Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3526
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200412090035262
Data do Acordão: 12/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2722/03
Data: 03/18/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - As instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a;
II - O Supremo só poderá sindicar tal actividade no sentido de averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"A" pede que a Companhia B seja condenada a pagar-lhe a indemnização de 15.934.350$00 pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência de um acidente de viação, ocorrido no dia 11 de Julho de 1998, na Avenida de Badajoz em Elvas, entre o seu veículo ligeiro de passageiros BS, por si conduzido, e o também ligeiro de passageiros FV, seguro na ré e a cujo condutor atribui toda a responsabilidade pelo sinistro.
A ré contestou por impugnação e invocou ainda a inconstitucionalidade da presunção estabelecida no nº3 do artigo 503 do Código Civil, concluindo pela improcedência da acção.
Realizado o julgamento foi proferida sentença, que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a ré a pagar ao autor:
a)as despesas efectuadas em deslocações de Setúbal a Elvas e a Lisboa referidas no nº38 dos factos provados em quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, fixando-se, desde já provisoriamente, a quantia de 498,80euros, acrescida de juros de mora, desde 8 de Março de 2000, estando já vencida a quantia de 109,24 euros;
b)o valor do veículo do autor que ficou destruído, em quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, fixando-se, desde já provisoriamente, a quantia de 498,80 euros, acrescida de juros de mora desde 8 de Março de 2000, estando já vencida a quantia de 109,24 euros;
c)pelo danos patrimoniais, a quantia de 29.206,36euros, acrescida de juros à taxa legal, desde 8 de Março de 2000, estando já vencida a quantia de 6.396,59 euros;
d)pelos danos não patrimoniais, a quantia de 9.975,96 euros, a que acrescem juros de mora, à taxa de 7% a partir desta sentença.
A ré apelou da sentença e a Relação de Évora, julgando procedente o recurso, revogou-a e absolveu a ré do pedido.

É agora a vez do autor pedir revista do acórdão da Relação, com as seguintes conclusões:
1. Sobre a questão da determinação da culpa dos intervenientes no acidente, tem sido jurisprudência firme do Supremo Tribunal de Justiça, como aliás decorre das normas dos artigos 722, nº2 e 729 do CPCivil que a verificação e apreciação dos respectivos pressupostos é matéria da competência exclusiva das instâncias, excepto quando esteja em causa a violação de determinadas normas legais que disciplinem certos procedimentos.
2. No caso em apreço trata-se de actividade - circulação rodoviária - sujeita a uma rigorosa disciplina legal e daí que o Supremo Tribunal de Justiça possa e deva apreciar o modo como foram aplicadas aos factos dados como assentes e interpretadas as normas que ao caso respeitam.
3. Entre outros factos relativos à dinâmica do acidente provou-se que, no dia 11 de Julho de 1998, cerca das 00,30 horas, na Avenida de Badajoz em Elvas, os veículos BS e FV embateram, que a Avª de Badajoz tem duas faixas no sentido de ambos os veículos, sendo a da direita uma faixa de desaceleração, passando a uma faixa única sensivelmente defronte do prédio com o nº49, que o veículo do autor circulava na faixa da esquerda enquanto o FV circulava na faixa da direita, tendo o embate ocorrido quando o veículo do autor passava pelo FV, ultrapassando-o, com o choque o veículo do autor foi embater numa árvore e no portão da moradia existente na referida Avenida, com o nº49, e que o toque havido entre os dois veículos, no que respeita ao BS se situou na parte lateral direita e traseira desse veículo, entre o farolim do lado direito traseiro e a porta traseira.
4. Atentas as circunstâncias de modo e local, acima referidas, em que ocorreu o acidente, tudo indica que o embate ocorreu no sentido da direita para a esquerda, quando o FV se preparava para entrar na faixa da esquerda porque a faixa onde circulava deixaria de existir sensivelmente junto do prédio existente na Avenida de Badajoz com o nº49.
5. Fazendo apelo às regras da experiência, ao senso comum e às presunções aplicadas ao caso em análise nunca poderia concluir-se que o embate entre os dois veículos foi causado pelo excesso de velocidade do autor, já que os factos apurados e assentes indicam que o choque se deu no sentido oposto, isto é da direita para a esquerda.
6. E nesse caso foi o FV que, violando a regra da cedência de passagem a que estava adstrito, foi colidir com o veículo do autor.
7. Tribunal da Relação, conjecturando apenas sobre o excesso de velocidade do autor e a violência dos resultados, e não ponderando as circunstâncias acabadas de referir, igualmente relevantes na análise da dinâmica do acidente, concluiu ser este um caso de nítido e objectivo excesso de velocidade, determinante do acidente, muito embora nada tenha adiantado quanto à forma objectiva como esse excesso de velocidade teria provocado o embate.
8. Ora, não pode extrair-se do excesso de velocidade do autor e da violência dos resultados a conclusão jurídica de que foi o autor o único culpado do acidente, já que nenhum facto foi apurado que permita estabelecer um nexo de causalidade entre tais realidades.
9. É que, como doutamente se refere no acórdão do STJ, de 16/4/1999, AJ, pág.16:«em ultrapassagem ao abrigo do artigo 5º, nº2 do Código da Estrada, sem se saber se efectuada com a sinalização do artigo 6º, nºs 1, 2 e 3 do Código da Estrada, de que depende a sua ilicitude, apresenta-se ilícita a ultrapassagem. Mas esse facto ilícito não bastará para imputar ao condutor a culpa na produção do acidente, por a culpa não poder confundir-se com a violação da norma ou normas destinadas a proteger interesses alheios».
10. No caso dos autos, não se provou que, se o veículo do autor seguisse a uma velocidade mais reduzida dentro dos limites exigidos para o local, o acidente não se teria verificado.
11. Logo, esta contravenção não é por si só geradora de responsabilidade para o autor.
12. Por outro lado, não foram juridicamente equacionados pelo Tribunal da Relação, outros factos, igualmente dados como assentes, que indicam que foi o FV que em violação da regra da cedência de passagem a que estava obrigado, foi embater no veículo do autor, e não o inverso.
13. Ao decidir em contrário, o Tribunal da Relação efectuou uma errada qualificação jurídica dos factos, ao considerar a faixa de desaceleração por onde circulava o FV como uma faixa de rodagem normal, e mais ainda presumiu, embora mal, que o FV seguia já na parte da Avenida de Badajoz em que as duas faixas passam para uma só, quando foi ultrapassado pelo carro do autor, o que não corresponde aos factos dados como assentes.
14. Ao decidir dessa forma violou o acórdão recorrido os artigos 29 do Código da Estrada e 483, 487, 562, 563, 564 e 566, estes do Código Civil.
15. Admitindo-se, contudo, que não se sabe qual foi a causa do embate, isto é, qual dos dois veículos embateu no outro, então terá de concluir-se, como foi decidido na 1ª instância, não ser possível concluir pela culpa do autor e nem pela culpa do condutor do outro veículo.
16. Neste caso funcionará a presunção de culpa do nº3 do artigo 503 do Código Civil, já que, no caso em apreço, não é exigível que o autor faça prova da relação de comissão entre o proprietário do FV e o filho deste, que na altura do acidente conduzia o veículo.
17. Como vem sendo aceite na doutrina e na jurisprudência, a propriedade do veículo faz presumir a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo dono. Neste sentido é ao proprietário que incumbirá o ónus da prova de que não tinha a direcção efectiva do veículo, nem este circulava no seu próprio interesse, quando não, funcionará a presunção de culpa no nº3 do artigo 503 do C. Civil, susceptível de ser ilidida por prova em contrário.
18. É que, obrigar o lesado a provar que o condutor atropelante era comissário do dono do carro, além de contrariar a regra do artigo 342, nº2 do C.Civil, constituiria uma violência, como de resto o proclamou o acórdão do STJ, de 27/10/1998.
19. Ora, como resulta das respostas aos quesitos, não logrou a ré provar que o C, filho do proprietário, conduzia o veículo do pai sem autorização e contra a vontade deste, pelo que sempre haveria responsabilidade civil do condutor, por culpa presumida, nos termos do artigo 503, nº3 do Código Civil, interpretado à luz dos assentos de 14 de Abril de 1993 e de 2 de Março de 1994, por se verificarem os demais pressupostos geradores da obrigação de indemnizar.
20. O douto acórdão recorrido violou, pois, nessa parte os artigos 342, nº2 e 503, nº3, ambos do Código Civil.

A recorrida contra-alegou no sentido da improcedência do recurso e da inconstitucionalidade da norma do nº3 do artigo 503 do Código Civil, por violação dos artigos 12 e 13 da CRP, bem como dos artigos 8º, nº3 e 9º, nº1 do Código Civil.
Por não vir impugnada, nem haver lugar à sua alteração, dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido - artigo 713, nº6 ex vi artigo 726, ambos do Código de Processo Civil.
A questão a decidir é a de saber a qual dos condutores intervenientes cabe a culpa pela eclosão do sinistro.
A 1ª Instância, depois de ter concluído pelo não apuramento da culpa efectiva de qualquer deles, lançou mão da presunção legal de culpa estabelecida no nº3 do artigo 503 do Código Civil - por o condutor do veículo seguro na ré (o FV) ser filho do proprietário do mesmo veículo - e julgou a acção parcialmente procedente.
Em contrapartida, a 2ª Instância concluiu pela culpa efectiva e exclusiva do autor, por conduzir o seu veículo (o BS) com excesso de velocidade e, por isso, dando provimento à apelação da ré, revogou a sentença e absolveu-a do pedido.
É agora a vez do autor se insurgir contra esta decisão, argumentando, em suma, que o facto determinante do embate foi, não o excesso de velocidade que imprimia ao seu veículo, mas antes o de o FV, ao circular pela faixa direita «de desaceleração» da Avenida de Badajoz, não ter cedido a passagem ao BS, tripulado pelo autor, quando este lhe surgiu pela faixa esquerda, antes do ponto em que as duas faixas de rodagem dão lugar a uma só.
Defende a recorrente que a Relação decidiu mal ao considerar a «faixa de desaceleração» como uma faixa normal e que também presumiu mal, por falta de correspondência com os factos assentes, que o FV já circulava na parte da Avenida de Badajoz em que as duas faixas se transformam numa só quando foi ultrapassado pelo BS, conduzido pelo autor.
Vejamos.
Primeiro que tudo, convém relembrar que, nos termos do nº1 dos artigos 342 e 487 do Código Civil, conjugado com o artigo 664 do Código de Processo Civil, cabia ao recorrente o ónus de alegar e provar os factos integradores da culpa do condutor do veículo seguro na recorrida.
A verdade, porém e como bem salienta o acórdão sob recurso, é que o autor, ora recorrente, não logrou provar factos importantes da versão sobre o circunstancialismo do acidente que alegara na petição inicial -- concretamente que o veículo seguro na ré, ora recorrida, tinha entrado na Avenida de Badajoz, proveniente de uma via secundária, sem respeitar um sinal de STOP aí existente, indo embater violentamente no BS.
Na súmula que o acórdão efectuou sobre a fenomenologia do acidente lê-se o seguinte:
«...provou-se antes que o veículo FV circulava já na referida Avenida de Badajoz (o que é substancialmente diferente do alegado em sede da p.i.) na fila da direita, atento o seu sentido de marcha - Varches-Elvas - e que o veículo do A circulava nessa Avenida na 2ª faixa à esquerda.
Depois também se provou que o veículo do A circulava atrás do FV e quis ultrapassá-lo.
Se pretendia ultrapassá-lo era porque o FV seguia à frente do veículo do A e certamente já na parte da Avenida em que as duas faixas passam para uma.

Refere a sentença que a velocidade só por si não é gerador de responsabilidade.
Mas vejamos, se no caso em apreço, a velocidade teve ou não influência no acidente.
Logo a velocidade segundo o próprio Autor era da ordem dos 90Km/hora (cremos até pelos resultados que seria mais) quando a velocidade permitida no local era de 50Km/hora.
Trata-se de um elemento objectivo que não pode deixar de ser considerado, não só porque traduz um desrespeito manifesto das regras estradais, como também foi decisivamente o elemento determinante nas consequências do acidente.
Acresce, como se disse, o excesso de velocidade de veículo causador de acidente pode ser provado atendendo-se a presunção simples e regras de experiência (cfr....).
No caso em apreço, estamos logo perante um dado objectivo, o veículo do A circulava no local do acidente em nítido excesso de velocidade (excedia em cerca de 40km/hora o limite permitido).
De facto, a violência dos resultados são bem denotadores da velocidade que o veículo vinha animado (foi projectado para uma varanda de um 1º andar de uma moradia existente no local, a força do embate arrancou a casca de uma árvore e feriu o tronco e derrubou ainda um muro). E pergunta-se se o veículo circulasse dentro dos limites de velocidade impostos (50km/hor) o embate teria provocado aqueles resultados?
Fazendo apelo às presunções e regras de experiência, temos de reconhecer que jamais um veículo animado a cerca de 50km/hora, ao embater podia provocar semelhantes resultados.
Tudo isto para dizer que no caso em apreço, a velocidade foi de facto determinante no evento.».
Como é sabido, a prova por presunções judiciais, permitida pelo artigo 349 e seguintes do Código Civil, consiste nas ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
É lícito às instâncias utilizarem este tipo de prova, extraindo conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, esclarecendo-a e completando-a.
Situando-se esta actividade no âmbito da matéria de facto, não pode o Supremo - atento o disposto nos artigos 722, nº2 e 729, ambos do Código de Processo Civil - lançar mão dela, mas já poderá sindicar se o seu uso pelas instâncias terá violado alguma norma legal, se apresenta alguma ilogicidade, ou ainda se o facto presumido não assentou na factualidade provada.
Ora, no caso em apreço, a Relação, tomando como base a estrita matéria de facto dada como provada pela 1ª instância e apelando às «presunções e regras de experiência», completou-a e esclareceu-a no sentido de que:

--aquando da ultrapassagem do FV pelo BS, aquele seguia à frente deste e «certamente já na parte da Avenida em que as duas faixas passam para uma», dado ter ficado provado que o BS circulava atrás do FV e quis ultrapassá-lo;
--um veículo automóvel animado com a velocidade de 50km/hora (limite máximo assinalado para o local), jamais poderia provocar os violentos resultados apurados (projecção do autor para uma varanda do 1º andar de uma moradia existente no local, arrancamento da casca de uma árvore e derrube de um muro), pelo que o veículo do autor(BS) até circularia com uma velocidade acima dos confessados 90km/hora.
Não se vislumbrando que violem qualquer disposição legal e porque se contêm dentro dos limites factuais dados como provados, estas conclusões do acórdão recorrido sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente têm que ser acolhidas sem qualquer hesitação.
Daí que se deva também concluir, tal como a Relação o fez, que o sinistro se ficou a dever à culpa exclusiva do próprio autor, porquanto:
--circulava a uma velocidade excessiva - muito acima do limite instantâneo previsto para o local e completamente desadequada às características quer deste (localidade), quer da via (marginada por edificações e constituída por duas faixas que, a determinada altura, se transformam numa só) - e iniciou uma manobra de ultrapassagem do veículo seguro na ré sem se certificar de que a podia realizar sem perigo de colidir com este veículo, que transitava no mesmo sentido, à sua frente;
--em contrapartida, não se provou que o veículo seguro na ré circulasse com violação de qualquer regra estradal ou de qualquer dever de diligência por parte do respectivo condutor, designadamente que, como alegou o autor na petição inicial, tivesse entrado na Avenida de Badajoz sem respeitar um sinal de STOP, ou que, como pretende agora o autor extrair dos factos provados, lhe não tivesse cedido a passagem no ponto de confluência das duas faixas de rodagem.
Com a sua descrita condução, altamente censurável, infringiu, assim, o autor/recorrente as normas dos artigos 24, 25, nº1, al. c) 27, nº1 e 38, nº1, todos do Código da Estrada, aprovado pelo DL 114/94, de 3 de Maio e revisto pelo DL 2/98, de 3 de Janeiro, e como foi essa condução - com sobressaliência para a velocidade excessiva - a exclusiva determinante do acidente deve a ré/recorrida ser absolvida do pedido, conforme bem decidiu o acórdão recorrido.
Em consequência desta solução dada ao recurso fica prejudicado o conhecimento das demais questões nele colocadas - artigo 660, nº2, ex vi artigos 713, nº2 e 726, todos do Código de Processo Civil.
DECISÃO

Pelo exposto nega-se a revista, com custas pelo recorrente.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho