Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B014
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: COMODATO
BENFEITORIA
INDEMNIZAÇÃO
MÁ FÉ
DIREITO DE RETENÇÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
PRAZO
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ200602090000147
Data do Acordão: 02/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. O prazo de caducidade de embargar de terceiro a que se reporta o artigo 353º, nº 2, do Código de Processo Civil só é aplicável aos embargos de função repressiva, não prevendo a lei prazo fixo para a dedução de embargos de terceiro de função preventiva, podendo deduzi-los entre a data do despacho que ordena a diligência e a sua efectiva realização.
2. A equiparação do comodatário ao possuidor de má fé a que se reporta o artigo 1138º, nº 1, do Código Civil no que concerne às benfeitorias realizadas na coisa comodatada, em termos de presunção, é apenas para efeitos da indemnização a que alude o artigo 1273º do Código Civil.
3. A má fé na realização das benfeitorias a que se refere a alínea b) do artigo 756º, todos do Código Civil - conhecimento pelo comodatário de que por via da realização das obras estava a lesar os interesses de outrem - tem a ver, como elemento excludente, com a constituição ou não do direito de retenção para garantia do direito de crédito do retentor.
4. Conhecendo os comodantes, que eram os sócios-gerentes da comodatária, que esta realizava as obras na fracção predial comodatada, excluída está a sua má fé nessa realização, e, como não se trata de benfeitorias meramente voluptuárias nem passíveis de levantamento sem detrimento delas ou da fracção predial, ela tem direito de crédito de indemnização segundo as regras do enriquecimento sem causa sob garantia de direito de retenção sobre a referida fracção predial.
5. A entrega da fracção predial à respectiva proprietária, a quem foi adjudicada em inventário de partilha de bens do casal, ordenada em acção executiva para entrega de coisa certa, é incompatível com o direito de retenção da comodatária, o que constitui fundamento da procedência dos embargos de terceiro em causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
Empresa-A deduziu, no dia 5 de Janeiro de 2001, embargos de terceiro relativamente ao despacho judicial proferido na acção executiva para entrega de coisa certa quanto a identificada loja dita adjudicada a AA em partilha dos bens do casal constituído por ela e por BB intentada contra este por aquela, pedindo a suspensão daquele despacho, sob o fundamento, a título principal, de ser arrendatária da referida loja e, a título subsidiário, com base em direito a ser paga pelas benfeitorias nela feitas e que não podem ser levantadas.
Admitidos liminarmente os embargos de terceiro, na contestação, a embargada invocou a caducidade dos embargos sob o fundamento de o executado, gerente da embargante, ter conhecido da decisão de entrega da loja mais de trinta dias antes a sua dedução.
Relegado para final o conhecimento da questão da caducidade do direito de embargar e realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 26 de Fevereiro de 2004, por via da qual os embargos foram julgados procedentes em relação ao mencionado fundamento subsidiário, reconhecendo à embargante o direito de retenção sobre a referida loja até que a embargada lhe pague € 26 996,13 relativos a benfeitorias efectivadas.
Apelou a embargada e a Relação, por acórdão proferido no dia 2 de Junho de 2005, negou provimento ao recurso, do qual a apelante interpôs recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- caducou o direito a recorrida de embargar de terceiro porque ela não apresentou a petição de embargos no prazo de 30 dias após o conhecimento do despacho que ordenou a entrega da loja;
- a recorrida, comodatária, foi compensada pelas eventuais obras ou benfeitorias voluptuárias que tenha realizado com subsídios comunitários;
- como a recorrida obteve a loja por meios ilícitos e houve má fé na realização das obras, excluído está o direito de retenção que invocou - artigo 756º do Código Civil;
- deve ser declarada a caducidade dos embargos ou negar-se à recorrida o direito a benfeitorias e de retenção.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A fracção predial B, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Alameda Guerra Junqueiro, nº ..., ..., Almada, foi adquirida por BB quando ainda era casado com AA, em relação à qual foi inscrita no registo predial uma hipoteca, constituída por ambos para segurança de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir por Empresa-A.
2. O casamento entre AA e BB foi dissolvido por sentença transitada em julgado proferida no processo nº 1014/95, que correu termos no Tribunal Judicial de Almada.
3. Antes do referido divórcio, com conhecimento da embargada, a embargante efectuou a reparação da casa de banho existente na fracção predial mencionada sob 1, procedeu à substituição da loiça e do autoclismo, construiu uma nova casa de banho, procedeu à pintura do interior da fracção, substituiu as persianas e a instalação eléctrica, colocou interruptores e de lâmpadas fluorescentes, tudo com o valor de € 22 500 incluindo o imposto sobre o valor acrescentado.
4. Com o conhecimento e consentimento da embargada, a embargante instalou na fracção predial mencionada sob 1 um sistema de segurança, com o que gastou 400 200$, e procedeu à colocação de um gradeamento na porta, montou um tecto falso e fez obras de aproveitamento do vão, materiais e trabalho, estes com o valor actual de € 2 500.
5. No processo de inventário, que correu termos por apenso ao processo mencionado sob 2, para partilha dos bens do casal de AA e de BB, foi adjudicada à primeira a fracção predial mencionada sob 1, e ao último duas quotas, uma de 3 000 000$ e outra de 2 000 000$, representativas do capital social da embargante, cujos únicos gerentes são uma e outro.
6. Após a adjudicação mencionada sob 5, a embargante enviou à embargada quantia monetária a título de rendas que ela recusou receber, e as obras mencionadas sob 3 e 4 não podem ser levantadas sem o seu detrimento e da fracção predial mencionada sob 1.
7. Na acção executiva para entrega de coisa certa subsequente ao processo de inventário mencionado sob 5, intentada por AA contra BB, foi proferido despacho judicial ordenador da entrega à primeira da fracção predial mencionada sob 1, que foi notificado ao advogado do último por carta remetida no dia 27 de Novembro de 2000.


III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não suspender-se a execução do despacho judicial que ordenou a entrega da loja mencionada sob II 1 à recorrente.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente, sem prejuízo de a solução a dar a alguma prejudicar a solução a dar a outra ou a outras, a reposta à mencionada questão pressupõe a análise das seguintes sub-questões:
- delimitação do objecto do recurso;
- natureza e objecto dos embargos de terceiro deduzidos pela recorrida;
- caducou ou não o direito de embargar de terceiro por parte da recorrida?
- tem ou não a recorrida, no confronto da recorrente, algum direito de crédito relativo a benfeitorias?
- está ou não o referido direito de crédito envolvido da garantia real retenção sobre a aludida fracção predial?
- tem ou não a recorrida o direito de embargar a diligência de entrega à recorrente da referida fracção predial?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos com a delimitação negativa do objecto de recurso de revista interposto por AA.
Na sentença proferida no tribunal da 1ª instância considerou-se que o contrato celebrado entre a recorrida, por um lado, e BB e AA, por outro, cujo objecto mediato foi a loja mencionada sob II 1, é de comodato, e o mesmo foi considerado no acórdão recorrido.
A recorrente está de acordo com a referida qualificação, em consequência do que a não pôs em causa no recurso de revista, e o objecto deste é, segundo a lei, delimitado pelo conteúdo das conclusões de alegação do recorrente (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Em consequência, não sindicaremos no recurso em análise a referida qualificação com base nos factos que as instâncias consideram para o efeito.

2.
Atentemos agora na natureza e no objecto dos embargos de terceiro deduzidos pela recorrida na acção executiva para entrega de coisa certa que a recorrente intentou contra BB.
O fundamento dos embargos de terceiro é, em regra, a ofensa da posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de penhora ou de qualquer outro acto judicialmente ordenado da titularidade de quem não seja parte na causa (artigo 351º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Versa este normativo sobre os chamados embargos de terceiro repressivos, isto é, sobre aqueles que são subsequentes à ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial em causa.
A lei permite, porém, a dedução de embargos de terceiro a título preventivo na sequência do despacho que ordenou a diligência ofensiva e antes de a mesma ser efectivada (artigo 359º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Nesse caso, a referida diligência não é efectuada antes da prolação do despacho liminar no procedimento de embargos e, se estes forem liminarmente recebidos, continuará suspensa até à decisão final (artigo 359º, nº 2, do Código de Processo Civil).
No caso vertente, porque os embargos de terceiro foram deduzidos depois da prolação do mencionado despacho mas antes de ocorrer a diligência concernente à entrega da referida, estamos perante embargos de terceiro de função preventiva.
E porque a recorrida não foi parte ou interveniente na acção executiva para entrega de coisa certa em que foi proferido o despacho determinativo da entrega da referida fracção predial, ela tem a posição de terceiro que é pressuposto da dedução de embargos de terceiro.

3.
Vejamos agora se caducou ou não o direito de embargar de terceiro por parte da recorrida.
Expressa a lei que o embargante deve deduzir a sua pretensão, mediante petição, nos trinta dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, até à venda ou adjudicação dos bens (artigo 353º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Decorrido o referido período de tempo entre a prática do acto ofensivo da posse ou de outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ou o seu conhecimento pelo terceiro deles titular, isso constitui excepção peremptória de caducidade do direito de embargar, implicante da improcedência dos embargos (artigos 144º, nº 4 e 487º, nº 2, do Código de Processo Civil e 328º e 329º do Código Civil).
Todavia, como é natural, o funcionamento do referido prazo de caducidade pressupõe a efectiva realização diligência ofensiva da posse ou de outro direito incompatível com essa realização ou o seu âmbito, ou seja, é seu pressuposto tratar-se de embargos de terceiro de função repressiva.
No caso vertente, porém, ainda não foi realizada a diligência de entrega da fracção predial mencionada sob II 1 à recorrente, motivo pelo qual os embargos de terceiro em causa são de função preventiva, não pode ser aplicado o prazo de caducidade a que alude o artigo 353º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Neste caso, como é natural, a lei não prevê prazo fixo para a dedução dos embargos de terceiro sob pena de funcionamento da excepção peremptória da caducidade do direito de os deduzir, mas tão só dois limites processuais, isto é, a data da prolação do despacho judicial determinante da diligência ofensiva da posse ou de outro direito do terceiro incompatível com a sua realização ou âmbito e a data da sua efectiva realização.
Com efeito, o que acontece com o tipo de embargos de terceiro em análise é que eles não podem ser deduzidos antes de ordenada judicialmente a referida diligência ou depois da sua realização, ou seja, podem sê-lo, depois de ordenada, em qualquer momento, enquanto não for efectivamente realizada.
Não tem, pois, fundamento legal a alegação da recorrente no sentido de que o prazo para a dedução dos embargos de terceiro de função preventiva é o de trinta dias a que se reporta o artigo 359º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Ora, resulta dos factos provados que a recorrida conheceu do despacho determinativo da entrega da fracção predial mencionada sob II 1 no dia 13 de Novembro de 2000 e que apenas deduziu os embargos de terceiro no dia 5 de Janeiro de 2001 - um mês e doze dias depois desse conhecimento - mas antes de tal entrega haver ocorrido.
Isso significa que os referidos embargos de terceiro são tempestivos, isto é, não ocorreu, na espécie, a caducidade do direito de embargar da recorrida.

4.
Verifiquemos agora se a recorrida é ou não titular, no confronto da recorrente, de algum direito de crédito relativo a benfeitorias.
As instâncias consideraram ser a recorrida detentora da fracção predial mencionada sob II 1 com base em contrato de comodato, traduzirem-se as obras em causa em benfeitorias necessárias ou úteis insusceptíveis de levantamento sem deterioração, ela ser titular de um direito de crédito no confronto da recorrente calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, no montante de € 26 996,19.
A recorrente entende que as obras em causa se traduzem em benfeitorias voluptuárias de que a recorrida foi compensada com subsídios comunitários.
Os factos provados não revelam ter a recorrida sido compensada com subsídios comunitários relativamente à realização das mencionadas obras, nem que BB tenha actuado nesse ponto em conjugação com os serviços bancários nem que a recorrente não haja assinado a parte que lhe competia, pelo que essas circunstâncias são insusceptíveis de relevar na decisão do recurso.
Importa, pois, analisar o conceito legal de benfeitorias que está em causa no recurso.
Resulta da lei, por um lado, serem as benfeitorias as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa e que se subdividem em necessárias, úteis ou voluptuárias (artigo 216º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
E, por outro, serem necessárias as benfeitorias cujo fim seja evitar a perda, a destruição da coisa, e serem úteis as não indispensáveis para a sua conservação mas que lhe aumentam o valor (artigo 216º, nº 3).
E, finalmente, serem voluptuárias as benfeitorias não indispensáveis para a conservação da coisa nem susceptíveis de lhe aumentar o valor e que apenas servem para recreio de quem as faz (artigo 216º, n.º 3, do Código Civil).
Assim, em sentido jurídico, são benfeitorias os melhoramentos feitos em coisas por pessoas a elas ligados por alguma relação jurídica, resultante, por exemplo, de locação, comodato ou posse.
Só são de considerar benfeitorias necessárias em determinada coisa as despesas imprescindíveis para a sua conservação à luz de critérios objectivos de normalidade e de razoabilidade e na envolvência de uma gestão prudente do homem, sendo de adoptar como índice o facto da sua não realização prejudicar o fim específico da coisa.
Por via do critério de delimitação negativa legalmente previsto, são benfeitorias úteis de uma coisa as despesas não imprescindíveis para a sua conservação mas idóneas ao aumento do respectivo valor.
O referido conceito de benfeitorias necessárias e úteis interessa, além do mais que na espécie não releva, nas relações dos comodatários sobre as coisas comodatadas e dos possuidores sobre as coisas possuídas (artigos 1133º, nº 2 e 1273º a 1275º do Código Civil).
A propósito da indemnização de despesas e levantamento de benfeitorias, relativamente ao contrato de comodato, expressa a lei que se o comodatário for privado dos seus direitos ou perturbado no seu exercício, pode usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes (artigo 1133º, nº 2, do Código Civil).
Acresce que a lei equipara o comodatário, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé (artigo 1138º, nº 1, do Código Civil).
E a propósito dos meios facultados ao possuidor, expressa a lei, por um lado, que os possuidores de boa fé ou de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito e a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam sem o seu detrimento.
E, por outro, que, quando for impossível o levantamento das benfeitorias úteis para evitar o detrimento da coisa, têm os possuidores de boa ou de má fé o direito a indemnização pelo valor das benfeitorias segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273º do Código Civil).
Tendo em conta as obras mencionadas sob II 3 e 4 e o conceito legal de benfeitorias voluptuárias acima delineado, a conclusão não pode deixar de ser, ao invés do que a recorrente alegou, de que se não trata de benfeitorias desse tipo.
Acresce, pela própria estrutura das referidas obras, tal como foi considerado no acórdão recorrido, que as referidas benfeitorias não podem ser levantadas sem o seu detrimento e da própria fracção predial em que foram realizadas.
Em consequência, independentemente de as referidas benfeitorias serem úteis ou necessárias, apesar de a recorrida dever ser considerada, em relação a elas, possuidor de má fé, deverá a recorrente indemnizá-la pelo respectivo valor, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273º do Código Civil).
Assim, é a recorrida, no confronto da recorrente, titular de um direito de crédito relativo a benfeitorias no montante de € 26.996,19.

5.
Vejamos agora se o referido direito de crédito está ou não envolvido da garantia real retenção sobre a aludida fracção predial mencionada sob II 1.
Importa salientar não resultar dos factos provados que algum cheque emitido por BB a favor de algum empreiteiro tenha sido depositado na sua conta pessoal, pelo que se não pode extrair disso alguma conclusão de má fé.
As instâncias consideraram que a recorrida é titular do direito de retenção que lhe permite recusar a entrega da referida fracção predial enquanto aquele seu crédito não lhe for satisfeito.
A recorrente, por seu turno, entende que a recorrida não é titular do referido direito de retenção por virtude de ela ter obtido a loja por meios ilícitos e ter agido de má fé na realização das obras em causa.
A propósito expressa a lei, quanto aos casos em geral, que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados (artigo 754º do Código Civil).
Um dos casos especiais de pessoas que gozam do direito de retenção é o do comodatário sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues em consequência do contrato de comodato pelos créditos delas resultantes (artigo 755º, nº 1, alínea e), do Código Civil).
Refere-se este normativo aos direitos de crédito dos comodatários provenientes da execução dos contratos de comodato, designadamente os concernentes as despesas com benfeitorias necessárias ou úteis realizadas nas coisas comodatadas.
O referido direito de retenção é excluído, além do mais que aqui não releva, a favor de quem tenha obtido a coisa por meios ilícitos, desde que, no momento da aquisição, conhecesse a sua ilicitude bem como a favor de quem tenha realizado de má fé as despesas de que lhe proveio o direito de crédito (artigo 756º, alienas a) e b), do Código Civil).
Assim, depende a existência do direito de retenção da licitude da detenção da coisa, da reciprocidade de créditos e da conexão substancial entre a coisa retida e o direito de crédito do retentor.
Como a recorrida obteve a fruição da fracção predial em causa por virtude da entrega que lhe foi feita pela recorrente e por BB no quadro de contrato de comodato, a conclusão não pode deixar de ser, ao invés do afirmado pela segunda, de que ela foi obtida por meios lícitos.
A equiparação do comodatário ao possuidor de má fé, a que se reporta o artigo 1138º, nº 1, no que concerne às benfeitorias realizadas na coisa comodatada, em termos de presunção, é para efeitos da indemnização a que alude o artigo 1273º, ambos do Código Civil.
A má fé na realização das despesas, ou seja, das benfeitorias a que se refere o alínea b) tem, por seu turno, a ver, como elemento excludente, com a constituição ou não do direito de retenção para garantia do direito de crédito do retentor.
O mencionado conceito de má fé pretende significar o conhecimento pelo retentor de que por via da realização das obras estava a lesar os interesses de outrem (artigos 10º, nºs 1 e 2, e 612º, nº 2, do Código Civil).
Tendo em conta que a recorrente e BB eram sócios e gerentes da recorrida, que realizou as obras, e que a recorrente conhecia da sua realização, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a recorrida as não realizou de má fé.
Consequentemente, ao invés do que a recorrente entende, a recorrida é titular do direito de retenção sobre a mencionada fracção predial para garantia de realização do mencionado direito de crédito.

6.
Atentemos agora se a recorrida tem ou não o direito de embargar a diligência de entrega à recorrente da referida fracção predial.
Conforme já se referiu, o acto judicial de entrega de bens em acção executiva para entrega de coisa certa que ofenda algum direito com ela incompatível de quem nela não foi parte justifica a dedução de embargos de terceiro (artigo 351º, nº 1, do Código Civil).
São incompatíveis com a diligência de entrega judicial de uma coisa os direitos reais ou pessoais de gozo que envolvam a sua usufruição tal como os direitos reais de garantia que envolvam a sua retenção.
Assim, a entrega judicial da fracção predial em causa à recorrente que foi judicialmente ordenada, é incompatível com o direito real de garantia da titularidade da recorrida consubstanciado no direito de retenção sobre a mencionada fracção predial.
Ocorre, por isso, o fundamento da procedência dos embargos de terceiro de função preventiva que a recorrida deduziu contra a recorrente.

7.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Atentos os sujeitos do processo de inventário, da subsequente acção executiva para entrega de coisa certa e dos conexos embargos de terceiro, o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha no dia 11 de Junho de 1999 e a consequente obrigação de entrega da fracção predial por parte de BB à recorrida não afecta os termos do litígio envolvente dos referidos embargos.
Pelos mesmos motivos, também não releva no quadro do litígio envolvido pelos embargos de terceiros a circunstância de o valor das referidas benfeitorias não haver sido inserido no referido processo de inventário de partilhas.
Não tem qualquer apoio legal a pretensão da recorrente no sentido de a recorrida ser condenada por litigância de má fé, naturalmente no recurso, além do mais porque a última, cujo acórdão recorrido lhe foi favorável, nem sequer alegou no recurso de revista (artigo 456º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Não faz parte do objecto do recurso a problemática da qualificação do contrato celebrado entre a recorrida, por um lado, e a recorrente e BB, por outro.
Não caducou o direito de embargar de terceiro por parte da recorrida, esta tem no confronto da recorrente de um direito de crédito relativo a benfeitorias envolvido de direito de retenção sobre a fracção predial em causa.
A recorrida tem, por isso, o direito substantivo de embargar a diligência de entrega à recorrente da referida fracção predial.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2006
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís