Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
173/20.6GBSLV.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: RECURSO PENAL
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA PARCELAR
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. No Juízo Central Criminal ......., Juiz ..., no processo comum com intervenção do tribunal coletivo nº 173/20.6GBSLV - foi julgado o arguido AA, nascido em ...1.1962, e, por acórdão de 07 de janeiro de 2021, foi deliberado:

a) Absolver da prática de um crime de violência doméstica agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte e 152.º, n.ºs 1 alínea a) e 2, alínea a), 4.º, 5.º e 6.º todos do CP e artigo 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro;

b) Condenar pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CP e artigo 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;

c) Condenar pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte do CP e artigo 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2, por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p) e v), x) ar) e az) e 3, alíneas e) e p), 3.º, n.ºs 1, 2 alíneas l), p) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão

d) Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de sete anos de prisão.

e) Condenado a pagar à demandante BB o montante de € 15.000, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação para contestar até efetivo e integral pagamento.

f) Condenado a pagar ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve o montante de 541,07 €, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação para contestar até efetivo e integral pagamento.

g) Condenar a pagar ao Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte EPE o montante de 2418,40 €, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde notificação para contestar até efetivo e integral pagamento.

1.2. Inconformados com o acórdão dele interpuseram recurso o arguido AA e o MINISTÉRIO PÚBLICO, para o Tribunal da Relação ….. e por acórdão de 23 de maio de 2021 foi deliberado:

1. Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido;

2. Conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo MP na 1.ª instância e em consequência condena-se o arguido:

a) Pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 86.º, n.º 3 do CP na pena de 11 anos de prisão;

b) Pela prática em autoria material de um crime de detenção de arma proibida na forma consumada previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte todos do CP e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2 por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p), v) x), ar) e az) e n.º 3 alíneas e) e p), artigo 3.º , n.ºs 1 , 2 alíneas l) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro na pena de 1 ano e 10 meses de prisão;

c) Em cúmulo jurídico condena-se o arguido na pena única de 11 anos e 10 meses de prisão.

d) No mais foi mantido o Acórdão recorrido.

1.3. Ainda inconformado com este acórdão dele interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA que motivou, concluindo nos seguintes termos: (transcrição):

«1º - Para um comum cidadão, que tem uma relação marital de mais de vinte anos, a possibilidade de tal relação cessar, por qualquer razão, sempre representa um grave dano, motivador de perturbação emocional.

2º - Qualquer que seja o acto tipificado, praticado sob forte emoção, justifica a atenuação da culpa, e, consequentemente, da pena.

3º - Não surpreenderá que a má opção da escolha de uma arma, para coagir, conjugada com a possibilidade de a imputabilidade estar momentaneamente diminuída, leve a que, por via de imprevistos vários, seja efectuado um, ou mais, disparos, não previstos, nem desejados.

4º - A necessidade de ressocialização, e a necessidade de prevenção especial, constituem os limites de qualquer pena, que não deverá ultrapassar os limites das regras de aplicação de penas, que nunca devem ser excessivas, especialmente quando privativas da liberdade.

5º - Perante uma moldura abstrata em que o limite mínimo é de 3 anos e 2 meses de prisão, excessiva será qualquer pena de prisão, efectiva, superior a 4 anos, quando o infractor, perante os factos, é um cidadão de .. anos de idade, sem passado criminal, bem inserido social, familiar e profissionalmente, em que não são relevantes as necessidades de prevenção especial.

6º - A motivação da prática dos factos apurados e as consequências, nefastas, da reclusão, justificam que as penas parcelares, e a pena única, se aproximem do mínimo, verificando-se reunidos os legais pressupostos para a suspensão da execução da pena única.

7º - Para um cidadão sem passado criminal, com os sinais do ora Recorrente, 4 anos de prisão, em meio prisional, já comprometem a ressocialização que está na base da escolha das penas, mostrando-se excessiva, e a reduzir substancialmente, quer a perna aplicada em 1ª Instância, quer a pena única considerada pela Veneranda Relação …...

8º - Quer as necessidades de ressocialização, quer as necessidades de prevenção especial, não reclamam o efectivo cumprimento de pena de prisão, havendo, por isso, que reduzir as penas parcelares e a pena única aplicadas, justificando-se a suspensão da execução.

9º - É contraditório reconhecer-se que o Arguido não se revela carente de socialização, por um lado, e, por outro lado, aplicar-se-lhe pena de prisão efectiva, que, concretamente, temos por desajustada e a reduzir, assim merecendo provimento o presente Recurso.

10º - Por outro lado, ainda, se se reconhece que o Arguido não revela tendência para a prática de crimes, sendo reduzidas as necessidades de prevenção, e, não registando passado, e estando bem integrado, não se justifica que, com mais de 60 anos de bom comportamento, deva cumprir reclusão em meio que não cumpre as finalidades de “recuperação” do infractor.

11º - Devia, pois, a medida concreta da pena única, por reduzidas as penas parcelares, aproximar-se do mínimo legal abstrato, que é de 3 anos e 2 meses de prisão, permitindo a Lei que tal pena única concreta seja suspensa na sua execução, e assim o não tendo entendido a Veneranda Relação de ….., como a 1ª Instância, condenando em termos que temos por excessivos, violou o disposto nos artigos 40º, 70º, 71º e 50º do Código Penal, pelo que, merecendo provimento o presente Recurso, se deverá revogar o douto Acórdão ora em Recurso, a substituir por outro que, reduzindo, substancialmente, as penas parcelares, e operado o cúmulo jurídico, aplique pena única não superior a 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, por, para tanto, se verificarem reunidos os legais pressupostos.

Nestes termos, e nos demais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão, deverá o douto Acórdão ora Recorrido ser revogado e substituído por outro que, reconhecendo a excessiva severidade na punição, venha a condenar o Arguido em pena substancialmente inferior, não superior a 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, assim merecendo provimento o presente Recurso.

Porém Vªs Exªs decidirão como for de JUSTIÇA»

1.3. No Tribunal da Relação ….. houve Resposta do Ministério Público, o qual se pronunciou pela procedência parcial do recurso.

1.4. Neste Supremo Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer, no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido, nos seguintes termos:

«Do recurso

1 - O arguido AA foi submetido a julgamento no Juízo Central Criminal ......., do Tribunal Judicial da Comarca ...., vindo a ser condenado, por acórdão proferido a 7/01/2021, como autor material, pela prática de:

- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CP e artigo 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;

- de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte do CP e artigo 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2, por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p) e v), x) ar) e az) e 3, alíneas e) e p), 3.º, n.ºs 1, 2 alíneas l), p) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º, nº 1 do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de 7 anos de prisão.

O arguido foi também condenado no pagamento de indemnização aos demandantes no âmbito dos pedidos cíveis formulados.

2- O arguido não se conformou com aquela decisão condenatória e da mesma interpôs recurso para o Tribunal da Relação …...

Invocou a violação dos princípios da livre apreciação da prova, in dubio pro reo e da presunção de inocência, bem como a violação do disposto no nº 2, do art. 410 do CPP e insurgiu-se contra o enquadramento jurídico dos factos no tipo qualificado de homicídio, entendendo tratar-se de homicídio negligente e não doloso. Insurgiu-se, ainda, contra a decisão relativa à determinação da medida das penas parcelares e única, pretendendo a sua redução para o limite mínimo das respectivas molduras penais.

3 - Também o Mº Pº se não conformou com aquela decisão e da mesma interpôs recurso, pugnando pela agravação das penas parcelares e única, que considerou desproporcionais e desadequadas e insuficientes para satisfazer as necessidades de prevenção.

4 - O Tribunal da Relação ….., por acórdão de 25/05/2021, julgou improcedente o recurso do arguido, considerando sedimentada a matéria de facto dada como provada, por se não verificar a violação dos princípios nem os vícios da sentença invocados.

Por sua vez, julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo Mº Pº e condenou o arguido, pela prática, em autoria material, de:

- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 11 anos de prisão;

- um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte todos do CP e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2 por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p), v) x), ar) e az) e n.º 3 alíneas e) e p), artigo 3.º , n.ºs 1 , 2 alíneas l) e x), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão.

E em cúmulo jurídico condenou o arguido na pena única de 11 anos e 10 meses de prisão, mantendo, no mais, o acórdão recorrido.

5 - O recorrente, ainda inconformado, interpôs recurso para este Supremo Tribunal.

Questiona, de novo, a qualificação do crime de homicídio, alegando que “a agravação não deve funcionar automaticamente, e as circunstâncias de rodearam a prática dos factos podem, perfeitamente, afastar a qualificação do crime, pois, para o Recorrente, é da maior importância aperceber-se do derrube do edifício matrimonial, que construira durante uma vida e para toda a vida, o que deverá afastar que se considere verificada especial censurabilidade”.

Questiona igualmente a medida das penas parcelares e única, argumentando que a circunstância de ter praticado os crimes “sob forte emoção, justifica a atenuação da culpa, e, consequentemente, da pena” e que o facto de ter .. anos e não ter antecedentes criminais bem como a “motivação da prática dos factos apurados e as consequências, nefastas, da reclusão, justificam que as penas parcelares, e a pena única, se aproximem do mínimo” e que se verificam os pressupostos para a suspensão da execução da pena única.

Conclui pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que, “reconhecendo a excessiva severidade na punição, venha a condenar o Arguido em pena substancialmente inferior, não superior a 4 anos de prisão, suspensa na sua execução”.

6 - O Magistrado do Ministério Público no Tribunal recorrido respondeu à motivação do recurso, pugnando pela redução da pena parcelar aplicada pelo cometimento do crime de homicídio qualificado na forma tentada para 8 anos e 6 meses de prisão e da pena única para 9 anos de prisão.

7 - Não se suscitam, a nosso ver, quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, devendo o mesmo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419, n.º 3, do CPP.

Do mérito

8 - O recorrente continua a discordar da medida da pena em que foi condenado, invocando os mesmos argumentos, já analisados e desconstruídos no acórdão recorrido e pretendendo justificar o injustificável.

Embora aborde no texto da motivação a questão da qualificação do crime de homicídio ao mesmo tempo que pretende demonstrar ter agido sob forte emoção que atenuaria a culpa, não leva essa questão às conclusões.

Porém, o Tribunal recorrido, tal como o de 1ª instância, pronunciaram-se de forma exaustiva e fundamentada, não se suscitando, a nosso ver, quaisquer dúvidas quanto ao acerto da subsunção jurídica dos factos.

9 - Por outro lado, e no que concerne à decisão relativa à determinação das penas, o Tribunal recorrido ponderou e valorou todas as circunstâncias envolventes e as condições pessoais do arguido.

E consignou, no que respeita à determinação da medida da pena pelo crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, cuja moldura penal tem como limite mínimo 3 anos 2 meses e 12 dias e como limite máximo 22 anos 2 meses e 19 dias, o seguinte:

“- O grau de ilicitude é muito elevado, atenta a gravidade dos factos praticados, nomeadamente por se tratar da mulher do arguido com quem estava casado desde 5 de agosto de 1995, violando os deveres de respeito e de assistência, o dever pela importância dos valores jurídicos violados e pela forma de cometimento do crime e sentimentos revelados pelo arguido, sem olvidar que utilizou uma arma de fogo, disparando à queima-roupa, negando qualquer possibilidade de defesa à sua mulher;

- O modo de execução: o arguido no dia do crime serrou os canos da espingarda caçadeira Browning e saiu de casa armado para falar ao telefone. Depois entrou em casa com espingarda caçadeira, com o cano serrado, municiada com dois cartuchos, empurrou a sua mulher, que se refugiu na cozinha e, enquanto lhe dizia que a ia matar porque o andava a trair, apontou-lhe a arma e disparou, mas sem a atingir porque a sua mãe desviou a arma; entretanto pôs a sua mãe fora de casa, e sozinho com a vítima, perseguiu-a até à casa de banho (agora no 1.º andar), e apontando-lhe, primeiro, a arma à cabeça e, depois, ao coração, premiu o gatilho, mas não tendo deflagrado o cartucho, por falha mecânica da arma, só o conseguiu à terceira vez, momento em que disparou na direção do braço da vítima, atingindo-a no braço e no abdómen (e em duas das vezes como o cartucho não deflagrou voltou a inseri-lo na arma e a disparar);

- As consequências do facto consubstanciaram-se numa hemorragia ativa do membro superior direito e múltiplas lesões contundentes ao nível do abdómen apresentando uma ferida contusa de cerca de 25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte interna, entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito bem como todas as consequências mencionadas em 31., 32., 33., 49., 51., 52., 53., 54., 55. a 58 a 66. Embora a vítima apresente uma extensa cicatriz no braço tenderá a esbater-se e a não ficar visível, bem como no início de dezembro de 2020 a vítima retomou o trabalho no seu salão de cabeleireiro (cf. motivação da matéria de facto constante do Acórdão recorrido).

- O grau de sofrimento infligido pelo arguido à ofendida (totalmente indefesa).

- O dolo foi intenso, porque direto, tendo o arguido agido com conhecimento e vontade de realização da conduta.

- O bem jurídico violado, a vida, o mais importante direito fundamental;

- As exigências de prevenção geral são elevadas tendo em consideração o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino dentro do ambiente familiar, causando forte repúdio pela comunidade, criando sentimento de insegurança junto das populações e fortemente perturbador da paz social, cumprindo evitar o efeito imitação, a sua banalização e que se instaure entre os membros da comunidade o sentimento de impunidade pela violação da ordem jurídica.

- As necessidades de prevenção especial reclamam também intervenção perante uma personalidade insensível, para o fazer interiorizar sobre os graves malefícios do seu ato, pois não se revelou arrependido, tentou desculpabilizar-se invocando o disparo acidental da arma e pelo menos há cinco anos a esta parte o agente manifesta comportamento obsessivo pautado por ciúmes, insinuando que a ofendida o trai.

- A motivação deriva de ciúme o que revela a má formação da personalidade do arguido ao agir com violência exacerbada e escusada perante a situação;

- No concernente às exigências de prevenção especial, ter-se-á em consideração que o arguido à data com 58 anos (atualmente com 59) não tinha antecedentes criminais e estava familiar e laboralmente inserido, embora não tenha vida social, saindo muito raramente de casa.”

E entendeu que “a pena concreta a aplicar teria sempre de ser fixada acima do limite médio de 9 anos 6 meses e 7 dias[1]1, atentas as quatro investidas consecutivas sobre a vítima, o comportamento obsessivo do arguido manifestado pelo menos desde o ano de 2015 pautado pelos ciúmes insinuando que a ofendida o traía bem como o terror (a arma foi disparada na sua direção por quatro vezes três delas à queima roupa) e o sofrimento causado na vítima”, e em conformidade fixou a pena em 11 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada.

No que respeita à determinação do quantum da pena aplicada pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, n.º 1 do RJAM – 1 ano e 10 meses de prisão, o Tribunal recorrido considerou “a posse da espingarda caçadeira de marca Browning e para efeitos do agravamento do crime de detenção de arma proibida a pistola e as sete munições mais duas, entretanto deflagradas e que:

- A ilicitude na detenção da arma Browning é elevada, pois a sua posse era insuscetível de ser legalizada;

- O arguido tinha a arma na sua posse há vinte cinco anos cujo cano único serrou; tinha ainda a detenção de uma pistola calibre 8 mm transformada para calibre 7,65 com calibre rasurado também insuscetível de legalização e 7 munições de calibre 12 mais duas munições, entretanto deflagradas.

- O dolo foi intenso (dolo direto);

- O arguido não tinha licença de uso e porte de arma;

- As exigências de prevenção geral foram elevadas atendendo ao número de vezes que estes crimes são cometidos e a intranquilidade que criam e à circunstância de estas detenções não poderem ser apreciadas isoladamente da tentativa de homicídio qualificado perpetrado na forma tentada;

- O arguido não tem antecedentes criminais registados;

- O arguido confessou integralmente e sem reservas a posse das armas e munições (cf. motivação da decisão recorrida).

- O arguido encontra-se familiar e laboralmente inserido, embora não tenha vida social, saindo muito raramente de casa.”

Tudo ponderado e face à moldura penal do concurso de crimes o Tribunal recorrido entendeu que a pena única devia fixar-se, “pelo menos no ponto intermédio em 11 anos e 10 meses de prisão”.

Consideramos que a decisão recorrida fez uma correcta ponderação e valoração das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, as condições pessoais do arguido, o grau de culpa manifestado, a ilicitude e as exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem e que respeita os parâmetros decorrentes dos critérios fixados nos artigos 40, 70, 71 e 77, do Código Penal. Afigurando-se-nos que as penas aplicadas ao arguido são adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e à perigosidade do agente e não há qualquer fundamento para que as mesmas sejam reduzidas.

Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido».

1.5. Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP.

1.6. Com dispensa de Vistos, seguiu o processo para conferência.


***

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos: (transcrição)

1. O arguido AA e a ofendida BB contraíram casamento em 5 de agosto de 1995, vivendo maritalmente desde essa data até esta parte, tendo fixado residência comum na Casa ......, sita em .............., ......

2. Desta relação nasceu uma filha, CC, atualmente com 23 anos de idade, nascida em … de julho de 1997.

3. O arguido tem, há cerca de 25 anos na sua posse e guardada no interior da sua habitação, uma espingarda caçadeira da marca “Browning”, modelo “B-80”, calibre 12, n.º de série .........., e que apresenta um cano único de 36 cm, serrado.

5. Desde há 5 (cinco) anos a esta parte que o arguido manifesta um comportamento obsessivo, pautado pelos ciúmes, insinuando que a ofendida o trai.

12. No dia ... de abril de 2020, por volta das 16h00, o arguido encontrava-se a lanchar com a sua mãe e com a vítima, no interior da residência comum do casal, quando se iniciou uma discussão relacionada com questões financeiras.

13. O arguido, em hora não concretamente apurada, mas antes das 18h00, recebeu uma mensagem de texto no seu telemóvel remetida por pessoa não concretamente identificada, esposa do homem com quem a vítima teria alegadamente uma relação extraconjugal, dizendo ter sido traído pela ofendida.

14. Nessa sequência, o arguido municiou a supra referida espingarda da marca “Browning”, com dois (2) cartuchos, e ausentou-se de casa na posse da mesma, a fim de manter uma conversa telefónica com essa pessoa.

15. O arguido esperou a chamada telefónica em frente à habitação, dentro da sua viatura, na posse da arma municiada.

16. Volvidos alguns minutos, concluída a conversa telefónica, o arguido AA regressou a casa e iniciou, na cave da residência, uma discussão com a ofendida BB exigindo que aquela lhe mostrasse as mensagens que tinha na aplicação Messenger no seu telemóvel.

17. Perante a recusa da vítima, o arguido empunhou a supra referida espingarda, previamente municiada por si com dois cartuchos, na direção da vítima, dizendo que a matava.

18. Nessa ocasião, o arguido deu um forte empurrão à vítima, fazendo com que a mesma caísse ao chão.

19. A ofendida levantou-se e fugiu para a cozinha da habitação, sita no rés-do-chão, tendo o arguido seguido no seu encalço e, encontrando-se a 2 metros de distância da vítima, apontou a arma na sua direção, questionando, por mais do que uma vez, se a mesma tinha algum amante.

20. Nesse momento, DD, mãe do arguido, interveio com vista a acalmar o mesmo, levantando-lhe o braço para cima, momento em que este disparou um tiro com a arma, que atingiu o candeeiro da cozinha.

21. Nesse momento, o arguido colocou a sua mãe na rua, fechando a porta da referida habitação.

22. Em ato contínuo, a ofendida encetou fuga para o primeiro andar da habitação, entrando para o interior da casa de banho, tendo o arguido ido no seu encalço.

23. Nesse momento, o arguido entrou na casa de banho, apontou a espingarda municiada na direção da ofendida, que implorou para que o arguido não lhe fizesse mal, encostou a mesma à sua cabeça, na região temporal esquerda, e premiu o gatilho, não tendo a arma nesse momento disparado, por motivos alheios à vontade do arguido.

24. Nesse instante, o arguido abriu a arma retirou o cartucho e voltou a colocar o mesmo cartuxo na arma.

25. Em ato contínuo, o arguido voltou a encostar a arma ao corpo da ofendida, na zona do abdómen, concretamente na região do coração, e disse que a matava, porém ao premir o gatilho a arma voltou a encravar e não disparou.

26. A ofendida, em ato reflexo, tentou desviar a espingarda do seu corpo, tendo o arguido manietado a ofendida com a mão esquerda, colocando-se por trás desta, apontando depois a arma na direção do braço direito da ofendida, premido o gatilho e efetuado um disparo, que acertou na parte interior do seu antebraço direito e no abdómen.

27. Logo após, o arguido largou a arma tendo a ofendida descido sentada, e combalida, as escadas da habitação.

28. Nessa ocasião o arguido dirigiu-se à ofendida e disse “querias morrer agora vais morrer” e “então não tinhas medo de morrer e agora já tens”.

29. Em virtude de tais ferimentos, a ofendida foi assistida no local pelo INEM e transportada para o Hospital de ... .

30. A ofendida apresentava uma hemorragia ativa do membro superior direito e múltiplas lesões contundentes ao nível do abdómen, apresentando uma extensa ferida contusa com cerca de 25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte interna, entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito.

31. A ofendida foi transferida para Hospital de ...., em Lisboa, apresentando esfacelo de quase totalidade da face interna do antebraço direito, com perda total do revestimento cutâneo e esfacelo amplo das massas musculotendinosas da região anatómica afetada.

32. Em virtude de tais factos, a ofendida foi submetida a cirurgia plástica com anestesia geral para correção do esfacelo do membro superior direito, tendo ficado internada desde o dia 19/04/2020 até 11/05/2020.

33. A ofendida apresentava a seguinte sequela:

a. Membro superior direito: vendagem no antebraço direito que não se remove, nem consegue movimentar braço e mão.

34. As lesões apresentadas pela ofendida resultaram de traumatismo de natureza perfurante e determinaram 106 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral (60 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (60 dias).

35. No referido dia .../04/2020, o arguido detinha, na sua posse, no interior da sua habitação:

a. Uma espingarda caçadeira, da marca “Browning”, modelo B-80, calibre 12, n.º série .........., e que apresenta um cano único (serrado);

b. Dois cartuchos de calibre 12, para espingarda caçadeira deflagrados;

c. Duas buchas de cartucho, para espingarda caçadeira deflagrados;

d. Uma pistola da marca Waltro, modelo 85 Combat, calibre 8mm transformada para calibre 7,65, com indicação do calibre rasurado, sem número de série visível, fabricada em Itália por Libera Vendita Platinas em plástico de cor preta e o corpo de cor cinza prata com respectivo carregador e escovilhão;

e. Sete cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor verde da marca RIO;

f. Uma pressão de ar, marca Webley Victor, com o número 76572;

g. Um cano serrado de uma espingarda caçadeira com cerca de 31 cm.

36. Foi apreendido um livrete de manifesto de arma com o número ...... emitido em 20-12-1985 referente a uma espingarda de caça Browning com o número .......... em nome de EE e uma licença de uso e porte de arma de caça com o número …, válida para os anos de 1986 a 1990, em nome de FF, referente a uma arma de um cano calibre 12.

37. O arguido não é detentor de qualquer licença de uso e porte de arma.

41. Ao agir do modo descrito, o arguido pretendia e queria tirar a vida de BB, bem como molestá-la fisicamente, bem sabendo que com tal conduta atingia órgãos vitais da ofendida uma vez que direcionou a arma para a cabeça e a zona abdominal da mesma, só não lhe conseguindo tirar a vida por razões independentes da sua vontade.

42. O arguido bem sabia que, ao direcionar a arma para as regiões do corpo da ofendida supra descritas, lhe tiraria a vida e/ou lhe criava perigo para a vida e ainda assim não se absteve de premir o gatilho da arma, o que quis, disparando-a sob a ofendida, só não logrando atingir nos seus órgãos vitais por interferência da própria ofendida.

43. O arguido bem sabia que praticava os factos contra a sua cônjuge e utilizando meio particularmente perigoso, o que quis.

44. O arguido bem sabia que não podia deter, utilizar ou guardar as supra referidas armas e munições, sendo que conhecendo as características das mesmas, não se inibiu de as deter.

45. O arguido bem sabia que para deter, utilizar ou guardar quaisquer armas na sua posse e as respetivas munições, necessitava de licença que o habilitasse a tais classes de armas, bem como necessitava de registar as armas, embora aquelas não o fossem suscetíveis de o ser, o que sabia não deter e ser obrigatório, mas mesmo assim não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e logrou.

46. Mais sabia o arguido que não poderia deter qualquer arma transformada, por si ou por terceiro, na sua posse, e ainda assim quis deter as referidas armas.

47. O arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

48. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

49. Em virtude daqueles ferimentos a Demandante foi assistida no local pelo INEM e transportada para o Hospital de ... .

51. Na altura a Demandante apresentava uma hemorragia ativa do membro superior direito e múltiplas lesões contundentes ao nível do abdómen, apresentando uma ferida contusa com cerca de 25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte interna, entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito.

52. A Demandante foi transferida para o Hospital de ...., em Lisboa, apresentando esfacelo de quase totalidade da face interna do antebraço direito, com perda total do revestimento cutâneo e esfacelo amplo das massas musculotendinosas da região anatómica afetada.

53. Esteve internada no Hospital de ... de ... de Abril até 11 de Maio de 2020.

54. E foi submetida a quatro intervenções cirúrgicas, com anestesia geral.

55. Entre elas fez transplante de pele da perna para o antebraço.

56. Durante o internamento ficou imobilizada a maior parte dos dias.

57. A higiene pessoal e alimentação só foram conseguidas com ajuda das auxiliares do hospital.

58. Na altura a Demandante tinha os dedos encolhidos em face dos tendões cortados e sem músculos, causando-lhe fortes dores e ansiedade.

59. Com alta no dia 11 de maio, a Demandante foi para casa dos pais em .... .

60. Necessitou da ajuda dos pais para fazer a higiene e alimentar-se.

61. Durante os meses de Junho e Julho a Demandante fez sessões de fisioterapia 3 vezes por semana no Centro de Saúde ....................

62. No dia 2 de Agosto regressou a ..... e ficou na casa da irmã.

63. Nos meses de agosto, setembro e outubro manteve as sessões de fisioterapia três vezes por semana, na Cínica ..…..

64. Atualmente a Demandante continua as sessões de fisioterapia, porque não esta totalmente recuperada nem a sua situação clínica estabilizada.

65. Como consequência direta e necessária das agressões a Demandante apresenta uma ferida com cerca de 25 cm no antebraço direito, entre o cotovelo e o punho, os dedos dormentes e falta de força no dedo polegar e na mão direita.

66. E que lhe determinaram todo este período de doença, todos com afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

70. A data dos factos a Demandante explorava um salão de cabeleireiro e beleza  ....., na Rua ....................

71. Desde o dia ... de abril que o estabelecimento está encerrado porque a Demandante não estava em condições de trabalhar, reabrindo no início do mês de dezembro de 2020.

73. O Salão de cabeleireiro é a única fonte de rendimento da ofendida.

74. A Demandante viveu momentos de horror no dia 19 de abril.

75. E temeu pela sua vida por várias vezes naquele dia.

76. Para além das dores, sofrimento, humilhação e angústia que sofreu com as lesões e tratamentos médicos e hospitalares.

77. E ver o seu futuro e sonhos profissionais, familiares e pessoais comprometidos para sempre, sofrendo grande abalo psíquico e moral.

78. Sendo certo que ficou marcada para sempre com a ferida visível no antebraço.

79. Tal cicatriz é visível a olho nu.

80. E que desfeia notoriamente a Demandante.

81. Causando inibição e sofrimento.

82. À data dos factos do presente processo, AA residia com o cônjuge, vítima no processo, na Urbanização ......... Reside, atualmente em casa da progenitora na cidade …....., com adequadas condições de habitabilidade.

A sustentabilidade do agregado era, na sua maioria, assegurada pelo arguido, com os proveitos económicos resultantes da sua atividade de comerciante de eletrodomésticos, cujos valores rondavam os 800 euros/mês; como despesas fixas mencionou cerca de 150 euros referente aos consumos de água, luz e televisão por cabo. Atualmente, encontra-se impedido judicialmente de exercer a sua atividade, sendo o sustendo do arguido assegurado pela progenitora, através da sua pensão de reforma e dos lucros da atividade comercial da loja de eletrodomésticos, propriedade da família.

O património que detém foi adquirido com base no seu trabalho e estratégias de poupança.

O arguido é natural ....., onde decorreu o seu crescimento junto dos pais e do irmão mais novo, falecido num acidente de viação em 1989. O falecimento prematuro do irmão afetou psicologicamente o arguido e todo o agregado familiar.

A dinâmica do agregado era harmoniosa com registo de algumas dificuldades financeiras nos primeiros anos de vida. Teve uma infância considerada adequada assumindo os seus progenitores uma educação caracterizada pela permissividade na gestão diária de regras. O seu processo educativo foi maioritariamente assumido pela progenitora, realçando uma relação fria e afetivamente mais distante com o pai, já falecido.

AA fez todo o percurso escolar em ....., em idade adequada, tendo terminado o 12º ano na Escola Comercial....., sem retenções. Com cerca de 19 anos, por iniciativa do progenitor, e depois de ter terminado o ensino secundário, passou a trabalhar ………, numa loja propriedade dos progenitores em sociedade com um familiar, à data, em ................

Passados alguns anos o pai do arguido abriu uma loja em ....., local onde AA trabalhou até ao início da presente situação judicial.

O arguido integrou, com 17 anos, juntamente com o irmão,  ....., onde permaneceu durante cerca de dez anos, tendo abandonado a banda a seguir ao falecimento do irmão.

Em 1994, AA conheceu a vítima, com quem casou no ano seguinte e com quem teve uma filha, atualmente com 23 anos, com a qual mantém uma relação ajustada.

O arguido descreveu a sua relação durante casamento como normal, as discussões relatadas eram fruto de circunstância na vida de um casal.

AA salientou que não gostava de ver a vítima a trabalhar por conta de outrem, razão pela qual instalaram um salão de cabeleireiro para que esta pudesse trabalhar por conta própria.

Com o falecimento do progenitor do arguido, a progenitora passou a residir com o casal, na cave da habitação onde residiam.

O arguido padece de um problema gástrico crónico ao nível do duodeno, sofre de hérnias discais e uma deficiência cardíaca, não referenciando ter qualquer acompanhamento clínico a este nível[2]. Porém beneficia de acompanhamento psicológico com alguma regularidade, atualmente com consultas através da aplicação WhatsApp.

O arguido apresenta uma conduta reservada com características de introversão, referindo não consumir álcool[3] e não ter vida social, saindo muito raramente de casa.

O arguido vivencia a atual privação da sua liberdade de forma penosa, considerando este período de reflexão do seu percurso vivencial, bem como de avaliação e fixação de prioridades e projetos futuros.”


***



3. O DIREITO

3.1. O objeto do recurso do arguido prende-se com as seguintes questões:

- A dosimetria das penas parcelares e única.


3.2.1. Questão Prévia:

De harmonia com o disposto no art. 400º, nº 1, do Código do Processo Penal

«Não é admissível recurso: (…)

«e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.

Por seu turno o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe, “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” consagra que:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: (…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º».

O arguido AA foi condenado por acórdão do Tribunal da Relação ….. de 23 de maio de 2021:

a) Pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 86.º, n.º 3 do CP na pena de 11 anos de prisão;

b) Pela prática em autoria material de um crime de detenção de arma proibida na forma consumada previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte todos do CP e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2 por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p), v) x), ar) e az) e n.º 3 alíneas e) e p), artigo 3.º , n.ºs 1 , 2 alíneas l) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro na pena de 1 ano e 10 meses de prisão;

c) Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 11 anos e 10 meses de prisão.

Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação ….. relativamente ao crime de detenção de arma proibida na forma consumada previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte todos do CP e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2 por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p), v) x), ar) e az) e n.º 3 alíneas e) e p), artigo 3.º , n.ºs 1 , 2 alíneas l) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, que condenou o arguido na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, é irrecorrível, motivo pelo qual o recurso não pode ser admitido, porquanto a pena aplicada é inferior a 5 (cinco) anos de prisão, nos termos dos arts. 414º, nº 2 e 420 º, nº 1, al. b), do CPP, e terá que ser rejeitado, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o Tribunal Superior (art. 414 º, nº 3 do CPP).


***


3.1.2. Analisando a dosimetria da pena do crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 86.º, n.º 3 do CP, pelo qual o arguido foi condenado na pena de 11 anos de prisão;


Defende o recorrente que deve ser reduzida as penas parcelares, aproximar-se do mínimo legal abstrato, e em consequência a medida da pena única.

Como supra se referiu este Supremo Tribunal, relativamente às penas parcelares apenas pode conhecer da medida da pena do crime de homicídio qualificado na forma tentada.


O Tribunal “a quo” atendeu aos seguintes fatores quanto à medida da pena do crime de homicídio qualificado na forma tentada, com utilização de arma cuja moldura penal abstrata se situa, como limite mínimo entre 3 anos 2 meses e 12 dias de prisão e como limite máximo 22 anos 2 meses e 19 dias:

- O grau de ilicitude é muito elevado, atenta a gravidade dos factos praticados, nomeadamente por se tratar da mulher do arguido com quem estava casado desde 5 de agosto de 1995, violando os deveres de respeito e de assistência, o dever pela importância dos valores jurídicos violados e pela forma de cometimento do crime e sentimentos revelados pelo arguido, sem olvidar que utilizou uma arma de fogo, disparando à queima-roupa, negando qualquer possibilidade de defesa à sua mulher;

- O modo de execução: o arguido no dia do crime serrou os canos da espingarda caçadeira Browning e saiu de casa armado para falar ao telefone. Depois entrou em casa com espingarda caçadeira, com o cano serrado, municiada com dois cartuchos, empurrou a sua mulher, que se refugiu na cozinha e, enquanto lhe dizia que a ia matar porque o andava a trair, apontou-lhe a arma e disparou, mas sem a atingir porque a sua mãe desviou a arma; entretanto pôs a sua mãe fora de casa, e sozinho com a vítima, perseguiu-a até à casa de banho (agora no 1.º andar), e apontando-lhe, primeiro, a arma à cabeça e, depois, ao coração, premiu o gatilho, mas não tendo deflagrado o cartucho, por falha mecânica da arma, só o conseguiu à terceira vez, momento em que disparou na direção do braço da vítima, atingindo-a no braço e no abdómen (e em duas das vezes como o cartucho não deflagrou voltou a inseri-lo na arma e a disparar);

- As consequências do facto consubstanciaram-se numa hemorragia ativa do membro superior direito e múltiplas lesões contundentes ao nível do abdómen apresentando uma ferida contusa de cerca de 25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte interna, entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito bem como todas as consequências mencionadas em 31., 32., 33., 49., 51., 52., 53., 54., 55. a 58 a 66. Embora a vítima apresente uma extensa cicatriz no braço tenderá a esbater-se e a não ficar visível, bem como no início de dezembro de 2020 a vítima retomou o trabalho no seu salão de cabeleireiro (cf. motivação da matéria de facto constante do Acórdão recorrido).

- O grau de sofrimento infligido pelo arguido à ofendida (totalmente indefesa).

- O dolo foi intenso, porque direto, tendo o arguido agido com conhecimento e vontade de realização da conduta.

- O bem jurídico violado, a vida, o mais importante direito fundamental;

- As exigências de prevenção geral são elevadas tendo em consideração o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino dentro do ambiente familiar, causando forte repúdio pela comunidade, criando sentimento de insegurança junto das populações e fortemente perturbador da paz social, cumprindo evitar o efeito imitação, a sua banalização e que se instaure entre os membros da comunidade o sentimento de impunidade pela violação da ordem jurídica.

- As necessidades de prevenção especial reclamam também intervenção perante uma personalidade insensível, para o fazer interiorizar sobre os graves malefícios do seu ato, pois não se revelou arrependido, tentou desculpabilizar-se invocando o disparo acidental da arma e pelo menos há cinco anos a esta parte o agente manifesta comportamento obsessivo pautado por ciúmes, insinuando que a ofendida o trai.

- A motivação deriva de ciúme o que revela a má formação da personalidade do arguido ao agir com violência exacerbada e escusada perante a situação;

- No concernente às exigências de prevenção especial, ter-se-á em consideração que o arguido à data com 58 anos (atualmente com 59) não tinha antecedentes criminais e estava familiar e laboralmente inserido, embora não tenha vida social, saindo muito raramente de casa.

Face ao exposto, a pena concreta a aplicar teria sempre de ser fixada acima do limite médio de 9 anos 6 meses e 7 dias[4], atentas as quatro investidas consecutivas sobre a vítima, o comportamento obsessivo do arguido manifestado pelo menos desde o ano de 2015 pautado pelos ciúmes insinuando que a ofendida o traía bem como o terror (a arma foi disparada na sua direção por quatro vezes três delas à queima roupa) e o sofrimento causado na vítima.

Considera-se, assim, justo e adequado aplicar ao arguido a pena de 11 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, atenta a circunstância de atualmente a vítima, embora continuando a beneficiar de fisioterapia ter regressado ao seu salão de cabeleireiro onde em início de dezembro de 2020, retomou a sua atividade profissional e a cicatriz que apresenta no braço, de acordo com o perito, tendencialmente irá esbater-se.

A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do CP).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº 1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente.

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias[5], a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).

A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».


No que se refere à proteção de bens jurídicos, que constitui uma das finalidades das penas (art. 40º, nº 1, do CP), no caso o bem jurídico protegido no tipo em causa é a vida humana, bem supremo que a Constituição da República Portuguesa declara inviolável no seu art.º 24.º. Por isso, as necessidades de prevenção são muito elevadas.

Atenta a fenomenologia criminal envolvida – criminalidade especialmente violenta (art. 1º, al. l), do CPP) – demanda uma resposta que reafirme a validade do bem jurídico protegido e a vigência da correspondente proteção penal.

Acresce que este tipo de criminalidade - crime contra a vida contra o cônjuge tem causado alarme social e repulsa na sociedade, com o aumento que tem vindo a ocorrer nos últimos anos.


As exigências de prevenção especial – elevadas e assumem especial relevância, consubstanciada na gravidade da conduta do arguido, de todo desproporcional relativamente ao motivo que levou a que procedesse do modo descrito.

Na determinação da medida da pena o modelo mais equilibrado é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente[6].

Assim sendo, considerando que a medida da concreta da pena, assenta na «moldura de prevenção», «cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», dentro da moldura penal abstrata prevista para o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação pelo uso de arma - 3 anos 2 meses e 12 dias de prisão e 22 anos 2 meses e 19 dias - mostra-se justa, necessária, adequadas e proporcional, a pena de 11 anos de prisão que lhe foi aplicada no acórdão recorrido.

Relativamente à pena única.

Consagra o art. 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal:

«1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Conforme refere o Prof Figueiredo Dias, [7] «Estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á, finalmente, da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais da medida da pena contidos no art. 72º, nº1, um critério especial «na determinação da medida concreta da pena [do concurso], serão considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente (art. 78º, 1- 2ª parte]. (…)

Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes com efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

No mesmo sentido o AC do STJ de 27JAN16 [8] a propósito da pena conjunta derivada do concurso de infrações, defende o seguinte:

«Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade á pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.”

Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspetiva de existência de uma pluralidade de ações puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais. Dada a proibição de dupla valoração na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas individuais.

Em relação ao nosso sistema penal é o Professor Figueiredo Dias quem traça a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes. Refere o mesmo Mestre que a existência de um critério especial fundado nos factos e personalidade do agente obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78. °-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um ato intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânico e, portanto, arbitrária. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72 ° nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável».

Acrescentando que «Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico. (…)

Na definição da pena concreta dentro daquele espaço e um dos critérios fundamentais na consideração daquela personalidade, bem como da culpa, situa-se a dimensão dos bens jurídicos tutelados pelas diferentes condenações. Na verdade, não é raro ver um tratamento uniforme, destituído de qualquer opção valorativa do bem jurídico, e este pode assumir uma diferença substantiva abissal que perpassa na destrinça entre a ofensa de bens patrimoniais ou bens jurídicos fundamentais como é o caso da própria vida. (…)

Paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa, sobretudo, ver se nos encontramos perante uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se aquilo que se evidencia uma mera pluriocasionalidade, que não radica na personalidade do arguido. Este critério está diretamente conexionado com o apelo a uma referência cronológica pois que o concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes ou uma referência quantitativa pois que o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

Como é bom de ver, as necessidades de prevenção especial aferir-se-ão, sobretudo, tendo em conta a dita personalidade do agente. Nela, far-se-ão sentir fatores como a idade, a integração ou desintegração familiar, com o apoio que possa encontrar a esse nível, as condicionantes económicas e sociais que tenha vivido e que se venham a fazer sentir no futuro.

Igualmente importante é consideração da existência de uma manifesta e repetida antipatia na convivência com as normas que regem a vida em sociedade, quando não de anomia, e que é a maior parte das vezes evidenciada pelo próprio passado criminal.

Um dos critérios fundamentais na procura do sentido de culpa em sentido global dos factos é o da determinação da intensidade da ofensa, e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que, em nosso entender, assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados á dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objetivos do agente no denominador comum dos atos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. (sublinhado nosso)

Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a atividade criminosa expresso pelo número de infrações; pela sua perduração no tempo; pela dependência de vida em relação àquela atividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

Recorrendo á prevenção importa verificar em termos de prevenção geral o significado do conjunto de atos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos. (sublinhado nosso).

Serão esses fatores de medida da pena conjunta que necessariamente deverão ser tomados em atenção na sua determinação sendo então sim o pressuposto de uma adição ao limite mínimo do quantum necessário para se atingir as finalidades da mesma pena».


Ou seja, quanto à pena única a aplicar ao arguido em sede de cúmulo jurídico, a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Por último, de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e “ a culpa pelos factos em relação”, a qual se refere Cristina Líbano Monteiro em anotação ao acórdão do S.T.J de 12.7.2005 e Figueiredo Dias in “A Pena Unitária do Concurso de Crimes” in RPCC ano 16º, nº 1, pág. 162 e ss.

No caso, a moldura penal abstrata do cúmulo jurídico situa-se entre um mínimo de 11 (onze) anos de prisão, [correspondente à pena concreta mais elevada] e 12 anos e 10 meses , aplicável ao caso concreto, deve definir-se um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente.

O espaço contido entre esse mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e esse máximo consentido pela culpa, configurará o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração do agente.

Partindo da moldura penal abstrata do cúmulo jurídico balizada entre um mínimo de 11 (onze) anos de prisão e 12 anos e 10 meses de prisão, aplicável ao caso concreto, atendendo aos critérios e princípios supra enunciados, designadamente, a consideração em conjunto dos factos e a personalidade do agente, as exigências de prevenção geral e especial, mostra-se justa, necessária, a pena de única de 11 anos e 10 meses de prisão.

Neste sentido improcede na totalidade o recurso do arguido AA


***


4. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar o recurso do arguido AA, relativamente ao crime de detenção de arma proibida, por inadmissibilidade (arts. 414º, nº 2 e 420 º, nº 1, al. b), do CPP).

b) Negar provimento ao recurso do arguido AA, quanto ao mais.

Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


***



Lisboa, 03 de novembro de 2021


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)


Nuno Gonçalves

________

[1] 1 22 A 2 M 19 D - 3 A 2 M e 12 D = 19 A 7 D : 2 = 9 anos 6 meses 7 dias.
[2] Corrigida a redação por manifesto lapso.
[3] Corrigida a redação por manifesto lapso.
[4] 22 A 2 M 19 D - 3 A 2 M e 12 D = 19 A 7 D : 2 = 9 anos 6 meses 7 dias.
[5] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244
[6]Figueiredo Dias, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3º, Abril/Dezembro, pág. 186.
[7] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Ed. 199, páginas 290 a 291.
[8] Relator Santos Cabral, Proc. 178/12.0PAPBL.S2, disponível in dgsi.pt