Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1348
Nº Convencional: JSTJ00000107
Relator: JOAQUIM DE MATOS
Descritores: HONORÁRIOS
LUGAR DA PRESTAÇÃO
ACÇÃO JUDICIAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: SJ200205160013482
Data do Acordão: 05/16/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5416/01
Data: 12/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
DIR CIV - DIR OBG / DIR CONTRAT.
DIR INT PRIV.
DIR COMUN.
Referências Internacionais: CONVBRUX68 DE 1968/09/27 ART2 ART5 N1.
Jurisprudência Internacional: AC TRIJ PROC - C- 420/97 DE 1997/11/05.
Sumário : I - O art.º 5, ponto 1 e o art.º 2 da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria cível e comercial devem ser interpretados no sentido de que o mesmo tribunal não é competente para conhecer do conjunto de uma acção fundada em duas obrigações equivalentes e decorrentes de um mesmo contrato quando, segundo as normas de conflitos do Estado desse tribunal essas obrigações devam ser executadas uma nesse Estado e a outra num outro Estado contratante.
II - Assim, é internacionalmente competente o Tribunal da Grã-Bretanha para conhecer de uma acção de honorários proposta por uma sociedade portuguesa de advogados contra uma sociedade inglesa pelo patrocínio de uma acção na comarca de Lisboa e prestação de assessoria jurídica no âmbito de um contrato de cessão de quotas, já que o que releva é a obrigação de pagamento de honorários e não a obrigação de pagamento dos serviços prestados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A, id. a fls. 2, intentou acção declarativa ordinária contra B, aí também id., pedindo a condenação daquela R. a pagar-lhe a quantia de US$ 117559,86, acrescida de juros vencidos liquidados em US$ 11846,66 e de juros vincendos até integral pagamento.
Para o efeito, a A. alegou que patrocinou a R. no processo nº 21565 a correr termos na 1ª Secção da 10ª Vara Cível da Comarca de Lisboa e que lhe prestou assessoria jurídica no âmbito de um contrato de cessão de quotas.
E alegou também que a R. não lhe pagou os honorários relativos a esses serviços.
A R. contestou, tendo suscitado a incompetência absoluta dos tribunais portugueses.
Para estribar essa excepção, a R. alegou que:
É uma sociedade com sede na Grã-Bretanha;
A Grã-Bretanha é um estado membro da Comunidade Europeia signatário da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial;
O pagamento da factura emitida pela R. deverá ser efectuado por depósito numa conta bancária das Ilhas do Canal, que são território da Grã-Bretanha.
Nos termos dos arts. 2º, 52º e 5º dessa Convenção, apenas são competentes para conhecer da presente acção os tribunais da Grã-Bretanha.
A A. replicou, defendendo que o art. 5º, n.º 1, da Convenção de Bruxelas respeita à obrigação que serve de base à pretensão e não à obrigação cujo cumprimento se peticiona.
Aduziu também a A. que no caso sub judice o seu petitório assenta nos serviços advocatícios que prestou à R. em Portugal e concluiu pela competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem desta acção.
A 10ª Vara Cível de Lisboa julgou-se absolutamente incompetente para conhecer da acção, considerando que esta deveria ser dirimida pelos tribunais da Grã-Bretanha.
Inconformada com tal decisão, a A. interpôs agravo para a Relação de Lisboa, mas esta, por Acórdão de 18/12/01, negou provimento ao recurso e confirmou esse julgado.
Discordando uma vez mais do decidido, a A. agravou para este Supremo Tribunal de Justiça, sustentando a competência internacional dos Tribunais Portugueses e sugerindo se remetam os autos à 1ª Instância para o respectivo prosseguimento.
Terminou as suas alegações, formulando as conclusões que se seguem:
1. A decisão proferida sobre a questão da competência relativa consiste na designação de um tribunal determinado, para conhecer do litígio, nos termos do art. 111°/1 do CPCivil;
2. Uma vez transitada em julgado, essa decisão resolve definitivamente a questão da competência e tem força obrigatória dentro do processo, face ao disposto nos arts. 111°/2 e 672.° CPCivil;
3. Depois de transitada em julgado a decisão sobre a competência, o processo é remetido ao tribunal competente, nos termos do art. 111°/3 do CPCivil;
4. O tribunal designado como competente não pode reapreciar a questão da sua própria competência, sob pena de incorrer em ofensa de caso julgado, restando-lhe a faculdade de suscitar um conflito negativo de competência, à luz dos arts. 115º e segs. do CPCivil;
5. A decisão em matéria de competência relativa territorial implica necessariamente uma decisão positiva sobre a competência internacional;
6. Ainda que se entenda que a decisão de atribuição de competência a dado tribunal português não contem directamente o reconhecimento da competência internacional dos tribunais portugueses, ao menos pressupõe tal decisão, como questão abrangida pelo caso julgado formal, nos termos do art. 96º/2 do CPCivil;
7. O acórdão recorrido, ao julgar que a decisão do Juiz da 10ª Vara Cível de Lisboa - que considerou os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer do litígio - não ofendeu o caso julgado formal contido na decisão do Juiz do 5º Juízo Cível de Lisboa, violou as disposições legais citadas nas conclusões 1, 2, 3, 4 e 6;
8. A decisão de que se agravou na 1ª Instância fez errada interpretação do conceito de causa de pedir, ao sustentar que a causa de pedir da acção residia no não pagamento pela R. da quantia devida pela prestação de serviços de advocacia pela A.;
9. A mesma decisão, ao definir a causa de pedir do processo como se contém na conclusão anterior, ofendeu, ainda, o caso julgado formal contido na decisão do 5º Juízo Cível de Lisboa, que compreende como questão abrangida pelo caso julgado, nos termos do art. 96 n. 2 do CPCivil, uma configuração diferente da causa de pedir dos autos, consistente no cumprimento, pela A., em Portugal, das obrigações para ela decorrentes do contrato;
10. Em consequência do contido nas conclusões 8 e 9, a decisão de que já se agravou em 1ª Instância, fez errada interpretação do art. 5 n. 1 da Convenção de Bruxelas e incorreu em ofensa de caso julgado formal;
11. A interpretação correcta, com obediência ao caso julgado, do conceito de causa de pedir determinaria a identificação da obrigação que constitui o fundamento da acção como sendo a obrigação principal emergente do contrato, ou seja, a obrigação, já cumprida pela A., de prestar à R. serviços jurídicos;
12. O acórdão recorrido, mantendo a decisão da 1ª Instância, com os mesmos fundamentos, enferma da mesma errada interpretação e ofensa de caso julgado formal já referidas na conclusão anterior; e
13. Deve, assim, ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, declarando-se a competência internacional dos Tribunais portugueses e ordenando-se a descida dos autos à primeira instância para prosseguimento do processo.
A R., contra-alegando, preconiza a manutenção do decidido.
II - Após os vistos, cumpre decidir:
A - Factos:
1. A A. é sociedade civil de advogados de direito brasileiro, com sede em S. Paulo, Brasil;
2. A R. é sociedade de direito inglês, sediada em Nottingham, em Inglaterra, Grã-Bretanha;
3. O pedido nesta acção consiste na condenação da R. a pagar à A. a quantia determinada por força do invocado contrato de prestação de serviços de advocacia, no âmbito da acção judicial de que os autos constituem apenso e por serviços de advocacia extra-judiciais; e
4. O pagamento da factura emitida pela R. deveria ser efectuado por depósito numa conta bancária nas Ilhas do Canal, território da Grã-Bretanha.
B - Direito:
Atentas as conclusões formuladas pela A. agravante nas suas alegações, e uma vez que são estas que delimitam o objecto do recurso, são duas as questões sobre as quais este Supremo Tribunal de Justiça deve debruçar-se para, depois, decidir.
A primeira questão é a de saber se houve ou não violação de caso julgado formal.
O 5º Juízo Cível de Lisboa conheceu da competência interna.
A 10ª Vara Cível de Lisboa conheceu depois da competência internacional, mas a A. agravante diz que não poderia tê-lo feito, pois que o 5º Juízo Cível apreciara implicitamente a competência internacional.

A segunda questão é a de saber se os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para conhecer deste litígio face ao regulado no n. 1 do art. 5 da Convenção de Bruxelas.
Vejamos cada um das referidas questões separadamente:
A primeira delas reveste-se de simplicidade.
A A. agravante sustenta que a decisão em que se conhece da competência interna constitui caso julgado formal implícito quanto à competência internacional.
Todavia, o conhecimento da incompetência relativa ao abrigo do art. 111, n. 2 do CPCivil apenas impede nova apreciação da competência relativa do tribunal, não obstando a que o tribunal para o qual o processo é remetido conheça da competência absoluta.
A Doutrina é unânime neste sentido como decorre do explanado, entre outros, por Teixeira de Sousa, in "Estudos sobre o Novo Processo Civil", pág. 133, e Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in "Código de Processo Civil Anotado", Vol. 1, pág. 205.
Assim, a interpretação da lei proposta pela A. agravante não pode merecer o nosso acolhimento.
Já a segunda questão reveste maior complexidade.
Comecemos por atentar no art. 5, n. 1, da Convenção de Bruxelas.
Em matéria contratual, e nos termos do mencionado art. 5, n. 1, da Convenção de Bruxelas, o requerido pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida.
Tal preceito tem dado azo a frequentes divergências de interpretação.
No caso em apreço, agravante e agravada trazem-nos mais um desses dissídios.
Para a agravante, a norma em causa atribui competência ao tribunal do lugar onde foi cumprida ou devia ter sido cumprida a obrigação que funda a pretensão do demandante.
Transpondo tal interpretação para o caso dos autos, a A. agravante entende que a obrigação relevante para efeitos de aplicação do citado art. 5º da Convenção de Bruxelas é a sua própria obrigação: a obrigação de prestação de serviços jurídicos.
Como tal obrigação devia ser cumprida - e foi efectivamente cumprida - em Portugal, os nossos Tribunais seriam os competentes para conhecer da acção em que surgiu o presente recurso.
Diversamente, para a agravada, o art. 5 da Convenção de Bruxelas atribui competência ao Tribunal do lugar em que deveria ser cumprida a obrigação cujo incumprimento é a base do pedido.
Transpondo tal doutrina para o caso dos autos, a agravada sustenta que a obrigação relevante para efeitos de aplicação do mencionado dispositivo legal era a sua obrigação: a obrigação de pagamento dos honorários devidos pelos serviços prestados.
Atendendo a que tal obrigação devia ter sido cumprida na Grã-Bretanha, só os Tribunais da própria Grã-Bretanha seriam competentes para dirimir o litígio existente entre a A. agravante e a R. agravada.
Por seu turno, as Instâncias inclinaram-se decididamente para a tese da agravada.
A 10ª Vara Cível de Lisboa por entender que a "causa de pedir imediata na acção [é] o não pagamento da contrapartida monetária devida pelo alegado contrato ou contratos" - Cfr. fls. 288 destes autos.
A Relação de Lisboa por considerar que "a obrigação que serve de fundamento ao pedido (e que no caso não foi cumprida) é a obrigação da Ré no pagamento devido pela prestação de serviços jurídicos à Autora" - Cfr. fls. 230 verso destes autos.
Também é esse o nosso entendimento, podemos adiantá-lo desde já.
A fundamentação das Instâncias é absolutamente clara e aprofundada.
Na verdade a obrigação em que se funda a causa é a obrigação de pagamento dos honorários e não a obrigação de prestação de serviços jurídicos.
Aliás foi este o entendimento adoptado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no Acórdão de 5/11/1997, proferido no Processo C - 420/97, de que foi Relator o Ilustre Juiz Conselheiro Moitinho de Almeida, à data Membro daquele Tribunal.
Entre os plúrimos arestos que poderíamos invocar, vejamos esse Acórdão, relativo ao caso Leathertex.
A Bodetex BVBA - sociedade com sede na Bélgica, era representante comercial nos mercados belga e holandês da Leathertex Divisione Sintetici SpA, sociedade com sede na Itália - e, por desacordo entre ambas suscitado, pediu a condenação desta no pagamento das comissões em dívida e de uma indemnização compensatória por falta de pré-aviso na resolução do contrato.
Por sentença de 1/10/1991, o Rechtbank van Koophandel considerou que a acção tinha por base duas obrigações distintas.

Entendeu que a primeira, ou seja, a obrigação de respeitar um prazo de pré-aviso razoável para a resolução de um contrato de representação comercial e, em caso de desrespeito desse prazo, de pagar uma indemnização compensatória por falta de pré-aviso, devia ser executada na Bélgica, e considerou que a segunda, ou seja, a obrigação de pagar as comissões, devia ser executada em Itália, por força do princípio de que as dívidas devem ser pagas no domicílio do devedor.
Em todo o caso, aquele Tribunal considerou-se competente para conhecer de ambos os pedidos e julgou a acção integralmente procedente.
A Leathertex não se conformou com tal decisão e interpôs recurso da mesma para o Hof van Cassatie.
Este Tribunal, teve por bem suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias a questão prejudicial que se transcreve: "O artigo 5.°, ponto 1, e o artigo 2.° da Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, na versão aqui aplicável, devem ser interpretados no sentido de que uma petição que tem por base diferentes obrigações, que decorrem de um mesmo contrato, pode ser apresentada a um único tribunal, mesmo que, de acordo com as normas de reenvio do Estado do tribunal demandado, as obrigações contratuais em que assenta o pedido devam ser executadas uma no país do tribunal demandado e a outra num outro Estado-Membro da União Europeia, atendendo a que o tribunal demandado chegou à conclusão, com base na petição que lhe foi apresentada, que nenhuma das duas obrigações em que se baseia o pedido é subordinada, antes sendo equivalentes?"
A decisão do aludido Tribunal de Justiça foi inequívoca: "o artigo 5.°, ponto 1, da convenção deve ser interpretado no sentido de que o mesmo tribunal não é competente para conhecer do conjunto de uma acção fundada em duas obrigações equivalentes e decorrentes de um mesmo contrato, quando, segundo as normas de conflitos do Estado desse tribunal, estas obrigações devam ser executadas uma neste Estado e a outra num outro Estado contratante".
Porque é que este Acórdão é relevante para o caso de que nos ocupamos?
Obviamente porque o paralelismo entre os dois litígios é patente e permite-nos compreender perfeitamente o alcance do n. 1 do art. 5º da Convenção de Bruxelas.
Vejamos pois:

A Leathertex tem de pagar comissões à Bodetex. A agravada tem de pagar serviços advocatícios à agravante.
A Leathertex tem de pagar as referidas comissões por a Bodetex a ter representado comercialmente na Bélgica e na Holanda. A R. agravada terá de pagar os honorários por a A. agravante a ter representado enquanto sua mandatária judicial.
O pagamento da Leathertex à Bodetex devia ser realizado em Itália. O pagamento da R. agravada à A. agravante devia ser realizado na Grã-Bretanha.
A valer a tese da agravante, no caso Leathertex, a competência pertenceria aos Tribunais belgas e/ou aos Tribunais holandeses, porquanto a Bodetex realizou a sua contra- prestação contratual nesses países. E, no caso dos autos, a competência seria dos Tribunais Portugueses, uma vez que os serviços advocatícios foram prestados em Portugal.
A prevalecer a tese da agravada, no caso Leathertex, a competência pertenceria aos Tribunais italianos, pois as comissões deviam ser pagas em Itália. No caso sub judice, a competência pertenceria aos Tribunais da Grã-Bretanha, pois é na Grã-Bretanha que os honorários devem ser pagos.
No caso Leathertex, o Tribunal de Justiça decidiu que era aos Tribunais italianos que cabia conhecer desta acção. Ou seja, considerou relevante a obrigação de pagamento e não a obrigação de representação comercial.
No caso sub judice, este Supremo Tribunal vai decidir que é aos Tribunais da Grã-Bretanha que compete dirimir o presente litígio.
Isso acontece por entendermos - tal como sucedeu nas Instâncias - à luz do regime legal em vigor dever dar-se relevância à obrigação de pagamento dos honorários e não à obrigação de prestação dos serviços advocatícios.
Decorre do exposto que vai manter-se intocado o decidido pelas Instâncias.
III - Assim, nega-se provimento ao agravo e condena-se a recorrente nas custas.
Lisboa, 16 de Maio de 2002
Joaquim de Matos,
Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos.