Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15/22.8JBLSB-F.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATAB BRITO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
TRÂNSITO EM JULGADO
PRAZO PARA INTERPOR RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Os requisitos formais do recurso de fixação de jurisprudência consistem na legitimidade do recorrente, na interposição no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, na identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição, no trânsito em julgado também do acórdão fundamento.

II. Os requisitos substanciais consistem na existência de dois acórdãos que respeitem à mesma questão de direito e sejam proferidos no domínio da mesma legislação e que assentem em soluções de sinal contrário sobre essa mesma questão de direito.

III. Relativamente ao requisito da oposição entre soluções de direito, o Supremo consolidou jurisprudência no sentido de que essa oposição tem de se definir a partir de uma identidade de facto encontrada nas situações apreciadas nos dois acórdãos.

IV. Se o acórdão recorrido transitou em julgado em momento anterior ao do trânsito em julgado do acórdão fundamento, falha um dos pressupostos formais de admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência;

V. A condição de o acórdão fundamento ter transitado em julgado em data anterior ao trânsito em julgado do acórdão recorrido decorre da própria racionalidade do recurso extraordinário, pois recorre-se de um acórdão (o acórdão recorrido) com fundamento na sua oposição a um outro acórdão (acórdão fundamento), o qual, logicamente, lhe terá de ser precedente.

VI. Inexiste coincidência de bases factuais relevantes para a decisão sobre a oposição de julgados (pressuposto substancial) entre dois acórdãos que decidiram recursos de prisão preventiva aplicada a diferentes arguidos e sindicaram juízos de indiciação assentes em provas diversas.

Decisão Texto Integral:

Acordam na ... Secção do Supremo Tribunal de Justiça


1. Relatório

No processo nº 15/22.8JBLSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal de ... -Juiz 1, por despacho do Juiz de Instrução Criminal de 26.11.2022, foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva aos arguidos AA e BB.

Inconformados, recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 26.04.2023, transitado em julgado a 11.05.2023, negou provimento aos recursos, confirmando o despacho.

Por considerarem existir uma “oposição de julgados” entre este acórdão de 26.04.2023, transitado em julgado a 11.05.2023, que julgou improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos ora recorrentes, e o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 19.04.2023, transitado em julgado a 24.05.2023, proferido no recurso 15/22.8JBLSB-B.L1, interposto por um outro arguido no mesmo processo, da decisão sobre a medida de coacção que lhe fora aplicada, relativamente à questão de saber se a factualidade indiciada no inquérito é suscetível de integrar crime de associação criminosa, interpõem o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, onde concluem:

“IV. CONCLUSÕES:

II. Do OBJETO E FUNDAMENTO DO RECURSO

B. O presente recurso tem por objeto o Acórdão de 26.04.2023 do Tribunal da Relação de Lisboa, ... Secção, que julgou improcedente o recurso interposto pelos Recorrentes do Despacho do Juiz de Instrução Criminal, proferido em 26.11.2022, que havia determinado, quanto aos Recorrentes, a aplicação, para além do TIR, da medida de coação de prisão preventiva (Acórdão Recorrido);

C. Tendo como fundamento a contradição do Acórdão Recorrido, quanto à mesma questão de direito, com o Acórdão proferido, também nos presentes autos, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ... secção, em 19.04.2023, o qual, incidindo igualmente sobre o Despacho do Juiz de Instrução Criminal, proferido em 26.11.2022, julgou procedente o recurso interposto pelo Arguido CC (adiante Acórdão Fundamento);

D. Nos presentes autos são imputados, indiciariamente, aos aqui Recorrentes e, bem assim, ao Arguido CC, exatamente os mesmos factos;

E. Com efeito, estes três Arguidos, quer no requerimento do Ministério Público que promoveu a aplicação das medidas de coação, quer no despacho do Juiz de Instrução Criminal que as determinou, são "tratados" conjuntamente, não havendo qualquer distinção na conduta que indiciariamente lhes é imputada;

F. Acórdão Recorrido e Acórdão Fundamento decidiram em sentido oposto a questão sobre se a factualidade indiciariamente provada e imputada aos Arguidos é suscetível de integrar o tipo legal do crime de associação criminosa e ainda dos crimes tráfico de seres humanos, branqueamento de capitais e falsificação de documentos.;

G. Sendo que, uma vez que é apenas através da imputação do crime de associação criminosa, que resultam os demais crimes, verdadeiramente o que está em causa é se os factos indiciariamente imputados são suscetíveis de integrar a prática daquele crime;

H. Para melhor enquadramento no ponto 21 a 36 refere-se a sequência de eventos que levou à prolação do Acórdão Recorrido e do Acórdão Fundamento;

III. Do ACÓRDÃO RECORRIDO

I. O Acórdão Recorrido, confirmando o decidido pelo Meritíssimo JIC, concluiu no sentido de que factualidade indiciariamente provada integra a prática pelos Recorrentes dos crimes de Associação Criminosa, p. e p. pelo artigo 299.º; Tráfico de Seres Humanos, p. e p. pelo artigo 160.º; Branqueamento de Capitais, p. e p. pelo artigo 368.º-A; e Falsificação de Documentos, p. e p. pelo artigo 256.º, todos do Código Penal.

J. Ora a factualidade indiciariamente provada imputada aos Recorrentes (e também ao Arguido CC), tal como consta do Acórdão Recorrido (e do Acórdão Fundamento) é somente a seguinte:

"43.º Para além do acima mencionado, DD tem como colaboradores EE, FF, AA, CC, e BB.

(...)

48.º Já AA, CC e BB são funcionários e encarregados das explorações agrícolas, os quais dão preferência ao grupo chefiado por DD, em troca do recebimento de determinadas quantias monetárias, para que este coloque as pessoas que explora a trabalhar nos locais sob sua gestão, tendo perfeito conhecimento que as pessoas em causa não têm contratos de trabalho seguros e quaisquer direitos que um trabalhador normal teria.

49.º São também estres três indivíduos que emitem alertas de ocorrência de alguma inspeção para que os trabalhadores que estão ilegais não compareçam ao trabalho

IV. Do ACÓRDÃO FUNDAMENTO

K. Pelo contrário o Acórdão Fundamento, conhecendo da questão da subsunção dos factos imputados nos referidos ilícitos criminais decidiu no sentido "resulta evidente não se encontrar preenchido o requisito legal da existência de "fortes indícios" da prática de qualquer crime concreto por parte do arguido ora recorrente."

L. Sendo que, os factos imputados ao Arguido CC são somente os já acima indicados, os mesmos que os imputados aos Recorrentes, a saber:

"43.º Para além do acima mencionado, DD tem como colaboradores EE, FF, AA, CC, e BB. (...)

48º Já AA, CC e BB são funcionários e encarregados das explorações agrícolas, os quais dão preferência ao grupo chefiado por DD, em troca do recebimento de determinadas quantias monetárias, para que este coloque as pessoas que explora a trabalhar nos locais sob sua gestão, tendo perfeito conhecimento que as pessoas em causa não têm contratos de trabalho seguros e quaisquer direitos que um trabalhador normal teria.

49.º São também estres três indivíduos que emitem alertas de ocorrência de alguma inspeção para que os trabalhadores que estão ilegais não compareçam ao trabalho."

M. Assim, nos termos referidos, estamos perante, salvo melhor entendimento, Acórdãos que se encontram em clara oposição que não pode subsistir no ordenamento jurídico por, ademais, constituir situação injusta, injustificada, desnecessária, desproporcional e atentatória ao princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.”

O magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1. Os recorrentes têm para o efeito pretendido a necessária legitimidade, o recurso é tempestivo e mostra-se devidamente identificado o acórdão fundamento.

2. Limitando-se a alegar que este último transitou em julgado, mas não instruindo o recurso com a respectiva certidão, nem indicando a data em que tal trânsito em julgado ocorreu, a referida omissão poderia vir a ser suprida nos termos do disposto no artigo 440.º, nº 2, do Código de Processo Penal.

3. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento não oferecem soluções, para situações de facto em tudo idênticas, que se encontrem em manifesta oposição, nem se vislumbra qual a norma jurídica que foi interpretada diferentemente em ambas as decisões e que terá permitido a alegada oposição de julgados.

4. Na realidade, ambos os arestos procedem apenas a uma aplicação do direito à matéria de facto que consideraram indiciada, sendo que esta não era, de modo algum, coincidente nos dois casos.

Concluindo-se, assim, pela inadmissibilidade do recurso.”

No Supremo Tribunal de Justiça, e em cumprimento do art. 440.º, n.º 1, 1ª parte, do CPP, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se desenvolvidamente no sentido da rejeição do recurso, argumentando, designadamente:

“1. AA e BB, arguidos no processo de inquérito 15/22.8JBLSB, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de abril de 2023, proferido no recurso penal 15/22.8JBLSB-F.L1, alegando que o mesmo está em oposição com o acórdão do mesmo tribunal de 19 de abril de 2023, proferido no recurso penal 15/22.8JBLSB-B.L1, relativamente à questão de saber se a factualidade indiciada no mencionado inquérito é suscetível de integrar o tipo do crime de associação criminosa (v. as conclusões F e G).

2. O recurso foi interposto em 14 de junho de 2023 (fls. 2 e fls. 126).

3. Na sua resposta, o Sr. procurador-geral-adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa disse que não «vislumbra qual a norma jurídica que foi interpretada diferentemente em ambas as decisões e que terá permitido a alegada oposição de julgados» e que «ambos os arestos procedem apenas a uma aplicação do direito à matéria de facto que consideraram indiciada, sendo que esta não era, de modo algum, coincidente nos dois casos» (fls. 121 e seguintes).

4. Cumpre-nos emitir parecer (art. 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

5. Nesta fase preliminar importa tão-só aquilatar da verificação dos pressupostos do recurso (arts. 440.º, n.ºs 1 e 3, 441.º, n.º 1, e 442.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e acórdão n.º 5/2006 do Supremo Tribunal de Justiça, relatado pelo conselheiro CARMONA DA MOTA, publicado no Diário da República, I Série A, n.º 109, de 6 de junho de 2006).

6. A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência está condicionada ao preenchimento de requisitos formais e substanciais (arts. 437.º e 438.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal)

7. Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente, «restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis», o interesse em agir, «no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis», a interposição do recurso «no prazo de 30 dias a partir do trânsito da decisão proferida em último lugar», a «identificação do acórdão que está em oposição com o recorrido, não podendo ser invocado mais do que um acórdão» e o «trânsito em julgado de ambas as decisões» (do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de fevereiro de 2013, processo 561/08.6PCOER-A.L1.S1, 3.ª Secção, relatado pelo conselheiro MAIA COSTA, www.stj.pt). Quanto a esta última condição há que salientar que o acórdão recorrido tem de ter transitado em momento posterior ao do trânsito do acórdão fundamento (JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, volume II, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, págs. 734-735, comentários 8.d. e 11.).

8. Constituem requisitos de ordem substancial a «existência de oposição entre dois acórdãos do STJ, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão de uma Relação e um do STJ», oposição essa referida «à própria decisão e não aos seus fundamentos» e a «identidade fundamental da matéria de facto» subjacente aos arestos em confronto (do acórdão do Supre-mo Tribunal de Justiça de 13 de fevereiro de 2013 lavrado no processo 561/08.6PCOER-A.L1.S1 previamente citado). A exigência de oposição de julgados considera-se preenchida «quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente e de modo expresso (e não apenas tacitamente)», a «mesma norma ou segmento normativo» é «aplicada(o) com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes» (do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de outubro de 2020, processo 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, relatado pelo conselheiro ANTÓNIOCLEMENTE LIMA, www.dgsi.pt).

9. Retomando o caso.

10. Na sequência das diligências determinadas pela Sr.ª juíza conselheira relatora (fls. 132-133) apurou-se que o acórdão recorrido transitou em 11 de maio de 2023 (fls. 136).

11. O prazo de 30 dias de interposição do recurso de fixação de jurisprudência (art. 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), expirou, por isso, em 12 de junho de 2023, segunda-feira (arts. 138.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 104.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

12. Tendo o recurso sido apresentado em 14 de março de 2023, ou seja, no 1.º dia útil subsequente ao termo do prazo (o dia 13 de junho foi feriado), a sua validade dependia do pagamento imediato de uma multa equivalente a 0,5 UC (arts. 107.º-A, al. a), do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).

13. Como essa multa não foi paga importa dar cumprimento do disposto no art. 139.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, o que se promove.

14. Caso assim não se entenda.

15. Os recorrentes, cuja legitimidade e interesse em recorrer, enquanto arguidos cuja prisão preventiva foi confirmada pelo acórdão recorrido, não se questiona, juntaram cópia simples do acórdão recorrido (fls. 13 e seguintes) e do acórdão fundamento (fls. 86 e seguintes).

16. De acordo com a informação do processo 15/22.8JBLSB-B, o acórdão fundamento transitou em 24 de maio de 2023 (fls. 142), ou seja, após o trânsito do acórdão recorrido (v. uma vez mais fls. 136).

17. Conforme previamente referido, o trânsito em julgado do acórdão fundamento deve ser anterior ao do acórdão recorrido (cf. art. 437.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).

18. Donde que o recurso deva ser rejeitado em razão da falha desse requisito formal.

19. Para além disso afigura-se igualmente evidente que inexiste oposição de julgados entre os dois acórdãos.

20. O acórdão recorrido analisou as provas existentes nos autos, máxime as conversações telefónicas intercetadas, e concluiu que as mesmas evidenciavam as «participações conscientes no âmbito da organização criminosa» por parte dos recorrentes (v. págs. 143 a 145 do acórdão).

21. O acórdão fundamento analisou as mesmas fontes probatórias e, acompanhando nessa parte a posição do Sr. procurador-geral-adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, concluiu que «com base única e exclusivamente em tais elementos probatórios, não se mostra possível imputar ao [coarguido CC], nesta fase da investigação, indícios suficientes da prática dos crimes de participação em associação criminosa …» (fls. 116 verso a 118 dos autos).

22. Ou seja, a divergência entre os acórdãos não se situa no plano da interpretação e aplicação de qualquer normativo jurídico, mas no da leitura e avaliação da robustez das provas indiciárias recolhidas no inquérito relativamente a cada um dos arguidos/recorrentes.

23. Naturalmente que a partir do momento em que as referidas premissas de que os arestos em confronto partem são dissemelhantes, o juízo quanto ao cabimento das condutas no crime de associação criminosa teria de ser diferente.

24. Daí que, também pela vertente substancial, o recurso decairia.

25. Aqui chegados, só nos resta concluir que, seja pela falência do pressuposto formal que obriga que o acórdão fundamento transite antes do acórdão recorrido, seja pela falência do pressuposto substancial da existência de oposição de julgados, o recurso deve ser rejeitado (arts. 440.º, n.º 3, e 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal).”

O recorrente respondeu ao parecer, contrapondo:

“2. Sustenta o Digno Procurador-Geral Adjunto do Supremo Tribunal de Justiça nos pontos 16 a 18 do Parecer que, em virtude de o acórdão fundamento ter transitado em 24 de maio de 2023, ou seja, após o trânsito do acórdão recorrido, que ocorreu no dia 11 de maio de 2023, e uma vez que no seu entender “o trânsito em julgado do acórdão fundamento deve ser anterior ao do acórdão recorrido” então consequentemente, o “recurso deve ser rejeitado por falha desse requisito formal”.

3. No que se concerne à data do trânsito em julgado do Acórdão Fundamento, a informação fornecida aos autos foi que este apenas transitou em 24 de maio de 2023, no entanto, afigura-se aos Recorrentes que esta data não pode estar correta tratando-se com certeza de um mero lapso, porventura resultante da contabilização do prazo de recurso, quando o mesmo não era admissível.

4. Com efeito, é do conhecimento dos Recorrentes que o Acórdão Fundamento foi notificado no próprio dia em que teve lugar a conferência que julgou o recurso, em 19 de Abril de 2023, quer ao mandatário do arguido, por Citius, quer ao arguido tendo, inclusive, este último, sido colocado em liberdade volvidas apenas algumas horas da decisão, deixando de estar sujeito à medida de OPHVE e passado a estar sujeito apenas ao TIR.

5. Pelo que será no mínimo estranho que o Acórdão Fundamento, que não admite recurso, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, a contrario, apenas tenha transitado em julgado volvido mais de um mês, em 24 de maio de 2023, como informou nos autos o Tribunal Central de Instrução Criminal,

6. Só assim, poderia suceder se equacionarmos que a procuradora do Ministério Público do Tribunal de Instrução Criminal, responsável pelo processo e investigação, tenha sido notificada do Acórdão Fundamento mais de 3 semanas após a decisão do recurso, o que se mostra altamente improvável, tanto mais que a referida decisão determinou a colocação em liberdade de um arguido e, por outro lado, o Acórdão Recorrido (proferido posteriormente ao Acórdão Fundamento, em 26 de abril de 2023), terá sido rapidamente notificado a todos os sujeitos processuais, incluindo o Ministério Público, atendendo à data indicada de trânsito do mesmo.

7. Atendendo ao exposto e às dúvidas fundamentadas sobre a efetiva data do trânsito do Acórdão Fundamento, desde já se requer que se solicite informação sobre a data de notificação aos Arguidos, seus mandatários e ao Ministério Público do Acórdão Recorrido e do Acórdão Fundamento.

8. Sem prejuízo do acima referido, ainda que se verifique que o Acórdão Fundamento transitou em julgado em momento posterior ao Acórdão Recorrido, o que prevê no n.º 4 do artigo 437.º do CPP é que: “ como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado” ou seja, aquando da interposição do recurso o que se exige é que o acórdão fundamento já tenha transitado em julgado, como sucedeu in casu e não, como se refere no Parecer que o acórdão fundamento tenha transitado antes do acórdão recorrido.

9. Neste sentido, veja-se a título meramente exemplificativo os seguintes acórdãos, ambos do STJ:

Acórdão de 13 de Janeiro de 2021- processo n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1

“II – São, pressupostos formais:

a) a legitimidade do recorrente;

b) o trânsito em julgados dos acórdãos conflituantes;

c) interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido;

d) a invocação e junção de cópia do acórdão fundamento ou pelo menos identificação de publicação oficial onde terá sido publicado;”

Acórdão de 12 de Dezembro de 2018 – processo n.º 5668/11.0TDLSB.E1.C1-A.S1

“I - O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência pressupõe, em face da disciplina consagrada nos arts. 437.º e 438.º do CPP, a verificação de pressupostos, de índole formal e substancial, assunto sobre o qual a jurisprudência do STJ se tem debruçado com frequência. II - Constituem pressupostos, de índole formal: -a interposição no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido); -a identificação do aresto com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição;- indicação, caso se encontre publicado, do lugar de publicação do acórdão fundamento;-o trânsito em julgado dos dois arestos (aresto recorrido e aresto fundamento);-a indicação de apenas um aresto fundamento.”

10. Nestes termos, tendo o presento recurso de uniformização sido interposto após ambos os Acórdãos, Recorrido e Fundamento, terem transitado em julgado, não se verifica a apontada falta de requisito formal

11. Adicionalmente, refere o Parecer que o presente recurso deve ser rejeitado por falta do pressuposto substancial, ou seja, em virtude da “divergência entre os acórdãos não se situa no plano da interpretação e aplicação de qualquer normativo jurídico, mas no da leitura e avaliação da robustez das provas indiciárias recolhidas no inquérito relativamente a cada um dos arguidos/recorrentes”.

12. Sucede que, como exposto, no Requerimento apresentado a contradição/divergência entre o Acórdão Fundamento e o Acórdão Recorrido assentam no facto de no Acórdão Fundamento ter concluído no sentido de que a factualidade indiciariamente provada não consubstancia a prática dos crimes imputados tendo ao invés, no Acórdão Recorrido se entendido que a factualidade indiciariamente provada consubstanciava a prática dos crimes imputados.

13. Dito por outras palavras, o Acórdão Fundamento, entendeu que a factualidade indiciariamente provada não consubstancia a prática dos crimes imputados ao Arguido CC e assim que não se encontrava preenchido o requisito legal da existência de fortes indícios da prática do crime, pelo que considerou prejudicadas as demais questões suscitadas, designadamente, o juízo sobre a necessidade e adequação da medida de coação aplicada,

14. Já o Acórdão Recorrido, conforme já adiantado, conclui no sentido de que de acordo com a factualidade indiciariamente provada “não restam quanto à sua correcta subsunção jurídica, devidamente efectuada na decisão recorrida, a saber:- um crime de Associação Criminosa, p.e.p. pelo artigo 299.º; pelo menos trinta e um (correspondente ao número de vítimas até agora inquiridas) ...”.

15. Ora, a factualidade indiciariamente provada imputada aos Recorrentes e também ao Arguido CC do Acórdão Fundamente é exatamente a mesma e somente a seguinte:

“43.º Para além do acima mencionado, DD tem como colaboradores EE, FF, AA, CC, e BB.

48.º Já AA, CC e BB são funcionários e encarregados das explorações agrícolas, os quais dão preferência ao grupo chefiado por DD, em troca do recebimento de determinadas quantias monetárias, para que este coloque as pessoas que explora a trabalhar nos locais sob sua gestão, tendo perfeito conhecimento que as pessoas em causa não têm contratos de trabalho seguros e quaisquer direitos que um trabalhador normal teria.

49.º São também estres três indivíduos que emitem alertas de ocorrência de alguma inspeção para que os trabalhadores que estão ilegais não compareçam ao trabalho.”

16. Nestes termos, sendo, portanto, os factos indiciariamente provados exatamente os mesmos, para estes três sujeitos processuais (Recorrentes e Arguido CC),os Acórdãos Fundamento e Recorrido no que se concerne à questão de saber se estes seriam suficientes para imputar o crime de associação criminosa, dos quais resulta a imputação dos demais crimes, deveriam ter decidido ambos no mesmo sentido, o que não sucedeu.

17. Atendendo, ao supra exposto dúvidas não subsistem de que não, está em causa analisar se os elementos probatórios recolhidos nos autos entre eles, escutas telefónicas e demais elementos, são suficientes para imputar aos Recorrentes e ao Arguido CC os factos indiciariamente provada, mas sim, se a factualidade indiciariamente provada consubstancia a prática dos crimes imputados a todos, questão esta decidida em sentido divergente no acórdão fundamento e no acórdão recorrido.

18. Pelo que, contrariamente ao sustentado no Parecer, encontra-se igualmente verificado o pressuposto substancial do presente recurso.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exa deverá: i. ser solicitada informação aos autos principais sobre a data de notificação aos Arguidos, aos seus mandatários e ao Ministério Público do Acórdão Recorrido e do Acórdão Fundamento. ii. O presente Recurso Extraordinário ser admitido sendo os Recorrentes notificados para apresentarem as suas alegações.”

Os recorrentes responderam ao parecer reiterando as razões do recurso, foram notificados para juntarem certidão do acórdão fundamento com a certificação da data do trânsito em julgado, e, junta tal certidão, teve lugar a conferência.

2. Fundamentação

O recurso de fixação de jurisprudência encontra-se previsto no Capítulo I, do Título II, do Livro XIX do CPP, e os arts 437.º (Fundamento do recurso) e 438.º (Interposição e efeito) disciplinam os requisitos de natureza formal e substancial para a admissibilidade deste recurso extraordinário.

De acordo com estes preceitos legais, os requisitos formais do recurso de fixação de jurisprudência consistem na legitimidade do recorrente, na interposição no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, na identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento, com menção da sua publicação se estiver publicado), no trânsito em julgado também do acórdão fundamento.

Os requisitos substanciais consistem na existência de dois acórdãos que respeitem à mesma questão de direito e sejam proferidos no domínio da mesma legislação (sem ocorrência de alteração no texto da lei que regula a situação controvertida) e que assentem em soluções de sinal contrário sobre essa mesma questão de direito.

Relativamente ao requisito da oposição entre soluções de direito, o Supremo consolidou jurisprudência no sentido de que essa oposição tem de se definir a partir de uma identidade de facto, de uma homologia encontrada nas situações de facto apreciadas nos dois acórdãos.

Assim, considerou-se no acórdão do STJ de 28/10/2020 (Rel. Augusto Matos), que “a oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário”. E “ao mesmo tempo, as soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito”.

E reiterou-se no acórdão do STJ de 21.04.2021 (Rel. Nuno Gonçalves), mantendo uma jurisprudência do Supremo há muito uniforme, que “o pressuposto material da identidade da questão de direito exige que: a. as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham consagrado soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; b. as decisões em oposição sejam expressas; c. as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões. Não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.”

No presente caso, e como o Ministério Público sinaliza no parecer, o presente recurso claudica logo ao nível de um dos requisitos formais.

Na verdade, como o Senhor Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo pertinentemente observou, “entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente, «restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis», o interesse em agir, «no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis», a interposição do recurso «no prazo de 30 dias a partir do trânsito da decisão proferida em último lugar», a «identificação do acórdão que está em oposição com o recorrido, não podendo ser invocado mais do que um acórdão» e o «trânsito em julgado de ambas as decisões». Quanto a esta última condição há que salientar que o acórdão recorrido tem de ter transitado em momento posterior ao do trânsito do acórdão fundamento (José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, volume II, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, págs. 734-735, comentários 8.d. e 11.)” (itálico nosso).

Esta condição - de o acórdão fundamento ter transitado em julgado em data anterior ao trânsito do acórdão recorrido – decorre, coerentemente, da própria racionalidade deste recurso extraordinário.

Na verdade, recorre-se de um acórdão (o acórdão recorrido) com fundamento na sua oposição a um outro acórdão (acórdão fundamento), o qual, logicamente, lhe terá de ser precedente. E qualquer acórdão só se torna definitivo com o trânsito em julgado, condição aliás expressamente exigida no âmbito do presente recurso, sendo essa a data que releva, quer para a tempestividade da interposição, quer para a verificação do cumprimento dos demais requisitos formais de admissibilidade.

No que se concerne à data do trânsito em julgado do acórdão fundamento, de acordo com a certidão junta ao processo pelo próprio recorrente após convite, constata-se que o trânsito ocorreu a 24.05.2023. Ou seja, em data posterior ao trânsito do acórdão recorrido, sucedido a 11.05.2023.

Na resposta ao parecer, o recorrente questionou a correcção da certificação da data do trânsito em julgado do acórdão fundamento. Por isso lhe foi dada a oportunidade (a possibilidade) de poder pugnar, em seu prudente critério e no local próprio, pela eventual correcção da data do trânsito do acórdão fundamento. Assim podendo obter o recorrente no processo, e juntar aqui ao recurso, a certidão que nos termos da lei sempre lhe competiria apresentar (arts. 438.º, n.º 2, e 440.º, n.º 2, do CPP). Decisão (de eventual correcção da data do trânsito) que nunca competiria ao Supremo proferir, no âmbito do presente recurso.

Ora, da certidão que entregou resulta apenas a confirmação das datas de trânsito em julgado inicialmente enunciadas, pelo que falece um dos requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.

Assim sendo, nada mais cumpre apreciar, pois a verificação dos pressupostos substanciais de admissibilidade pressupõe o cumprimento dos requisitos formais, que necessariamente lhe precedem.

No entanto, não deixa de se aditar que aqui sempre falhariam, também, os pressupostos substanciais, o que resulta logo claro da leitura do recurso.

Como se sabe, o recurso de fixação de jurisprudência é um recurso normativo, não podendo ser utilizado como se de um recurso ordinário se tratasse, visando tão só a alteração do decidido no processo. E não se exigindo embora uma identidade total ou absoluta entre os dois “pedaços de vida” que terão conduzido às soluções de direito em oposição, eles têm de se equivaler “para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exactamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo”(acórdão do STJ de 26.06.2014, Rel. Souto de Moura).

Tendo o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência de assentar em julgados explícitos que abordem de modo oposto a mesma questão de direito, no sentido amplo que se enunciou e que exige a similitude de base factual relevante para a decisão, da leitura do recurso resulta claro que aqui nunca se verificaria a oposição.

Com efeito, nem é possível configurar a coincidência de bases factuais relevantes para a decisão, nem sequer se descortina a que concreto problema de direito se referem os recorrentes, que teria sido alvo de diferente solução em cada um dos acórdãos. Acórdãos que respeitam a decisões de recursos interpostos de medidas de coacção aplicadas a diferentes arguidos.

Senão, revejam-se as seguintes passagens do acórdão fundamento: “(…) Ouvidas as declarações do arguido (que negou receber quaisquer recebimentos de dinheiro pela escolha na contratação de DD) e sobretudo as aludidas intercepções das conversações telefónicas que constituem o elemento de prova relevante” - intercepções que se detalharam no acórdão fundamento e que respeitam a conversações telefónicas desse arguido e não dos ora recorrentes – “(…) no que respeita aos crimes de associação criminosa, branqueamento de capitais e falsificação … Do que se vem de dizer forçosamente que com base única e exclusivamente em tais elementos probatórios não se mostra possível imputar ao arguido nesta fase de investigação indícios suficientes da prática de crimes…”

Mais adiante reitera-se no mesmo acórdão fundamento, com meridiana clareza e relativamente ao crime de associação criminosa – que seria o único que, na argumentação dos recorrentes, estaria agora em causa no presente recurso – conclui-se “pela insuficiência de indícios de crime de associação criminosa”. Para se rematar, a final, que “resulta evidente não se encontrar preenchido o requisito legal da existência de “fortes indícios” da prática de qualquer crime pelo arguido” (itálico nosso).

Ou seja, o acórdão fundamento, ao que ora interessa, pronunciou-se sobre um juízo de indiciação da prática de crime(s) pelo arguido nele visado. Juízo de indiciação concernente a acções de pessoa diversa dos ora recorrentes, formulado com base em provas respeitantes a factos imputados àquele arguido e claramente diversas das provas apreciadas no acórdão recorrido, estas sim respeitantes aos factos imputados aos recorrentes.

Já o acórdão recorrido tratou da sindicância do juízo de indiciação da prática de crime(s) pelos ora recorrentes, procedendo a avaliação das provas dos factos a estes respeitantes.

Desde logo, inexistiu identidade de prova por declarações de arguidos - cada um prestou, ou não prestou, as suas -, de prova por intercepções telefónicas, e de muitas outras provas que se encontram exaustivamente descritas nas duas decisões em confronto e relativamente a cada um dos (três) denunciados.

Trata-se, assim, de decisões respeitantes a juízos de indiciação, juízos formados a partir de provas distintas, respeitantes a acções imputadas a diferentes arguidos. Em suma, inexiste qualquer identidade nas situações de facto apresentadas.

Acresce que não se mostra sequer devidamente enunciado o problema de direito que teria alegadamente merecido resposta dissonante, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento.

3. Decisão

Em face do exposto, por falta dos necessários requisitos formais e substanciais, decide-se rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelos arguidos.

Pagarão os recorrentes, cada um deles, 4 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 31.01.2024

Ana Barata Brito, relatora

Maria do Carmo Silva Dias, adjunta

Pedro Branquinho Dias, adjunto