Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
217/09.2JELSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: FINS DAS PENAS
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Doutrina: JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1990, p. 227 e segs.,302,306
Legislação Nacional: CÓDIGO PENAL: ARTIGO 40º E 71º, DL 15/93, DE 22/1: ARTIGO 21
Jurisprudência Nacional: SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - V. G., ACÓRDÃOS, DE 18/OUT./2001, PROC. 2137/01, E DE 30/OUT/2003, IN CJ (STJ), ANO XI, TOMO III, P. 208, E DE 3/NOV./04, IN CJ (STJ), ANO XII, TOMO III, P. 217; DE 21/OUTUBRO/209, PROC. 360/08.5GEPTM E DE 8/OUTUBRO/2009, PROC. 228/08. 5JAFAR, DE 15/7/2009, PROC. 51/08.7ADLSB; DE 7/5/2008, PROC. 1409/08
Sumário :
I - O modelo do CP é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º do CP determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição.
II - O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa. III - Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
IV - Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
V - Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba a própria coesão social, não só pelo enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que lhes anda associado, quer nas famílias, quer decorrente de infracções concomitantes, quer ainda pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico.
VI - A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas – que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores.
VII - A intervenção dos “correios” na logística e nos circuitos de distribuição de estupefacientes suscita problemas específicos, tanto na apreciação, dimensão e projecções de ilicitude, como nas consequentes exigências de prevenção geral.
VIII - Numa certa perspectiva, a actividade dos “correios” pode ser considerada como relativamente marginal, pela natureza fragmentária que revela e pela comum dissociação dos agentes em relação ao domínio das actividades organizadas.
IX - Tem-se por adequada a aplicação de uma pena de 4 anos e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, se o arguido, de nacionalidade brasileira, no âmbito de um transporte como correio de droga, desembarcou no Aeroporto de Lisboa, proveniente de São Paulo-Brasil, trazendo consigo, no interior de uma mala, cocaína, com o peso líquido total de 2907,562 g.
X - No caso, é de afastar a suspensão da execução da pena, pois as finalidades da punição, designadamente as exigentes finalidades de prevenção geral, não poderão ser adequadamente realizadas pela simples censura do facto e ameaça da punição, uma vez que as condições de vida da recorrente, não permitem, formular um juízo de prognose favorável, e pela natureza do crime a simples ameaça da prisão não assegura, de forma adequada e suficiente, as exigências fortes de prevenção geral.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. O Magistrado do Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, de AA, de nacionalidade brasileira, solteiro, mecânico, nascido a …/…/75 em Goiânia, Estado de Goiás, Brasil, filho de J… M… T… e de F… M… T…, residente na A… B…, n° …, J… A…, G…, Goiás, Brasil, imputando-lhe a autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art° 21°, n°1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela anexa I-B, e requerendo a sua expulsão do território nacional.
Na sequência do julgamento, o arguido foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art° 21°, n°1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela anexa I-B, na pena de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão;
Foi também condenado na pena acessória de expulsão e fixar em 10 (dez) anos o prazo de interdição de entrada em Portugal;
O tribunal declarou perdidos a favor do Estado (art°s 35°, n°s 1 e 2, 36°, n°s 1 e 5, 62°, n° 6, ambos do DL 15/93, de 22.1.):
o produto estupefaciente apreendido e examinado a fls. 109 e ordenou a destruição da respectiva "amostra-cofre";
a mala preta apreendida, e ordenou a sua destruição.

2. Não se conformando, o arguido recorre para o Supremo tribunal, com os fundamentos constantes da motivação que apresentou, e que termina com as seguintes conclusões:
1. O recorrente aceita integralmente o conteúdo da matéria de facto considerada provada pelo Colectivo, a qual nenhum reparo lhe merece.
2. Todavia, o acórdão recorrido, embora considerando que o agir ilícito do arguido se traduziu num único transporte de produto estupefaciente, desgarrado de qualquer outra actividade de disseminação desse mesmo produto, ainda assim condenou em medida superior ao seu limite mínimo (5 anos e 9 meses de prisão).
3. Toda a matéria dada como provada e atinente aos requisitos objectivos e subjectivos da infracção - o conhecimento, pelo arguido, desse transporte e a promessa de receber dinheiro pelo mesmo transporte, as dificuldades económicas do arguido que estiveram na base do crime, o facto de este se encontrar bem inserido na sociedade, a constatação, pelo Tribunal, da ausência de antecedentes criminais do arguido pela prática do acto cometido, imporia a que o douto Colectivo considerasse a atenuação especial da pena, nos termos do disposto no artº 72.° n.° 1 e 2 alínea c) do Código Penal, o que não considerou.
4. Ao não atenuar especialmente a pena, o acórdão recorrido violou, por erro interpretativo, o disposto no artº 72.° n.° 1 e 2 alínea c) do Código Penal.
5. Ao assim não ter procedido, violou a instancia, por erro de interpretação, quer o disposto no art. 40.° n.°2, quer o art. 71.°, n.°l e 2, art. 72.° n.°2 alínea c) do Código Penal, tendo ainda violado o disposto no art. 50.° do novo Código Penal ao não haver suspendido a pena de prisão.
Termina, pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, e substituído por outro que condene o recorrente na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução.
O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, defendendo que o recurso não merece provimento.

3. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral teve intervenção nos termos do artigo 416º do CP.
Notificado, o recorrente não se pronunciou.

4. Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência, cumprindo decidir.

5. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 30 de Abril de 2009, cerca das 11 h 02m, o arguido desembarcou no Aeroporto de Lisboa, no voo da TAP 196 proveniente de São Paulo, no Brasil, com destino final Lisboa.
2. Nas instalações do Aeroporto de Lisboa, foi seleccionado para fiscalização de bagagem.
3. No decurso dessa operação, foram detectadas, no interior de uma mala pertencente ao arguido, 3 embalagens de cocaína com o peso líquido total de 2.907,562 gramas.
4. O arguido tinha ainda consigo, destinando-se a serem utilizados para concretização do transporte de produto estupefaciente:
- a quantia monetária de 245,00€ fraccionada em notas emitidas pelo Banco Central Europeu;
- 6 cartões "SIM", sendo 2 da "Vivo Chip", 2 da "TMN", 1 da "Vodafone" e o restante da "Brasil Telecom";
- um cartão de embarque, em nome do arguido, para o voo TP 772, Lisboa-Bilbao, de 30/04;
- um bilhete de passageiro, em nome do arguido, para o mesmo voo;
- uma etiqueta de bagagem, em nome do arguido, para o voo TP 772;
- um "print" de 2 folhas datado de 27/04/2009, em nome do arguido, emitido por "Bolivia Tur SRL" com a indicação de itinerários de voo entre os dias 28/04 e 06/05/2009;
- um "print" da TAP Portugal, em nome do arguido, referente a reservas para os voos TP 196,770,751 e191;
- um cupão de embarque da TAP, voo TP 196, em nome do arguido;
- um cupão de embarque da "AeroSur", em nome do arguido;
- 3 vouchers da "Cardinal Assistance", 2 em nome do arguido e outro em nome de B… C… V…;
- um "print" de reserva de estadia, em nome do arguido, no "Aparthotel Tinoca", sito em Las Palma;
- um voucher da "Cardinal Assistance", em nome do arguido;
- um "print" de itinerário da "Bolivia Tur SRL", em nome do arguido, com duas reservas Bolívia-Brasil de 28/04/2009 e Brasil-Bolívia de 06/05/2009;
- 5 folhas de "Bolivia Tur SRL", uma das quais com reserva electrónica de voo em nome do arguido.
5. O arguido tinha conhecimento de que transportava consigo cocaína assim como da natureza estupefaciente dessa substância, com o único intuito de auferir proventos pecuniários.
6. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
7. O arguido possui nacionalidade brasileira e não tem laços familiares, de emprego ou de amizade em Portugal.
8. O arguido confessou integralmente os factos.
9. O arguido não tem antecedentes criminais registados em Portugal.
10. Oriundo de um casal de razoável condição sócio-económica (pai cartógrafo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mãe funcionária do Departamento de Estradas e Rodagens do Estado de Goiás), frequentou a escola até aos 23 anos de idade. Terminou o 3º grau, equivalente ao nível secundário do ensino português. Completou com êxito um curso de mecânica de 2 anos. Iniciou actividade laboral com 13 anos, como vendedor de uma loja de animais. Trabalhou ainda como introdutor de dados informáticos e mecânico.
Emigrou para Espanha em 2003, onde inicialmente integrou o agregado de uma tia materna e mais tarde, o seu próprio, com uma companheira brasileira e 2 filhos. O último período de permanência em Espanha foi marcado pela ruptura com a companheira, a qual desapareceu durante mais de um ano com o filho mais novo. As crianças estão actualmente entregues ao cuidado da avó paterna. Em Outubro de 2008, regressou ao Brasil. À data dos factos, não exercia ocupação profissional remunerada. Em reclusão, tem um comportamento adequado e recebe visitas da tia residente em Espanha.

6. O recorrente define como objecto de recurso a determinação da medida da pena, com invocação dos pressupostos da atenuação especial, e a justificação para a suspensão da execução da pena, que entende dever ser fixada em quatro anos de prisão.
A seriação lógica dos fundamentos do recurso impõe que primeiramente se aprecie a invocação dos pressupostos da atenuação especial.
Quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade.
Porém, para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo, e em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do artigo 72º do Código Penal.
Para resolver os casos em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida», «mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição» impõem que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a casos especiais, em que concorram circunstâncias que «diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva (cfr., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1990, p. 302).
A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artigo 72º do Código Penal.
O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena – artigo 72º, nº 1.
O nº 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção.
Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula de punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, p. 306; e a constante jurisprudência do Supremo Tribunal - v. g., acórdãos, de 18/Out./2001, proc. 2137/01, e de 30/Out/2003, in CJ (STJ), ano XI, tomo III, p. 208, e de 3/Nov./04, in CJ (STJ), Ano XII, tomo III, p. 217; de 21/Outubro/209, proc. 360/08.5GEPTM e de 8/Outubro/2009, proc. 228/08. 5JAFAR).
No entanto, quando estiverem verificados os pressupostos materiais, a atenuação especial («o tribunal atenua») é uma autêntica consequência jurídica que o tribunal deve declarar.
A atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.
As circunstâncias do caso não permitem, porém, encontrar algum fundamento, seja anterior, contemporâneo ou posterior ao crime, que diminua de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
A actuação do recorrente apresenta, com efeito, como resulta da matéria de facto provada, todas as características próprias de uma operação normal de «correios», e por isso sem a coexistência de qualquer circunstância que torne menos visível ou intensa a ilicitude do facto.
Posteriormente ao crime, o comportamento do recorrente pautou-se por um modelo de normalidade, razoavelmente de esperar em privação de liberdade («tem comportamento adequado»), sem influência para poder constituir elemento de atenuação com as exigências supostas pelo instituto da atenuação especial.
Não pode, pois, haver lugar a atenuação especial.

7. A pena deve, pois, ser encontrada na moldura prevista no tipo legal de crime que o recorrente reconhece ter praticado.
Dispõe o artigo 40º do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - nº 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - nº 2.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz.
A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.
O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).
A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.
Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba o própria coesão social, desde o enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que andas associadas, quer nas famílias, quer por infracções concomitantes, ou pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico.
A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores.
Mas também, por isso mesmo, a dimensão da ilicitude que impõe o primado das finalidades de prevenção geral tem de estar conformada pela situação concreta e pelas variadas formulações, objectivas e subjectivas, da actividade que esteja em causa.
O nível e a densidade da ilicitude constituem, nos crimes de tráfico de estupefacientes, os elementos referenciais das exigências de prevenção geral.
No caso, o recorrente efectuava um transporte por via aérea, do Brasil, dois quilos e novecentas gramas de cocaína, não se demonstrando que tivesse qualquer ligação à origem ou ao destino do produto, nem se provando participação ou interesse no destino ou nas vantagens do comércio; de acordo com os factos provados, o recorrente efectuava um serviço vulgarmente designada, como “correio” de droga.
A intervenção dos «correios» na logística e nos circuitos de distribuição de estupefacientes suscita problemas específicos, tanto na apreciação, dimensão e projecções de ilicitude, como nas consequentes exigências de prevenção geral.
Numa certa perspectiva, a actividade dos «correios» pode ser considerada como relativamente marginal, pela natureza fragmentária que revela e pela comum dissociação dos agentes em relação ao domínio das actividades organizadas de tráfico; constituem, por regra, prestadores avulsos de serviços, sem integração nas organizações, sem intervenção no domínio dos circuitos e sem partilha dos proventos do tráfico organizado.
Mas, do plano das organizações, a utilização de “correios” permite a dispersão dos riscos de apreensão de grandes quantidades unitárias e o benefício logístico da desconcentração do transporte pela utilização de rotas variadas, potenciando os modos de transporte do produto.
Há, pois, por este lado das coisas, uma ponderação no plano da ilicitude e da prevenção geral que não pode ser desconsiderada.
Deste modo, em conjugação destes factores de apreciação e decisão, as imposições de prevenção geral assumem relevância decisiva, consideradas tanto a contribuição da actividade de transporte através de «correios» para a projecção espacial e difusão do produto, como a necessidade de reafirmar, através da sanção a validade dos valores essenciais afectados.
Mas as exigências de prevenção geral têm de ser coordenadas em cada caso com o princípio da culpa e com os limites da culpa. Aqui, as condições pessoais e de vida do recorrente, a confissão (não tanto por si, visto o modo de verificação dos factos, mas como revelação do espaço interior de afirmação e de interiorização do desvalor, que permite pressentir uma reaproximação aos valores afectados), aconselham a acentuação da culpa como limite da função utilitarista da prevenção geral.
Nestes termos, na ponderação de todos os referidos factores e dos critérios do artigo 71º, nºs 1 e 2, alíneas a), d) e e), e a jurisprudência do Supremo Tribunal relativa à determinação das penas em casos de «correios» de droga (cf., v. g., acórdãos de 15/7/2009, proc. 51/08.7ADLSB; de 7/5/2008, proc. 1409/08) fixa-se a pena pelo crime p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, em quatro anos e nove meses de prisão.

8. A pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos deve ser suspensa na execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, nº 1 do Código Penal.
Os factos provados e as condições pessoais do recorrente não permitem, no entanto, um juízo de prognose favorável, e pela natureza do crime a simples ameaça da prisão não assegura, no caso, de forma adequada e suficiente, as exigências fortes de prevenção geral.

9. Nestes termos, concede-se provimento parcial ao recurso, condenando-se o recorrente, pela prática do crime p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de quatro anos e nove meses de prisão.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2010
Henriques Gaspar (Relator)
Armindo Monteiro