Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B4164
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NASCIMENTO COSTA
Nº do Documento: SJ200302060041647
Data do Acordão: 02/06/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1336/02
Data: 06/11/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I
"A" e mulher B, residentes na Rua da ..., Pousos, Leiria; C e mulher D, residentes na Rua ....,; Pousos, Leiria, demandaram em 2-5-95 nesta acção com processo ordinário, E e mulher F, residentes na Rua Dr. ...., . Pousos, Leiria, ( esta última entretanto falecida, encontrando-se habilitados os respectivos herdeiros), e' G e mulher H, residentes na Rua da ....; Pousos Leiria.
Alegaram para o efeito que são comproprietários na proporção de 2/3 para o primeiro casal e 1/3 para o segundo, de um prédio rústico sito em Casal Novo, que identificam completamente.
Em Outubro de 1994, tiveram. conhecimento de que os 1.º réus haviam vendido aos segundos, por contrato titulado por escritura pública, um prédio rústico confinante com aquele de que são proprietários.
Ambos os prédios são de regadio e cultura arvense e hortícola, a soma de ambos é inferior à unidade mínima de cultura fixada para a região de Leiria, os compradores não possuem outro prédio confinante com aquele que adquiriram e os autores não foram informados da venda.
J á requereram acção especial para notificação para preferência dos demais proprietários de terrenos rústicos confinantes com aquele vendido, na qual o respectivo direito lhes foi adjudicado, como melhor consta na referida acção que está apensa aos presentes autos.
Já depositaram o preço da compra, sisa e despesas de escritura.
Pedem:
Que na procedência da acção se condenem os réus a reconhecer que os autores têm direito de haverem para si o prédio alienado pelos 1 Os aos 2°s réus. .
Os réus compradores contestaram (fl. 19) alegando que adquiriram o prédio objecto da preferência com a finalidade de nele construírem uma casa de habitação, tendo para o efeito apresentado na Câmara Municipal de Leiria, em cuja área urbana se situa o terreno, que goza de todas as infra estruturas básicas, um pedido de viabilidade da construção.
Concluem daqui os réus que o prédio é destinado a construção urbana e que por isso não assiste aos confinantes o direito de preferência que invocam.
Os autores responderam à contestação (fl. 42) afirmando que a intenção manifestada pelos réus de destinarem o prédio que adquiriram a construção, não tem apoio na realidade fáctica.
Além de não constar da escritura esta afectação, o pedido de licença para construção só foi apresentado três meses após a data da compra, sendo Certo que os próprios compradores afectaram o prédio à agricultura, nele procedendo ao arranjo das árvores, plantando outras e semeando produtos horticolas, e à plantação de bacelos junto ao caminho.
Concluem daqui os autores que a existir a intenção dos réus em afectarem o prédio à construção, essa afectação foi posterior ao acto da compra, sendo certo que o terreno não se situa na área habitacional ou residencial, não possuindo infra estruturas para o efeito.
Por sentença de fl. 213 e seg., foi julgada procedente a acção.
Apelaram os RR. compradores, tendo a Relação de Coimbra, por acórdão de fl. 269 e seg. , confirmado a sentença.
Ainda inconformados, interpuseram os mesmos RR. recurso. de revista, tendo concluído como segue a sua ALEGAÇÃO:
1- O momento em que o direito de preferência se torna exequível, coincide com a da realização do acto, celebração da escritura pública ou do documento particular que condiciona o seu exercício;
2- E também esse o momento em que se devem ter por verificados os factos que impedem o exercício do direito de preferência;
3- No momento da aquisição era viável e concretizável dar ao prédio um destino diferente do da cultura;
4- Era essa a intenção dos recorrentes;
5- Um ano depois da celebração da escritura de que o direito de preferência depende entrou em vigor no concelho de Leiria um Plano Director Municipal que condicionou a construção de edificações no local onde se situa o imóvel em questão.
6- A afectação pretendida deixou, a partir de então, de ser possível;
7- Sendo o momento de aquisição decisivo para atender se se verificam ou não os condicionalismos que obstam ao exercício de preferência, não se pode dar relevância ao facto de, decorrido mais de um ano a contar dessa data, ter deixado de ser viável a construção de edificações que até então era possível.
8- A decisão recorrida violou o disposto no art° 13800 do Código Civil e deve ser substituído por outra que não reconheça o exercício do direito accionado, por se ter provado que se pretendia dar destino diferente do da cultura ao prédio objecto de preferência e de essa pretensão ser então viável.
ALEGARAM os AA.:
1. A autorização de alteração do uso da ocupação do solo para: fins urbanísticos, em detrimento dos fins agrícolas tem de ser prévia ao próprio acto aquisitivo.
2. Não estando no momento da compra provada a licitude de alteração do uso e ocupação do solo pretendida pelos recorrentes, não se pode dar por verificado o facto extintivo do direito dos Recorridos a preferirem naquela compra prescrito na alínea a), do art.o 1381.º do Código Civil, mas mesmo que assim não fosse, no que não se concede,
A jurisprudência é maioritária em afirmar que não basta aos adquirentes provarem que pretendiam, à data da compra, dar um destino diferente ao prédio do da cultura para obstarem ao direito de preferência dos proprietários confinantes, têm também que provar que essa afectação é legalmente admissível e que nada obsta à sua pretensão de destinar o prédio vendido a :fim que não seja a cultura.
4. Encontra-se inequivocamente provado que não é legalmente possível aos Recorrentes afectar o prédio objecto de preferência à construção e, consequentemente, destinarem o prédio a :fim diferente que não seja o da cultura.
5. Tal facto, a não admissibilidade legal de os Recorrentes edificarem. no prédio a sua casa de habitação, foi trazido ao processo através de articulado superveniente, que foi admitido.
6. Nos termos do disposto no art.o 663.0 do Cód. Proc. Civil a sentença deve tomar em consideração os factos, nomeadamente extintivos do direito ( o prescrito na alínea a) do art.o 1381.0 do Cód Civil) que se produzam posteriormente à propositura da acção.
7. Pelo que, o facto de não ser legalmente possível aos Recorrentes construírem no prédio objecto de preferência tinha de ser valorado pelo, acórdão recorrido, independentemente de o PDM ter entrado em vigor sensivelmente um ano após a data de celebração da escritura pública.

II
MATÉRIA DE FACTO fixada no acórdão recorrido:
1- Os autores são comproprietários, proporção de 2/3 para os autos A e B, e de 1/3 para os autores C e D, de um prédio rústico, sito no lugar do , ...., freguesia de Pousos, Leiria, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de POUSOS, sob o art° 385) , a confrontar do norte e nascente com I, poente J.
2- No dia 22 de Setembro de 1994, no 2° Cartório Notarial de Leiria, E mulher F, declararam vender a G, que declarou aceitar a: venda; o prédio rústico descrito como terra de cultura com videiras e oliveiras, sito nos Casais, Novos, freguesia de Pousos; descrito na matriz rústica sob o art° 3859, a confrontar do sul com L, nascente com I e poente com M.
3- A aquisição a: favor de G, referida na alínea anterior, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Leiria.
4- Os autores tiveram conhecimento do contrato de compra e venda referido em :2) no inicio do mês de Outubro de 1994.
5- Os 1ºs réus, os réus vendedores E e F não deram conhecimento aos autores nem aos outros proprietários de terrenos confinantes do projecto. de venda; - respectivo preço e condições, nem do nome dos adquirentes.
6- Em 2 de Fevereiro de 19995, os autores instauraram processo especial para notificação de preferência, nos termos do disposto nos art°s 1460° e seg. do Cód. Proc. Civil, e ai. lhes foi atribuído o direito de preferência relativamente ao prédio referido em 2), em face do desinteresse dos eventuais preferentes, conforme sentença ai proferida e transitada em julgado.
7- No processo referido em 6) os autores procederam ao depósito na Caixa Geral de Depósitos de esc. 2.644.590$00, respeitantes ao preço, sisa e despesas de escritura.
8- A Câmara Municipal de Leiria deliberou por unanimidade indeferir o projecto de arquitectura de uma moradia, projecto apresentado 1º réu G, para ser construída no prédio referido em 2), " em virtude da pretensão se situar em zona de equipamento, na qual não é possível a execução de quaisquer edificações, conforme disposto no art° 52° do PDM, acresce ainda que a propriedade não é servida por arruamento".
9- Desta deliberação o réu G interpôs recurso contencioso de anulação perante o tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra.
10- Por acórdão da ta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 15 de Dezembro de 1999, foi confirmada a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, que negou provimento ao recurso contencioso interposto por G, aqui 2° réu, da deliberação da Câmara Municipal de Leiria, que indeferiu o projecto de arquitectura de uma moradia no âmbito de processo de licenciamento de obra, sita no prédio objecto da preferência.
11- O prédio rústico referido em 1) tem de área 3. 700 m2 .
12- o prédio referido em 2) tem a área de 3.220 m2.
13- O prédio rústico referido em 1) e que é o inscrito na matriz rústica sob o artº 3857, confina com o rústico referido em 2) e que é o inscrito sob o art° 3859.
14- Ambos os prédios são de regadio, de cultura arvense e hortícola.
15 - Os réus G e mulher adquiriram o terreno referido em.
2) para aí construírem a sua casa de habitação.
16- Já apresentaram na Câmara Municipal de Leiria um pedido de viabilidade de construção de uma moradia para ali edificarem.
17- A cerca de 100 metros do terreno existe iluminação eléctrica e água e junto ao caminho está o colector de esgotos.
18- A casa dos réus G e mulher encontra-se em mau estado de conservação.
19- Os réus podaram as árvores de fruto existentes no prédio.
20- Em parte do prédio os réus plantaram couves e batatas.
21- Plantaram ali bacelos ( vinha) junto ao caminho com o qual o terreno confina.
22- Em parte do terreno semearam milho.
23 - Em parte do terreno plantaram seis árvores de fruto.

III
CUMPRE DECIDIR
Porque este Tribunal tomou já posição em hipótese idêntica (1), vamos transcrever o que então se escreveu:

Não gozam do direito de preferência os proprietários confinantes quando algum dos terrenos se destine a um fim que não seja a cultura-parte final do art°1381°-a) do CC.
Será naturalmente o R. comprador quem alegará esse factor impeditivo do direito de preferência.
A ele competira fazer a sua prova.
A razão de ser da exclusão de preferência em tal hipótese tem de procurar-se no artº 1377°-a) (2).
Os terrenos aptos para cultura (agrícola ou florestal) não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima (art°1376°-1), o que tem que ver com razões económicas (rentabilidade das propriedades rústicas).
Hoje deve referir-se também a preocupação ambiental, como foi já notado em acórdão deste Tribunal (3).
O fraccionamento dos terrenos, designadamente para loteamento, tem fortes implicações no ambiente e. no aproveitamento das terras com aptidão agrícola.
O direito de preferência previsto no art°1380° visando o emparcelamento, insere; se na mesma pretensão legislativa de evitar e combater a pulverização da propriedade rústica.
Entendeu porém o legislador que a proibição do fraccionamento já não tem razão de ser em relação a terrenos que se destinem a algum fim que não seja a cultura.
Isto é, se parte de um terreno for destinado a fim que não de cultura agrícola já não se impede a divisão.
De modo análogo, já não goza do direito de preferência o proprietário confinante se o terreno agrícola alienado se destinar a outro fim que não seja a cultura.
De outro modo, como escreve M. Henrique Mesquita (4), a aquisição de terreno de cultura para outros fins dependeria sempre da boa vontade dos proprietários confinantes.
Ora, acrescenta, a simples declaração de afectação de um terreno de cultura a fim diferente (v. g. a um fim urbanístico), mesmo que conste da escritura de alienação, não basta para precludir o direito de preferência.
Se assim fosse, facilmente se poderia iludir uma norma de ordem pública, como é a do art°1380º.
Mas também não é de exigir que a afectação do prédio a fim diferente exista já ao tempo do negócio.
"A possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente deve depender não do critério egoísta dos proprietários vizinhos, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território.
O normal é que a autorização administrativa só se obtenha após a alienação.
O fim do adquirente não tem de constar da escritura, pode provar-se por outros meios (5).
E mesmo irrelevante que conste da escritura.
Não basta porém que se prove essa intenção.
O adquirente terá de provar ainda que a efectivação dessa intenção é legalmente possível.
Não interessa só a intenção, há que ver em que termos se traduziu na prática esse desígnio (6).
Como manifestações de credibilidade de tal objectivo, referem-se no acórdão deste Tribunal de 21-6-94 (7) as diligências efectuadas pelo adquirente, o seu resultado, justificação ou necessidade daquela intenção e mesmo a aptidão natural do terreno para o fim visado.
No caso dos autos, provou-se que o terreno tem forte potencialidade "aedificandi" - ver supra II-9 a 13.
Ficou assente a intenção do R. de construir um prédio urbano-supra II 7. Logo após a compra procedeu às diligências necessárias-II-18.
A Câmara Municipal de Aveiro licenciou a construção de uma moradia no - terreno-licença de 21-12-84 (fl. 124).

Pelo documento de fl. 178 constata-se que foi concedida nova licença com validade até 21-12-96.
Isto é, tudo indica que não há obstáculos de ordem administrativa à construção.

Conclui-se por isso pela verificação da excepção do art°1380°-a) "in fine", estando em consequência inviabilizada a procedência da acção.»
No caso do processo de onde se transcreveu, verificou-se como se viu, não haver obstáculo de ordem administrativa à pretendido construção.
Neste processo, nunca tal possibilidade ocorreu.
Mais, já depois do negócio em causa, a CML veio a tomar posição contrária à pretensão dos RR.
A acção tinha de proceder.
Nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa 6 de Fevereiro de 2003
Nascimento Costa
Dionísio Correia
Sousa Inês (vencido nos termos de declaração de voto que vai em escrito próprio).
-----------------------
(1) acórdão de 19-3-98, relatado pelo aqui relator, recurso nº 9/98.
(2) Assim se lê no artº 1381º do CC Anot. de Pires de Lima e A.Varela.
(3) ac.. de 18-1-94. in Col. Jur. II tomo I. pg. 46.
(4) Col. Jur. XI. S. pg. 52.
(5) loc. cit, 53 e citado acórdão de 18-1-94
(6) assim o citado acórdão.
(7) Col. Jur. II, tomo II, pg. 155.


DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei que, concedendo-se revista aos réus G, se julgasse a acção improcedente, absolvendo-se os réus do pedido.
A questão a dirimir diz respeito à interpretação e aplicação do disposto no segmento final do artº 1381º, al.a), do Cód. Civil, de harmonia com o qual se nega o direito de preferência (a que se refere o artº 1380º do mesmo Código) quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura.
De harmonia com o artº 1381º, al.a), segundo segmento, do Cód. Civil, não gozam do direito de preferência (a que se refere o artº 1380º do Cód. Civil) os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos (...) se destine a algum fim que não seja a cultura.
Verificados os pressupostos do direito de preferência atribuído pelo artº 1380º do Cód. Civil, o preenchimento de qualquer das hipóteses do artº 1381º do mesmo Código constitui facto impeditivo do direito de preferência, recaindo sobre o preferido o ónus da respectiva prova, nos termos do artº 342º, nº2, sempre do Cód. Civil.
Importa caracterizar a situação que integra aquele facto impeditivo, o de algum dos terrenos se destinar a algum fim que não seja o de cultura.
Antes do mais, cabe ponderar que esta situação é a que ocorra no tempo em que se realiza o negócio jurídico em que se vem preferir. O direito de preferência adquire-se ou não no momento da alienação (1). Circunstâncias anteriores ao negócio ou posteriores são irrelevantes. Isto não implica que o que ocorre em tempo anterior ou posterior seja indiferente, pois que poderá ter o alcance de iluminar o sentido da situação ao tempo em que o negócio se realizou.
É certo que, nos termos do artº 663º, nº1, do Cód. de Procº Civil, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Porém, logo no nº2 da mesma disposição se esclarece que só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida.
Os factos que sejam indiferentes, segundo o direito substantivo, nem sequer se podem considerar impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, no sentido do artº 342º, nº2, do Cód. Civil (2).
Se o tribunal tomar em consideração os factos que ocorram na pendência da lide terá que lhes atribuir os efeitos que, em face da lei substantiva, eles produzam.
Em síntese: é em relação ao tempo da alienação que haverá que aferir se algum dos terrenos (na espécie o que integra o prédio objecto da compra e venda em que se vem preferir) se destina a algum fim que não seja a cultura.
Em segundo lugar, quando a questão esteja colocada em relação ao prédio alienado, o que releva é o fim que o adquirente pretende dar-lhe (3).
Não é necessário, nem aliás basta, que se declare no escrito que dê forma ao contrato a intenção de o adquirente destinar o terreno a um determinado fim, diferente da cultura.
E também não é necessário que, naquele tempo, o terreno se encontre já afectado efectivamente a um fim diferente da cultura, seja por existência de uma classificação legal expressa, seja por uma decisão da Administração Pública, com eventual outorga de licença, seja por nele se encontrarem implantadas construções ou outras obras.
Em terceiro lugar, o fim visado pelo adquirente terá que ser conforme à lei, isto é, não proibido.
O terreno pode, ao tempo da alienação, estar a ser utilizado para fins agrícolas, ou encontrar-se sem ser cultivado (como hoje sucede com tanta frequência: basta percorrer as estradas deste país para se verificar quão grande é a parte dos terrenos que se encontra ao abandono, sem utilização alguma, entregue ao mato, à bicharada e ao fogo).
O que é preciso é que não haja obstáculo de ordem legal, isto é, uma proibição absoluta, a que se dê ao terreno qualquer outro fim que não seja a cultura (mesmo que tal proibição não seja capaz de impedir o abandono das terras, a sua improdutividade (4).
De harmonia com o disposto no artº 1305º do Cód. Civil o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Apesar de tudo, a liberdade de o proprietário dar ao objecto do seu direito o fim que melhor entenda continua a ser a regra.
Os limites e as restrições da lei, apesar de cada vez mais amplos, constituem excepções (5).
Cabe, agora, proceder à aplicação à espécie do direito que se acaba de interpretar.
Sabe-se que os dois prédios, o dos preferentes e o alienado, são de regadio, de cultura arvense e hortícola.
Não obstante, os réus G adquiriram o terreno alienado, a 22 de Setembro de 1994, para aí construírem a sua casa de habitação.
Na verdade, a casa onde os G moram (a que dizem ser arrendada) encontra-se em mau estado de conservação.
Logo a 21 de Dezembro de 1994, o réu G requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Leiria informação acerca da viabilidade de construção no terreno de uma moradia (fls.66).
A 4 de Setembro de 1995, já com a presente acção pendente (6), entrou em vigor o Plano Director Municipal de Leiria (PDM).
A 20 de Março de 1996, o Gabinete do PDM da referida Câmara Municipal, tendo apreciado a pretensão do réu G de construir a moradia à luz do PDM, deu parecer no sentido de não haver inconveniente no deferimento do solicitado (fls. 71).
Nesse mesmo dia, a Câmara Municipal deliberou, depois de analisar o assunto e concordando com a informação do Gabinete do Plano Director Municipal, deferir a pretensão de viabilidade (fls.70 e 128).
A 15 de Abril de 1996, o réu G dirigiu-se ao Presidente da Câmara Municipal de Leiria solicitando a aprovação do projecto de arquitectura daquela moradia (cfr. fls.193).

Aquela Câmara Municipal, em reunião de 3 de Julho de 1996, deliberou aprovar o projecto de arquitectura da moradia apresentado pelo réu G, condicionado à apresentação de projectos complementares e à execução de arruamento de acesso (fls.103, integrada na fotocópia autenticada de fls.102 a 104, e 124).
A cerca de cem metros do prédio adquirido pelos réus G existe iluminação eléctrica, água e, junto ao caminho, está o colector de esgotos.
Deste conjunto de factos resulta que, ao tempo da alienação em que os autores pretendem preferir, o adquirente comprou o prédio com a finalidade de aí construir a casa de habitação da família, ou seja, para um fim diferente do de cultura. Esta finalidade revela-se séria pois que os réus G se mostram carecidos de uma casa de habitação; logo a seguir à aquisição, o réu G requereu informação acerca da viabilidade de construção da pretendida moradia no terreno em causa; mais tarde, obtida informação favorável, apresentou projecto de arquitectura para ser aprovado. E tal projecto chegou a ser aprovado. Finalmente, a pretensão dos réus G revela-se, em relação ao tempo da alienação, não desconforme à lei, pois que se não conhece, por não ter vindo nos autos, qualquer limitação ou restrição de ordem legal a que os réus G fizessem uso das faculdades que lhe são concedidas pelo artº 1305º do Cód. Civil. Não tinham os réus G que fazer prova de qualquer facto em ordem a demonstrar que uma qualquer proibição de construção, ao tempo da compra, se lhes não aplicava: é que nem sequer se aponta qualquer norma, então em vigor, nesse sentido.
Acontece que, a partir de dada altura, na pendência da lide, se diligenciou no sentido de a Câmara Municipal mudar o sentido da sua interpretação e aplicação do PDM, bem como as deliberações tomadas.
Foi assim que, a 30 de Abril de 1996, a senhora Advogada dos autores, em nome próprio, endereçou um requerimento ao Presidente da Câmara Municipal de Leiria pedindo informação dirigida no sentido de não ser permitida a execução de quaisquer edificações por particulares no prédio em causa (fls.82).
E o certo é que a Câmara Municipal, logo na sua reunião de 17 de Julho de 1996, alegando melhor conhecimento da situação (7), manifestou a intenção de indeferir o projecto de arquitectura do réu G, apesar de já deferido na reunião de 3 desse mesmo mês (fls.102); e a 2 de Outubro de 1996 indeferiu o dito projecto com o fundamento de na zona onde se situa o terreno não ser possível a execução de quaisquer edificações, conforme o disposto no artº 52º do PDM, acrescendo ainda que a propriedade não é servida por caminho (fls.112 e 127).
Esta circunstância não altera a conclusão a que acima se chegou: é que o que cabe apreciar é se o fim que o réu G pretendia dar ao terreno adquirido era, ao tempo da aquisição (22 de Setembro de 1994), conforme à lei, não proibido, de passo que o fundamento legal do indeferimento do projecto de arquitectura está no artº 52º, do Plano Director Municipal de Leiria que só entrou em vigor a 4 de Setembro de 1995 (quase um ano depois da compra e venda, já na pendência da lide em juízo). E acresce que, mesmo em relação ao tempo posterior à entrada em vigor do PDM de Leiria, se revela, por um lado, que tudo depende da interpretação que a Câmara Municipal queira fazer da lei (de tal sorte que o que começou por ser permitido à luz do próprio PDM passou a ser proibido) e, por outro lado, que nada é imutável pois que se o que num dia se autoriza amanhã pode ser proibido, também o que se proibiu poderá vir a ser autorizado já depois de amanhã (8) (9). Aliás, o próprio PDM não é imutável (já a 20 de Março de 1996, como refere o Gabinete do PDM, a fls.71, se pretendia a sua revisão em relação ao local onde se situa o terreno em disputa; aliás, a expansão das zonas urbanas é inevitável, por necessária) (10 (11) .
Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês.
---------------------------
(1) Cfr. Alberto dos Reis, no "Anotado", vol. V, pág. 85 a 89, apreciando, precisamente, uma hipótese de preferência, e apoiando-se em Sá Carneiro e Silva e Sousa.
(2) Lebre de Freitas, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 2º, pag. 655, Alberto dos Reis, "Anotado", lugar citado.
(3) Cfr. Henrique Mesquita, in "Direito de Preferência", na Colectânea, 1986, Tomo 5, pag.51.
(4) É a esta luz que se compreende que possa ser economicamente mais útil que se autorize a construção de moradia unifamiliar em terreno com vocação agrícola, pois que o morador irá cultivar uma horta ou um jardim, que deixar as terras ao abandono.
(5) O que fica dito no texto é da maior importância em atenção ao critério da normalidade que se encontra ínsito no artº 342º do Cód. Civil. Por outro lado, a propósito, há que distinguir entre o direito e os factos, uma vez que as regras do ónus da prova só a estes respeitam. Assim, é direito a proibição de se edificar dentro de determinado perímetro de um monumento nacional e facto a determinação da distância a que a edificação que se pretende erguer se encontra do monumento.
(6) Como acima se apontou, a petição inicial ingressou em juízo a 2 de Maio de 1995.
(7) Salta à vista a rapidez com que a Câmara Municipal apreciou o predito requerimento, em quinze dias, contrastando com os quinze meses que foram necessários para ser apreciado o pedido de viabilidade apresentado pelo réu G.
(8) Observa-se que não resulta que o prédio objecto da preferência, sito na freguesia de Poussos, se situe na área da cidade de Leiria, a que se refere o artº 35º, al.a), do Regulamento do PDM de Leiria, ratificado por Resolução do Conselho de Ministros nº 84/95, de 4 de Setembro de 1995. Ora, aquele artº 52º, só respeita à área da cidade de Leiria.
(9) A autorização referida no texto poderá sobrevir, mesmo com referência ao PDM de 1995 (o qual, como se escreveu, não é convocável para a solução do pleito por haver que atender ao tempo da compra e venda, anterior ao PDM), a título de ajustamento de pormenor a que se refere o artº 96º do Regulamento do PDM.
(10) De harmonia com o artº 19º do DL nº 69/90, de 2 de Março, os PDM devem ser revistos sempre que a Câmara Municipal considere terem-se tomado inadequadas as disposições nele consagradas; e, além disso, o PDM e o plano de urbanização devem ser revistos antes de decorrido o prazo de dez anos a contar da data da sua entrada em vigor (no mesmo sentido, o artº 1º, nº2, do Regulamento do Plano Director Municipal de Leiria, aprovado por Resolução do Conselho de Ministros nº84/95, de 13 de Julho, publicada no Diário da República, Série I-B, de 4 de Setembro de 1995). Como neste mesmo dia o PDM entrou em vigor, segue-se que a sua revisão obrigatória deverá ter lugar até Setembro de 2005. Isto significa que com este acórdão, aliás douto, se abre a possibilidade de os autores virem a destinar os dois prédios à construção urbana. É este o horizonte temporal do depois de amanhã do texto supra.
(11) A improcedência da acção, que votei, não significaria que os réus G pudessem erguer no terreno, imediatamente, a sua casa, contrariando a decisão administrativa; mas apenas que os réus G continuariam proprietários do terreno que adquiriram, aguardando a próxima revisão do PDM.