

1.
O Tribunal Colectivo de Albufeira (Proc. n.º 121/99.0 TBABF – 2º Juízo) decidiu condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio do art. 131.º do C. Penal, na pena de 15 anos e 6 meses de prisão.
Inconformado recorreu o arguido para a Relação de Évora que, por acórdão de 23.1.2007 (proc. n.º 633/06), negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Recorre agora o arguido a este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo longamente na sua motivação:
I. O mesmo tribunal que condenou o arguido numa pena de prisão próxima dos máximos legais, em medida superior a anterior condenação, reconhece que as testemunhas em que funda a sua convicção mentem deliberadamente para o enganar.

II. É o tribunal que o afirma, não foi a defesa que o invocou, que essa mentira deliberada teve por único fito garantir a condenação do arguido. E com base nestes depoimentos reconhecidamente mentirosos, determinados pela sede de vingança; e com base nestas testemunhas que não têm pejo em mentir, que não hesitam em enganar o tribunal para garantirem a pesada condenação de uma pessoa que o tribunal funda uma decisão condenatória.

III. Este trabalho porfiado de construção de justificações para cada incongruência, para cada mentira destinou-se exclusivamente a servir dois objectivos – salvar os depoimentos que incriminavam o arguido garantindo a respectiva condenação e evitar a anulação do julgamento que aconteceria inevitavelmente se se considerasse provada a história que as testemunhas incriminatórias contam.

IV. E a decisão do Tribunal da Relação de que se recorre premiou este esforço de construção modular de justificações para mentiras e incongruências, levando até mais longe o raciocínio.

V. O tribunal superior, usando citação descontextualizada chega mesmo a concluir que a viúva nunca afirmou ter visto os tiros serem disparadas pelas e nas costas e, por isso, ao contrário do que a defesa afirma nunca mentiu.

VI. Esqueceu-se o acórdão ora recorrido que é o próprio tribunal que consigna a mentira e o motivo: “ Como tal, percebe-se que, ao contrário do que afirmou (para ter a certeza de que o tribunal assim decida) e muito embora tivesse percepcionado a forma como devem ter ocorrido os tiros iniciais por lhes ter visto a conclusão, a assistente estaria de costas para o local de onde se dispararam esses primeiros quatro tiros...”.

VII. Daí não se conformar quando o tribunal recorrido escreve que o tribunal de V Instância não teve qualquer hesitação quanto à valoração dos depoimentos, ou seja, não teve qualquer dúvida.

VIII. Mas, embora não o afirmando expressamente, o Tribunal de ia Instância, (contrariamente ao referido pelo acórdão ora recorrido), reconhecem também as enormes discrepâncias destes depoimentos em pormenores essenciais no confronto com os elementos objectivos dizendo mesmo na sequência que se cita: ‘No entanto, resultando claro que não viram os quatro primeiros tiros serem disparados”

IX. É que o Tribunal, agora o da Relação de Évora, (com a transcrição integral da prova gravada), não devia ignorar o relatório da autópsia e os preclaros esclarecimentos prestados pelo Ex.mo Perito em audiência que desmentem de forma categórica e veemente a versão da viúva dos tiros pelas costas; não podia ignorar o croquis de fls.34 e o depoimento do inspector da P3 que desmentem de forma categórica e veemente tiros pelas costas de surpresa e queda no local dos disparos, apontando disparos com a vítima em movimento de fuga e indícios de luta e queda em local diverso dos primeiros disparos.

X. Ou seja, em síntese, o Tribunal reconhece que nenhuma das três testemunhas em que faz fé pode ter visto serem desfechados os quatro primeiros tiros porque quem diz ter visto e quem conta o que lhe disseram ter sido visto localiza os tiros nas costas quando eles foram provadamente dados de frente, mas se as três testemunhas viram o arguido desfechar o quinto tiro então, dedução um, foi também ele que desfechou os quatro anteriores, dedução dois, as testemunhas dizem costas mas estavam elas de costas e só se voltaram no quinto tiro.

XI. Não podem, por isso, as testemunhas ter visto um disparo que não aconteceu nos termos em que o descrevem, donde mentiram também quanto a este último disparo.

XII. E a pedra angular em que o tribunal fundou todo o seu edifício dedutivo – o último tiro – esboroa-se à primeira verificação objectiva e faz desmoronar o edifício construído com afinco, capacidade inventiva e algum cuidado na sobrevalorização de pequenas e naturais imprecisões e na desvalorização de gritantes desconformidades.

X. A impossibilidade lógica supra apontada que redunda nestas e em muitas outras contradições insanáveis não é uma invenção da defesa é a consequência inevitável do depoimento das familiares da vítima.

XIV. O arguido recorrente enunciou expressamente, no requerimento de interposição de recurso, os meios de ataque à decisão deixando claro que pretendia interpor recurso da decisão sobre matéria de facto nos termos do art°412° n°3 do C.P.P.

XV. Na Motivação do recurso dedicou toda a parte II a esse recurso indicando nos termos do artigo 412.° n° 3 alínea a) do C.P.P. os Pontos de facto que o recorrente considerou incorrectamente julgados e indicando nos termos da respectiva aI. b) as provas que impunham decisão diversa da recorrida.

XVI. Indicou como factos incorrectamente considerados provados os constantes dos parágrafos 1° a 110 e o do 150

XVII. Indicou o leque de recursos probatórios à disposição do Tribunal a quo para o efeito de sustentar a convicção quanto à matéria de facto, nomeadamente, para além dos depoimentos e declarações, os elementos de prova constantes de fls. 14, 73 a 76, 33 e 34, 61, 100 a 118, 316, 680, CRC’s de fls. 200, 209 e 1269 dos autos; os autos de fls. 17, 135, 142, 154, 167 e fichas policiais de fls. 46 e 316 a 322 dos autos e a prova pericial de fls. 73 a 76 (autópsia), fls. 123 (balística), fls. 680 (documento) e 182 (exame directo); que não permitiam que o Tribunal a quo desse como assente a factualidade supra exposta.

XVIII. Indicou os factos que, de acordo com a prova por si considerada relevante (o relatório de autópsia, o relatório de exame dos projécteis e ainda o croquis de fls. 34), podiam e deviam ser dados como provados.

XIX. Sobre essas perto de 100 páginas do recurso (págs. 17 a 108), sobre esse recurso devidamente identificado e individualizado o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Évora pronunciou-se tão só no sentido constante a fls. 89 do douto acórdão recorrido.

XX. Tivesse o Tribunal da Relação, como lhe competia, analisado e fazendo um exame critico (por determinação do decidido pelo Supremo tribunal de Justiça) especificando cada um dos pontos de facto impugnados «e as provas indicadas pelo recorrente» e não concluiria com tanta facilidade pela desvalorização do “croquis” nesta matéria de certeza quanto à visualização pelas testemunhas do último tiro e não usaria da simplicidade argumentativa que usou para a sua desvalorização.

XX. É que nesse recurso sobre matéria de facto para além da invocação do “croquis” fez-se expresso apelo a um meio de prova que foi aqui, mais uma vez, ignorado pelo Tribunal da Relação – os esclarecimentos do perito médico-legal.

XXII. Assim, ao não conhecer criticamente do recurso de matéria de facto interposto pelo arguido recorrente, omitindo qualquer análise ou referência sobre os meios de prova invocados pelo recorrente, o Venerando Tribunal da Relação de Évora incorreu, mais uma vez, salvo o devido respeito por superior e melhor opinião, na nulidade de omissão de pronúncia prevista no art° 379° al. c) do C.P.P.

XXIII. Tal omissão de conhecimento do recurso de matéria de facto configura ainda uma clara inconstitucionalidade por violação do direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição salvaguardados pelo art° 32° n° 1 da C.R.P.

XXIV. Donde não tendo o acórdão recorrido apreciado o recurso na referida dimensão, imposta pela respectiva motivação, e ordenada pelo Supremo tribunal de Justiça, omitiu pronúncia sobre questões de que era obrigado a conhecer, razão porque entendemos que está ferido de nulidade, nos termos dos artigos 428.º n.º 1, 431.º, 425.º, n.º 4 e 379.º, n.º 1 al.c) do CPP.

XXV. Deve, em consequência, o julgamento realizado no Venerando Tribunal da Relação de Évora ser anulado, incluindo-se nessa decisão de anulação o respectivo acórdão.

XXVI. O tribunal de 1ª instância procurou explicar cada contradição, procurou justificar cada discrepância e quando confrontado com contradições insanáveis inventou explicações que chegam à imputação de mentira deliberada, adoptando um raciocínio modular invertido.

XXVII. Partiu da conclusão, que é só convicção, que as testemunhas estiveram no local e viram o arguido e tentou encaixar o que as testemunhas dizem ter visto no que provadamente aconteceu.

XXVIII. Como nada do que as testemunhas dizem ter visto aconteceu, o exame crítico da prova é apenas um exercício de justificação das desconformidades e não, como a lei impõe, uma apreciação dos meios de prova e da respectiva relevância.

XXIX. Por seu turno o tribunal da Relação seguiu o mesmo modelo, agora por referência ao recurso.

XXX. Socorrendo-se de excertos de depoimentos, numa análise limitada, como expressamente referiu no respectivo início, pelo texto da decisão recorrida, levou até mais longe que o tribunal de l instância o exercício de justificação.

XXXI. A viúva disse ter visto os tiros serem disparados pelas costas da vítima, é o próprio tribunal de 1.ª instância que o reconhece: Como tal, percebe-se que, ao contrário do que afirmou (para ter a certeza de que o tribunal assim decida) e muito embora tivesse percepcionado a forma como devem ter ocorrido os tiros iniciais por lhes ter visto a conclusão, a assistente esta ria de costas para o local de onde se dispararam esses primeiros quatro tiros... “

XXXII. O Tribunal da Relação, no exercício de justificação parcelada e segmentada que procura credibilizar o depoimento das testemunhas afirma surpreendentemente que “as testemunhas (as três), afirmaram ter visto o último dos tiros e quem o disparou, o que se afigura plausível, atendendo ao despertar da atenção na sequência do som dos quatro primeiros disparos. Sobre estes referem apenas que, na sua convicção, e seguramente pelo circunstancialismo que presenciaram, os primeiros tiros foram disparados pelas costas

XXXIII. E para sustentar esta afirmação quanto à viúva da vítima o Tribunal “a quo” utiliza o seguinte excerto das respectivas declarações: “E então, ele vinha a sair do monte, vinha a correr a sair do monte eu não vi...”

XXXIV. Mas como resulta claro da totalidade desse depoimento a testemunha com esta frase apenas quer significar que não viu chegar o agressor, sendo, no entanto peremptória quanto ao facto de ter visto os tiros a serem disparados nas e pelas costas do seu marido.

XXXV. Quer a decisão do tribunal “a quo”, quer a decisão de 1ª instância são um mero exercício de justificação das mentiras, são um conjunto de conjecturas e suposições, são um conjunto de explicações frágeis para as desconformidades evidentes.

XXXVI. Face a tais óbvias e incontornáveis contradições a decisão recorrida e a da 1.ª instância mais não podiam que inventar justificações, desculpas e argumentos de que é paradigmática a tentativa de desvalorização do croqui de fls. 34.

XXXVII. Deste elemento probatório, elaborado no local, logo após a prática dos factos decorrem dois factos iniludivelmente provados:

a) A tenda do BB não estava montada no local da discussão como teria de estar se o motivo da discussão fosse a ocupação do lugar indevidamente.

b)Mais importante, o percurso marcado no chão pela queda dos invólucros, o rasto de sangue e a poça que indica o local da queda exangue, demonstram, sem margem para dúvidas, que entre o local dos primeiros disparos e o local onde a vítima cai definitivamente existe uma distância de alguns metros denunciando um movimento de fuga. Movimento esse, aliás, compatível com os esclarecimentos prestados pelo Perito Médico que refere que a trajectória das balas sugere tiros com a vítima em movimento.

XXXVIII. Não existindo justificação possível para que testemunhas presenciais não tenham registado esse movimento de fuga, não existindo nenhuma desculpa aceitável para que testemunhas presenciais afirmem que a vítima caiu à sua frente, não tendo ela caído; sendo este momento imediatamente anterior ao último disparo que sustenta toda a tese da condenação, só resta a quem defende esta tese a fuga para a frente, o croqui está errado é a conclusão!

XXXIX. É que aqui a mentira não tem salvação – ou as testemunhas não viram a fuga e portanto nem o último tiro viram e não pode haver condenação mesmo seguindo o método dedutivo, ou não houve fuga e o croquis não reflecte nenhuma realidade verdadeira.

XL. Decorrente do que consta na fundamentação do acórdão de 1.ª Instância, dúvida não podia haver para o tribunal ora recorrido, que, perante duas hipóteses possíveis na valoração do depoimento das testemunhas (que confessadamente para o tribunal mentiram), pois as testemunhas da família da infeliz vitima, garantiram ao tribunal que viram o arguido a efectuar todos os disparos, com “tiros nas costas” à excepção do último, ou, limitaram-se a inventar o que alegadamente se passou, o tribunal optou, na sua convicção, pela primeira, escudado na reconstituição do crime com depoimentos “deliberadamente para enganar o tribunal e garantir uma condenação”.

XLI. Ora decorre, pelo menos implicitamente, do texto da decisão recorrida, que o tribunal ao optar por um meio de prova de duvidoso valor, o tribunal “a quo” e agora o tribunal recorrido violou, quanto a este ponto, o “in dubio pro reo”, pois valorou-o em prejuízo do recorrente.

XLII. Também por aqui estamos em presença de um erro notório na apreciação da prova (art. 410.º n.º 2 al. c) do CPP), pois há uma evidente discrepância entre os factos provados o tribunal a quo deu como provado o facto constante do 2° parágrafo dos factos provados e a respectiva fundamentação sem qualquer suporte probatório como se admite no próprio texto da decisão recorrida!

XLIII. Sendo, porém, assim, a conjugação factual de que dá conta a fundamentação, não permite, salvo melhor e superior opinião, segundo as regras da experiência, uma conclusão sobre a prova para alem de toda a dúvida razoável, do e facto imputado ao recorrente.

XLIV. Não temos dúvidas de que a decisão do Venerando Tribunal da Relação violou clara e frontalmente o princípio “in dubio pro reo” incorrendo, por isso, em erro notório na apreciação da matéria de facto, devendo, em consequência tal decisão ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido ou determine a anulação do julgamento e a sua repetição nos termos do art° 426° do C.P.P.

XLV. Além disso, o Tribunal de 1.ª instância afirma que a vítima estava a discutir com o irmão do arguido no local onde se deu a discussão.

XLVI. Ora, o sítio onde se inicia a discussão é distante do local onde as testemunhas se encontravam a jogar às cartas tal como resulta do croqui de fls. 34 e das fotografias de fls. 100 e seguintes dos autos.

XLVII. Assim, não sendo conhecido no irmão do arguido o dom da ubiquidade sempre se dirá que é impossível que este se encontrasse em dois lugares ao mesmo tempo.

XLVIII. Trata-se assim de contradição insanável da fundamentação, grave, porquanto, para o Tribunal de ia instância, o suposto motivo da contenda terá sido uma discussão entre o irmão do arguido e a vítima, a qual sempre seria impossível se António Domingos estivesse – como o mesmo referiu – a jogar às cartas com outras duas testemunhas – que também o confirmaram – em local distinto daquele onde se iniciou a discussão

XLIX. Quanto a esta contradição o Venerando Tribunal da Relação em frase curta e seca, sem fundamentação, afasta-a dizendo que a referência ao irmão do arguido nas duas situações se reporta a momentos diferentes.

L. Nem o Tribunal de ia instância na sua decisão produz tal afirmação, nem do respectivo texto se pode retirar tal conclusão, tudo conforme se motivou e para aí integralmente se remete.

LI. Ou seja, o tribunal de 1.ª instância aceita que o irmão do arguido que designa de BB estaria a jogar ás cartas no momento da agressão, contesta apenas o facto de se pretender que estariam três e não quatro pessoas nesse jogo, nesse momento, afirmando mesmo esse tribunal que o mais provável era estarem quatro, nestes se incluindo um tal CC, que, assim, por estar a jogar ás cartas não poderia ser o agressor.

LII. Como se pode compaginar estas afirmações – jogavam 4 ás cartas, sendo que o quarto porque jogava ás cartas não podia estar no local da agressão – com a presença de um dos quatro (BB) na discussão.

LIII. Colocando o Tribunal o BB na discussão afinal sempre jogavam apenas três ás cartas e afinal a quarta cadeira não podia revelar o que o tribunal dela adivinhou.

LIV. Este raciocínio apenas prova que não se pode julgar com base em suposições e que não se pode decidir inventando soluções aparentemente lógicas, como resolver a ubiquidade estabelecendo distinções temporais.

LV. A contradição existe, refere-se a aspecto essencial e resulta de um julgamento marcado por um afã condenatório que tudo sacrifica à demonstração de uma tese – o culpado é o arguido e não o indicado CC.

LVI. A consequência, na nossa modesta opinião, só pode ser a anulação da decisão da 2ª Instância e a prolacção de uma decisão que conheça da contradição e, eventualmente, nessa parte determine a anulação do julgamento.

LVII. Estamos assim perante outra gravíssima Contradição Insanável da Fundamentação, porquanto, se do texto da decisão recorrida resulta que o último tiro nunca foi disparado a menos de 15 ou 20 cm da vítima, nunca a decisão recorrida poderia referir, admitir e aceitar que estas três testemunhas, assistente, filha e cunhada, viram sem dúvidas o arguido a infligir este último tiro à vítima quando as mesmas referem, e resulta também do texto da decisão recorrida, que quando se deu este último desfecho a arma estava encostada à cara.

LVIII. O Tribunal da Relação nesta parte e quanto a esta contradição desvaloriza a prova pericial, afasta convenientemente a arma da cara (afirma que é natural a descrição sem exactidão, usando mesmo este argumento para reforçar a credibilidade do depoimento) e usa a indubitável certeza pericial (a menos de um palmo de certeza que não foi) para voltar a valorar a dúvida contra o arguido.

LIX. Um palmo pode ser perto, não é seguramente encostado e mesmo só do texto da decisão recorrida (as transcrições são absolutamente claras nos gestos descritos) se retira que não foi perto que se localizou a arma, foi encostada, foi com o cabelo puxado e seguro por uma mão e a arma enfiada na cara com a outra.

LX. Nada pode ser mais obviamente contraditório com um exame pericial que revela não existirem sinais de desfecho a curta distância (não é sequer médico-legalmente a inexistência de sinais de desfecho à queima roupa, é mesmo sinais de desfecho a curta distância que pode médico-legalmente situar-se nos 75 cms, tudo conforme se motivou e para aí se remete para total compreensão.

LXI. E também aqui na valoração da prova a dúvida sobre a distância devia ter sido valorada em benefício do arguido e não contra ele – as testemunhas dizem encostado, o tiro não foi encostado, no mínimo subsiste a dúvida sobre se as testemunhas viram, então, o último tiro e assim, na dúvida a conclusão só pode ser não viram.

LXII. Além disso, a fundamentação agora operada pela Veneranda Relação, de desvalorizar o croquis, designadamente a localização do corpo da infeliz vitima, o local dos invólucros encontrados, a imobilidade do “atirador” e da vítima, já para não falar dos vestígios de sangue e da localização das tendas, é inconciliável e contraditória, com o facto dado como provado no parágrafo terceiro?!... A vítima recuou uns metros e o arguido ia atrás dele e lhe dava tiros.

LXIII. Tanto mais que quando se debruça (sem se referir aos meios de prova invocados pelo recorrente como supra se alegou), sobre a impugnação da matéria de facto (cfr. fls.,89 e 90 do acórdão recorrido), fundamenta que o último tiro aconteceu quando «arguido e a vitima já não se encontravam em movimento - nosso sublinhado -

LXIV. Por todo o exposto existe uma clara e notória contradição insanável da fundamentação e até entre esta e a decisão sobre a matéria de facto, porquanto existe uma dicotomia insanável entre as várias fundamentações que urge ser corrigida, mormente através de novo julgamento, declarando-se por esta via o vicio previsto no artigo 410° n° 2 al.b) do CPP.

LXV. Também se vislumbra um erro notório na apreciação da prova quando o tribunal conclui que os tiros foram todos deflagrados «da mesma arma» quando os factos provados tão só referem que foram «de uma mesma arma de calibre 7,65mm, tipo pistola semi-automática».

LXVI. Por tudo o que acima se disse o acórdão ora recorrido incorreu no vício previsto (Art. 410.º, n.º 2 alínea b) do C.P.P.)

LXVII. Ora, como supra se motivou, o acórdão recorrido na senda do tribunal de 1ª Instância, salvo o devido respeito, fez uma errada apreciação da prova, envolvendo processos dedutivos com o fim de condenar o arguido e sempre a coberto do disposto no art. 127° do C.P.P.

LXVIII. Ora, esta interpretação que o Tribunal a quo faz do normativo inserto no art. 127° do C.P.P., da qual decorre que o Tribunal a quo entende que, o princípio da livre apreciação da prova lhe permite formar a convicção mediante processos mentais constituídos por raciocínios dedutivos e presunções de culpa é claramente inconstitucional porque viola o disposto no art. 32° n° 2 da C.R.P.

LXIX. Por fim e sempre sem prescindir, deparamo-nos com a pena de 15 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo acórdão recorrido, pelo crime previsto pelo art. 131° do Código Penal, muito próxima do seu máximo legal.

LXX. Recorde-se que o arguido é primário pelo que mal se compreende o argumento esgrimido pelo Tribunal de ia Instância, de que “... pese embora o arguido não tenha passado criminal por factos da mesma natureza documentado pelas autoridades portuguesas, o facto é que a disposição humana que envolve a capacidade para matar um outro ser humano, com essa intenção, implica necessariamente a conclusão de que deve o Tribunal ter em especial conta as necessidades de prevenção especial”e agora pelo tribunal recorrido de que: “é elevada a ilicitude dos factos praticados com a violação do bem jurídico supremo – a vida (..)

LXXI. Certo é que essa elevada ilicitude já está prevista na moldura penal, pelo que não poderia ser duplamente penalizado.

LXXII. O tribunal não valorou, além da ausência de antecedentes criminais (que com a sua idade já é relevante), já ter decorrido mais de 7 anos sobre a prática dos factos, mantendo o recorrente boa conduta.

LXXIII. Ora salvo o devido respeito, que aliás, é muito por opinião superior, “cabe à prevenção especial encontrar o “quantum” exacto da pena, dentro dessa função, que melhor sirva as exigências da socialização” (cfr. Ac. do STJ de 18 de Abril de 1996; Acs. Do ST3, IV, tomo 2, 173). – nosso sublinhado – e uma pena de 15 anos e 6 meses de prisão seguramente não satisfaz as ditas exigências de socialização.

LXXIV. Pelo que se re a V.Exas. se dignem reduzir-lhe a pena a que foi condenado para mais perto do seu mínimo legal

LXXV. Além disso, o acórdão recorrido ao não reduzir a pena de prisão a que o recorrente foi condenado, violou, também, talqualmente o fez o tribunal de 1.ª Instância, o artigo 409° do CPP.

LXXVI. Na verdade, estamos a falar de um 2° julgamento, em que a repetição foi originada por recurso interposto pelo arguido, em que no primeiro julgamento face aos mesmos factos, pelos quais foi “novamente” condenado o arguido fora condenado a 14 anos de prisão.

LXXVII. Ou seja, o tribunal da Relação de Évora, em sede de medida da pena, foi indiferente ao facto de o arguido ter sido prejudicado com a repetição do julgamento que só ele deu causa, pois não fora o facto de ter (em exclusivo), interposto recurso e a sua pena teria sido de 14 anos de prisão e não 15 anos e 6 meses de prisão!

LXXVIII. O certo é que independentemente de propugnarmos pela sua inocência, não é menos certo que, em sede de medida da pena, o tribunal ora recorrido, não valorou convenientemente os factores atenuativos da mesma, nem o limite da pena a que devia estar vinculado intraprocessualmente, com suporte no princípio reformatio in pejus, (art. 409° do CPP), sob pena de interpretá-lo inconstitucionalmente por violação do artº 32° n° 1 e 5 da CRP.

LXX Pelo que, o aliás, douto acórdão recorrido, ao manter a pena nos 15 e 6 meses de prisão, violou também os artigos 40.º, n° 2 e 71° do Código penal e artigo 409° do CPP.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, nos termos acima indicados, revogando-se o acórdão recorrido no mais absolvendo-se o arguido, e no menos reduzindo-se substancialmente a pena a que foi condenado

Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pronunciando-se pelo improvimento do recurso.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça em 12.6.2007, teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos, teve lugar a audiência. Nela, o Ministério Público salientou que o recorrente continua a impugnar a matéria de facto fixada pelas instâncias, mas não há omissão de pronúncia sobre tal matéria, como não existem os vícios da matéria de facto que aquele imputa à decisão recorida, cujo exame já não cabe sequer a este Tribunal. Como se não verifica violação do princípio in dubio pro reo, nem no uso das presunções judiciais, permitido na determinação da matéria de facto. Sustentou ainda o Ministério Público que foi violada a proibição da reformatio in pejus, quando no segundo julgamento, depois de anulado o primeiro a recurso exclusivo da defesa, foi infligida uma pena superior à aplicada anteriormente, o que significa que o horizonte se fica por 14 anos de prisão, sendo certo que o crime em causa fica, pela sua gravidade, na fronteira do homicídio qualificado. A defesa manteve a sua motivação.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo.

O recorrente suscita na sua motivação, as seguintes questões:

— Julgamento da matéria de facto (omissão de pronuncia em relação ao recurso da matéria de facto, erro notório na apreciação da prova, contradição insanável da fundamentação, insuficiência da matéria de facto provada, violação do princípio in dubio pro reo e interpretação inconstitucional do art. 127° do CPP);

— Medida da pena e violação do princípio da proibição da reformatio in pejus;

Mas, antes de entrar na sua apreciação, vejamos a factualidade apurada pelas instâncias.

É ela a seguinte:

Factos provados.
No dia 14.04.97, pelas 16 horas, no recinto do mercado da Orada – Albufeira, gerou-se uma discussão entre duas famílias de etnia cigana – a família do arguido e a família do falecido A...J...B...do N... –, por causa da disputa de lugares para instalação das tendas de venda, mas cujo teor concreto se não apurou.
No auge da discussão, o arguido aproximou-se de A...J...B...do N..., sem que este o visse, e com uma pistola de calibre 7,65 mm que tinha consigo, disparou quatro tiros, atingindo-o com 2 tiros no tórax, 1 tiro no abdómen e 1 tiro no braço esquerdo (conforme relatório de autópsia de fls. 73 a 76, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido).
A...J...B...do N..., que conseguiu recuar uns metros em direcção à vedação do local enquanto o arguido ia atrás dele e lhe dava os tiros, caiu desfalecido após ter sido atingido com o quarto tiro.
Nesse momento, o arguido aproximou-se mais e deu-lhe um quinto tiro no lábio superior, a uma distância não inferior a 15 ou 20 centímetros.
Dessa forma, o arguido causou a A...J...B...do N... perfuração craniana com laceração do cérebro e perfurações tóraxicas e de vasos pelos projécteis disparados da pistola.
Essas lesões foram causa directa e necessária da morte de A...J...B...do N... que, apesar de prontamente socorrido e transportado para o Centro de Saúde de Albufeira, ali chegou sem vida pelas 16h20m.
Imediatamente após os factos, o arguido abandonou o local, pondo-se em fuga, seguido pelos seus familiares, deixando duas das respectivas tendas montadas e alguns dos seus haveres (roupas estendidas, mesas e cadeiras, fogões de campanha ou caixas de sapatos).
A...F...da S... (primo do arguido), que se encontrava nas imediações, junto à tenda do irmão do arguido A...D...G...da S... (BB) foi atingido por um projéctil, ferindo-o na zona renal direita, no momento em que o arguido efectuou os quatro disparos iniciais que atingiram A...J...B...do N....
O arguido, ao disparar aqueles tiros contra A...J...B...do N... da forma como o fez, e atentas as partes do corpo que lhe atingiu, teve a intenção de lhe tirar a vida e a preocupação de não falhar na execução desse desígnio.
O arguido agiu com vontade livremente determinada, sabendo que os seus actos eram proibidos e puníveis por lei.
No local onde ocorreram os factos foram recolhidos os cinco invólucros das munições utilizadas pelo arguido, os quais foram submetidos a exame no Laboratório de Polícia Científica (LPC), e se revelaram ser de uma mesma arma de calibre 7,65 mm, tipo pistola semi-automática desse mesmo calibre.
Mais se provou,
Que o arguido é vendedor ambulante há vários anos, vivendo com a mulher e cinco filhos, os quais sustenta.
As pessoas que com ele lidam dizem-no pessoa de palavra, honesta e trabalhadora.
Não tem antecedentes criminais.
Que a família do arguido é conhecida no meio cigano como a família Russo, por via de seu pai, e que seu irmão A...D...G...da S... sempre foi conhecido como BB nesse meio, sendo o arguido tratado também ali por R....
Que a família do arguido é da zona de Beja, de onde também é a família da assistente.
Que a família do arguido era auxiliada nas actividades dos mercados por um indivíduo, falecido entretanto, de nome A...D...G...da S...dos R...A... (de alcunha Roque, entretanto casado), de etnia cigana e que trabalhava para o irmão do arguido, A...D...G...da S... ou BB, não possuindo tenda própria.
Que, na sequência da investigação levada a cabo nos autos, esse indivíduo foi localizado em Ourique, conduzindo a carrinha de A...F...da S....
O arguido não confessou os factos em julgamento.
Factos não provados:
Que o arguido tenha desferido um tiro que entrou pelo crânio da vítima.
Que o arguido não tenha disparado sobre a vítima, sobre o seu corpo, atingindo-o, na data referida acima e não lhe tenha provocado as lesões descritas no relatório de autópsia.
Que o arguido nem sequer estivesse, na altura dos disparos, no recinto do mercado da Orada, onde os factos ocorreram.
Que o arguido não tenha utilizado, para disparar, uma arma de fogo, bem como os invólucros da mesma deflagrados tal como se descreve na acusação.
Que a discussão travada entre a vítima e A...D...G...da S... (BB), por causa do lugar na feira, se tivesse alastrado às respectivas mulheres, ou não.

2.2.1.

Julgamento da matéria de facto

Começa o recorrente por sustentar que foi omitida pronúncia em relação ao recurso da matéria de facto.

Importa lembrar que este Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 29.11.2006, anulara anterior acórdão da Relação, proferido em recurso da decisão condenatória da 1.ª Instância, nos termos seguintes:

«(A Relação) não elencou nem apreciou a questão da impugnação da decisão da matéria de facto nos termos do artigo 412. °, n.° 3, do Código de Processo Penal

É certo que discorreu de algum modo sobre a apreciação de parte da prova, designadamente a fls. 1928 a 1935. Mas fê-lo no âmbito da questão do erro notório na apreciação da prova, sem analisar em toda a sua extensão a impugnação da decisão da matéria de facto constante de fls. 1399a 1491.

A apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto nos termos daquele preceito exige que a instância de recurso aborde especificadamente cada um dos pontos de facto impugnados e as provas indicadas pelo recorrente, para concluir pela manutenção ou alteração do decidido.

Independentemente de saber se o recorrente teria dado cumprimento rigoroso à forma de impugnação constante desse preceito, matéria que escapa aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal, o certo é que a Relação de Évora não se pronunciou sobre essa impugnação na forma que lhe era exigida.

E se, por hipótese, entendeu que não era de conhecer de tal impugnação por a mesma não ter sido devidamente caracterizada nas conclusões, impunha-se que formulasse ao recorrente o convite para corrigir esse segmento da motivação (acórdãos do Tribunal Constitucional de 31 de Outubro de 2003, proc. n.° 667/03, e deste Supremo Tribunal de 17-02- 2005, proc. n.° 4716/04, e de de 1 6-06-2005, proc. n.° 15 77/05).

A impugnação da decisão da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, constitui a forma por excelência do segundo grau de jurisdição em matéria de facto, que obriga a instância de recurso a proceder à reapreciação da prova, no âmbito da impugnação, sem o que o direito a esse grau de jurisdição ficará praticamente inutilizado. Isto, como é evidente, no caso de a impugnação ter sido efectuada na forma legal.

Houve deste modo omissão de pronúncia, que constitui nulidade, nos termos do artigo 379. n.° 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

O acórdão recorrido terá, consequentemente, de ser anulado para suprimento dessa nulidade.

E assim sendo, está prejudicado o conhecimento da demais questões suscitadas no recurso.

IV. Nestes termos, julgam provido o recurso, anulando o acórdão recorrido, devendo ser proferido novo acórdão, se possível pelos mesmos Juízes Desembargadores.»

Depois de transcrever parte do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, a Relação elencou as questões suscitadas pelo recorrente, aditando-lhe em último lugar (9.º): «Questão da impugnação da decisão da matéria de facto nos termos do artigo 412.°, n.° 3, do Código de Processo Penal» e conheceu efectivamente dessa questão, por essa ordem, ou seja já depois das questões do erro notório de apreciação da prova, contradição insanável da fundamentação e desta com a decisão, insuficiência da fundamentação, o que equivale a falta de fundamentação, traduzindo-se numa nulidade (art. 379.º n° 1 al. a)), excesso de pronúncia, violação do princípio da presunção de inocência, violação do princípio in dubio pro reo, violação do disposto no art. 71. ° do C. Penal, e violação também do princípio da proporcionalidade.

A metodologia correcta, em circunstâncias tais, deveria ter sido diversa, se se tivesse atentado mais no teor, acima transcrito, do anterior acórdão deste Tribunal.

Como aí se escreveu, «a impugnação da decisão da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, constitui a forma por excelência do segundo grau de jurisdição em matéria de facto, que obriga a instância de recurso a proceder à reapreciação da prova, no âmbito da impugnação, sem o que o direito a esse grau de jurisdição ficará praticamente inutilizado. Isto, como é evidente, no caso de a impugnação ter sido efectuada na forma legal

Estando documentada a prova, o recurso para a Relação, no que respeita à decisão de facto pode revestir-se de uma maior amplitude: nos termos do art. 412.º, n.º 3 do CPP; ou ficar-se pela sindicância dos vícios elencados nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 410.º, caso em que o reexame está limitado ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras de experiência.

Ora, impõem razões de método que se comece pelo reexame de mais largo espectro, para que se não tenha eventualmente de entrar na análise mais limitada, o que só sucederá na falência daquele reexame. No caso, dever-se-ia ter começado a análise da crítica de facto efectuada pela Relação, pela impugnação alargada da matéria de facto provada, só depois se entrando, se fosse o caso, nas restantes questões respeitantes à decisão sobre o facto.

Não foi este o caminho seguido pela Relação na decisão recorrida, o que não significa que se não deva atender, na apreciação feita por aquele Tribunal Superior da 9.ª questão: impugnação alargada da matéria de facto provada, à parte da decisão recorrida em que são apreciadas as restantes questões que respeitam ao facto. Aliás, a decisão em análise (pág. 91 do acórdão e fls. 2238 dos autos) remete expressamente para as considerações dilatadas que produzira anteriormente, a propósito dos vícios da matéria de facto.

E, na apreciação daqueles vícios, espraia-se o acórdão recorrido na análise dos depoimentos prestados em audiência, aliás, levados na maior parte à fundamentação da convicção do Tribunal de 1.ª Instância (fls. 2183 a 2226).

Com efeito, depois de transcrever aquela fundamentação (fls. 2185 a 2214), entra na apreciação da eventual existência de erro notório na apreciação da prova, a ela aderindo fundamentadamente (fls. 2214 a 2223) e, depois de se referir ao princípio da livre apreciação da prova, do art. 127.º do CPP, transcreve e pondera o conteúdo de diversos depoimentos, designadamente de M... B..., M...A..., J... G... e A...D...G...da S... (fls. 2217, 2218, 2220, 2221, 2222 e 2223). Aprecia, de seguida, a existência de contradição insanável (fls. 2223 e 2224) e a insuficiência da fundamentação (fls. 2224 a 2226).

Veio, a decisão recorrida, a ocupar-se, finalmente, da impugnação alargada da decisão da matéria de facto (fls. 2234 a 2238), analisando os pontos de facto tidos pelo recorrente como incorrectamente julgados, a partir da impugnação deduzida por aquele, ou seja, dos meios de prova que aquele considerou imporem resposta diferente.

Ou seja, ponderou a impugnação, nos termos em que foi deduzida, e aderiu ao entendimento da 1.ª Instância sobre a questão de facto, também nos pontos controvertidos, explicando a razão da sua decisão e do afastamento do valor atribuído pelo recorrente aos meios de prova que este teve por decisivos. E teve então também presentes, para elas remetendo, como se viu, as considerações que haviam sido feitas a propósito dos vícios do n.º 2 do art. 410.º, e onde haviam sido referidos com algum detalhe os depoimentos prestados e a que a 1.ª Instância havia atendido.

E termina o Tribunal Recorrido a sua apreciação, nos termos seguintes:

«Conclui-se que o acórdão recorrido fez rigorosa apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento, não ocorrendo os assacados vícios, pelo que não justificava a crítica que com a sua impugnação o recorrente lhe dirige.»

Temos assim que a Relação de Évora emitiu pronúncia sobre a impugnação alargada da matéria de facto aduzida pelo recorrente.

Não pode, pois, dizer-se que o acórdão recorrido sofre da nulidade de omissão de pronúncia, por ter deixado de se pronunciar sobre questão de que devia conhecer [art.ºs 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.º 4 do CPP].

2.2.2.

Sustenta, depois, o recorrente que a decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, de contradição insanável da fundamentação e de insuficiência da matéria de facto provada.

Importa começar por estabelecer os poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, notando que a Relação de Évora se debruçou sobre a impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente, apreciando com o detalhe indicado as críticas formuladas à forma como a 1.ª Instância estabelecera os factos provados, afirmando também a inexistência dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP

A impugnação intentada, em sede de matéria de facto, pelo recorrente não cabe nos poderes de cognição deste Tribunal.

Como se escreve no Ac. de 8/2/2007 (proc. n.º 159/07-5, com o mesmo relator), tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, a uma só voz, que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação. Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação.

Em relação às decisões na al. d) do art. 432.º o âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal é fixado na própria alínea e não no art. 434.º do CPP, o que significa, que, mesmo relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito.

Com efeito, e como este Tribunal tem insistentemente proclamado, em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação» (art. 427.º do CPP). E só excepcionalmente – em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» – é que é possível recorrer directamente para o STJ (art.ºs 432.º, d), e 434.º).

Ora, como resulta do exposto, o presente recurso – proveniente da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo) – visa, nos pontos em causa, fundamentalmente, o reexame de matéria de facto e não exclusivamente, o reexame da matéria de direito [art. 432.º, al. d) do CPP) que, no caso do Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação, se chamada a intervir) dos factos provados.

E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recurso que lhe foi dirigido – confirmou-os num exame alargado que, compreendendo os vícios do n.º 2 do art. 410.º, foi mais além.

De resto, a revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do PP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do CPP de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).

Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei n.º 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).

Hoje, como já se disse, pretendendo-se impugnar um acórdão final do tribunal colectivo:

– se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça;

– ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação , caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º).

Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.

O que significa que está fora do âmbito legal do actual recurso a reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da matéria de facto, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação.

2.2.3.

Sustenta também o recorrente que foi violado o princípio in dubio pro reo.

Escreve-se, a propósito, na decisão recorrida:

«6 Violação do princípio “in dubio pro reo”.

Quanto à pretensa violação do princípio “in dubio pro reo”, dir-se-á, em síntese que, o que resulta do princípio citado é que, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

Ora, no acórdão revidendo, não decorre dúvida, nem da matéria de facto dada como provada, nem da sua fundamentação. O Tribunal “a quo” não teve qualquer hesitação quanto à valoração dos depoimentos, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão a prática do ilícito cometido pelo Recorrente, ou seja, não teve qualquer dúvida. O Tribunal retirou directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio.».

Ora o recorrente não impugnou esta decisão da Relação, ou seja, não a contrariou afirmando e demonstrando que o Tribunal ficara na dúvida e mesmo assim decidira contra si (o arguido).

Antes veio dizer que, «decorrente do que consta na fundamentação do acórdão de 1.ª Instância, dúvida não podia haver para o tribunal ora recorrido, que, perante duas hipóteses possíveis na valoração do depoimento das testemunhas (que confessadamente para o tribunal mentiram), pois as testemunhas da família da infeliz vitima, garantiram ao tribunal que viram o arguido a efectuar todos os disparos, com “tiros nas costas” à excepção do último, ou, limitaram-se a inventar o que alegadamente se passou, o tribunal optou, na sua convicção, pela primeira, escudado na reconstituição do crime com depoimentos “deliberadamente para enganar o tribunal e garantir uma condenação”» (conclusão XL) e que «decorre, pelo menos implicitamente, do texto da decisão recorrida, que o tribunal ao optar por um meio de prova de duvidoso valor, o tribunal “a quo” e agora o tribunal recorrido violou, quanto a este ponto, o “in dubio pro reo”, pois valorou-o em prejuízo do recorrente» (conclusão XLI).

Mas, diferentemente do que entende o recorrente, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.

Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – AcSTJ de 24-3-99, CJ-STJ 1, 247."

Ou seja, o que se pretendeu dizer, e se disse claramente, na decisão recorrida é que no caso se não postula qualquer dúvida que imponha a intervenção do princípio in dubio pro reo.

A decisão recorrida situa-se dentro da melhor doutrina e jurisprudência sobre o mencionado princípio.

Tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça, só para citar os acórdãos mais recentes do mesmo Relator:

– O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 19/10/2000, proc. n.ºs 2728/00-5 e 1552/01-5)

– O princípio in dubio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena. (Ac. de 28/06/2001, proc. n.º 1568/01-5 e Ac. de 14/11/2002, proc. n.º 3316/02-5)

– (1) Não resultando da decisão recorrida que o Tribunal recorrido ficou na dúvida quanto aos elementos que permitiram estabelecer a culpabilidade dos recorrentes, e que nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos, não pode o STJ sindicar o uso feito do princípio in dubio pro reo. (2) Com efeito, não está então em causa uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista, pelo que resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista. (3) As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 08/11/2001, proc. n.º 1924/01-5)

– (9) Se não resulta da decisão recorrida que o Tribunal recorrido ficou na dúvida quanto aos elementos que permitiram estabelecer a culpabilidade dos recorrentes, e que nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos, não pode o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso feito do princípio in dubio pro reo, por não estar em causa, então, uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista. (10) Saber se, face a determinados factos provados e não provados, deveria o Tribunal da 1.ª Instância ter ficado na dúvida quanto à existência de determinado elemento, constitui matéria de facto que escapa aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. (11) As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (12) Não resultando da decisão recorrida que o Tribunal recorrido ficou na dúvida quanto aos elementos que permitiram estabelecer a culpabilidade dos recorrentes, e que nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos, não pode o STJ sindicar o uso feito do princípio in dubio pro reo. (13) - Com efeito, não está então em causa uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista, pelo que resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista. (14) - As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 24/01/2002, proc. n.º 3036/01)

– (3) O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova que escapa ao poder de censura do STJ. (4) - Saber se um Tribunal de instância deveria ter ficado na dúvida sobre determinados factos é uma questão de facto que escapa igualmente aos poderes de cognição do STJ. (Ac. de 02/05/2002, proc. n.º 599/02-5)

– (1) - O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (2) - Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista. (3) - As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (4) - O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. (5) - O recurso às presunções naturais não viola o princípio in dubio pro reo. Elas cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto, pelo que aquele princípio constitui o limite àquele recurso. (AcSTJ de 21/10/2004, proc. n.º 3247/04-5, no mesmo sentido da 1.ª proposição, os Acs. de 23/01/2003, proc. n.º 4627/02-5 e de 25/05/2006, proc. n.º 1389/06-5).

Donde se vê também que, saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto, mas que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.

2.2.4.

Daqui deriva igualmente a sem razão do recorrente quanto à questão da prova por presunção judicial e que acaba por apresentar como uma interpretação inconstitucional do art. 127.º do CPP.

Como se vê da jurisprudência citada, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que as instâncias podem tirar conclusões ou ilações da matéria de facto directamente provada e que são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.

O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.

Por isso que, em sede de apreciação, a prova testemunhal não dispensa um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.

Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do CPP).

Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa, pois o recorrente fala em presunções de culpa, temática diversa, mas dispensa-se, em absoluto, de demonstrar que tal está presente no caso sujeito) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.

As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.).

O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas.

O que afasta o argumento invocado pelo recorrente, invocado mas não desenvolvido (cfr. conclusões LXVII e LXVIII) para a pretendida violação da Constituição.

Temos, assim, que a matéria de facto estabelecida pelas instâncias e na qual não detecta este Supremo Tribunal de Justiça oficiosamente qualquer vício, se mostra assente.

2.3.

Medida da pena e violação do princípio da proibição da reformatio in pejus.

Ao impugnar a medida da pena mantida pelas Instâncias, refere-se o recorrente a uma violação do disposto no art. 409.º do CPP, trazendo à colação a circunstância de ter sido inicialmente condenado, no âmbito deste processo, na pena de 14 anos de prisão e ter vindo a ser condenado, em segundo acórdão motivado por exclusivo recurso da defesa, na pena actual de 15 anos e 6 meses de prisão (conclusões LXXV a LXX)

No texto da motivação cita em defesa da sua posição o AcSTJ de 2.3.2006 (proc. n.º 550/06-5, com o mesmo Relator).

É o seguinte o seu sumário (elaborado pelo Relator):

«(1) - Quando só a defesa interpõe recurso de uma decisão condenatória e a mesma vem a ser anulada, devem ser consideradas as implicações processuais, por via do princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP: trata-se de saber se na decisão a proferir na sequência dessa anulação, podem os arguidos vir a ser sancionados em pena mais severa do que aquela que lhes havia sido imposta. (2) - Considera-se que integra hoje o processo justo, o processo equitativo, marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, a estrutura acusatória do processo (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP). (3) - O princípio da acusação subjacente à estrutura acusatória do processo, impõe que os casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem necessariamente limitados os parâmetros da decisão, estabelecendo-se com o recurso, em tais casos, uma vinculação intraprocessual, no sentido de que fica futuramente condicionado intraprocessualmente o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido. (4) - Nesse caso, a decisão constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do tribunal ad quem e também, por isso mesmo, para obviar à reformatio in pejus indirecta, limite à jurisdição do tribunal de reenvio, nos casos de anulação ou de reenvio. (5) - O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente. (6) - A circunstância de a norma que contém a proibição da reformatio in pejus se situar no domínio dos recursos, só significa que esse problema só surge naquela formulação no âmbito dos recursos, o que não lhe retira carácter de princípio processual.»

Efectivamente, a questão colocada pelo recorrente, e que cobra toda a razão de ser, tem vindo a ser equacionada, nem sempre no mesmo sentido do acórdão que antecede, e foi recentemente objecto da pronúncia do Tribunal Constitucional.

Trata-se aqui, e dado que só a defesa recorrera da decisão condenatória, de considerar as implicações processuais, por via do princípio da proibição da reformatio in pejus consagrado no art. 409.º do CPP.

Trata-se da questão de saber se, anulada uma decisão em recurso da defesa, na decisão a proferir na sequência da anulação pode o arguido ser condenados em pena mais severa do que aquela que lhe havia sido aplicada, antes da anulação.

Como se disse, este Supremo Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se pronunciar sobre as consequências (incluindo processuais) da proibição da reformatio in pejus, de que dá conta sistematizadamente Jorge Dias Duarte(Reformatio in pejus, Consequências processuais, MaiaJuridica n.º 2, 2003, pág. 205-221)

Num acórdão admitiu-se a possibilidade de ser agravada, depois do reenvio decretado em recurso trazido pelo arguido, a pena inicial (Ac. de 9.4.03, proc. n.º 2628/02-3, Relator Cons. Borges de Pinho), mas com um desenvolvido voto de vencido do Cons. Henriques Gaspar, que se acompanha.

Considera-se que integra hoje o processo justo, o processo equitativo, marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, pela estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente – art. 32°, n.º 5, em que se integram também os recursos, igualmente com matriz constitucional como uma das garantias de defesa – art. 32°, n° 1.

O princípio da acusação, subjacente à estrutura acusatória do processo, impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem necessariamente limitados os parâmetros da decisão, estabelecendo-se com o recurso, em tais casos, uma vinculação intraprocessual, no sentido de que fica futuramente condicionado intraprocessualmente o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido.

Nesse caso, a decisão constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do tribunal ad quem, e também por isso mesmo, para obviar à reformatio indirecta, limite à acusação, conformação, rectius, à jurisdição do tribunal de reenvio, nos casos de anulação ou de reenvio.

O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente (cfr., v. g., José Manuel Damião da Cunha, "O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória", 2002, págs. 240 e segs., 436 e 658 e segs.).

Como se escreve no referido voto de vencido, "o princípio do processo equitativo (enunciado no artigo 6°, n° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no artigo 14° do Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos, e particularmente densificado pela jurisprudência da Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) também impõe que a proibição da reformatio in pejus seja avaliada e confrontada neste âmbito de compreensão: a lisura, o equilíbrio, a lealdade tanto da acusação como da defesa, que constituem, ao lado do contraditório, da igualdade de armas e da imparcialidade do tribunal, momentos de referência da noção de processo equitativo, impõem que o arguido, no caso de único recorrente e que usa o recurso como uma das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas, não possa ser, em nenhuma circunstância, surpreendido no processo com a decorrência de uma situação desequilibrante; o recurso, inscrito como meio de defesa, não pode, quando a acusação o não requerer, produzir, sem desconformidade constitucional, um resultado de gravame (neste sentido interpreto a doutrina subjacente à decisão do Tribunal Constitucional no acórdãos n°s. 499/97 e 498/98)."

A esta compreensão do princípio é indiferente que o arguido tenha (ou também tenha) pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal, por se postularem as mesmas razões, sendo que a solução contrária se traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento) poderes que não estavam cometidos ao tribunal de recurso.

A circunstância de a norma que contem a proibição da reformatio in pejus se situar no domínio dos recursos, só significa que, como se viu, esse problema nessa formulação só surge no âmbito dos recursos, o que lhe não retira o carácter de princípio processual (cfr. Damião da Cunha, ob. cit., pág. 654-658), sendo certo que mesmo esta dimensão pressupõe a ocorrência de um recurso.

Noutro acórdão (Ac. de 29.4.03-5, Processo n.º 768/03-5, Relator Cons. Carmona da Mota), foi respondido, na mesma linha desta última posição, mas indo mais além (com uma declaração de voto do aqui Relator) que a convolação para uma qualificação jurídica mais benévola, impunha iniludivelmente uma diminuição da pena concreta, sob pena de violação daquele princípio.

A aceitação da extensão atribuída no primeiro voto de vencido referido, e que se acompanhou, à relevância processual do princípio da proibição da reformatio in pejus, não impõe, como se entendeu no segundo dos votos de vencido, a inevitabilidade da reformatio in melius da decisão, por virtude da alteração da qualificação jurídica.

É sabido que, por virtude da proibição da dupla valoração das circunstâncias agravativas, circunstâncias que nenhum ou pouco relevo teriam no quadro de um crime agravado (por elas), readquirem valor agravativo autónomo no quadro de um crime simples da mesma natureza. Depois, frequentemente, há sobreposição de molduras penais abstractas entre crime privilegiado, crime simples e crime agravado como sucede com o tráfico de estupefacientes, o que significa que um crime privilegiado pode ser punido mais severamente do que um crime simples e o agravado menos severamente do que o simples. Só perante cada caso concreto se podem percepcionar as eventuais ultrapassagens daquela proibição, pelo que, da falada convolação não resulta inevitavelmente a redução da pena, sob pena de violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, face à desagravação do crime.

Entre os acórdãos citados no referido artigo, lembram-se, através dos respectivos sumários, os seguintes, com o mesmo Relator:
«(1) - Decorre do princípio da proibição da reformatio in pejus que, se em recurso só trazido pelo arguido, for ordenada a devolução do processo, não poderá a instância vir a condenar o recorrente em pena mais grave do que a infligida anteriormente. (2) - Tal compreensão daquele princípio integra o processo justo, o processo equitativo, tributário da estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente e do princípio da acusação, que impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem limitados os parâmetros da decisão e condicionado no processo o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido. (3) - O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente, mesmo se o arguido tenha pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal, por se postularem as mesmas razões, sendo que a solução contrária se traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento ou da devolução) poderes que não estavam cometidos ao tribunal de recurso. (4) - Se o Supremo Tribunal de Justiça, depois de alterar em recurso a qualificação jurídica efectuada nas instâncias, reenvia o processo para a determinação da medida concreta da pena, por admitir como possível a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução, a nova decisão a proferir não só não poderá agravar a medida da pena, como só poderá manter a pena inicial fazendo a demonstração cabal de que tal se impõe no caso. (5) - Mas terá de respeitar as considerações em que se fundou o STJ para alterar a qualificação jurídica, quer na ponderação dos graus de culpa e ilicitude, quer na ponderação das circunstâncias que levaram aquele tribunal a reenviar para determinação da nova pena e a não a fixar de imediato.» (Ac. de 8.7.03, proc. n.º 2616/03-5, de 27.11.03, proc. n.º 3393/03-5 e de 17.2.05, proc. n.º 4324/05-5)
Este último entendeu, ainda «(9) - Aceita-se que seja de esperar que o Tribunal Superior, que "desqualificou" um determinado crime, entendendo que a conduta do arguido corporizava antes o tipo simples correspondente, diminua a pena aplicável, agora numa moldura penal abstracta mais favorável. Mas tal não se impõe inevitavelmente, mesmo que a pena aplicada pelo crime mais grave, se mostre justa e adequada na nova moldura, recorrendo-se então, para baixar a pena a uma "proporcionalidade formal" com base na diferença das molduras, e uma ficção sobre o que faria o tribunal recorrido, em vez do Tribunal Superior aplicar, como lhe compete, autonomamente a lei» (Ac. de 17.02.2005, proc. n.º 4324/05-5).
«Se a Relação decide que são procedentes as críticas do recorrente quanto à diferença da pena entre a que lhe foi infligida e a do seu co-autor, mas que se trata de um crime qualificado, não pode determinar a medida concreta da pena neste último quadro e, por isso, não extrair consequências na medida da pena pelo crime constante da decisão da 1.ª instância e não impugnada, por se opor a tal a proibição da reformatio in pejus.» (Ac. de 29-6-05, proc. n.º 1946/05-5).
Finalmente, importa referir que, como se adiantou já, o Tribunal Constitucional em acórdão de 30.3.2007 (Ac. 236/07, proc. n.º 201/04, Relator: Cons. Mário Torres), proferido em recurso do citado acórdão de 9.4.2003 do Supremo Tribunal de Justiça, decidiu julgar inconstitucional, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do art. 409.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo arguido.
Daqui resulta que a 1.ª Instância não podia ultrapassar no segundo acórdão a pena de 14 anos de prisão, como não podia, pelas mesmas razões, confirmara Relação tal pena.

Temos, pois que a pena limite a aplicar ao recorrente é a de 14 anos de prisão.

Nas já referidas conclusões LXIX a LXX, o recorrente sustenta ainda que a pena deve ser reduzida para mais perto do seu mínimo legal (conclusão LXXIV), não tendo sido considerada sua primariedade e já ter decorrido mais de 7 anos sobre a prática dos factos, mantendo boa conduta.

Está provado que o arguido é vendedor ambulante há vários anos, vivendo com a mulher e cinco filhos, os quais sustenta, dizendo as pessoas que com ele lidam que é pessoa de palavra, honesta e trabalhadora, não tendo antecedentes criminais.

O tempo decorrido desde os factos tem em parte importante a ver com a deslocação do arguido para Espanha, para fugir ao processo.

Escreveu-se na decisão recorrida:

«7ª Violação do disposto no artigo 71º do Código Penal.

O Recorrente refere que não foi valorado o facto de não ter antecedentes criminais nem as suas condições de vida.

Resulta expressamente da decisão “a quo” que, na pena concretamente aplicada ao arguido, foram ponderadas “as condições de vida do arguido — integrado, familiar e socialmente, sem carências económicas ou sociais a qualquer nível, com mulher e filhos menores”, assim como, “em seu benefício, e nesta sede, a inexistência de antecedentes criminais documentados nos autos que assentem em condenações anteriores transitadas em julgado. “.

Daí também não ser aqui perceptível o pretendido pelo Recorrente, a não ser no contexto em que conclui ser “chocante conceber a prisão de uma pessoa inocente durante quinze anos e meio.”.

8.ª Violação do princípio da proporcionalidade na medida da pena.

Quanto à medida da pena, e como ensinava Beleza dos Santos, «a tranquilidade pública só deverá considerar-se convenientemente restabelecida quando a pena for um justo castigo, um adequado meio de intimidação e um conveniente processo de regeneração do delinquente» (R.L.J., 78, 26).

De acordo com o direito vigente, o Tribunal deve partir da teoria da união, a qual exige se chegue a uma relação equilibrada dos diferentes fins de pena. A pena deve determinar-se de modo a que garanta a função retributiva, esta equacionada com o ilícito em si e a culpabilidade, sem pressuposto, limite último, e seja possível, pelo menos, o cumprimento também da revisão ressocializadora da própria pena com respeito ao próprio arguido, a exemplo, deste modo, o fim da prevenção especial. Além disso, a defesa do Ordenamento Jurídico exige, por último, que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, que sirva ela de exemplo, de contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos. Foi para fazer ou atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na Jurisprudência a teoria da margem da liberdade, teoria segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta. A pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinada em função da culpa, intervindo os outros fins das penas - prevenção geral e prevenção especial - dentro daqueles limites (cfr. Claus Roxin, in “Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal”, pág. 4-113).

Assim, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, no caso concreto (art. 71°, n.° 1, do

C. P.), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.° 2), designadamente:

- o grau de ilicitude do facto,

- o modo de execução e a gravidade das suas consequências;

- a intensidade do dolo ou da negligência;

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- a conduta anterior e posterior ao facto;

- a falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto;

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica.

Sem dúvida que é elevada a ilicitude dos factos praticados com a violação do bem jurídico supremo — a vida.

O arguido agiu com dolo directo e, portanto, com grau de culpa elevada - o arguido disparou cinco tiros contra o António Nascimento — dois no tórax, um no abdómen, um no braço esquerdo, e por fim um quinto no lábio superior a uma distancia não inferior a 15 ou 20 cm. Não lhe prestou qualquer ajuda, nem providenciou para que a mesma lhe fosse prestada. Ao invés, deixou que a vítima, abandonando o local pondo-se em fuga.

E há que não esquecer as finalidades de prevenção.

As motivações de cada um para a prática de um crime como o dos autos, são seguramente potenciadas e simultaneamente condicionadas pela personalidade do agente. Daí se poder concluir pela baixeza de carácter do arguido, que pela motivação apurada e referida, o determinou ao homicídio, com necessária implicação na pena concreta aplicada.

Tudo isto nos leva a concluir que o conjunto do circunstancialismo agravativo sobreleva de modo expressivo, o conjunto do circunstancialismo atenuativo que se apresenta bastante ténue.

Ora, sopesando todos os elementos objectivos e subjectivos considerados pelo acórdão recorrido, sem perder de vista o bem jurídico ofendido nos crimes da natureza dos autos, concluímos que a pena encontrada para punir a conduta do arguido se mostra equilibrada, justa, proporcional e razoável e não deixa ficar comprometida a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas.»

Como se vê, as Instâncias ponderaram as circunstâncias invocadas pelo recorrente, sendo antes a questão de saber se o ponderaram suficientemente.

É sabido que são limitados os poderes que assistem ao Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista, na censura das Instâncias no domínio da medida da pena.

Como tem entendido este Tribunal, a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade da medida concreta da pena cabem dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Mas o mesmo já não acontece com a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (cfr. por todos, o AcSTJ de 14/6/2007, proc. n.º 1895/07-5, com o mesmo Relator).

Mas tais limitações não impedem que o Supremo Tribunal de Justiça conclua que não foram suficientemente valorizadas as invocadas circunstâncias e que a pena se encontrava demasiado próxima do limite superior da respectiva moldura (16 anos).

No entanto, pelo funcionamento do referido princípio de proibição da reformatio in pejus, tal como a entende este Supremo Tribunal de Justiça, a pena não pode ultrapassar 14 anos de prisão, quantificação que já reflecte adequadamente as circunstâncias invocadas pelo recorrente.

É assim fixada em 14 anos de prisão a pena aplicada ao recorrente.

3.

Pelo exposto, acordam os juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso e fixar em 14 anos de prisão a pena aplicada ao recorrente, no mais confirmando a decisão recorrida.

Custas no decaimento pelo recorrente, com a Taxa de justiça de 4 UCs.

Lisboa, 5 de Julho de 2007

Simas Santos (Relator)

Costa Mortágua

Rodrigues da Costa