Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
239/07.8TBSTS.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
TRESPASSE
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
CULPA IN CONTRAHENDO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - A expressão “objecto do negócio jurídico”, inserta no art. 280.º do CC, que comina de nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, pode ter dois sentidos: um, correspondente ao objecto imediato, ou conteúdo, sendo preenchido pelos efeitos jurídicos que o negócio tende a produzir; o outro, correspondente ao objecto mediato, ou objecto stricto sensu, consistente naquilo sobre que incidem os efeitos do negócio.

II - Na universalidade que constitui o estabelecimento comercial integra-se a licença administrativa para funcionamento, elemento essencial da sua estrutura orgânica e funcional, pois que, sem ela, não é legalmente admissível a laboração; mas não é condição sine qua non, bastando que o complexo da sua organização económica esteja pronto ou apto a entrar em movimento.

III - Um estabelecimento comercial pode ser objecto de trespasse mesmo que ainda não esteja a ser explorado ou, inclusive, incompleto e em via de formação, não sendo necessário, para se falar em trespasse, que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento, sendo admissível o trespasse parcial.

IV - A falta de menção no contrato-promessa de trespasse de um estabelecimento de restauração e bebidas, celebrado em 31-07-2004, da existência de alvará de licença de utilização, conduz à nulidade desse contrato, ao abrigo do estatuído no art. 14.º, n.º 2, do DL n.º 168/97, de 04-07, com a redacção introduzida pelo DL n.º 57/2002, de 11-03.

V - Todavia, importa realçar que se está perante um contrato-promessa, do qual unicamente advém o efeito obrigacional de realizar o contrato prometido, e que a impossibilidade legal originária verificada é meramente temporária, porque é susceptível de desaparecer num momento em que prestação ainda oferece interesse ao credor (art. 792.º, n.º 2, do CC), pois que até à celebração do contrato prometido pode perfeitamente o promitente trespassante obter a licença em falta.

VI - Se não obstante a falta da licença de utilização e consequente omissão no contrato-promessa, a promitente trespassária não ficou impedida de explorar, por sua conta e risco, o estabelecimento de café, snack-bar e restaurante, bem como ao longo do tempo e até à data da propositura da acção (2,5 anos), foi entregando parcelares quantias por conta do preço acordado, e, inclusive, contratualizou novo arrendamento com o senhorio, tudo como se aquele contrato estivesse perfeito, válido e plenamente eficaz, não pode deixar de constituir abuso do direito da sua parte, na modalidade de venire contra factum proprium, a invocação da nulidade do contrato-promessa de trespasse.

VII - A responsabilidade pré-contratual traduz-se num compromisso ou conciliação entre o interesse na liberdade negocial e o interesse na protecção da confiança das partes durante a fase das negociações, e pressupõe uma conduta eticamente censurável, e de forma acentuada, em termos idênticos aos do abuso de direito (art. 227.º, n.º 1, do CC).
Decisão Texto Integral:  Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


          I - RELATÓRIO

AA, residente na Rua do A... de S..., V... das A..., Santo Tirso, intentou acção declarativa acção com processo ordinário contra BB e marido CC, residentes na Travessa das C..., nº ..., R..., Santo Tirso, pedindo:

- se declare nulo o contrato acordado entre ela e os réus;

- a sua condenação a pagarem-lhe a quantia de 34.950,00€ mais juros legais;

- assim como no pagamento de uma indemnização a liquidar em execução de sentença à razão do valor mensal do salário mínimo que estiver em vigor em cada um desses meses e enquanto a autora se mantiver em situação de desemprego, ou caso assim se não entenda, no pagamento de uma indemnização não inferior a 15.000,00€.

Para tanto alegou, em síntese, ter celebrado com os réus um acordo por escrito, que denominaram de contrato promessa de arrendamento e trespasse, nos termos do qual a ré mulher declarou prometer trespassar, com o consentimento do réu marido, um estabelecimento comercial de café, tendo desde logo tomado posse desse estabelecimento.

Tal contrato é nulo porque apenas a ré prometeu trespassá-lo, sendo o estabelecimento um bem comum dos réus, nulidade que resulta também por impossibilidade do seu objecto pois que o estabelecimento não estava nem tem condições para estar licenciado.

Mais alegou, e especificou, os danos que dessa celebração lhe advieram.

Regular e pessoalmente citados, os réus contestaram invocando, em resumo, que através do contrato em causa aquilo que as partes efectivamente pretenderam foi a compra e venda do mobiliário existente no estabelecimento, porquanto logo no dia a seguir ao da sua outorga a autora celebrou com o senhorio do arrendado um novo contrato de arrendamento, o qual foi já resolvido por falta de pagamento de rendas.

A nulidade não se verifica, pois como consta do texto do contrato o réu deu o seu consentimento, e o estabelecimento sempre esteve e está licenciado, tanto assim que ao longo de 15 anos sempre laborou com a actividade de café, snack-bar e restaurante, assim como a autora esteve na posse do mesmo tornando-o paradeiro nocturno de brasileiras e outras mulheres e daí retirou os seus proveitos durante mais de dois anos, pelo que a sua conduta ao vir agora invocar a nulidade do contrato constitui um abuso de direito.

Concluíram pedindo a improcedência da acção.

A autora replicou sustentando o contrato de trespasse e concluindo como na petição inicial.

Saneado e condensado o processo, sem reclamação, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, seguida da prolação da sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformada, apelou a autora, e a Relação, por acórdão de 5/05/11 (fls. 315 a 333), julgando a apelação improcedente manteve na íntegra a decisão recorrida.

Ainda não convencida, dele interpõe o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

Alegando, formula as seguintes conclusões:

l.ª- A recorrente não pode fazer prova dos factos que integram os art.°s 1,°, 4.° a 27.°, 29.° a 33.°, 35.° a 40.°, 42.°, 43.°, 46.°, 47.°, 48.°, 54.°, 58.° e 60.° da BI , como prova total dos factos dos artigos 2.°, 28.°, 34.°, 44.°, 46.°, 47.°, 49.°, a 53.°, 59.°, 61.° e 62.° da mesma peça, por não lhe ter sido reconhecido o direito ao apoio judiciário e não ter pago a taxa de justiça e multa que lhe foi liquidada, pelas razões aduzidas em requerimento de 12.11.2009, nomeadamente pelo facto (alegado no exercício do dever de patrocínio), de se encontrar "em situação de grande perturbação psicológica, provavelmente causada pela sua precaríssima situação económica, e não consegue representar devidamente o sentido da correspondência que recebe".

2.ª- Esse facto não foi considerado relevante pelas instâncias recorridas, pois nem disso exigiram ou produziram comprovação, bastando-lhes para considerar precludido ou extinto o direito de produzir prova, o incumprimento dos deveres (ónus) procedimentais para que tivesse acesso a esse direito, e os processuais de pagar taxa de justiça e multa, cuja impossibilidade de pagar está comprovada pela posterior concessão de apoio judiciário.

3.ª- Com tal decisão, a Recorrente foi despojada do direito de acesso ao direito e à justiça, na medida em que lhe foi vedado o direito de produzir prova.

O direito ao direito e à justiça e o direito desses direitos serem exercidos em processo equitativo, são direitos fundamentais da pessoa humana.

A fundamentalidade desses e de outros direitos fundamentais, radica na dignidade da pessoa humana, na sua essencialidade ética, com a consequente indissolubilidade e ilimitabilidade.

Os direitos ao direito e à justiça e ao processo equitativo estão reconhecidos no disposto, "inter alia", nos art.°s 1.°, 2.°, 13.°, 20.°, 1 e 202.°, 2 da Constituição, art.°s 3.° e 6.° do TUE e art.°s 1.°. 3.°, 1, 20.°, 21.° e 47.° da CCDFH.

4ª- O incumprimento de deveres procedimentais ou de obrigações pecuniárias processuais, nunca pode ser causa de impedimento do exercício do direito ao direito e á justiça, tal como a falta de pagamento da "taxa moderadora" não impede o direito de acesso aos cuidados de saúde.

5.ª- Muito menos isso pode ser assim, quando o titular sofre de incapacidade de compreender aspectos procedimentais para que lhe seja concedido o apoio judiciário.

6.ª- No modo como o caso dos autos foi entendida nas decisões recorridas, o fundamento cedeu ao contingente (ao duvidoso).

7.ª- Em função dos factos mesmo assim julgados provados, os Recorridos devia ter sido condenada a restituir à Recorrente a quantia que dela recebeu, no valor de € 13-750,00 a titulo de sinal que desta recebeu, bem como uma quantia, a titulo de indemnização, a liquidar em execução de sentença.

8ª- A restituição da quantia recebida funda-se no disposto nos art.° 280.°, 1 e 294.° do CC, em conjugação com o disposto nos art.° 10.° e segts. do Dec.-lei n. ° 168/97, pois um estabelecimento que não dispõe das condições legais para o exercício da actividade que lhe dá carácter, não pode ser objecto de negócios.

9.ª- A condenação em indemnização funda-se no disposto no art.° 227.°, 1 do CC., pois a ocultação dos vícios do objecto, por parte da Recorrida, não podiam deixar de causar danos patrimoniais à Recorrente.

10.ª- E deviam assim ser condenados, porque prometeram trespassar um estabelecimento comercial que, ou não existe legalmente, ou é contrário à lei porque não tinha licença de utilização nem condições para ser licenciado, cuja posse transmitiram de imediato à Recorrente para este o fruir pessoalmente.

11.ª- Por isso, o contrato é regulado pelo disposto no art. ° 410.°, 1 do CC (principio da equiparação), pois o objecto do contrato prometido não era um objecto em formação ou especificação, mas objecto actual.

Como foram violadas as normas invocadas nestas conclusões este recurso deverá proceder.

Os recorridos contra-alegaram defendendo a manutenção do decidido.

            Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.



            É pelo teor das conclusões da recorrente que se afere o âmbito do recurso, à parte as questões de conhecimento oficioso (arts. 684º nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil – CPC [2] por diante), e nelas suscitam-se as seguintes questões:

            a) Nulidade do contrato e consequente restituição da quantia recebida pelos recorridos, cuja análise passa pela ponderação destas sub-questões:

            - o que se entende por objecto de negócio legalmente impossível e contrário à lei;

            - âmbito do contrato de trespasse de estabelecimento comercial;

            - regime jurídico da instalação e do funcionamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas, vigente à data.

            b) Se os recorridos devem indemnizar a autora no quadro da responsabilidade pré-contratual.

                                                                       ●        

   II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Das instâncias vem dada por assente a seguinte matéria de facto:

1. Em 31.07.2004, os RR. e a A. fizeram um acordo, por escrito, que denominaram de “Contrato-promessa de arrendamento e trespasse”, no qual os RR. declararam, conforme documento junto a folhas 19 cujo teor se dá por reproduzido, que:

a) A Ré mulher tinha celebrado “um contrato de arrendamento com vista à exploração de um estabelecimento comercial de café, snack-bar e restaurante, actualmente denominado “Café R...”, sito na R. V... de C..., ..., freguesia de R..., do concelho de Santo Tirso, instalado num prédio urbano pertencente a DD, emigrante em França, que já tem conhecimento e conferiu autorização tácita para a realização desta promessa de contrato”;

b) “Todo o equipamento e recheio desse sobredito estabelecimento pertence aos primeiros outorgantes” (os ora RR.);

c) Por esse contrato, a Ré mulher, “com o consentimento de seu marido”, também aqui R., prometia “trespassar esse estabelecimento à A., “ a qual, em consequência”, o passava a “explorar directamente”, a partir dessa altura;

d) O “trespasse” abrangia “todo o espaço, instalações, equipamentos e utensílios” que integravam “o estabelecimento, designadamente, balcões, mesas, cadeiras, vitrines, arcas, fogões, grelhadores, fornos, micro-ondas, televisores, talheres, copos, etc., bem como as mercadorias nele existentes, como bebidas, géneros alimentícios, vasilhames, mercearias, etc., os quais são alienados livres de quaisquer ónus ou encargos”;

e) “O preço global do trespasse do dito “Café R...” era de € 32.500,00, a pagar em 4 prestações, sendo a primeira de € 5.000,00, paga no acto de outorga do acordo; a segunda de € 3.500,00, a pagar até 31.12.2004; a terceira de € 6.000,00, apagar até 31.12.2005; a quarta de € 18.000,00, a pagar em prestações mensais de € 500,00, durante trinta e seis meses, com início em Janeiro de 2006, e termo em Dezembro de 2008, a pagar no domicílio dos credores, até ao dia 20 do mês a que respeitar, contra recibo”;

2. Os RR. disseram também nesse documento que, “se no decurso do ano de 2005, a promitente compradora (ora A.) conseguisse “a aprovação de um empréstimo bancário que lhe” permitisse “antecipar a liquidação do débito”, reduziam o preço do trespasse para o valor de € 30.000,00”;

 3. Nesse mesmo documento, a A. disse que aceitava esse contrato e tomou, de imediato, a posse do estabelecimento, passando a exercer aí a actividade de café, restaurante e snack-bar, em seu nome no seu interesse.

4. Os RR. não dispunham de licença administrativa em vigor, para que o estabelecimento pudesse funcionar legalmente.

5. O estabelecimento não dispunha de autorização de utilização ao abrigo da legislação em vigor -Decreto-Lei 168/97 de 4.5, sendo condição necessária para a atribuição de tal licença o suprir das seguintes anomalias que foram detectadas pela autoridade administrativa competente em 6.12.2004:

- O estabelecimento não possui projecto de segurança contra risco de incêndios. Assim, deve o respectivo projecto ser apresentado na Câmara Municipal para que possa ser remetido ao SNB para aprovação.

-A nível de condições sanitárias admite-se que tenham de ser realizadas adaptações no existente, no entanto as referidas adaptações, devem previamente ser aprovadas pela Delegação de Saúde. Para esse efeito terá que ser remetido uma cópia do projecto para emissão de parecer.

-A nível das instalações sanitárias detectaram-se deficiências nas ventilações (WC Homens) e na configuração das instalações sanitárias destinadas ao pessoal, onde faltam os vestiários.

-Não foi possível verificar as condições de funcionamento dos órgãos de tratamento de águas residuais e fonte de abastecimento de água.

-Não possui contentor de resíduos sólidos.

-A nível de espaço para armazenagem e despensa de dia não possui instalações adequadas.

-Falta electrocutor de insectos.

6. Até à data da propositura da acção a A. entregou aos RR. a quantia de €13.750,00 por conta do pagamento do preço do trespasse prometido.

7. No dia 01 de Agosto de 2004, ou seja, no dia seguinte ao denominado “CONTRATO-PROMESSA DE ARRENDAMENTO E TRESPASSE”, a A. e o senhorio DD celebraram contrato de arrendamento.

8. O senhorio do prédio onde laborava o estabelecimento notificou a autora através de notificação judicial avulsa de 1.9.2006, junta a fls. 223 a 224, notificando-a que fazia cessar o arrendamento por falta de pagamento de rendas.

9. O referido senhorio intentou contra a aqui autora uma acção judicial na qual alegou os fundamentos de facto vertidos na petição inicial cuja cópia se encontra junta a fls. 216 a 221 e se dá por reproduzida.

10. O arrendado teve licença de construção n° 3, de 02.01.1990.

11. Tem licença de utilização 300-P, de 19.07.1993.

12. E tem licença sanitária com o n° 2099, de 29.12.1995.

13. O estabelecimento laborou até, pelo menos, à entrada em juízo da presente acção.

 14. Em vistoria feita ao estabelecimento pela autoridade administrativa competente em 6.12.2004, foram detectadas as seguintes anomalias:

-O estabelecimento não possui projecto de segurança contra risco de incêndios. Assim, deve o respectivo projecto ser apresentado na Câmara Municipal para que possa ser remetido ao SNB para aprovação.

-A nível de condições sanitárias admite-se que tenham de ser realizadas adaptações no existente, no entanto as referidas adaptações, devem previamente ser aprovadas pela Delegação de Saúde. Para esse efeito terá que ser remetido uma cópia do projecto para emissão de parecer.

-A nível das instalações sanitárias detectaram-se deficiências nas ventilações (WC Homens) e na configuração das instalações sanitárias destinadas ao pessoal, onde faltam Os vestiários.

-Não foi possível verificar as condições de funcionamento dos órgãos de tratamento de águas residuais e fonte de abastecimento de água.

-Não possui contentor de resíduos sólidos.

-A nível de espaço para armazenagem e despensa de dia não possui instalações adequadas.

-Falta electrocutor de insectos.

15. O proprietário e a exploradora do estabelecimento foram notificados pela autoridade administrativa competente para suprirem as referidas anomalias como condição necessária à obtenção das licenças e autorizações necessárias ao funcionamento do estabelecimento.

DE DIREITO

A) Nulidade do contrato e consequente restituição da quantia recebida pelos recorridos

A recorrente persiste no entendimento de que a falta de licença administrativa para funcionamento do estabelecimento, que nem sequer está em condições de ser licenciado, inquina de nulidade o negócio jurídico de promessa de trespasse que celebrou com os réus.

Fundamenta essa sua pretensão no disposto nos arts. 280.°, nº 1 e 294.° do Código Civil (CC), em conjugação com o art. 10.° e segs. do Dec.-Lei n.° 168/97, ou seja, por o objecto do negócio jurídico ser legalmente impossível e contrário à lei, pois um estabelecimento que não dispõe das condições legais para o exercício da actividade que lhe dá carácter, não pode ser objecto de negócios, e assim os recorridos deviam ter sido condenados a restituir-lhe a quantia que dela receberam no valor de 13.750,00€, a título de sinal.

Esta tese da recorrente não logrou convencer a Relação. No acórdão que proferiu, e ora em recurso, foi acentuado não existir alguma impossibilidade legal do objecto do negócio jurídico celebrado pelas partes, determinante da nulidade do mesmo à luz do citado art. 280º do CC, uma vez que a emissão da licença de funcionamento do estabelecimento era possível, bastando à autora/recorrente, para a obter, realizar as obras necessárias de acordo com a notificação da entidade administrativa competente.

Vejamos!

Não existe qualquer dúvida que as partes celebraram um contrato-promessa de trespasse, e de que com ele se vincularam à concretização do contrato prometido.

O contrato promessa é um verdadeiro contrato, distinto do negócio subsequente, em qualquer caso um contrato preliminar ou preparatório do negócio definitivo, um contrato de segurança ou de garantia do negócio prometido[3], ou, como diz Almeida Costa, “no contrato-promessa a prestação devida consiste na emissão de uma declaração de vontade negocial destinada a realizar o contrato prometido[4].

O contrato-promessa produz, assim, mero efeito obrigacional de realizar o contrato prometido, isto é, com a sua celebração as partes só lograram vincular-se à realização do contrato prometido, no caso o trespasse do dito “Café R...”, e não a transmissão da titularidade do estabelecimento comercial, apesar da sua entrega à autora/recorrente, promitente trespassária, como antecipação dos efeitos do contrato prometido por acordo consensual dos contraentes (3 dos factos provados).

Mas, o art. 410º, nº 1 do CC dispõe que ao contrato-promessa “são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”.

Estabelece-se aqui o princípio da equiparação, afastando-se as regras relativas à forma e as que pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.

E sendo assim, na realidade vem assente que à data da celebração do contrato-promessa os réus não dispunham de licença administrativa em vigor para que o estabelecimento pudesse funcionar legalmente, e que o estabelecimento não dispunha de autorização de utilização ao abrigo da legislação vigente, o Decreto-Lei nº 168/97 de 4/5, sendo condição necessária para a atribuição de tal licença o suprir das anomalias que foram detectadas pela autoridade administrativa em 6/12/2004 (cfr. 4 e 5 dos factos provados).

Daqui, e tendo em conta o mencionado princípio da equiparação, retira a recorrente ser o negócio jurídico celebrado nulo, por impossibilidade legal do seu objecto e ser contrário à lei.

Ora, o art. 280º do CC diz que “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável ”.

A expressão “objecto do negócio jurídico” pode ter dois sentidos. Um, correspondente ao objecto imediato, ou conteúdo, sendo preenchido pelos efeitos jurídicos que o negócio tende a produzir. O outro, o objecto mediato, ou objecto stricto sensu, consiste naquilo sobre que incidem os efeitos do negócio.

Ambos estes sentidos estão abrangidos naquela disposição[5].

É legalmente impossível o objecto de um contrato quando a prestação consiste num acto cuja realização a lei não permite, podendo impedi-la (quod iure impleri non potest), portanto, o objecto de um contrato que o direito não consente, como por exemplo alguém se obrigue a vender a outrem uma coisa do domínio público, ou a casar, depois dos 60 anos, em regime de comunhão geral de bens (art. 1720º, nº 1, al. b) do CC).

Como diz Mota Pinto, “será impossível legalmente o objecto de um negócio quando a lei ergue a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis[6].

Por sua vez, “é contrário à lei o negócio cuja realização material se não pode impedir, mas que a lei reprova, considerando-o ferido de nulidade (por ex.: venda da herança de pessoa viva…)[7].

Em face destes princípios, no caso em apreço, a priori, o negócio jurídico celebrado pelas partes, contrato-promessa de trespasse, cujo objecto mediato era o estabelecimento comercial de café, snack-bar e restaurante pertença dos réus, não é legalmente impossível ou contrário à lei uma vez que a ordem jurídica consente-o, prevê-o, não o repudia.

 Nem se trata de um qualquer contrato inominado que se visasse legitimar à luz do princípio da liberdade contratual, consignado no art. 405º do CC. Trata-se de um contrato com expressa consagração na legislação sobre contratos e arrendamento (cfr. arts 410º do CC, 115º, nº 3, do RAU - Regime do Arrendamento Urbano -, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10, vigente à data da celebração do acordo das partes, e, posteriormente, 1112º, nº 1, al. a) do CC com o NRAU - Novo Regime do Arrendamento Urbano -, aprovado pela Lei nº 6/06 de 27/02).



Como é sabido, a lei não dá o conceito de trespasse, motivando que a doutrina e a jurisprudência se venham empenhando na procura da sua identificação, podendo hoje definir-se de acordo com a doutrina dominante como “a transmissão definitiva, por acto entre vivos (seja a título oneroso, seja a título gratuito), da titularidade do estabelecimento comercial”[8].

Por seu turno, dir-se-á que o estabelecimento comercial “é a estrutura material e jurídica integrante, em regra, de uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – coisas móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento - organizados com vista à realização do respectivo fim”[9], ou, mais prosaicamente, o estabelecimento comercial é uma organização estável e autónoma de um conjunto de elementos que permitem o desempenho de uma actividade daquela natureza.

Sem dúvida que nessa universalidade que constitui o estabelecimento comercial se integra a licença administrativa para funcionamento, elemento essencial da sua estrutura orgânica e funcional, pois que sem ela, não é legalmente admissível a laboração.

Mas não é condição sine qua non da existência de um estabelecimento comercial encontrar-se ele a funcionar, bastando que o complexo da sua organização económica esteja pronto ou apto a entrar em movimento.

Como escreve Galvão Telles, “…o facto de o estabelecimento ainda não ter sido posto em movimento, ainda não ter entrado no giro comercial, encontrando-se numa situação estática, não obstará a que seja objecto possível de negócios jurídicos, nomeadamente seja cedido a outrem para o explorar e assim lhe dar vida. Ele constitui desde já uma potencial fonte de lucros, e tanto basta para que possa entrar no comércio jurídico.

A esta concepção não se opõe a circunstância de ainda não existir clientela, porque a falta actual de clientela não é incompatível com a ideia de estabelecimento. Nota essencial do estabelecimento é apresentar-se ou poder vir a apresentar-se como uma organização dotada daquilo que se chama “avviamento”, ou seja, a aptidão para produzir lucros, a qual não se confunde com a existência efectiva de clientela, que do “avviamento” não é mais do que um índice ou manifestação exterior.[10].

Também Ferrer Correia e Ângela Coelho explicam que “para se qualificar como estabelecimento determinada organização não é forçoso que estejam presentes todos os elementos que hão-de concorrer para o seu eficaz e perfeito funcionamento.

Bastará que se encontrem reunidos os elementos essenciais que individualizam e dão consistência ao estabelecimento - que seja reconhecível o núcleo essencial do estabelecimento mercantil, o qual traduz a sua capacidade lucrativa ou o seu aviamento[11].

Em consonância, é entendimento generalizado na doutrina e jurisprudência que um estabelecimento comercial pode ser objecto de trespasse mesmo que ainda não esteja a ser explorado ou, inclusive, incompleto e em via de formação[12].

Nem é necessário para se falar em trespasse que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento, sendo admissível o trespasse parcial[13].

Galvão Telles, no citado Parecer, vai mais longe acrescentando que o trespasse, tal como a cessão de exploração, é mesmo viável em relação a um estabelecimento de que ainda nada existe, que não está sequer em começo de formação, como pura realidade futura, por serem legalmente possíveis contratos sobre bens futuros, exceptuadas as doações (arts. 399º, 880º, 939º e 942º do CC).

Para que um estabelecimento comercial possa ser objecto de trespasse, ou de cessão de exploração, ainda que por explorar ou incompleto, como impressivamente se refere no mencionado Acórdão da Relação do Porto de 2/07/92, citando Rui de Alarcão no seu trabalho “Sobre a Transferência da Posição do Arrendatário no Caso de Trespasse”, o que é preciso é que “o “quid” que se faça juridicamente transitar abranja aquele mínimo de elementos essencial à existência de um estabelecimento, que não lhe falte o núcleo central e caracterizante da empresa”.

Feita estas breves considerações sobre os princípios fundamentais que regem a figura jurídica do trespasse, vejamos o que o contrato dos autos evidencia.

Que esse núcleo central, esse mínimo de organização apta ao exercício da actividade comercial a que a recorrente se propunha, foi assegurado e está evidenciado na descrição inserta nos 1º, 2º e 4º §s do contrato de fls. 19 (1, als. a), b) e d) dos factos provados). Quando a recorrente celebrou o contrato-promessa em causa o estabelecimento comercial estava aberto ao público, tal como a própria refere na petição inicial e nas alegações de recurso, e tomou de imediato a sua posse passando a exercer aí a actividade de café, restaurante e snack-bar, em seu nome e no seu interesse, durante mais cerca de 2 anos e meio (1, 3 e 13 dos factos provados), o que traduz o reconhecimento de que dispunha o mesmo de uma organização como estabelecimento comercial com aptidão para o fim a que se destinava.

Por isso se discorda da afirmação feita pela recorrente de que o estabelecimento “não existia, pois, quando muito, seria um “conglomerado” de coisas móveis, sem qualquer nexo que lhe desse unidade”, e de que não tinha qualquer aviamento.

Assim sendo, aparenta não constituir argumento eficaz contra a validade do trespasse, e do contrato promessa, o facto de não integrar aquela universitas iuris em que se traduz o estabelecimento comercial a necessária licença administrativa de utilização.



Dizemos que aparenta porque à data da celebração do contrato em causa o DL nº 168/97 de 4/07[14], com a redacção introduzida pelo DL nº 57/2002 de 11/03, regulamentava o processo de licenciamento da utilização de estabelecimentos de restauração e bebidas dispondo no respectivo artigo 14º, nº 2, que “…a existência de alvará de licença ou de autorização de utilização para serviços de restauração ou de bebidas concedido ao abrigo do presente diploma… deve ser obrigatoriamente mencionado nos contratos de transmissão, ou nos contratos-promessa de transmissão, sob qualquer forma jurídica, relativos a estabelecimentos ou a imóveis ou suas fracções onde estejam instalados estabelecimentos de restauração ou de bebidas, que venham a ser celebrados em data posterior à entrada em vigor do presente diploma, sob pena de nulidade dos mesmos.[15].

É inquestionável a falta dessa menção no contrato promessa de trespasse do estabelecimento celebrado no caso vertente, o mesmo é dizer que está ferido de nulidade.

Como se concluiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 1/02/11, e desta Secção, no Proc. nº 6845/07.3TBMTS.P1.S1, no ITIJ, “(…), porque a formalidade analisada não integra a ordem pública de protecção ou a ordem pública social, a invalidade correspondente à sua omissão não constitui uma nulidade atípica, mas antes uma nulidade absoluta[16], cujo vício afectou, geneticamente, o negócio jurídico de trespasse, tornando-o inapto para a produção dos efeitos jurídicos a que se destina, em regra, desde o início, e de modo absoluto e insanável[17].“.

Todavia, importa não esquecer que se está perante um contrato-promessa, do qual, como anotámos, unicamente advém o efeito obrigacional de realizar o contrato prometido, e que a impossibilidade legal originária verificada é meramente temporária, porque é susceptível de desaparecer num momento em que a prestação ainda oferece interesse ao credor (art. 792º, nº 2 do CC), pois que até à celebração do contrato prometido pode perfeitamente o promitente trespassante obter a licença em falta.

Parece-nos que nesta circunstância a lei admite, a título excepcional, a validade do negócio. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “a impossibilidade originária nem sempre determina a nulidade do negócio. O nº 2 (do art. 401º) admite duas excepções[18].

Está-se perante a previsão do art. 401 n.º 2 do CC, ou seja, perante negócio com prestação tornada possível mediante o cumprimento de um dever de conduta vocacionado e destinado a isso mesmo ou mediante a ocorrência de condição suspensiva ou termo inicial.

Ora, no caso que nos ocupa está subentendido no espírito do contrato-promessa, ou seja, subjacente à manifestação de vontade das partes contratantes, a obrigação de virem a celebrar o contrato prometido, válido e eficaz, o trespasse do estabelecimento comercial com todos os elementos necessários, entre os quais a licença de utilização, para o seu funcionamento. O que contém implícita a obrigação do promitente trespassante obter a licença para, a seguir, cumprir o contrato, até como dever acessório de conduta destinado a salvaguardar o direito da promitente trespassária, segundo as regras da boa fé (art. 762º, nº 2 do CC).

Podemos, então, concluir que este dever de conduta subjacente à economia contratual, na perspectiva devida da futura celebração eficaz do contrato prometido, impede a nulidade do negócio. É válido, pois, o contrato, segundo o que se dispõe no art. 401º, nº 2 do CC[19].

Acresce, que também a recorrente não provou que o prédio onde o estabelecimento está instalado não tivesse condições para o mesmo aí funcionar, como resulta das respostas negativas dadas aos quesitos 4º a 27º, e restritiva ao 28º.

Consequentemente, não é devida a restituição da quantia que a recorrente entregou aos recorridos[20].



Tanto basta, mas sempre se dirá que a pretensão da recorrente permite ainda a sua análise numa outra perspectiva, a do abuso do direito, igualmente conducente ao seu malogro. Os recorridos, nos artigos 39º a 42º da contestação, suscitaram-no imputando à recorrente uma conduta que “choca o senso comum e ofende os mais elementares princípios da boa fé e da justiça social”, mas ainda que o não tivessem feito nada impedia o seu conhecimento oficioso pois está em causa um prejuízo de interesse e ordem pública[21].

Como é sublinhada no Acórdão do STJ, de 21/09/93[22], a figura do abuso de direito, “é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social…; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento”.

O princípio do abuso do direito constitui, pois, um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais, e reconduz-se à prática de um acto ilegítimo desde que se ultrapassem os limites que ao direito subjectivo são impostos e descritos no artigo 334º do CC.

O art. 334º diz que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.

O excesso terá de ser manifesto, ou seja flagrante, claro e notório, embora não se exija uma actuação dolosa, com “animus nocendi”. Vale um conceito ético e objectivo de boa fé, bastando que, objectivamente, os limites do artigo 334º tenham sido excedidos[23]

Na tipologia do abuso de direito sobressai o venire contra factum proprium, que equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo principio da boa fé.

Ensina o Prof. Baptista Machado (in “Obra Dispersa”, I, 415 e ss) o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.

 Todavia, para que o venire se verifique não basta a existência de condutas contraditórias. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa confiança.

Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta regressa.

Por seu turno, o Prof. Menezes Cordeiro considera (na ROA, 58º, 1998, 964) que o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível”.

Neste ponto, e revertendo ao caso, é manifesto que, na situação em apreço, existe nexo causal entre o alegado “factum proprium” praticado pela recorrente e o alegado dano de confiança. Se não, vejamos:

- a recorrente celebrou o contrato promessa declarando expressamente aceitá-lo,

- tomou, de imediato, a posse do estabelecimento, passando a exercer aí a actividade de café, restaurante e snack-bar, em seu nome e no seu interesse,

- no dia seguinte celebrou com o senhorio DD um novo contrato de arrendamento relativo ao espaço onde estava instalado o estabelecimento,

- levou a cabo a sua exploração comercial até, pelo menos, à entrada em juízo da presente acção, isto é, ao longo de cerca de 2,5 anos,

- entregou aos recorridos a quantia de 13.750,00€ por conta do pagamento do preço do trespasse prometido;

- entretanto, o proprietário do prédio notificou a recorrente, através de notificação judicial avulsa, em 8/09/06, que fazia cessar o arrendamento por falta de pagamento de rendas,

- em vistoria realizada em 6/12/04 foram detectadas anomalias a nível dos requisitos necessários para o funcionamento do estabelecimento.

Só depois de todas estas incidências, decorridos cerca de 2,5 anos após a celebração do contrato e do início da exploração comercial do café, e 4 meses depois de haver sido notificada do propósito de cessação do arrendamento por falta de pagamento de rendas, é que a recorrente surge, e surpreende, a intentar esta acção alegando a nulidade do contrato.

Não obstante a falta da licença de autorização e consequente omissão no contrato promessa, a recorrente não ficou impedida de explorar, por sua conta e risco, o estabelecimento de café, snack-bar e restaurante, bem como ao longo do tempo e até à data da propositura da acção foi entregando parcelares quantias por conta do preço acordado, e, inclusive, contratualizou novo arrendamento com o senhorio, tudo como se aquele contrato estivesse perfeito, válido e, plenamente, eficaz, o que não pode deixar de constituir da sua parte a afirmação de um verdadeiro “venire contra factum proprium”.

A conduta da recorrente/autora, posterior à celebração do contrato promessa, objectivamente, interpretada em face dos bons costumes e do princípio da boa fé, legitimava a confiança dos recorridos/réus de que aquela não exerceria, posteriormente, os seus direitos, recorrendo à via judicial.

Há manifestamente aqui duas atitudes contraditórias da recorrente, e foram os recorridos surpreendidos com a iniciativa judicial de sinal contrário à sua conduta anterior que se pode considerar como traindo a confiança que nela depositavam.

É, pois, abusivo pedir a nulidade de um contrato promessa de trespasse por falta de licenciamento em que se consentiu, e dele se valeu, durante cerca de dois anos e meio.

E se há abuso nos termos definidos no art.334º do CC, não há direito.

           

            B) Se os recorridos devem indemnizar a autora no quadro da responsabilidade pré-contratual

Não procedendo a invocada nulidade do negócio jurídico celebrado, e não podendo, assim, a recorrente repercutir essa indemonstrada nulidade sobre os efeitos do negócio importa agora analisar a outra questão por ela suscitada.

Saber se os recorridos/réus incorreram em responsabilidade pré-contratual, pelo facto de, como alega e conclui a recorrente, a recorrida lhe haver ocultado os vícios do objecto que não podiam deixar de lhe causar danos patrimoniais, e a recorrente não podia duvidar da existência legal do estabelecimento.

Por tais danos patrimoniais que diz ter sofrido reclama uma quantia, a liquidar, à razão do valor mensal do salário mínimo que estiver em vigor em cada um dos meses e enquanto se mantiver em situação de desemprego, ou caso assim se não entenda, no pagamento de uma indemnização não inferior a 15.000,00€.

Também aqui lhe falece razão.

            Dispõe o art. 227º, nº 1 do CC que: “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

A responsabilidade pré-contratual traduz-se num compromisso ou conciliação entre o interesse na liberdade negocial e o interesse na protecção da confiança das partes durante a fase das negociações, e pressupõe uma conduta eticamente censurável, e de forma acentuada, em termos idênticos aos do abuso de direito (art. 227º, n. 1, do CC).

O instituto da responsabilidade pré-contratual ou pré-negocial ou da culpa in contrahendo fundamenta-se na tutela da confiança do sujeito na correcção, na honestidade, na lisura e na lealdade do comportamento da outra parte, quando tal confiança se reporta a uma conduta juridicamente relevante e capaz de provocar-lhe danos[24].

Como escreve Menezes Cordeiro, a concepção da culpa in contrahendo acolhida no art. 227º do CC encerra os deveres de protecção, de informação e de lealdade.

Os deveres de protecção obrigam a que, sob pretexto de negociações preliminares, não se inflijam danos à contraparte: danos directos, por um lado, à sua pessoa e bens, embora esta situação, em Portugal, possa ser solucionada pelos esquemas da responsabilidade civil, em termos abaixo precisados; danos indirectos, por outro, derivados de despesas e outros sacrifícios normais na contratação revestirem, por força do desenvolvimento subsequente do processo negocial, uma característica de anormalidade.

Os deveres de informação adstringem as partes à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato.

Tanto podem ser violados por acção, portanto com indicações inexactas, como por omissão, ou seja, pelo silêncio face a elementos que a contraparte tinha interesse objectivo em conhecer. O dolo negocial – art. 253º/1 – implica, de forma automática, a violação dos deveres de informação. Mas não a esgota: pode haver violação que, não justificando a anulação do contrato por dolo, constitua, no entanto, violação culposa do cuidado exigível e, por isso, obrigue a indemnizar por culpa in contrahendo.

Os deveres de lealdade vinculam os negociadores a não assumir comportamentos que se desviem de uma negociação correcta e honesta[25].

A jurisprudência, maioritariamente, considera, como regra, que o dano indemnizável é apenas o do interesse contratual negativo, ou dano de confiança (cfr., entre outros, os Acórdãos deste Tribunal de 4/05/06, Proc. nº 06A222, de 21/12/05, Proc. nº 05B2354, e de 31/03/11, Proc. nº 3682/05.3TVSLB.L1.S1 no ITIJ), mas o entendimento de que, em casos concretos, a indemnização deve contemplar também o interesse contratual positivo tem merecido o aplauso de alguma doutrina e jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, (cfr. os Acs. de 28/04/09, Proc. nº 09A0457, bem como a doutrina e demais jurisprudência nele mencionadas, e de 16/12/10, Proc. nº 1212/06.9TBCHV.P1.S1, no ITIJ)[26].

            Analisando, então, o caso concreto à luz da lei e dos ensinamentos da doutrina e jurisprudência, a verdade é que dos factos provados, na sua envolvência jurídica, não decorre a violação por parte da recorrida de qualquer dever de boa fé, seja na fase pré-negocial ou já na fase da conclusão do negócio. Nem qualquer acto ou omissão por parte da recorrida que viciasse a vontade da recorrente[27].

            A circunstância desta não ter conseguido provar na acção o que afirmara na petição inicial (respostas negativas aos quesitos 27º, 29º a 33º e 35º a 40º), obsta a que o tribunal profira condenação no que se liquidar no incidente a que se reporta o artigo 378º, nº 2, do CPC.

            A conclusão é, por isso, tal como foi considerado nas instâncias, no sentido de que não se verificam os pressupostos de facto da obrigação de indemnização com base na culpa na formação dos contratos a que se reporta o artigo 227º, nº 1, do CC, pelo que não pode proceder o pedido de indemnização.

            Rematando, improcedem todas as conclusões recursivas.


III-DECISÃO

Por todo o exposto, decide-se negar a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

            Lisboa, 24 de janeiro de 2012.

Gregório Silva Jesus (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

__________________________________________
[1]   Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] No regime anterior ao estabelecido pelo Dec. Lei nº 303/2007 de 24/08 ainda aqui aplicável (cfr. arts. 11º e 12º deste diploma), tal como os demais normativos deste diploma por diante citados, uma vez que a acção foi intentada em 12/01/07.
[3] Calvão da Silva, “Sinal e Contrato-Promessa”, 1998, pág. 18.
[4] In Obrigações, 3ªed., pág. 287.
[5] Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pg. 547.
[6] In ob. cit., pág. 550.
[7] Cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág. 831 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 258.
[8] Antunes Varela, na RLJ, ano 115º, pág. 253, nota 1.
[9] Ac. do STJ de 4/12/07, Proc. nº 07B4168, no ITIJ.
[10] Parecer na Colectânea de Jurisprudência, 1992-I-61.
[11] Na Revista de Direito e Economia, X/XI, pág. 282.
[12] Cfr. Ac. do STJ de 8/03/94, Proc. nº 084681 , sumariado no ITIJ; Ac. da RP de 2/07/92 na CJ 1992-IV-232; demais doutrina e jurisprudência mencionadas no Parecer já citado.
[13] Cfr. Acs. do STJ, de 28/3/2002, no BMJ 495º- 301, e de 24/04/03, Proc. nº 03B680, no ITIJ.
[14] Sucessivamente, alterado pelos DL 139/99, de 24/04, 222/2000, de 9/09 e 57/2002, de 11/03.
[15] Sublinhado nosso.
[16] Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12ª edição, revista e aumentada, Almedina, 2007, 73 e 74; e RLJ, Ano 132º, 256 e ss., em especial, 266.
[17] Rui de Alarcão, Sobre a Invalidade do Negócio Jurídico, BFDUC, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, III, 1983, 624.
[18] Ob. cit., pág. 351; No mesmo sentido Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 42.
[19] Nesta mesma linha de orientação se pronunciou, recentemente, este Supremo Tribunal no Acórdão de 6/07/11, Proc. nº 4438/06.1TBVFX.L1.S1, disponível no ITIJ, relatado e subscrito, respectivamente, pelos ora 1º e 2º Adjuntos.
[20] Cfr. neste sentido o Ac. deste STJ de 24/04/03 já citado.
[21] Cfr. os Acs do STJ de 26/03/80, Proc. nº   068443, 16/02/89, Proc. nº 078336, 9/02/90, Proc. nº 079583, todos no ITIJ; Vaz Serra, na RLJ, Ano 112º, pág. 131.
[22] Na C.J., STJ, Ano I- III- 21.
[23] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 298.
[24] Ac. do STJ, de 22/05/96, in BMJ, 457º, 308.
[25] In “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, vol. I, pág. 583.
[26] Cfr. ainda Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 216, nota 3, e Baptista Machado,"A cláusula do razoável", na RLJ, 120º, págs. 138/141.
[27] E já agora, diga-se, que se desconhece o que se passou no decurso das negociações que culminaram na celebração do contrato-promessa a propósito dessa falta de licenciamento. Se a autora de tal foi informada pelos recorridos e ainda assim o quis celebrar aceitando o consequente risco que a essa falta importava, ou se, porventura, esse dado lhe foi sonegado ou prometido levando-a a celebrar o contrato em causa. Não se pode dizer, portanto, que a autora foi induzida em erro ao celebrar esse contrato-promessa.