Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2739/19.8T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
EQUIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DUPLICADO
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Tendo sido alegado, na apelação, a duplicação de indemnização, dado que a indemnização por danos patrimoniais tinha em consideração danos já abrangidos na indemnização por danos não patrimoniais, o Tribunal recorrido pode e deve apreciar aquela indemnização.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e Outros

Recorrida: Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. - Sucursal em Portugal

1. BB intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. - Sucursal em Portugal, alegando, em resumo que sofreu um acidente de viação, tendo sido colhido por um veículo segurado na ré, quando procedia à travessia de uma rua, numa passadeira, tendo sofrido diversas lesões e danos patrimoniais e não patrimoniais.

Concluiu pedindo a condenação da ré no pagamento de:

- valor a liquidar na sentença, liquidação ou execução desta, a calcular em face da idade daquele, do seu rendimento anual e da incapacidade que venha a ser fixada na indicada perícia médica, incluindo, psíquica e psiquiátrica, a título de Incapacidade Permanente segundo o grau que venha a ser determinado de acordo com os vários critérios legais indemnizáveis, reportado à data do sinistro que, provisoriamente, se fixa na quantia de € 70.000,00;

- indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por virtude do presente sinistro, já liquidados de € 28.050,00, a que deverão acrescer os que se vieram a liquidar/apurar, assim como no custo da intervenção para retirada do material de osteossíntese e despesas inerentes, assim como juros legais de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. A ré invocou a prescrição do direito do autor e impugnou o valor dos danos.

3. O autor faleceu na pendência da acção, tendo sido habilitados os seus filhos CC e DD e mulher, EE.

4. Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Julgo parcialmente procedente por provada a presente acção condenando-se a Ré a pagar aos habilitados do Autor CC, DD e EE:

- a quantia de 21 040,00 € (vinte e um mil e quarenta euros), a título de danos patrimoniais, quantia acrescidas dos juros legais de 4% contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

- a quantia de 10.000,00 € (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia acrescidas dos juros legais de 4%, contados desde a prolacção da presente decisão até efectivo e integral pagamento”.

5. Inconformada, apelou a ré Liberty Seguros.

6. Em ... .11.2022, o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão em que se conclui:

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso, e em consequência, alteram a sentença, condenando a Ré a pagar aos habilitados a quantia de €4.000,00, mantendo-se no mais o decidido”.

7. Em ... .12.2022, CC e Outros, habilitados na sequência do falecimento do autor, vêm apresentar requerimento em que dizem que “tendo sido notificados do Acórdão que antecede (insuscetível de recurso ordinário em função da regra da sucumbência), vêm, nos termos do disposto nos Artº.s 613º nº. 2, por remissão do Artº. 666º nº. 2, ambos do CPC, requerer a reforma da decisão pedido de reforma”.

8. Liberty Seguros veio opor-se a este requerimento.

9. Em ... .02.2023, o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão em Conferência, em que se concluiu não existir a nulidade por excesso de pronúncia alegada.

Destaca-se a seguinte passagem:

Na sentença a Ré foi condenada a pagar aos habilitados:

- a quantia de 21.040,00 € (vinte e um mil e quarenta euros), a título de danos patrimoniais, quantia acrescidas dos juros legais de 4% contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

- a quantia de 10.000,00 € (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia acrescida dos juros legais de 4%, contados desde a prolacção da presente decisão até efectivo e integral pagamento.

No recurso interposto, a Ré defendeu que a IPG de 2 pontos de que padece o recorrido, sendo residual, apenas se traduz em meros incómodos, não se verificando a existência de rebate profissional sensível, nem perda de rendimentos ou de oportunidades.

Acrescentou que na ausência de um dano patrimonial efetivo e indemnizável, devia ser mantida a indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 10.000,00.

O tribunal a quo decidiu condenar a Ré no pagamento, para além das despesas, da quantia de €19.200,00€ a título de danos patrimoniais (dano biológico) e €10.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos.

Por conseguinte, tendo a Ré defendido que o designado dano biológico já se encontrava abrangido pela compensação de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais, ou seja, defendendo não ser admissível, sob pena de dupla indemnização, arbitrar qualquer montante pecuniário pela IPG de 2 pontos de que ficou a padecer o Autor, afigura-se-nos seguro que o tribunal, para além da questão da qualificação jurídica desses danos, podia e devia ponderar a sua quantificação, em termos da sua redução, como pretendia a Recorrente.

Por outras palavras dir-se-á que não foi concedida à Recorrente a procedência total do recurso pois, caso contrário, não tinha sido arbitrada qualquer compensação (que estaria, na tese da Ré, abrangida pela quantia de 10.000,00) mas parcial, com a redução da indemnização pelo designado dano biológico.

Face aos motivos aduzidos conclui-se que inexiste o apontado vício”.

10. Em ... .03.2023, pretendendo a repristinação da decisão do Tribunal de 1.ª instância, AA e Outros vêm interpor recurso de revista.

A terminar, enunciam as seguintes conclusões:

A/ A motivação e conclusões do recurso interposto pela Ré ora recorrida visaram, apenas, um fundamento: a sua impossibilidade de condenação por danos patrimoniais e não patrimoniais, sob pena de duplicação, como reza da Apelação por si interposta; “Pelo que, na ausência de um dano patrimonial efetivo e indemnizável, é essa a (única) indemnização a que o recorrido terá direito, sob pena de ocorrer uma indevida duplicação da indemnização ressarcitória.”;

B/ Tendo a Apelante Seguradora suscitado perante o Tribunal da Relação, apenas, a questão da alegada dupla condenação, não tendo, subsidiariamente, questionado o montante indemnizatório fixado quanto à alegada parcela condenatória que entende duplicada, entendendo o Tribunal não se verificar essa dupla condenação, está-lhe vedado reduzir o valor indemnizatório, sob pena de, reduzindo-o, cometer excesso de pronuncia e, desse modo, produzir decisão Nula à luz do disposto na al. d) do nº. 1 do Artº. 615 do Código do Processo Civil;

C/ Ainda que se assim se não entenda e se conclua que ao Tribunal da Relação era lícito pronunciar-se sobre o quantum indemnizatório a título da IPG de 2 pontos, no que se não concede, sempre a indemnização fixada em Primeira Instância seria de manter no montante fixado;

D/ Tendo-se provado que: - O quantum doloris foi fixado no grau 5 em sete pontos, tendo em conta o tipo de traumatismo, as lesões resultantes, os tratamentos efectuados e o período de repercussão funcional; - O autor ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 2 pontos percentuais; - As sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares. - Com a actividade referida em 10 o Autor retirava de rendimentos médios de cerca de 16.000 mensais, mostra-se adequado o fixar o montante indemnizatório pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica no valor de € 19.200, já que partindo da base de rendimento mensal do indicado valor; dos dois pontos percentuais e, de pelo menos mais 5 anos de vida ativa do A. (que tinha 85 anos à data), obtém-se um valor mensal de 320 Euros e anual de 3.840 Euros, o que, multiplicado pelos 5 anos, se obtém o valor de 19.200 Euros;

D/ Assim, tendo o Tribunal da Relação atendido, apenas, à equidade e aos 2 pontos da IPG, ignorando, quer o rendimento do A., quer os esforços acrescidos, quer o grau elevado de dor e reduzido a indemnização a 4.000 Euros, não colocando o A. na situação em que se encontrava antes da lesão, violou, de entre o mais, as normas dos Artº.s 562º, 564º e 566º n. 2 , todos do Código Civil, não refletindo, pois, a indemnização o dano emergente e o lucro cessante”.

11. Por sua vez, a ré Liberty Seguros apresenta contra-alegações, concluindo:

1. O recurso interposto pelo apelante subordinado mostra-se claramente extemporâneo, motivo pelo qual deverá ser indeferido.

Sem prescindir,

2. O douto acórdão de fls. não padece dos vícios que lhes apontam os recorridos, nem de quaisquer outros, não sendo, designadamente, nulo por ter conhecido de questão que lhe estava vedado dirimir

3. O recurso interposto pelos recorrentes não merece provimento.

4. O douto acórdão em crise constituiu um todo coerente e lógico, e fez uma correta subsunção da factualidade apurada aos preceitos legais aplicáveis.

5. Tal decisão, pelo seu inegável acerto, deverá, pois, ser mantida in totum.

6. Se algum reparo pode ser apontado ao douto acórdão em crise, é o de algum excesso, conforme defendeu a ora recorrida nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, e nunca o de pecar por defeito, conforme agora alegam os recorrentes”.

12. Inicialmente, o Exmo. Senhor Desembargador profere despacho em que diz:

Atendendo à regra da sucumbência, não é admissível o recurso, tal como os próprios Recorrentes reconheceram quando solicitaram a reforma do acórdão, pelo que não se admite o recurso de revista”.

13. AA e Outros vêm apresentar requerimento em que “vêm referir que induziram o Tribunal em erro, do que se penitenciam, pois, o segmento da condenação em primeira instância que este Tribunal revogou era de 19.200, que o Tribunal reduziu para 4.000. Assim, o decaimento é de 15.200, ou seja, de mais de metade da alçada do Tribunal da Relação, daí que esteja verificada a regra da sucumbência, sendo, pois, admissível o recurso para o STJ, uma vez que o recorrente ficou vencido em mais de metade da alçada do Tribunal de que se recorre.

Para o caso de o Tribunal, assim, não entender, deve o presente requerimento ser entendido como uma reclamação face à decisão de não admissão do recurso dirigida ao Presidente do Tribunal Superior, a fim de ser apreciada a admissibilidade do recurso interposto, com a consequente revogação do despacho recorrido e substituído por outro que admita aquela, com as legais consequências”.

13. Por fim, o Exmo. Senhor Desembargador profere despacho em que pode ler-se:

Tal como os Apelados referem no requerimento que antecede, ocorreu um lapso quanto ao valor da sucumbência.

Efectivamente, o valor da sucumbência é superior a metade da alçada deste Tribunal.

Assim sendo, operando a reforma rectificativa do anterior despacho, admito o recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça-cfr. arts. 629.º, n.º 1, 614.º do CPC.

Notifique e oportunamente remeta os autos”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) ao determinar a redução da indemnização, o Tribunal recorrido incorreu de nulidade por excesso de pronúncia;

2.ª) ao determinar a redução da indemnização, o Tribunal recorrido agiu em violação da lei.


*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - No dia ... .11.2014, cerca das 18h30, em ..., na passadeira existente frente à “Farmácia ...”, na Rua ..., quando nela o A. fazia a travessia da via foi colhido pelo veículo de matrícula ..-..-XO,

2 - O proprietário do veículo “XO”, havia transferido a responsabilidade civil emergente da circulação de veículos que pudesse conduzir como garagista para a demandada, por meio da apólice n.º .....80,

3 - Devido ao embate, o Autor foi assistido no Hospital de ... e transferido para a Unidade de Saúde de ..., então, Hospital . . ..

4 - Foi submetido inicialmente a tratamento conservador dos ossos da perna direita e de uma fraturada rama isquio-púbica esquerda e suturação de ferida a nível occipital e posteriormente a tratamento cirúrgico da perna direita com encavilhamento aparafusado, por motivo de fuga de redução.

5 - Após o acidente o Autor apresentava:

- tonturas e desequilíbrios com necessidade de tratamento médico particular;

- quadro depressivo moderado;

- insónias;

- dor ao nível do joelho direito;

- dor ao nível da perna direita, com dificuldade em período de marcha ou em permanência de pé;

- impossibilidade de se ajoelhar ou colocar o joelho direito em piso duro;

- dor ao nível da bacia em posição de sentado.

6 - O A. teve de realizar fisioterapia e vários exames e consultas médicas.

7 - Em consequência do acidente sofrido o Autor:

- Teve um período de 79 dias de Défice Funcional Temporário Total, entre .../1/2014 e .../02/2015, correspondente aos períodos de internamento repouso total.

- Teve um período de 252 dias de Défice Funcional Temporário Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia, ainda que com limitações e que se situou entre .../02/2015 e .../10/2015.

- Teve um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 189 dias.

- Teve um período de repercussão temporária na actividade profissional parcial de 152 dias.

- O quantum doloris foi fixado no grau 5 em sete pontos, tendo em conta o tipo de traumatismo, as lesões resultantes, os tratamentos efectuados e o período de repercussão funcional.

- O dano estético permanente foi fixado em 2 numa escala de 7, tendo em conta as cicatrizes existentes.

- O autor ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 2 pontos percentuais.

- As sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares.

- Houve necessidade de realizar obras de adaptação do domicílio na lavandaria (adaptada para realizar os hábitos de higiene) e adquiriu cama articulada.

8 - O autor nasceu em .../02/1929.

9 - Anteriormente ao sinistro, o Autor não tomava qualquer medicação, sendo uma pessoa saudável.

10 - Até então, pese embora já reformado, era quem tratava da legalização de todo o seu vasto património urbano, tratando da sua manutenção, reparação, arrendamento, recebimentos de rendas, anúncios para arrendamento etc…, sendo que após o sinistro apresentava limitações no exercício dessa actividade.

11 - Com a actividade referida em 10 o Autor retirava de rendimentos médios de cerca de 16.000€ mensais.

12 - Com os tratamentos e consultas referidos em 6 despendeu, pelo menos, a quantia de 1090, 00 €.

13 - Teve, ainda, de fazer adaptações na sua casa, quer ao nível do quarto, quer do WC, no que gastou, pelo menos 750 €.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

a) - Ao presente, o autor não apresenta melhoras e, por isso, apresente, ainda hoje:

- material de osteossíntese a nível da tíbia direita que poderá ter de ser removido, caso o A. o deseje ou o corpo o venha a rejeitar;

b) Após o acidente, o Autor deixasse de arrendar alguns imóveis.

c) Em fisioterapia exames e consultas despendesse a quantia de 4500,00 €.

d) Os rendimentos prediais mensais fossem de cerca de 20000 €.

e) Tivesse sido acompanhado por enfermeira particular durante 4 meses, a quem pagou € 700/ mês num total de € 2.800,00.

f) O autor deixasse de poder auferir o seu normal rendimento que retirava da prossecução da sua atividade imobiliária

O DIREITO

A primeira observação dirige-se a esclarecer que, ao contrário do que alegam os recorrentes, o recurso é manifestamente tempestivo.

Como decorre do que fica dito atrás, é certo que o Acórdão objecto do recurso foi proferido em ... .11.2022. Cabe recordar, porém, que este Acórdão foi impugnado através do requerimento de reforma apresentado pelos recorrentes em ... .12.2022, pelo que só se tornou recorrível com o proferimento do Acórdão em Conferência, em ... .02.2023. A interposição do recurso, em ... .03.2023, está, pois, dentro do prazo.


*


Quanto ao recurso, cabe recordar que o Tribunal a quo apreciou as alegações da apelante e decidiu reduzir a indemnização correspondente ao dano do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica para € 4.000.

A fundamentação é, na parte relevante, a seguinte:

À dicotomia tradicional entre dano patrimonial e não patrimonial acresceu o designado dano biológico, após ter sido reconhecido em Itália, pelo Tribunal Constitucional, como tertium genus.

A jurisprudência não tem sido unânime na qualificação do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica: a maioria das decisões integra-o no conceito de dano patrimonial, outras no dano não patrimonial, ou, de acordo com as sequelas advenientes para o lesado e consequente incidência na capacidade produtiva em qualquer um desses danos, e ainda uma outra corrente perspectiva-o como dano-evento, tertium genus

Independentemente da qualificação do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica nas categorias apontadas, existe consenso no sentido de que constitui um dano indemnizável nos termos previstos no artigo 564.º, n.º 2 do C.Civil.

(…)

Portanto, nos casos em que o lesado não exerce uma actividade profissional remunerada (por estar desempregado, reformado, ser estudante ou menor) e/ou nas situações (frequentes) em que o dano sofrido exige esforços suplementares, deve ser atribuída uma indemnização.

Em suma, o facto de o lesado não exercer qualquer actividade da qual obtenha rendimentos, ou na hipótese de não ocorrer diminuição do seu rendimento pese embora a penosidade acrescida na execução das tarefas que desenvolve, não é impeditivo da ressarcibilidade deste dano.

(…)

No caso sub judice ficou provado que o Autor ficou afectado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, fixado em 2,00 pontos percentuais, sendo as sequelas compatíveis com o exercício da actividade profissional embora implicando esforços acrescidos.

Tinha um rendimento mensal de cerca de 16.000,00 €, valor que obtinha do seu património imobiliário.

Anteriormente ao sinistro, não tomava qualquer medicação, sendo uma pessoa saudável.

Até então, pese embora já reformado, era quem tratava da legalização de todo o seu vasto património urbano, tratando da sua manutenção, reparação, arrendamento, recebimentos de rendas, anúncios para arrendamento, sendo que após o sinistro apresentava limitações no exercício dessa actividade.

Assim, como se refere na sentença, apesar de não ter ficado provado um decréscimo de rendimentos, deve ser considerado o esforço suplementar necessário para desempenhar a sua actividade de administração do património urbano, configurando-se, neste caso, o designado dano biológico na sua vertente não patrimonial, pelo que não se verifica qualquer duplicação de compensações.

O recurso a auxiliares matemáticos constitui apenas uma orientação com o objectivo de uniformização de soluções para que seja alcançado e cumprido, na medida do possível, o princípio da igualdade, o que implica a averiguação de indemnizações atribuídas a casos análogos.

Por outras palavras, segundo a jurisprudência consolidada na matéria, o recurso a auxiliares matemáticos, tem como objectivo a uniformização de soluções para casos idênticos ou de contornos semelhantes, sem prejuízo do recurso à equidade para se obter o valor ajustado às circunstâncias do caso concreto-cfr. art.º 566.º, n.º 3 do C.Civil.

Nesta conformidade, o julgamento com base na equidade deve alicerçar-se em critérios de razoabilidade, bom senso e de equilíbrio, norteado por um juízo casuístico, que tenha principalmente em conta as concretas especificidades do caso concreto.

Assim sendo, a indemnização pela afectação da capacidade funcional, como se relembra no Acórdão desta Relação, de .../05/2022, deve ponderar a idade do lesado, o grau de incapacidade geral permanente, as potencialidades de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual como em profissões ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências e a conexão entre as lesões físico- psíquicas sofridas com as exigências próprias da actividade profissional habitual.

No caso sub judice demonstrou-se que o Autor tinha 85 anos de idade na data do acidente e o rendimento que obtinha mensalmente era de natureza predial e não laboral.

Como já tivemos oportunidade de esclarecer, na fixação de um valor indemnizatório deve recorrer-se à equidade, que se traduz num juízo prudente e equilibrado, destinado a alcançar a solução justa tendo sempre em consideração as circunstâncias do caso concreto.

Ponderando, por um lado, a especificidade das tarefas inerentes à gestão do património imobiliário (não sendo expectável que a mesma perdurasse com o mesmo nível de eficiência por muito tempo atendendo ao avançar da idade e subsequentes limitações físico-psíquicas) e o grau de incapacidade permanente parcial de apenas 2% com que ficou afectado, e, por outro, o esforo acrescido no desempenho dessa actividade que, na idade avançada do Autor, assumiu naturalmente maior penosidade e sacrifício, afigura-se-nos que a fixação de uma indemnização de €4.000,00 constitui um valor adequado e razoável no presente caso.

Com efeito, uma incapacidade de 2% numa pessoa idosa, que foi atropelada na passadeira e era funcionalmente activa, tem consequências mais gravosas para a saúde do que noutra mais jovem.

Face às razões aduzidas, altera-se a sentença na parte que atribuiu a indemnização do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica para a quantia de € 4.000,00”.

Do alegado excesso de pronúncia

O Tribunal recorrido já se pronunciou, por conferência, sobre esta questão, rejeitando a nulidade.

Reitera-se esta decisão, não restando dúvidas de ela não importa excesso de pronúncia.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC:

É nula a sentença quando:

(…)

d) O juiz (…)conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Tendo sido alegada pela ré, na apelação, a duplicação da quantificação de determinado dano e, mais precisamente, que o dano pelo défice funcional permanente já estava incluído no grupo dos danos não patrimoniais e não podia, portanto, voltar a ser contabilizado no grupo dos danos patrimoniais, é evidente que o Tribunal recorrido podia e devia apurar que tipo de danos haviam sido considerados, pelo Tribunal de 1.ª instância, em cada um dos grupos.

Veja-se a questão tal como enunciada pelo Tribunal da Relação do Porto:

A questão de direito que a Recorrente suscita reconduz-se a saber se o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que afectou o lesado deve ser indemnizado ou se a quantia arbitrada na sentença, a título de danos não patrimoniais, já abrange esse dano resultante do acidente”.

E veja-se o que se diz de seguida no Acórdão:

(…) o tribunal a quo decidiu condenar a Ré no pagamento, para além das despesas, da quantia de €19.200,00€ a título de danos patrimoniais (dano biológico) e €10.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos.

O inconformismo da Ré cinge-se à indemnização no valor de €19.200,00 por entender, em resumo, que o dano sofrido é de natureza não patrimonial uma vez que as sequelas não afetaram a atividade profissional do lesado e os seus proventos salariais, e assim sendo, por ter sido compensado com a quantia de €10.000,00 pelos danos não patrimoniais, não poderá ocorrer duplicação do montante ressarcitório”.

Perante esta alegação, era (logicamente) admissível – e mesmo exigível – que o Tribunal recorrido avaliasse os danos patrimoniais, em especial, o dano do défice funcional e alterasse o valor da respectiva indemnização1.

Compreende-se, assim, por que não é possível confirmar a alegada nulidade.

Da redução da indemnização propriamente dita

Como se acaba de ver, no exercício do seu poder/dever de apreciar a questão suscitada no recurso de apelação, o Tribunal a quo foi conduzido à redução do montante da indemnização por danos patrimoniais na parcela correspondente ao “dano biológico patrimonial” ou, nas palavras do Tribunal, ao dano do défice funcional permanente (de € 19.200 para € 4.000).

São oportunas algumas considerações gerais sobre o dano biológico.

Como é sabido, a violação de direitos de personalidade provoca diversos tipos de danos ao lesado, cabendo ao lesante indemnizar o lesado por forma a reconstituir, tanto quanto possível, a situação que existiria se o facto não se tivesse verificado (cfr. artigos 483.º e 562.º do CC).

Resulta da lei portuguesa que a medida da indemnização deverá ter em conta atendendo ao disposto no artigo 564.º do CC, os danos presentes bem como os danos futuros, sendo a única exigência legal a de que estes últimos sejam previsíveis 2.

Diz-se, mais precisamente, nesta norma que:

1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior”.

Por sua vez, a norma do artigo 566.º do CC determina que:

1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

3. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados3.

Na fixação da indemnização deverá atender-se ainda aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC. O montante da indemnização – dispõe-se no n.º 4 da mesma norma – é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º do CC.

Apesar da aparente simplicidade destas classificações legais, a verdade é que é difícil, se não mesmo impossível, identificar todos os danos susceptíveis de resultar da ofensa de direitos de personalidade e distinguir entre os vários tipos, tendo em conta a unidade da pessoa. Tornou-se por isso, habitual reconduzi-los a um conceito tentativamente englobalizador ou (re)unificador. Alguns autores denominam-no “dano biológico”, “dano da saúde”4 ou “dano corporal”5, outros usam o conceito, assumidamente mais abrangente, de “dano existencial”6, importando, em qualquer caso, manifestar a percepção crescente dos “multifacetados níveis de protecção que a personalidade humana reclama”7.

Pondo em causa a rigidez da distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais8, ela conduz à ampliação do número e do tipo de consequências que o julgador deve ter em consideração no momento de calcular o montante da indemnização e propiciou as condições para o cálculo de uma indemnização mais justa, uma vez que propicia a visão de que o facto lesivo origina um conjunto de consequências que não são absolutamente autónomas ou dissociáveis e em que se incluem as consequências conhecidas como de natureza não patrimonial bem como de natureza patrimonial futura, não se esgotando, contudo, nestas.

Embora tenha tido origem no Direito italiano9, esta nova orientação foi bem recebida em Portugal, sendo aplicada, actualmente, por grande parte da jurisprudência, em particular, quando estão em causa danos decorrentes de acidentes de viação. De acordo com esta jurisprudência, na avaliação destes danos, o julgador deve ponderar os factores mais variados, quais sejam as restrições que o lesado tem de suportar na qualidade da sua vida em virtude das lesões biológicas, a criação ou indução de dependências que afectam o exercício da sua liberdade pessoal, os prejuízos nas suas aptidões familiares ou afectivas, as necessidades especiais dos lesados que sejam pessoas débeis, como os idosos ou as crianças, e quaisquer outros que possam assumir relevância consoante as circunstâncias do caso concreto.

Contrapõem os recorrentes à decisão do Tribunal recorrido que este agiu mal ao reduzir a indemnização porque ignorou certos factores relevantes para ela.

Os factores que os recorrentes identificam como tendo sido (mal) ignorados são, ipsis verbis: “o rendimento do A., quer os esforços acrescidos, quer o grau elevado de dor”.

A verdade, porém, é que, com a excepção do dano da dor stricto sensu (já ponderado, na sentença, para o efeito da indemnização dos danos não patrimoniais), o Tribunal recorrido não deixou de considerar todos aqueles factores.

Tal fica demonstrado com a passagem seguinte:

“[O Autor] [t]inha um rendimento mensal de cerca de 16.000,00 €, valor que obtinha do seu património imobiliário.

Anteriormente ao sinistro, não tomava qualquer medicação, sendo uma pessoa saudável.

Até então, pese embora já reformado, era quem tratava da legalização de todo o seu vasto património urbano, tratando da sua manutenção, reparação, arrendamento, recebimentos de rendas, anúncios para arrendamento, sendo que após o sinistro apresentava limitações no exercício dessa actividade.

Assim, como se refere na sentença, apesar de não ter ficado provado um decréscimo de rendimentos, deve ser considerado o esforço suplementar necessário para desempenhar a sua actividade de administração do património urbano, configurando-se, neste caso, o designado dano biológico na sua vertente não patrimonial, pelo que não se verifica qualquer duplicação de compensações.

O recurso a auxiliares matemáticos constitui apenas uma orientação com o objectivo de uniformização de soluções para que seja alcançado e cumprido, na medida do possível, o princípio da igualdade, o que implica a averiguação de indemnizações atribuídas a casos análogos”.

Quer dizer: para a fixação (redução) do valor correspondente à compensação pelo dano do défice funcional, o Tribunal recorrido teve em consideração o grau de défice funcional do autor, o seu rendimento mensal e o esforço acrescido para levar a cabo a actividade da qual derivava este rendimento, tendo em conta, designadamente, a idade e o seu estado de saúde do autor à data do acidente (cfr., entre outros, factos provados 7 a 11).

Note-se que o Tribunal recorrido não valorizou a ausência de prova da efectiva diminuição de rendimentos. Entendeu que era suficiente, em princípio, existir uma incapacidade ou diminuição da capacidade funcional do lesado, afectando o lesado para o resto da vida, criando-lhe diversos constrangimentos no exercício da sua actividade habitual e na consideração de oportunidades futuras. Assim, mesmo que o lesado não ficasse impedido de levar a cabo aquela actividade e, por isso, não se registasse uma perda automática de rendimentos, existia uma perda que se reflectia economicamente e que devia ser indemnizada como dano biológico patrimonial.

O último factor a que recorreu o Tribunal a quo foi a equidade, mas este era um factor que ele podia, sem dúvida, convocar.

Como é sabido – e tem sido reiterado, em numerosos acórdãos, por este Supremo Tribunal – o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com as regras dos artigos 562.º e seguintes do CC, podendo a equidade funcionar para ajustar, num segundo momento, o montante da indemnização às particularidades do caso concreto10.

Foi o que aconteceu no caso em apreço.

A equidade foi convocada, como se afirmou no Acórdão ora impugnado, como um “juízo prudente e equilibrado, destinado a alcançar a solução justa tendo em consideração as circunstâncias do caso concreto”.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos recorrentes.

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Lisboa, 14 de Setembro de 2023


Catarina Serra (relatora)

Afonso Henrique

Isabel Salgado

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1. Recorde-se que a indemnização por danos patrimoniais abrange, além do dano pelo défice funcional, as despesas, no valor de € 1.840, que permaneceu, naturalmente, intocado.

2. Como é óbvio, a distinção entre danos presentes e danos futuros assenta, fundamentalmente, no momento da verificação dos danos por referência à data da fixação da indemnização: são danos presentes os que já se verificaram nesta altura; são danos futuros os restantes, dividindo-se estes, por seu turno, em certos e eventuais. Cfr., neste sentido, Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2006 (10.ª edição), p. 597.

3. Sublinhados nossos.

4. Cfr. Maria da Graça Trigo, “Adopção do conceito de 'dano biológico' pelo Direito português”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2012, vol. I, pp. 147 e s. (disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B5b5e9c22-e6ac-4484-a018-4b6d10200921%7D.pdf), e Responsabilidade civil – Temas especiais, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2015, pp. 69 e s.

5. Cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977 , Volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 512 e s.

6. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “Nos 40 anos do Código Civil Português – Tutela da Personalidade e Dano Existencial”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 289 e s. Segundo o autor (p. 298), o conceito de “dano existencial” permite compreender “o impacto da lesão que a pessoa sofreu na sua integridade física na sua realidade mais global”, transcendendo-se, pois, o “nível meramente biológico, o nível daquilo que é passível de uma averiguação ou testificação médica, para nos situarmos no plano dinâmico da vida da pessoa e das suas condições concretas (atingida que foi por uma lesão da saúde)” (sublinhado do autor).

7. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “Nos 40 anos do Código Civil Português – Tutela da Personalidade e Dano Existencial”, cit., p. 292.

8. A distinção entre danos patrimoniais e danos não patrimoniais assenta na susceptibilidade da sua avaliação pecuniária. Os segundos são definidos pela negativa, podendo apenas ser objecto de compensação e não, como os primeiros, de uma indemnização por equivalente.

9. Cfr., entre outros, Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil – Temas especiais, cit., pp. 78 e s. Adverte a autora que a jurisprudência italiana retomou, no entanto, a partir de 2003, a dicotomia “dano patrimonial / dano não patrimonial”, entendendo que o primeiro era suficientemente amplo para compreender os danos não patrimoniais, como o dano biológico e o dano existencial.

10. Cfr., por todos, Acórdão de 23.04.2020 (Proc. 5/17.2T8VFR.P1.S1).