Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
984/07.8TVLSB.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
MORTE
DEVER ACESSÓRIO
DEVER DE VIGILÂNCIA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - Os contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado.
II - Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada.
III - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762.°, n.° 2, do CC – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.
IV - Celebrado entre autora e ré de um contrato de prestação de serviços – de ensino, educação ou instrução –, por força do qual o filho da autora frequentava um curso de licenciatura numa Universidade pertencente à ré, contrato de que faziam parte, pelo menos como deveres acessórios ou laterais, os de vigilância e controle, pela ré, das práticas praxistas no interior das instalações, com o objectivo de garantir a segurança, nomeadamente psíquica, e a integridade física, dos alunos, esses deveres foram incumpridos se a ré permitiu essas práticas, por omissão de vigilância e controlo, vindo o filho da autora a falecer em resultado de lesões causadas por práticas praxistas violentas sobre ele exercidas.
V - A ré violou o princípio da concretização, ao não realizar “no terreno” os interesses que sabia serem os do credor – a autora ou o seu filho –, e infringiu o dever de actuar de boa-fé, ao não acautelar a confiança que estes depositaram na sua prestação, violando deveres acessórios de conduta que, se observados, lhe impunham uma vigilância e controle sobre as actividades praxistas dos seus estudantes, que obstariam a que delas pudessem resultar consequências gravosas para o seu aluno e permitiriam que este pudesse prosseguir em segurança os seus estudos.
VI - Estes deveres de vigilância e controle, que acessoriamente derivavam para a ré do contrato celebrado, relativos à segurança do filho da autora, como seu aluno, não consistem em deveres principais de prestação decorrentes do contrato de prestação de serviço (dever de ensinar ou dever de pagar as propinas), nem mesmo em algum dever instrumental em relação a esses deveres principais, mas num meio indispensável à prossecução do objectivo visado pela celebração do contrato, ou seja, o de o aluno alcançar o termo da licenciatura com a melhor classificação possível, o que, devido ao óbito, se tornou impossível.
VII - A violação dos deveres de vigilância e controle apontados, e da consequente garantia de segurança do filho da autora, deveres esses acessoriamente derivados do contrato celebrado, torna a ré responsável pelos prejuízos sofridos, nos termos da responsabilidade contratual.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 16/02/07, AA, dizendo-se acompanhada pelo marido, BB, instaurou nas Varas Cíveis de Lisboa acção com processo ordinário contra Fundação ......... - Cultura - Ensino e Investigação Científica, pedindo a condenação desta, pela omissão de acção que determinou a produção de danos que levaram à morte do seu filho, CC, a pagar-lhes a quantia de, pelo menos, € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais pelo dano morte; € 33.500,00 a título de danos patrimoniais sofridos directamente por cada um deles, no total de 67.000,00 euros; € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos directamente pela vítima, bem como a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de danos patrimoniais, pedindo, desde logo a condenação no pagamento das despesas com consultas e tratamentos médicos, em € 1000,00, e em € 2000,00 por perdas de vencimento, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação.

A Ré contestou, excepcionando a incompetência territorial, a sua ilegitimidade, a prescrição do direito invocados pelos autores, e, por impugnação, contraditou os factos por estes invocados, concluindo pela procedência das excepções invocadas ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção com a sua absolvição do pedido.

Na réplica, foi pugnado pela improcedência das excepções.

Por despacho de fls. 747-748, transitado em julgado, foi julgada procedente a excepção de incompetência territorial, tendo o processo sido remetido para o Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, por ser o territorialmente competente.

Dispensada a realização de audiência preliminar, foi elaborado despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias, nomeadamente a de ilegitimidade passiva deduzida, e em que se julgou improcedente a excepção de prescrição, ao que se seguiu a enumeração da matéria de facto desde logo dada por assente e a elaboração da base instrutória.

A ré interpôs recurso do segmento do despacho que apreciou a excepção da prescrição, o qual foi admitido por despacho de fls. 893, como apelação, a subir a final, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo apresentado as respectivas alegações de recurso, juntas a fls. 902-95, vindo a recorrida apresentar por sua vez contra-alegações, juntas a fls. 988-999.

Entretanto, através do requerimento de fls. 877-879, a ré veio comunicar nos autos que o co-autor BB havia falecido antes de a acção ter sido proposta, em 01/04/2004, pedindo a sua absolvição da instância quanto aos seus pedidos e que as mandatárias do mesmo sejam condenadas, nos termos dos artigos 456° e 457º do Código de Processo Civil, a pagar-lhe uma indemnização no montante nunca inferior a €10.000,00 correspondente ao valor das despesas efectuadas, incluindo os honorários da sua mandatária.

Admitindo tal facto, a co-autora AA secundou esse pedido de absolvição de instância (fls. 884).

Por despacho de fls. 889, foi a ré absolvida da instância quanto ao pedido formulado pelo co-autor BB.

A ré apresentou reclamação contra a selecção da matéria de facto, conforme consta do requerimento de fls. 791-803, tendo a autora respondido conforme consta de fls. 834-838, mas a reclamação foi apreciada e indeferida, nos termos plasmados no despacho de fls. 896-897.

Realizada audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto sujeita a instrução, foi proferida sentença que, no que respeita ao mérito da causa, julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a indemnização no valor global de € 90.000,00 por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, absolvendo a ré do restante pedido.

Desta sentença, a ré interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação do despacho que conheceu da reclamação contra a selecção da matéria de facto e, de qualquer modo, pediu a revogação da sentença recorrida, por ser nula e, mesmo que assim se não entendesse, pediu que fosse a mesma revogada e substituída por outra, que alterando, ou não, as respostas aos quesitos, a absolvesse do pedido.

Apresentou a recorrida as suas contra-alegações através das quais pugnou pela manutenção do decidido.

A Relação julgou improcedente a 1ª apelação (relativa à apreciação da excepção de prescrição), confirmando a decisão, e procedente a 2.ª apelação, na parte relativa à reclamação contra a selecção da matéria de facto, ficando prejudicada a apreciação dos demais fundamentos recursórios e, em consequência, anulou o julgamento.

É do acórdão que assim decidiu que vem interposta a presente revista, pela ré, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:

I. Vem o presente Recurso de Revista, interposto do Mui Douto Acórdão da Relação do Porto, limitado à parte em que julgou improcedente a excepção da Prescrição, invocada pela Ré ora Recorrente, em sede de Contestação.

II. Pugna-se no presente recurso, por saber se o direito à indemnização peticionado pela A. está prescrito, por ter decorrido o respectivo prazo de prescrição, o que passa por averiguar se, ao caso dos autos se aplica o prazo de prescrição de três anos a que se refere o n.° 1 do artigo 498° do Código Civil ou se é aplicável o n.° 3 deste preceito, que imporia um prazo de prescrição mais longo.

III. A A., em 22.02.07, instaurou nas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, acção declarativa de condenação com o intuito de efectivar a responsabilidade civil extracontratual da ora Ré.

IV. Em 23.02.2007, a Ré foi citada para os termos dos presentes autos.

V. Não pode aceitar-se que a A. só teve conhecimento dos factos que fundamentam o direito à indemnização que peticiona, em 08.03.2004, quando o Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão emitiu a certidão do processo crime arquivado.

VI. A Ré, por considerar que ao caso dos autos se aplica o prazo de prescrição de três anos previsto no n.º 1 do artigo 498° do Código Civil, veio invocar excepção da prescrição, alegando que decorreram mais de três anos entre a data em que a A. teve consciência da possibilidade legal de ressarcimento dos danos que sofreu em face dos factos cuja responsabilidade civil extracontratual imputa à Ré e a data em que esta foi citada no âmbito da presente acção.

VII. Ora, quanto à questão versada, veio o Tribunal de Primeira Instância, secundado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, em síntese, considerar que para demandar a Ré, com base no ilícito penal, ainda que com responsabilidade meramente civil, a A., teria que recorrer à lide criminal.

VIII. O que não é correcto, pois a A. não estava sujeita à Adesão do art.° 71º do CPP.

IX. Defende o Tribunal “a quo” que enquanto se manteve essa lide criminal, interrompeu-se a contagem do prazo prescricional do n.° 1 do artigo 498° do Código Civil e que esse prazo apenas iniciou a sua contagem, com a notificação do Despacho de Arquivamento, cuja notificação foi efectuada presumidamente em 23 de Fevereiro de 2004.

X. Considera ainda o Tribunal “a quo” que ao caso de autos se aplica a extensão do prazo de prescrição do n.° 3 do artigo 498° do Código Civil, pelo que a prescrição seria de 5 e não de 3 anos.

XI. Concluindo, considera o Tribunal “a quo” que no momento em que a Recorrida intentou a presente acção, ainda não tinha decorrido o prazo prescricional.

XII. No seguimento de semelhante entendimento, veio o Tribunal “a quo’ julgar improcedente a excepção da prescrição invocada.

XIII. Porém e salvo o devido respeito, tal entendimento não pode nem deve proceder.

XIV. Conforme refere o Tribunal a quo, no caso dos autos, perfilam-se dois factos ilícitos imputáveis a diferentes sujeitos: de um lado, possível homicídio, integrador de um ilícito penal, de outro lado um ilícito cível, caracterizado pelo incumprimento de determinados deveres.

XV. Salvo o devido respeito, a Veneranda Relação do Porto, à semelhança do Tribunal de Primeira Instância, errou ao considerar que (não obstante o facto ilícito imputado à Ré, ser diferente do que seria imputado ao possível responsável pela morte do filho da A.), todos seriam solidariamente responsáveis pela reparação do dano, nos termos dos artigos 490° e 497º, n.° 1, do Código Civil.

XVI. E isto porque, ao contrário do entendimento do Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo, a Ré não é solidariamente responsável com o responsável penal pela morte do filho da A., pelos danos que lhes foram causados.

XVII. Por outro lado, para que a Ré pudesse responder civilmente era necessário que se tivessem verificado os seguintes pressupostos:

a) Que sobre os seus órgãos, agentes ou mandatários recaísse igualmente a obrigação de indemnizar (artigo 500°, n.°, 1 do Cód. Civil);
b) Que o acto danoso tivesse sido praticado pelos órgãos, agentes ou mandatários da R, no exercício das funções que lhes tivessem sido confiadas (art. 500º, n.° 2, do CC.);
c) Que ao lado da RÉ ficasse igualmente adstrito à obrigação de indemnizar o seu órgão, agente ou mandatário (artigo 500º, n°s. 1 e 2, do Cód. Civil);
d) Que a RÉ, ao satisfazer a indemnização ao lesado, tivesse direito de regresso contra o seu respectivo órgão, agente ou mandatário, podendo exigir-lhe o reembolso de tudo quanto tivesse pago, desde que tivesse havido culpa deste no plano das relações internas, e isso em face da responsabilidade contratual do órgão, agente ou mandatário para com a pessoa representada (artigo 500°, n.° 3, do C.C.).

XVIII. No caso em apreço, no confronto da responsabilidade civil do comitente e do comissário, a responsabilidade civil extracontratual da Ré, como pessoa colectiva de interesse público, depende necessariamente da verificação, nos termos supra citados, da responsabilidade civil subjectiva dos seus órgãos agentes, ou mandatários.

XIX. Sucede que, a relação material controvertida tal como é configurada pela A. não assenta na responsabilidade civil extracontratual dos órgãos, agentes, ou mandatários da Ré, no exercício das suas funções ou por causa delas.

XX. A relação material controvertida tal como é configurada pela A., assenta apenas nos factos ocorridos nas instalações da Universidade Lusíada, no dia 08.10.2001, entre as 21.45 Horas e as 22.30 Horas.

XXI. Ora, sendo certo que a A. imputa à Ré a responsabilidade civil por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos e agentes, não menos certo é que, não articula factos, indicadores de qual foi, em concreto, o órgão, agente ou representante da Ré, responsável pela prática da actividade ilícita que agora lhe imputam.

XXII. E em nenhum momento alega ou esclarece, quem foi o órgão, agente, ou mandatário da Ré que, em concreto, omitiu os mencionados deveres de conduta.

XXIII. Por conseguinte, não tendo a A. alegado factos concretos que permitam imputar a qualquer dos órgãos, agentes, ou mandatários da Ré, no exercício das suas funções ou por causa delas, a responsabilidade civil extracontratual pelos factos ilícitos em apreço nos presentes autos, jamais poderá tal responsabilidade ser imputada à Ré, enquanto comitente.

XXIV. Pois, conforme resulta do alegado supra, a Ré só poderia ser responsabilizada nos presentes autos se, se demonstrasse a obrigação de indemnizar por parte dos responsáveis dos seus órgãos, agentes, ou mandatários, o que é questão cuja apreciação e discussão a A. nem sequer peticiona nos presentes autos.

XXV. Nesta conformidade, e contrariamente ao referido pelo Tribunal “a quo”, nenhuma responsabilidade solidária existe entre os indiciados no processo crime e a Ré.

XXVI. Na verdade, não só o facto ilícito imputado à Ré, é distinto do facto ilícito que seria imputável aos autores de um alegado crime de homicídio, como também não resulta qualquer vínculo de solidariedade entre a Ré e os supostos autores do crime, quanto à reparação dos danos causados à A.

XXVII. Sendo certo que, para se considerar que existiu um nexo de causalidade entre os factos que determinaram a morte do filho da A. e a omissão de deveres de conduta por parte da Ré, sempre teria de se dar como assente matéria factual que a A. não esgrimiu, ao não alegar os factos concretos que a Ré omitiu.

XXVIII. Assim, por falta de verificação do vínculo de solidariedade entre a Ré e os supostos autores do crime, não poderia o Tribunal “a quo” ter considerado que a instauração do processo crime interrompeu, em relação à Ré, o prazo de prescrição previsto no art.º 498º, n.° 1, do Código Civil.

XXIX. Com efeito, o facto ilícito em apreço nos presentes autos é tão só e apenas o alegado incumprimento de determinados deveres por parte da Ré, que a A. nem se dá ao trabalho de identificar minimamente.

XXX. Ora, não tendo o referido facto ilícito natureza criminal e não existindo responsabilidade solidária, ao contrário do que entendeu o Tribunal “a quo”, deverá aplicar-se o prazo de prescrição do n.° 1 do artigo 498º do Código Civil, que dispõe que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos.

XXXI. Verificando-se que, ao contrário do que defende o Tribunal “a quo”, e como resulta do alegado supra, o prazo de prescrição previsto no n.° 1 do artigo 498°, não se mostra interrompido em relação à Ré.

XXXII. Acresce que, ao contrário do entendimento do Tribunal “a quo”, também não pode ser aplicável à Ré o disposto no n.° 3 do artigo 498° do Código Civil.

XXXIII. Com efeito, a referida disposição legal não é aplicável ao caso em apreço nos presentes autos, pois, como já se referiu, não existiu qualquer averiguação quanto à responsabilidade criminal da Ré, ou de qualquer um dos seus órgãos, agentes ou representantes.

XXXIV. A A. teve conhecimento dos factos que integram a causa de pedir, no dia 16.10.2001, quando, em plena missa de corpo presente de CC, na Igreja de S. Lázaro, em Braga, foi informada por um agente da PSP daquela cidade, das instruções dadas pelo Magistrado do Ministério Público de Braga, no sentido da imediata suspensão do funeral do mesmo, e da consequente remoção do seu corpo para as instalações do Instituto de Medicina Legal competente, a fim de ser proceder à realização de uma autópsia ao corpo do mesmo.

XXXV. Acresce que no âmbito dos referidos autos de processo crime, a A. não ficou vinculada ao principio da adesão obrigatória da acção cível, previsto no artigo 71° do Código de Processo Penal, por força do qual, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser deduzido no processo penal respectivo.

XXXVI. Com efeito, a A., não estava dependente do processo crime, pelo que podia ter deduzido o pedido de indemnização civil separadamente do processo crime, ou, com vista à interrupção da prescrição, ter recorrido a qualquer meio por via do qual transmitisse à Ré a sua intenção de exercer o seu direito à indemnização.

XXXVII. Nesta conformidade, conclui-se como em sede de contestação, que a A. pretende ver efectivado um pedido de indemnização no domínio da responsabilidade civil extracontratual, que se encontra extinto por decurso do respectivo prazo de prescrição, desde 16.10.2004, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 498º, n.° 1, do Código Civil.

XXXVIII. Mesmo que se considere que o prazo de prescrição a aplicar na presente causa corresponderia ao prazo de 5 anos por força da aplicação do n.º 3 do artigo 498° do Código Civil, o que, não se concede e apenas se concebe por mera hipótese de raciocínio, ainda assim, sempre se dirá que o direito da A., há muito, prescreveu.

XXXIX. Com efeito, há mais de 5 anos que foi praticado o alegado facto ilícito ora imputado à Ré, assim como, há mais de 5 anos que a A. tem conhecimento do direito que lhe assiste, mesmo desconhecendo a pessoa do responsável.

XL. Na verdade, não só o facto ilícito imputado à Ré (a omissão do dever de vigilância), é distinto do facto ilícito (o alegado homicídio), que seria imputável aos autores de um alegado crime, como também não resulta qualquer vínculo de solidariedade entre a Ré e os supostos autores do crime, quanto à reparação dos danos causados à A.

XLI. E não resulta qualquer vínculo de solidariedade entre Ré e supostos autores do crime, porque nem a Ré ora Recorrente intervém nos autos na posição de garante de qualquer dos seus órgãos, ou comissário, nem existe nos autos qualquer posição de sub-rogação legal ou contratual, idêntica ao que sucederia com uma Seguradora.

XLII. Não havendo pois solidariedade, nem sendo os mesmos os factos ilícitos praticados pela Ré e alegados autores do crime de homicídio, não tinha a A. necessidade de aguardar pela acção penal, por não ser aplicável o artigo 71° do CPP.

XLIII. E se não carecia de aguardar pelo processo penal, não há lugar à suspensão ou interrupção do prazo, nem se aplica a regra do artigo 306° do Código Civil, ou seja, o prazo de prescrição começou a correr, mesmo antes da interrupção do funeral para início das investigações, a partir do momento em que a A. apurou que o seu filho havia falecido nas instalações da Ré de Vila Nova de Famalicão.

XLIV. Pelo que, também por aplicação do mencionado dispositivo legal, o direito da A. encontra-se extinto por decurso do respectivo prazo de prescrição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 498°, n.° 3, do Código Civil, devendo, em consequência, ser a Ré absolvida do pedido.

XLV. Termos em que, mal andou o Tribunal a quo” ao considerar improcedente a excepção da Prescrição, com o que violou, por erro de interpretação, as normas dos artigos 306°, 490°, 497° e 498°, nºs. 1 e 3, e 500°, todos do Código Civil, e artigos 71° a 73° do CPP.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a procedência da excepção de prescrição, com a consequente improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

Em contra alegações, a autora pugnou pela negação da presente revista.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que, uma vez que a presente revista tem o seu objecto expressamente limitado pela própria recorrente (art.º 684º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) à parte do acórdão recorrido que confirmou a improcedência da excepção de prescrição, os factos assentes com interesse sobre tal questão são apenas os seguintes:

1º - A presente acção foi instaurada nas Varas Cíveis de Lisboa, no dia 16.02.2007, tendo a petição inicial sido enviada através de telecópia e o original sido recebido, na secretaria, no dia 22.02.2007.

2º - Foi requerida a citação prévia da ré, tendo a mesma sido citada pessoalmente no dia 23.02.2007 (fls. 641).

3º - Relativamente à morte do filho da autora, CC, ocorrida no dia 15.10.2001, foi instaurado, em 16.01.2001, Inquérito no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º 126/01.3TAVNF (fls. 95).

4º - Naquele Inquérito foi proferido, em 16.02.2004, despacho de arquivamento nos termos do artigo 277°, n.º 2, do Código de Processo Penal, por se entender que “… não foi possível recolher indícios suficientes susceptíveis de esclarecer qual a origem das lesões traumáticas que determinaram a morte de CC…” (fls. 611-623).

5º - Em 18.02.2004 foi depositada na caixa postal de AA, na qualidade de mãe do falecido CC, a notificação, por via postal simples, do despacho de arquivamento proferido no referido Inquérito (fls. 625 e 628).

6º - No dia 01.03.2004, AA requereu certidão judicial do Inquérito acima identificado, tendo a mesma sido emitida em 08.03.2004 (fls. 629 e 94).

Está apenas em causa nesta revista, como se referiu, saber se ocorreu prescrição, entendendo as instâncias que não por se tratar de uma hipótese de responsabilidade civil extracontratual, por omissão pela ré de diligências de vigilância e controlo sobre as actividades dos seus alunos integradas na praxe académica que decorriam nas suas instalações, e não ter ainda decorrido, à data da citação da ré para a presente acção, o respectivo prazo.

Para decidir a questão importa desde logo atender aos termos em que foi proposta e contestada a presente acção a fim de se determinar se nos encontramos perante uma situação de responsabilidade civil contratual ou extracontratual, sem embargo de quer a recorrente quer a própria recorrida qualificarem a situação como integrando uma hipótese de responsabilidade civil extracontratual, uma vez que no que toca à qualificação jurídica e aplicação das regras do Direito o Tribunal não está sujeito às alegações das partes (art.º 664º do Cód. Proc. Civil).

O que na petição inicial a autora, ora recorrida, afirmava, no tocante à actuação da ré e ora recorrente, era que, frequentando o CC o 4º ano do curso de licenciatura em Arquitectura na Universidade Lusíada de Vila Nova de Famalicão, pólo da mesma Universidade sendo esta propriedade da ré, e membro da respectiva Tuna hierarquicamente sujeito a praxe académica por outros elementos desta, veio a falecer em 15 de Outubro de 2001 em resultado de lesões causadas por práticas praxistas violentas sobre ele exercidas no dia 8 anterior, sendo que a ré tinha o dever de controlar as actividades praxistas dos seus estudantes, nomeadamente dos membros da Tuna, por forma a garantir a segurança e a integridade física dos seus alunos dentro das suas instalações, não o tendo feito, antes permitindo essas práticas por omissão de vigilância e controlo. E acrescenta: “… ao pagar as propinas para que o seu filho pudesse frequentar uma Universidade privada, que teoricamente lhe proporcionaria uma maior qualidade de vida, a autora estava a confiar que seriam proporcionadas ao CC todas as condições para que ele aproveitasse ao máximo a sua vida académica.”

Por sua vez, a ora recorrente não impugna, nem que o CC era seu aluno, por força de contrato pelo qual recebia as correspondentes propinas, nem o dever que a autora lhe atribuía de controlar as actividades praxistas dos seus estudantes, nomeadamente dos membros da Tuna.

Quer dizer: o que a autora/recorrida invocou na petição inicial, foi a celebração de um contrato de prestação de serviços - de ensino, educação ou instrução – entre a ré e ela e seu marido ou o CC, de que faziam parte, pelo menos como deveres acessórios ou laterais, os de vigilância e controle, pela ré, das práticas praxistas no interior das instalações com o objectivo de garantir a segurança, nomeadamente psíquica, e a integridade física, dos alunos, sendo esses os deveres que, no seu entender, foram, autonomamente, incumpridos pela ré, dando posteriormente origem às graves consequências apontadas.

Com efeito, os contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado.

Como se diz no acórdão deste Supremo de 29/04/10, acessível in www.dgsi.pt, “o cumprimento do contrato deve ser pontual – art.º 405º do Cód. Civil – no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto, não se satisfaz, em tempo de cada vez maior eticização das condutas negociais segundo os deveres do tráfego inerentes a cada tipo contratual, com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa fé) entre credor e devedor, sobretudo no domínio das relações intersubjectivas, mormente nos negócios jurídicos, avultando o dever de cooperação, de entre os deveres acessórios de conduta”.

Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada.

Deveres acessórios de conduta, na definição de José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato” - 1986, 42, nota 8, “são os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.

Também o Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, págs. 124/125, depois de referir que, além dos deveres principais ou típicos da prestação nos contratos nominados, existem outros a que se pode chamar de deveres secundários ou acidentais, define os deveres de conduta como aqueles que, “não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cfr. art.ºs 817º e segs.) são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”.

Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé - art. 762°, n°2, do Código Civil - entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte - princípio da concretização.

No mesmo sentido é o Prof. Menezes Cordeiro, que na recente obra “Tratado de Direito Civil Português - II - Direito das Obrigações” - 2010 - pág. 365 e segs., antes de abordar os problemas referentes ao cumprimento e incumprimento do contrato-promessa, alude aos conceitos de cumprimento e de incumprimento, escrevendo acerca daquele:

“Diz-se cumprimento a realização da prestação devida. Pela natureza das coisas, estamos perante uma realidade nodal, no seio das obrigações: a concretização, pelo devedor ou por terceiro, do programa previsto pela obrigação em causa. Podemos simplificar fazendo corresponder, ao cumprimento, quatro princípios:

- princípio da correspondência: a actuação adimplente deve reproduzir, qualitativamente, o figurino abstracto prefixado pela obrigação;

- princípio da integralidade: a prestação não deve ser efectuada por partes (763°/1) prevalecendo uma indivisibilidade de raiz;

- princípio da concretização: a conduta devida deve realizar, no terreno, o interesse do credor;

- princípio da boa fé: na execução do vínculo, há que acatar a medida de esforço exigível e os deveres acessórios existentes, de modo a acautelar os valores fundamentais do ordenamento, através da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente (762°/2).

O princípio da concretização - traz-nos dados novos, que não se continham, necessariamente, na obrigação: eles dependem do terreno em que o cumprimento tenha lugar”.

A Ré, a demonstrar-se a actuação que a autora lhe imputa, poderia ter violado o princípio da concretização, ao não realizar “no terreno” os interesses que sabia serem os do credor, - a Autora ou o CC -, e infringido o dever de actuar de boa-fé ao não acautelar a confiança que estes depositaram na sua prestação, violando deveres acessórios de conduta que, se observados, lhe impunham um vigilância e controle sobre as actividades praxistas dos seus estudantes que obstariam a que delas pudessem resultar consequências gravosas para o CC e permitiriam que este pudesse prosseguir em segurança os seus estudos.

O mesmo é dizer que a ora recorrida imputa à ré a responsabilidade pela morte do CC com base em incumprimento, por esta, de deveres que do contrato celebrado acessoriamente lhe derivavam no que respeita à segurança daquele, como seu aluno. Não se trata aqui, claramente, de um dos deveres principais de prestação decorrentes do contrato de prestação de serviço (dever de ensinar, dever de pagar as propinas), nem mesmo de algum dever instrumental em relação a esses deveres principais, mas de um meio indispensável à prossecução do objectivo visado pela celebração do contrato, ou seja, o de o CC alcançar o termo da licenciatura obviamente com a melhor classificação possível, o que, devido ao óbito, se tornou impossível, mas que mesmo sem tão grave consequência se tornaria mais dificultado perante a invocada violação dos ditos deveres de vigilância e controle, se efectivamente tal violação tiver ocorrido.

Ou seja, a eventual violação dos deveres de vigilância e controle apontados, e da consequente garantia de segurança do CC, deveres esses acessoriamente derivados do contrato celebrado, poderá tornar a ré responsável pelos prejuízos sofridos, nos termos da responsabilidade contratual.

Não é, sem dúvida, unânime a recondução da violação destes deveres acessórios, caracterizados, segundo Mota Pinto, in “Cessão da Posição Contratual”, - reimp., Coimbra, 1982, págs. 337 e segs. -, por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes, e resultantes da sua conexão com o contrato, às regras da responsabilidade contratual (Mota Pinto, ob. citada, pág. 342) ou extracontratual (Pedro Romano Martinez, “Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Coimbra, 2001, pág. 253).

Entende-se, porém, que a solução a este respeito não tem de ser uniforme, antes variando de caso para caso conforme as circunstâncias concretas. Ora, na situação em causa, face à ligação existente entre a realização da prestação principal devida pela ré e a necessidade de esta garantir, nas suas instalações, a segurança dos seus estudantes a fim de realizar aquela prestação, pois no caso contrário difícil se tornaria aos estudantes a frequência das aulas que a ré tinha de lhes facultar, considera-se que do contrato celebrado resultava uma especial obrigação da ré para com a contraparte respectiva de garantir, nas suas instalações, tal segurança, pelo que a violação do dever de a garantir, que a autora lhe imputa, tem de ser encarada à luz das normas relativas à responsabilidade contratual; ao contrário do que sucederia se o lesado por força da inobservância de regras de segurança fosse um terceiro, caso em que apenas poderia haver responsabilidade aquiliana.

Neste mesmo sentido, de se tratar de responsabilidade contratual na hipótese de violação de deveres laterais, se pode apontar o Acórdão deste S.T.J. de 29/04/10 (relator Cons. Sebastião Povoas), in www.dgsi.pt, e Cons. Álvaro Rodrigues, in “Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos”, apud “Direito e Justiça” – XIV. 2000.3 - Separata, 197.

Não há, por isso, que atender aos prazos de prescrição fixados no art.º 498º do Cód. Civil, mas ao prazo ordinário de vinte anos fixado no seu art.º 309º, o qual ainda não decorreu.

Pelo que se entende não se poder reconhecer razão à recorrente, e ser de confirmar, ainda que por diverso fundamento, o acórdão recorrido.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o decidido no acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2010

Silva Salazar (Relator)

Nuno Cameira

Sousa Leite