Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
366/13.2TNLSB.L2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATIVIDADES PERIGOSAS
NAVEGAÇÃO MARÍTIMA
PRESUNÇÃO DE CULPA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
CULPA
ILICITUDE
DANO
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
DEVER DE DILIGÊNCIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (MARITIMO)
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A norma do art.º 493.º n.º2 do CCiv impõe que a condução de perigos declarados, pela maior probabilidade de lesões danosas, esteja sujeita a um padrão superior de diligência devida, impondo um critério de culpa levíssima.

II - É actividade perigosa aquela que possui maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes, em perigosidade a aferir a priori e em abstracto, casuisticamente.

III - A actividade de navegação marítima, para ensaio de embarcação e experiência de redes, ensaio mais a mais determinado pelo facto de a embarcação ter sido submetida a alterações profundas visando a estabilidade do navio e a respectiva adaptação a determinado tipo de pesca costeira, constitui actividade perigosa, para efeitos da presunção legal do art.º 493.º n.º2 do CCiv.

IV – Nos danos causados por actividades perigosas, ao presumir-se a culpa (pela inversão do ónus de prova em matéria dos procedimentos idóneos para evitar o dano) presume-se, ao mesmo tempo, a ilicitude.

V - A causalidade deriva da concretização do perigo típico da actividade levada a cabo pelo lesante e da não prova de que o lesante tenha posto em prática os deveres de prevenção do perigo ou de tráfego impostos pela actividade que levava a cabo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Notícia Explicativa

AA intentou a presente acção declarativa, com forma ordinária, contra BB, herdeiro habilitado no processo de CC (1ª R); DD (2º R); EE (3º R); FF (4º R); Crustacil – Comércio de Mariscos, Ld.ª (5ª R); A..., S.A. (6ª R); R..., S.A. (7ª R); Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. (8ª R); e Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. (designação atual) (9ª R).

Após redução do pedido, judicialmente admitida, o Autor peticionou a condenação solidária dos Réus no pagamento ao Autor das quantias seguintes: a) Quantia não inferior a € 50 000,00 (cem mil euros) pelo dano-morte, relativamente ao seu falecido pai; b) Quantia não inferior a € 5 000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo pai do Autor, entre a ocorrência e a morte; c) Quantia não inferior a € 30 000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo próprio Autor, devido à morte do seu pai; d) Quantia não inferior a € 30 000,00 pelos danos patrimoniais sofridos pelo Autor, até à data da propositura da presente acção, devido à perda de rendimentos decorrente da morte do seu pai, acrescendo, em montante a liquidar, os danos patrimoniais futuros; e) Juros moratórios, à taxa legal, sobre as indicadas quantias indemnizatórias.

Invocou ter o seu progenitor sido uma das vítimas mortais aquando do naufrágio do navio Bolama, ocorrido no dia ... de dezembro de 1991, ao largo da costa portuguesa.

O Autor tinha quatro anos de idade na data do óbito do seu pai, sendo um dos herdeiros do falecido, e sofreu relevantes danos de natureza material e imaterial com a referida perda, para além dos danos da própria vítima.

No essencial, a responsabilidade das 1.ª, 5.ª, 6.ª e 8.ª Rés resultou da circunstância de, por forma grosseiramente negligente, se ter procedido a alterações no navio sem um estudo prévio das implicações das mesmas na respectiva estabilidade; à realização de aberturas de resbordo no navio; e a cálculos e marcas de bordo livre efetuados sem rigor e com desconhecimento dos dados base; encontrando-se as 5.ª e 8.ª Rés ligadas por um contrato de seguro, pelo qual se transferiu para a seguradora (8.ª Ré) a responsabilidade civil decorrente dos danos causados pelo navio Bolama.

A responsabilidade dos restantes demandados adveio de, por forma grosseiramente negligente, terem efetuado cálculos e marcas de bordo livre sem rigor e com desconhecimento dos dados base; e, aquando das inspeções e vistorias que lhes coube realizar para a emissão do certificado de bordo livre, terem sido muitíssimo negligentes na avaliação das mencionadas alterações estruturais ao navio, emitindo a 7.ª Ré o referido certificado, quando era seu dever recusá-lo. Esta demandada estava ligada por contrato de seguro com a 9.ª Ré (antes, com a designação de AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A.).

Todos esses factos foram causa adequada do sucedido evento, sendo que, da conjugação dos mesmos, resultou o naufrágio do navio Bolama em 1991.

Mais tarde no processo, o Autor replicou, relativamente à matéria das exceções deduzidas, nos termos seguintes:

Inicialmente, deduziu o pedido de indemnização cível no Processo n.º 3583/91...., do ... Juízo do Tribunal de Instrução Criminal ...; mais tarde, instaurou a acção que correu os seus termos como Processo n.º 19931/97...., da ... Vara Cível de ...; em ambos, os ora Réus foram citados; quando o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão cível de absolvição da instância, com fundamento em incompetência material, proferida no último processo, o Autor instaurou a presente acção declarativa de condenação e, por força do instituto da litispendência, estando pendente uma determinada causa, durante os cerca de 15 anos que o processo demorou no foro cível até se declarar incompetente, ela não pode ser repetida; quanto ao Tribunal Marítimo, a sua criação coincidiu com o final do processo-crime e o desenvolvimento da acção cível, não existindo, na altura, jurisprudência sobre as normas definidoras da competência do Tribunal Marítimo, tendo o Autor optado pelo percurso do foro cível, desde logo por se tratar do tribunal competente a título residual.

Todos os Réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção e sua consequente absolvição dos pedidos.

A 1.ª Ré alegou não ser a única herdeira de seu falecido marido, GG, porquanto existem e foram habilitados outros sucessores. O mesmo era engenheiro maquinista da marinha mercante e foi admitido ao serviço da 5.ª Ré para prestar serviços no domínio específico da sua formação académica, ou seja, na área da reparação e manutenção de máquinas e motores, em regime livre, sem mais. Ao falecido não lhe competia fazer, e jamais o fez, quaisquer sugestões sobre matéria de estabilidade do navio Bolama, nem sequer dispunha de atribuições/funções nesse âmbito. Em todo o caso, os valores reclamados pelo Autor constituem enormidade inaceitável.

Os 2.º, 3.º, 4.º e 7.ª Réus suscitaram a exceção dilatória de ilegitimidade do Autor, por preterição do litisconsórcio necessário ativo, com vista à sua absolvição da instância, bem como a excepção peremptória da prescrição, com vista à sua absolvição dos pedidos.

Por via de impugnação, alegaram não terem cometido nenhum acto ou omissão censuráveis, no decurso do processo de vistoria do navio Bolama e cálculo do bordo livre, não lhes sendo imputável culpa na produção do evento que determinou o naufrágio, qualquer que haja sido a sua causa – na certeza de que a não foi, nem a eventual existência das boeiras, nem as condições de estabilidade da embarcação. O navio perdeu-se porque alguma acção o inclinou ao ponto de submergir, e manter submersas, as grandes aberturas (portas, vigias, etc.) que o mesmo levava franqueadas, o que permitiu o embarque muito rápido de enormes quantidades de água, anulando a reserva de flutuabilidade do navio. As boeiras jamais tornariam possível ou poderiam importar uma contribuição relevante para o embarque da água necessária ao afundamento daquele navio, sendo indiferente haver informação sobre a sua existência.

A única tarefa que a 7.ª Ré desempenhou foi a elaboração dos cálculos necessários à marcação do bordo livre, o que não pode confundir-se com a verificação/cálculo da estabilidade da embarcação. A mesma empresa não emitiu, nem podia emitir, nenhum certificado de bordo livre ou de linhas de carga, que é da exclusiva competência das administrações de bandeira (Guiné-Bissau). A 7.ª Ré, através dos seus funcionários, limitou-se a vistoriar o navio e a calcular o bordo livre, não tendo emitido o certificado respectivo, nem teve necessidade do caderno de estabilidade. O navio havia sido inspecionado pela autoridade de bandeira, que lhe outorgou, sem restrições ou exigências suplementares, o certificado de navegabilidade. Ao elaborar o cálculo do bordo livre, a 7.ª Ré não tinha nenhuma razão para suspeitar que se não verificasse o mencionado pressuposto da estabilidade do navio. A perda deste não pode ser reparada à custa dos ora Réus, que em nada contribuíram para o seu naufrágio.

As 5.ª e 6.ª Rés também arguiram a excepção peremptória da prescrição, com vista à sua absolvição dos pedidos, apresentando, ainda, defesa por impugnação.

Alegaram que nenhum dos comportamentos atribuídos pelo Autor aos Réus na petição inicial foi tido como causa determinante do afundamento do navio Bolama. Não existindo nexo de causalidade entre as acções ou as omissões imputadas a GG, não opera o mecanismo de responsabilização das 5.ª e 6.ª Rés, expresso no petitório inicial. A intervenção do falecido GG sempre se cingiu à área de máquinas e motores, e nada mais, não tendo as mesmo quaisquer responsabilidades técnicas nos domínios da estabilidade do navio. E foi admitido ao serviço da 5.ª Ré para prestar serviços no âmbito específico da sua formação académica, ou seja, na área da reparação e manutenção de máquinas e motores, em regime livre. O embarque de cerca de 28 toneladas de lastro no fundo do porão da embarcação melhorou substancialmente a condição de estabilidade do navio Bolama, sendo que o porão do barco não foi excessivamente carregado. As operações de carregamento são da exclusiva competência dos capitães ou mestres dos navios, nos termos legais. As modificações no Seixal foram da iniciativa da 5.ª Ré, por sugestão do mestre do navio. Muito embora os Autores não hajam alegado a conexão, não existe qualquer nexo causal entre as alterações introduzidas na Dinamarca e/ou no Seixal e o afundamento do navio, naufrágio que se deveu a causas desconhecidas ou a “fortuna do mar”. A 6.ª Ré não era armadora do navio Bolama e estas Rés contestantes nunca incumbiram o falecido GG de tarefas excluídas do âmbito das suas atribuições contratuais, atrás referidas. Nenhuma das pessoas mencionadas na petição inicial foi gerente e/ou administrador das 5.ª e 6.ª Rés, sendo que os gerentes e administradores dessas Rés, nunca citados naquele articulado, quando agiram no interesse das mesmas, fizeram-no só em seu nome e representação.

Por via excepção, a 8.ª Ré fez consignar na sua contestação:

a)Seja declarado o Autor como parte ilegítima e, em consequência, absolvida a 8.ª Ré da instância; b) Seja julgado prescrito o direito de indemnização invocado pelo Autor e, consequentemente, absolvida a 8.ª Ré dos pedidos; c) Seja considerada extensível ao Autor a eficácia do caso julgado formado no Processo n.º ...93, que correu termos no Tribunal Marítimo de Lisboa, entre as partes do contrato de seguro marítimo, titulado pela apólice número ...58 e, se assim não for entendido e em qualquer caso, declarado ineficaz (sem efeitos) esse contrato de seguro, com fundamento no incumprimento pela segurada Crustacil das obrigações previstas no artigo 8.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, als. a) e c), das condições gerais (traduzido na omissão de comunicação prévia da transferência de propriedade sobre o navio e da mudança de bandeira, na ocultação da sua falta de estabilidade e na não manutenção do mesmo em perfeitas condições de navegabilidade) e, em consequência, absolvida tal Ré dos pedidos; d) Seja julgada excluída do âmbito de cobertura da apólice a responsabilidade civil fora dos casos previstos na cláusula especial 7.ª, bem como os danos não patrimoniais (artigo 2.º, § único, das condições gerais da apólice), e absolvida a 8.ª Ré dos pedidos; e) A provar-se o nexo de causalidade entre os factos imputados pelo Autor aos demais Réus e o naufrágio do navio Bolama, sejam julgadas verificadas as exclusões previstas no artigo 7.º, n.º 1, als. e), h) e q), das condições gerais da apólice, absolvendo-se a 8.ª Ré dos pedidos; f) Em qualquer caso, seja julgada a acção improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvida a 8.ª Ré dos pedidos; e g) Considerar qualquer hipotética responsabilidade da 8.ª Ré limitada ao valor do capital seguro pela apólice.

Deduziu, ainda, defesa por via de impugnação, referindo que, como decorre das coberturas descritas na apólice com o número ...58, a 5.ª Ré não transferiu para a 8.ª Ré a responsabilidade civil pelos danos causados pelo navio Bolama, com excepção da responsabilidade por danos causados a outros navios ou embarcações ou a objetos fixos ou flutuantes em resultado de abalroamento ou choque, respetivamente, prevista na cláusula especial 7.ª que, apesar de aplicável ao contrato de seguro celebrado entre ambas, não aproveita ao Autor.

De qualquer modo, mesmo que o contrato de seguro marítimo produzisse efeitos e a responsabilidade civil tivesse sido transferida nos termos alegados na petição inicial (e não apenas no caso previsto naquela cláusula especial), a 8.ª Ré não responderia, ainda assim, pelos danos invocados pelo Autor, decorrendo de algumas das condições gerais da apólice a exclusão da responsabilidade da seguradora 8.ª Ré.

Concluiu que o Autor não é titular de qualquer direito de indemnização sobre a 8.ª Ré, seja a que título for, que parte da quantia reclamada nos autos é muito exagerada e que o pedido de ressarcimento por danos patrimoniais futuros carece de fundamento legal. Impugnou o valor da causa.

A contestante 9.ª Ré, para além de ter invocado também a excepção da prescrição, fez referência aos termos e limitações do contrato de seguro celebrado com a 7.ª Ré, frisando a eventual responsabilidade meramente contratual da 9.ª Ré e que uma sua hipotética condenação seria sempre inviável no que excedesse o capital seguro.

Por impugnação, fez sua a posição da respetiva Ré segurada, acentuando que a vistoria desta 7.ª Ré se destinou apenas a calcular o bordo livre do navio Bolama, não lhe cabendo a emissão do competente certificado. O pressuposto de que o naufrágio ocorreu por alagamento progressivo do navio, por entrada de água pelas boeiras (aberturas), é incompatível com as características do naufrágio em si, já que todos os pareceres técnicos concluíram que o afundamento se produziu de forma muito rápida, com o embarque de uma quantidade de água substancial, incompatível com a dimensão das boeiras de resbordo abertas no navio. Nenhum dos 2.º, 3.º, 4.º e 7.ª Réus contribuiu com qualquer acto, ou omissão, para o naufrágio do navio Bolama, pelo que a responsabilidade do evento lhes não é imputável nem, por natureza e decorrentemente, à seguradora 9.ª Ré. Pela sua particular relevância, a 7.ª Ré não emitiu, nem o podia fazer, qualquer certificado de bordo livre ou linhas de água, matéria da competência exclusiva das administrações de bandeira (no caso, Guiné-Bissau). Inexistiu, por parte desta 7.ª Ré, qualquer falha na sua atividade específica de classificação e controlo de qualidade sobre o navio Bolama, única hipótese em que poderia ter-se constituído em responsabilidade civil contratualmente endossável à seguradora 9.ª Ré. A 7.ª Ré foi inteiramente estranha à factualidade conducente ao sinistro, sem qualquer participação de comissário, sendo que aquela Ré cumpriu exatamente a tarefa que lhe fora cometida, no âmbito da sua actividade de entidade classificadora. Não há nexo causal entre tal intervenção e o sinistro ocorrido.


As Decisões Judiciais

A 1.ª instância julgou procedente, por provada, a excepção da prescrição dos direitos peticionados pelo Autor, absolvendo os Réus dos pedidos.

Pela via recursória de apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou o Autor parte legítima no tocante aos pedidos de indemnização pelo dano-morte e por danos não patrimoniais sofridos pelo seu pai no naufrágio do navio Bolama; mas julgou verificada a prescrição dos direitos peticionados pelo Autor, absolvendo os Réus da totalidade dos pedidos.

Em revista, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a primeira deliberação do Tribunal da Relação de Lisboa (reconhecendo ao Autor a legitimidade activa para a dedução da pretensão indemnizatória, na parte que lhe correspondesse, em relação à morte do seu pai e aos danos que a precederam), mas revogou a segunda deliberação, considerando improcedente a excepção peremptória da prescrição do direito de indemnização, determinando o consequente prosseguimento dos autos.

A sentença a seguir proferida julgou parcialmente procedente acção e os pedidos do Autor, nos seguintes termos:

a)Condena a 5.ª Ré Crustacil – Comércio de Mariscos, Lda., a pagar ao Autor AA a quantia de € 50 000,00 (cinquenta mil euros) pelo dano-morte, relativamente ao seu falecido pai;

b) Condena a 5.ª Ré a pagar ao Autor a quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo próprio Autor, devido à morte do seu pai;

c) Condena a 5.ª Ré a pagar ao Autor a quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros) pelos danos patrimoniais sofridos pelo Autor, atenta a perda de rendimentos decorrente da morte do seu pai;

d) Condena a 5.ª Ré a pagar ao Autor juros moratórios, à taxa legal de 4%, sobre as indicadas quantias indemnizatórias, a contar da data da sentença, em relação às verbas das alíneas a) e b), e desde a data da citação (nos autos) em relação à verba da alínea c);

e) Absolve a 5.ª Ré do restante peticionado nos autos;

f) Absolve os demais Réus de todos os pedidos formulados nos autos, sendo a 8.ª Ré Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., absolvida por força da procedência da excepção peremptória da autoridade do caso julgado formado no Processo n.º ...93 do Tribunal Marítimo de Lisboa, extensível/oponível à pessoa do Autor.

A 5.ª Ré Crustacil interpôs recurso de apelação, mas a Relação confirmou a decisão antes proferida.


Ainda inconformada a Ré Crustacil, recorreu agora de revista excepcional, admitida pela Formação deste S.T.J., nos termos da norma do art.º 672.º n.º 1 al.a) do CPCiv:

a) – A fundamentação do douto acórdão recorrido é essencialmente diferente da da douta sentença da 1ª instância;

b) – A questão da criação de um “tertium genus” entre a responsabilidade por factos ilícitos e a responsabilidade civil pelo risco é complexa, não está devidamente estudada e reveste a maior relevância jurídica, pelo que a sua apreciação pelo venerando STJ afigura-se claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

c) – O recurso de revista deve ser admitido, seja como normal, seja, subsidiariamente, como excepcional;

d) – A decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal da 1ª instância não foi impugnada, pelo deve ter-se como definitivamente assente que o naufrágio do navio “Bolama” se deveu a causa não apurada;

e) – O douto acórdão recorrido considerou o caso dos autos enquadrável no âmbito do artº 493º nº 2 do CC, isto é, no domínio da responsabilidade por factos ilícitos;

f) – A responsabilização à luz do disposto no artº 493º nº 2 do CC não prescinde do facto ilícito e do nexo da causalidade entre este e o dano, como pressupostos necessários (artº 483º nº 1 do CC).

g) – O facto ilícito e o nexo causal não se presumem;

h) – O douto acórdão recorrido, atribuindo o naufrágio do “Bolama” a factos que não são causa apurada do mesmo, conheceu de matéria que lhe estava vedada conhecer e, assim, infringiu o disposto no artº 608º nº 2 – parte final, do CPC e incorreu nas nulidades previstas nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 615º do mesmo diploma legal;

i) – No caso sob apreciação, não está verificada a ilicitude da conduta da ora Rec.te nem o nexo de causalidade entre qualquer conduta da ora Rec.te e o naufrágio do “Bolama”;

j) – Tendo o naufrágio do “Bolama” ocorrido devido a causa não apurada, não tem cabimento a presunção de culpa que decorre da 2ª parte do nº 2 do artº 493º do CC;

k) – O juízo de censura que a culpa supõe sempre é impossível de conceber quando o naufrágio do navio “Bolama” e o consequente falecimento do pai do ora Rec.do se deveram a causa não apurada, não sendo, pois, possível a imputação desses eventos à Rec.te a título de culpa, mesmo que presumida;

l) – Com efeito, sendo o naufrágio do navio “Bolama” devido a causa não apurada, sempre se afigura impossível imaginar quais as providências necessárias para o evitar que a ora Rec.te podia e devia ter adoptado, ou seja, nunca teria cabimento a aplicação do disposto na 2ª parte do nº 2 do artº 493º do CC;

m) – A tese adoptada na douta sentença da 1ª instância, segundo a qual o caso sob apreciação se insere num patamar intermédio entre a responsabilidade civil subjectiva e a responsabilidade civil objectiva infringe os princípios gerais da responsabilidade civil por factos ilícitos culposos definidos nos artºs 483º nº 1 e 2 e a proibição da aplicação analógica das normas excepcionais dos artºs 499º e segts, imposta pelo artº 11º, todos do CC;

n) – O douto acórdão recorrido infringiu o disposto nos artºs 483º nº 1 e 493º nº 2 do CC, e no artº 608º nº 2 do CPC, incorrendo nas nulidades previstas nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 615º deste último diploma legal.


Por contra-alegações, o Autor pugnou pela rejeição do recurso.

Factos Apurados

1. - No dia ... de dezembro de 1991, ocorreu o naufrágio do navio Bolama;

2. Dessa ocorrência resultou a morte das trinta pessoas que seguiam a bordo do navio, entre as quais o convidado HH, progenitor do ora Autor;

3. O navio – do ano de 1969 e intervencionado em 1983 – havia sido adquirido pela 5.ª Ré a uma empresa dinamarquesa, em 24 de janeiro de 1991;

4. Ainda na Dinamarca, o mesmo navio – então com a designação de Borgin – foi objeto de reparações e alterações sob sugestão da 5.ª Ré, em janeiro e fevereiro de 1991, que consistiram essencialmente no seguinte (cfr. fls. 1039 do Processo n.º ...93):

- Acrescento de seis metros para vante nos robaletes, provavelmente com o objetivo de diminuir a amplitude das inclinações transversais do navio;

- Instalação de uma segunda grua no segundo tombadilho (“Boat Deck”), com todo o equipamento a ela associada, localizada a vante da ponte de navegação a meio navio;

- Revestimento do pique de vante com cimento para ser utilizado como tanque de aguada;

- Desmontagem de alguns dos reforços estruturais de proa no pique de vante e paiol da amarra;

5. O navio foi posteriormente registado em nome da Guipal – Sociedade de Direito Guineense, e foi-lhe concedida autorização de pesca costeira pelas autoridades da Guiné-Bissau, as quais emitiram o certificado de navegabilidade;

6. II pretendia que o navio Bolama fosse dotado de sistema de pesca “por tangones”, utilizado na pesca do camarão;

7. Para apurar a viabilidade dessa pretensão, GG aconselhou II a contratar um engenheiro do ramo da construção naval, JJ;

8. (…) Tendo o mesmo constatado que não havia caderno de estabilidade, pelo que seria necessário colocá-lo em doca seca para fazer os respetivos cálculos;

9. Em Setembro de 1991, o navio Bolama dirigiu-se a Lisboa, tendo atracado no cais da 6.ª Ré, no Seixal;

10. (…) Local onde lhe foram efectuadas novas alterações por iniciativa da 5.ª Ré, tais como (segundo a descrição constante de fls. 1040 do Processo n.º ...93):

- Embarque de cerca de 28 toneladas de lastro no fundo do porão;

- Desmontagem de quatro guinchos de pesca do primeiro tombadilho AV;

- Montagem de dois guinchos no primeiro tombadilho AR, transformados em enrolador de redes;

- Desembarque de quatro tapetes rolantes e uma mesa grande de trabalho do parque de pesca;

- Montagem de um condensador marítimo na casa da máquina;

- Montagem de um grupo hidráulico no parque de pesca, para acionamento das placas do congelador e do tapete transportador de tabuleiros, que era manual;

- Montagem de um armário congelador no parque de pesca;

- Desembarque de uma caldeira de cozer camarão, de um tanque de lavagem de pescado e de uma mesa grande em aço do parque de pesca;

- Montagem de uma unidade de ar condicionado no primeiro tombadilho à proa;

- Instalação de um sarilho para cabos no segundo tombadilho à proa;

- Instalação de vários acessórios de refrigeração para o congelador de placas no parque de pesca;

- Instalação de dois camarotes a bombordo, dois camarotes a estibordo, uma casa de banho, uma sala de jantar e um paiol de géneros no primeiro tombadilho a meio navio;

- Desmontagem de duas divisórias longitudinais em chapa do primeiro tombadilho, que serviam como guias das redes;

- Desmontagem da antepara transversal e porta estanque de comando hidráulico nela incorporada, que existia AR da casa de preparação do pescado;

- Alteração do sentido de abertura da porta de embarque do pescado no primeiro tombadilho no topo da rampa à popa;

- Foram cortadas as saliências (reforços) que existiam em ambos os bordos no painel de popa;

- Reparação geral das casas de banho, incluindo a colocação de cimento nos seus pavimentos;

- Manufaturados e montados vários armários para arrecadações diversas;

- Corte de várias aberturas de resbordo a bombordo e estibordo a ré, acima do verdugo, ao nível do pavimento do bordo livre – existência de três aberturas a bombordo (duas semi-circulares com diâmetro aproximado de 150mm, e uma retangular com dimensões aproximadas de 350x300mm);

- Montagem de uma dala com abertura aproximada de 400x350mm, situada a cerca de 500mm acima da abertura de resbordo mais a ré do costado de bombordo;

11. Tais alterações foram realizadas sem estudo prévio e caderno de estabilidade, e sem novas provas de estabilidade, afetando a estabilidade do navio Bolama, assim como não foram comunicadas à Inspecção de Navios e Segurança Marítima, nem participadas para efeitos de fiscalização;

12. Em Novembro de 1991, a 7.ª Ré, sociedade classificadora, vistoriou o dito navio, a pedido da 5.ª Ré, a fim de vir a ser emitido o certificado de bordo livre;

13. Tal certificado de bordo livre corresponde à inscrição, no costado dos navios, de linhas que marcam os limites de imersão dos mesmos, tendo em vista a salvaguarda da vida humana no mar e a defesa das embarcações e dos bens embarcados;

14. No decurso da referida vistoria, o inspetor da 7.ª Ré, aqui 2.º Réu, constatou a existência de aberturas de resbordo, duas do lado estibordo e outra do lado bombordo;

15. O 2.º Réu determinou ou deu instruções ao mestre do navio que se soldassem aquelas aberturas antes de o navio sair para o mar;

16. No dia 3 de dezembro de 1991, o navio Bolama saiu do cais da 6.ª Ré, no Seixal, dirigindo-se para a Docapesca, em Lisboa, a reboque do navio Farrusco;

17. Em ... de dezembro de 1991, cerca das 11h00, com boas condições de mar e de tempo, o navio Bolama saiu da referida Docapesca para realizar uma experiência de redes, levando a bordo trinta pessoas – entre as quais, o pai do Autor –, e tendo sido efetuada a última comunicação do navio por volta das 11h30;

18. O navio Bolama não mais voltou a contactar, nem regressou à hora prevista, tendo desaparecido;

19. Após buscas através de meios aéreos e navais, o navio Bolama acabou por ser localizado, no dia 5 de fevereiro de 1992, afundado ao largo da costa portuguesa e frente à barra de Lisboa, a 116 metros de profundidade, assente de quilha e ligeiramente adornado a estibordo, a cerca de 8,1 milhas do Cabo Raso e 14,5 milhas do Cabo Espichel;

20. O naufrágio do navio Bolama ocorreu em poucos minutos;

21. E não houve a possibilidade de se fazer qualquer comunicação, nem tempo para permitir a utilização dos meios de salvamento existentes a bordo, com a entrada ou embarque de grande quantidade de água nesse período temporal de minutos;

22. CC era a viúva e uma herdeira do mencionado GG, tendo sido, como tal, habilitada no âmbito do Processo n.º 19931/97...., da ... Vara Cível de ..., ... Secção;

23. Em ... de dezembro de 1991, a 5.ª Ré era a empresa armadora do navio Bolama;

24. O Autor é o único filho de HH, falecido em consequência do naufrágio do navio Bolama;

25. Na altura, o Autor tinha quatro anos de idade;

26. O falecido era alguém que vivia intensamente a vida, sendo bastante feliz;

27. No plano pessoal, o mesmo vivia em harmonia com a sua mulher e com o filho de ambos, o ora Autor;

28. Mantinha uma situação familiar estável e financeiramente desafogada;

29. No campo profissional, tratava-se de um conhecido e já reputado arquiteto;

30. Era uma pessoa com uma grande alegria de viver;

31. Dos relatórios das autópsias de alguns dos cadáveres encontrados resultou que essas mortes foram devidas a asfixia por submersão;

32. Eram muito fortes os laços afetivos existentes entre o Autor e o seu pai;

33. Foi enorme e tem perdurado, e até se agravado ao longo dos anos, o desgosto sofrido pelo Autor com o falecimento do seu pai;

34.(...) Por quem nutria especial afeição e que lhe dispensava muitos afetos, apoio material, psicológico e de companheirismo, de que o Autor veio a necessitar;

35. Ficou para sempre alterada a realidade familiar do Autor com a ocorrência que provocou a morte do seu pai;

36. O referido desgosto do Autor, em face do falecimento do seu pai, que o deixou traumatizado, agravou-se com o crescimento;

37. O sofrimento do Autor é adensado pelas circunstâncias em que a morte do seu pai ocorreu, sendo que o cadáver da vítima continua desaparecido;

38. Desde o dia ... de dezembro de 1991 até hoje que é recordado com dor, pelo Autor, o desaparecimento do seu pai;

39. Em virtude daquela morte, verificou-se a perda da capacidade de ganho para o agregado familiar, muito em especial para o Autor, pois era do rendimento auferido por HH que se suportava a maioria das despesas do agregado;

40. Quando proposta a presente acção, em 28 de junho de 2013, o Autor ainda estava sem auferir quaisquer rendimentos;

41. O Autor viveu a sua infância e juventude com alguns sacrifícios patrimoniais, devido à perda prematura do seu pai;

42. E também deixou de receber as importâncias respeitantes aos rendimentos que o seu pai iria continuar a auferir;

43. O falecido HH nascera em .../.../1954, tendo, no dia do naufrágio, 37 anos de idade;

44.A sua morada era na rua ..., em ...;

45. GG deixou como seus sucessores, para além de CC (cônjuge), os filhos BB, KK e LL;

46. GG era engenheiro maquinista da marinha mercante e foi admitido ao serviço junto da 5.ª Ré para prestar serviços no domínio específico da sua formação académica, ou seja, na área da reparação e manutenção de máquinas e motores, em regime livre;

47. A intervenção de GG sempre se circunscreveu à área de máquinas e motores, não lhe competindo fazer – e jamais o fez – sugestões sobre matéria de estabilidade do navio Bolama, e não dispondo de atribuições/funções nesse âmbito;

48. O navio Bolama perdeu-se por causa não apurada, possivelmente porque alguma ação – de natureza e causa indeterminadas – o inclinou a ponto de submergir, e de manter submersas, as grandes aberturas (portas e vigias) que levava franqueadas, o que permitiu o embarque muito rápido de enormes quantidades de água, anulando a reserva de flutuabilidade da mencionada embarcação;

49. As três boeiras – duas de recorte semi-circular e uma de recorte retangular – jamais tornariam possível, ou poderiam importar, o embarque da água necessária ao afundamento daquele navio;

50. O 2.º Réu não informou da existência das mencionadas aberturas aos demais membros da equipa que estava a proceder aos cálculos necessários à marcação da linha de bordo livre;

51. (...)Designadamente, não comunicou ao 3.º Réu a existência de tais aberturas;

52. A única tarefa que a 7.ª Ré desempenhou foi a da elaboração dos cálculos necessários à marcação do bordo livre;

53. A mesma empresa não emitiu (nem podia emitir) nenhum certificado de bordo livre ou de linhas de carga (da exclusiva competência das administrações de bandeira);

54. No dia ... de dezembro de 1991, o Bolama era um navio de pesca costeira, registado na República da Guiné-Bissau, sob cuja bandeira navegava;

55. A 7.ª Ré, através dos seus funcionários, limitou-se a vistoriar o navio Bolama e a calcular o bordo livre, não tendo emitido o certificado respetivo, nem teve necessidade do caderno de estabilidade;

56. No dia ... de dezembro de 1991, o navio Bolama fez-se ao mar em condições diferentes das suas condições típicas de carga (pesca), quais fossem as de navio de carga geral (com eletrodomésticos, passageiros, cartões, garrafões, etc.);

57. O navio Bolama havia sido inspecionado pela autoridade de bandeira, que lhe outorgou, sem restrições ou exigências suplementares, o certificado de navegabilidade;

58. O dito navio havia sido classificado pela DNV (Det Norsk Veritas, sociedade classificadora dinamarquesa) com a mais elevada classificação por si atribuída – a classificação 1A1 –, navio de pesca, e tinha realizado para o efeito provas de estabilidade;

59. Nessa sequência, as autoridades dinamarquesas, após o dia 24 de janeiro de 1991, autorizaram a saída do navio e a sua viagem até Portugal;

60. O embarque de cerca de 28 toneladas de lastro no fundo do porão, no Seixal, visou melhorar a condição de estabilidade do navio Bolama;

61. A 5.ª Ré celebrou com a 8.ª Ré um contrato de seguro marítimo, titulado pela apólice número ...58, com efeitos a partir de 19 de dezembro de 1990, que tinha por objeto o barco de pesca de arrasto costeira, por si adquirido, denominado Borgin (mais tarde, Bolama), com bandeira das Ilhas Faroé (Dinamarca), com o capital inicial garantido de 120 000 000$00 e uma franquia de 120 000$00, alterados, posteriormente, para 140 000 000$00 (casco, máquinas e pertences: 100 000 000$00; redes de pesca: 10 000 000$00; lucros cessantes: 30 000 000$00) e 100 000$00, respetivamente, conforme proposta de seguro, apólice e respetivas condições gerais e especiais documentadas de fls. 203 a 215, que aqui se dão como totalmente integradas e reproduzidas;

62. Na referida apólice de seguro marítimo foram contratadas entre as partes outorgantes as cláusulas especiais 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 7.ª e 12.ª;

63. Após o naufrágio do navio Bolama, a 5.ª Ré propôs uma acção judicial contra a ora 8.ª Ré, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 140 000 000$00, correspondente ao capital garantido pela referida apólice, cujos termos correram no Tribunal Marítimo de Lisboa, sob o número 622/1993;

64. O Tribunal Marítimo de Lisboa julgou improcedente a referida ação judicial, absolvendo a ora 8.ª Ré do pedido, com fundamento na ineficácia do contrato de seguro marítimo celebrado entre ambas, sentença essa mantida pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, cuja decisão foi confirmada pelo Tribunal Constitucional, no que respeita à questão da sua alegada inconstitucionalidade, por acórdão transitado em julgado em 4 de novembro de 1999, conforme certidão judicial junta de fls. 216 a 292;

65. Segundo a cláusula especial 7.ª (sétima) do dito contrato de seguro marítimo (a única, entre as referidas cláusulas especiais, que se refere à responsabilidade civil), só se encontra “1. (...) coberta a responsabilidade civil do Segurado no referente aos danos patrimoniais causados a terceiros pelo navio ou embarcação aqui seguro a outros navios ou embarcações em resultado directo e imediato de abalroamento, ficando ainda especialmente abrangida por esta cláusula a responsabilidade civil do Segurado no referente aos danos patrimoniais causados pelo navio ou embarcação aqui seguro a cais, molhes, pontões, pontes, diques, planos inclinados ou construções similares, obras de arte ou boias” (cfr. fls. 214);

66. O n.° 3 da mesma cláusula especial vem estabelecer que, “Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Particulares não se encontra garantido por este contrato qualquer importância que o Segurado venha a ser obrigado a pagar, embora relacionado com o abalroamento ou embate do navio ou embarcação aqui seguro, no referente a despesas com (...), ou ainda quaisquer danos decorrentes de perda de vidas, lesões corporais ou doença” (cfr. fls. 214);

67. Na cláusula geral 8.ª, n.° 1, al. b), a 5.ª Ré obrigou-se perante a seguradora 8.ª Ré “a comunicar de imediato (...) todas as circunstâncias de que tenha conhecimento e que possam agravar o risco assumido, pagando o prémio adicional que for requerido” (cfr. fls. 209);

68. E consta do seu n.° 2, entre o mais, o seguinte: “2. O presente contrato deixará de produzir os seus efeitos, podendo a Seguradora exigir do Segurado um montante igual ao valor das indemnizações que tiver pago por sinistros ocorridos posteriormente, quando o Segurado não observe as seguintes obrigações :a) Manter o navio ou embarcação identificada nas Condições Particulares em perfeitas condições de navegabilidade;(...);c) Comunicar previamente à Seguradora a transferência de propriedade sobre o navio ou embarcação identificada na Apólice, bem como quando lhe pretenda dar destino ou uso diferente daquele que foi declarado” (cfr. fls. 209 e 210);

69. Na cláusula geral 2.ª, parágrafo único, pode ler-se o seguinte: “Salvo convenção em contrário, expressa nas Condições Particulares, não ficam garantidos os danos não patrimoniais” (cfr. fls. 208);

70. Da cláusula geral 7.ª, n.º 1, als. e), h) e q), do referido contrato de seguro, consta o teor seguinte:“1. Salvo convenção em contrário expressa nas Condições Particulares, a Seguradora não responde pelas perdas ou danos directa ou indirectamente resultantes de: (...);e) Dolo, fraude, barataria do capitão ou de qualquer membro da tripulação;(...);h) Vício próprio, desgaste normal, uso ou depreciação, deficiência, defeitos latentes ou ocultos e/ou de manutenção do navio ou embarcação;(...);q) Quaisquer factos resultantes da infracção ou inobservância dos regulamentos gerais de navegação e especiais dos portos, capitanias ou outras autoridades marítimas ou de quaisquer outras disposições legais nacionais e internacionais, bem como a falta de reparação reconhecida necessária e já recomendada pela Seguradora ou pelas autoridades marítimas” (cfr. fls. 209);

71. A 5.ª Ré não comunicou à 8.ª Ré a transferência da propriedade do navio em apreço (da 5.ª Ré para a empresa guineense Guipal), bem como a mudança do seu nome (de Borgin para Bolama) e da respetiva bandeira (das Ilhas Faroé, Dinamarca, para a da Guiné-Bissau), durante a vigência do contrato de seguro celebrado entre ambas;

72. (...) Tal como deixou de comunicar à 8.ª Ré a realização das alterações levadas a efeito em Portugal (Seixal);

73.À data em que ocorreu o naufrágio do navio Bolama, encontrava-se em vigor um contrato de seguro de Responsabilidade Civil Exploração, titulado pela apólice número ...44, de acordo com o clausulado constante de fls. 162 a 169, aqui dado como totalmente integrado e reproduzido;

74. Nesse contrato era seguradora a ora 9.ª Ré, então denominada UAP Portugal – Companhia de Seguros, S.A., sendo tomadora e segurada a aqui 7.ª Ré;

75. O contrato tinha por objeto garantir o segurado, até ao limite do capital seguro, contra as consequências pecuniárias de responsabilidade civil que lhe pudesse ser imputada, face ao Código Civil, devido a danos corporais, materiais e imateriais causados a terceiros, incluindo clientes, decorrente do exercício da atividade de classificação de navios e controlo de qualidade, nos termos dos capítulos I e II, cláusulas 3.1 da apólice de seguro em apreço;

76. O capital seguro era de 200 000 000$00 por anuidade, mas com o limite de 100 000 000$00 por sinistro, estando sujeito a uma franquia de 10 % do valor do sinistro, com o limite mínimo de 185 000$00 e o limite máximo de 900 000$00, em conformidade com as suas condições particulares; valores a que correspondem, em moeda corrente, as quantias de € 997 595,80 para cada anuidade, € 498 797,90 por sinistro, bem como as franquias mínima de € 992,78 e máxima de € 4 448,18;

77. O Tribunal de Instrução Criminal ..., por decisão instrutória proferida em 23 de agosto de 1996, despronunciou os aí arguidos GG, DD (aqui 2.' Réu), EE (aqui 3.' Réu) e FF (aqui 4.' Réu), pela prática do crime que nesses autos o Ministério Público lhes imputou; e essa decisão foi confirmada por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 7 de maio de 1997, que manteve a não pronúncia dos aludidos arguidos.


Factos Não Provados

I. Na viagem da Dinamarca para Lisboa, o Bolama teve vários comportamentos com tendência para adornar para qualquer dos bordos, sendo que as alterações na Dinamarca determinaram a mudança do peso do navio, no seu conjunto, sem que fossem efetuadas novas provas de estabilidade;

II. O então mestre da referida embarcação, MM, deu conhecimento desses comportamentos a II e a GG, os quais nada fizeram para resolver os problemas existentes;

III. JJ concluiu que o navio não tinha estabilidade suficiente para a colocação do sistema de pesca (ao camarão) “por tangones”;

IV. II, como gerente da 5.ª Ré, considerou que tal operação implicava custos excessivos, tanto em tempo como em dinheiro, e foi por essa razão que o navio seguiu, sem mais, para a Guiné-Bissau;

V. No decurso da viagem para a Guiné-Bissau, o navio Bolama adornou com muita frequência, a bombordo e a estibordo, mesmo com o mar calmo, tendo sido (inclusive) necessário retirar “força” às máquinas para que retomasse a posição inicial;

VI. Na execução da atividade pesqueira na Guiné-Bissau, ao arrastar, o mesmo navio deixou de “responder”, sendo necessário evitar a sua colisão com outros navios;

VII. Todos estes factos foram levados ao conhecimento – mormente pelo, na altura, mestre da embarcação, NN – de GG;

VIII. GG colaborava com II nas questões relacionadas com a atividade pesqueira das sociedades 5.ª Ré, 6.ª Ré e G..., empresas onde os empregados eram comuns;

IX. Foram (também) da iniciativa de GG as alterações realizadas no ... ao navio Bolama;

X. Todas essas alterações ocorridas no Seixal foram supervisionadas por GG;

XI. A determinação pelo 2.º Réu – que se soldassem as aberturas de resbordo antes de o navio sair para o mar – foi direcionada a GG;

XII. Em consequência, os cálculos necessários à marcação do bordo livre ficaram “viciados”, por terem sido desconsideradas as aberturas de resbordo;

XIII. O 2. ° Réu não verificou a carga do navio nem deu instruções ao mestre sobre o modo de efetuar o carregamento;

XIV. No decurso do reboque, no dia 3 de dezembro de 1991, o navio Bolama adornou para ambos os lados (bombordo e estibordo), levando algum tempo a retomar a posição inicial;

XV. GG era assessor técnico e supervisor das reparações e alterações do navio Bolama;

XVI. GG não efetuou, nem solicitou a outro técnico, um estudo das consequências na estabilidade do navio, sobre as alterações introduzidas no Seixal;

XVII. GG não insistiu para que fosse entregue o caderno de estabilidade;

XVIII. Tal como não diligenciou para que fossem realizadas provas de estabilidade após as alterações introduzidas, embora soubesse das reclamações dos mestres quanto ao comportamento do navio e dos avisos e recomendações de JJ, relativamente à estabilidade do Bolama;

XIX. GG autorizou que fossem efetuadas as aberturas de resbordo;

XX. Muito embora ele conhecesse a capacidade do porão do navio Bolama GG nada fez relativamente ao peso que lá foi colocado;

XXI. Ignorou a recomendação que lhe fora feita pelo 2.° Réu – no sentido de ser “imperioso” que as aberturas de resbordo fossem soldadas antes de o navio em apreço sair para o mar;

XXII. No decorrer da vistoria na qualidade de inspetor da 7.ª Ré, o 2.° Réu não confirmou o cumprimento da determinação da soldadura das aberturas de resbordo no navio Bolama;

XXIII. (...) Para além de que não deu conhecimento ao 3.º Réu e ao 4.º Réu da existência das mencionadas aberturas de resbordo, mesmo sabendo que o conhecimento dessas aberturas era essencial para a marcação da linha de bordo livre;

XXIV. Apesar de o 3.° Réu saber que o navio Bolama não tinha caderno de estabilidade e que não fora verificada a estabilidade do mesmo, o 3.° Réu procedeu ao cálculo necessário à marcação da linha de bordo livre, com vista a ser emitido o respetivo certificado;

XXV. O 4.° Réu (como diretor da 7.ª Ré) subscreveu os dados fornecidos para que fosse emitido o certificado de bordo livre, sem confirmar se os elementos técnicos apresentados pelos Réus anteriormente referidos eram, ou não, os corretos;

XXVI. Os 2.°, 3.° e 4.° Réus atuaram nos termos acima descritos, no exercício das suas funções e ao serviço da 7.ª Ré;

XXVII. Embora a 7.ª Ré tivesse sido contratada para confirmar a estabilidade do navio Bolama, efetuando as competentes vistorias, inspecções, cálculos e marcações, para aplicação da Convenção Internacional das Linhas de Carga (1966), os seus técnicos nada fizeram no sentido de confirmar que o armador, a quem entregaram o certificado, implementasse as medidas condicionantes e prévias à obtenção desse documento;

XXVIII. A 6.ª Ré era empresa armadora do navio Bolama;

XXIX. Todos os referidos factos foram causadores do sucedido afundamento, tendo sido da conjugação dos mesmos que resultou o naufrágio do navio Bolama;

XXX. O pai do Autor constituíra uma sociedade de arquitetos com OO, também considerado no meio, a “F..., Lda.”, a qual possuía vasta carteira de clientes e de projetos executados e em execução;

XXXI. No ano de 1990, tal sociedade realizou proveitos, independentemente de custos, de 15 675 000$00, e, no ano de 1991, de 23 884 701$00, os quais foram afetados, na proporção de metade, a cada um dos dois únicos sócios;

XXXII. O falecido vivia em casa própria;

XXXIII. A sua mulher dispunha de veículo próprio da marca Toyota, e o falecido de viatura da marca Lancia, em nome da sociedade profissional de que fazia parte, mas que só ele utilizava na sua vida profissional e pessoal;

XXXIV. As férias que a família fazia no país e estrangeiro eram, pelo menos, de três semanas, frequentando bons hotéis e estâncias turísticas;

XXXV. Tinham empregada doméstica três dias por semana;

XXXVI. O falecido auferia não menos de 350 000$00 mensalmente, nos dois últimos anos de vida, e contribuía com dois terços dessa importância para as despesas da sua casa, reservando um terço para outros gastos pessoais;

XXXVII.(...) Com um rendimento anual de, pelo menos, 4 200 000$00;

XXXVIII. À data da propositura da presente ação, o Autor ainda estudava;

XXXIX. No decesso de HH (decorrente da submersão do navio), ocorreu-lhe a previsão da morte e a sensação de impotência para lhe resistir;

XL. HH teve a percepção da sua morte, aquando da submersão do navio, experimentando sentimentos próprios dessa realidade iminente.

Conhecendo:



I


Relembrando as decisões finais de 1.ª instância e de apelação, não há dúvida de que, como afirmado no anterior despacho de remessa à Formação deste S.T.J., no caso dos autos, ambas as decisões são expressas em fundamentar a condenação da Recorrente na responsabilidade civil extracontratual, decorrente da norma do art.º 493.º n.º2 do CCiv.

Escreveu-se decisivamente na sentença:

“Recaindo sobre a situação em presença, mostram-se reunidos os pressupostos de que depende a aplicabilidade do referido preceito (cfr. artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil) à atividade de navegação marítima, quer seja ela perspetivada através da sua própria natureza, quer dos meios de locomoção utilizados; e, dentro do conjunto de atividades de navegação, inexistem razões para afastar a atividade piscatória em mar, exercida em termos efetivos ou em moldes experimentais, tal como aconteceu no caso concreto.”

“(…) A 5.ª Ré, como empresa armadora do navio, tanto ao nível da alegação como da prova de factos, estava vinculada a uma presunção legal de culpa como a que se encontra exarada no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, o que lhe impunha uma tarefa mais consistente sobre a causa efetiva do ocorrido naufrágio, ou sobre a boa estabilidade do navio Bolama quando saiu para o mar no dia ... de dezembro de 1991, mormente como resultado das modificações estruturais introduzidas no Seixal, realizadas à revelia de qualquer vistoria ou fiscalização prévia das autoridades competentes.”

A integração juscivilística foi confirmada no acórdão recorrido, desde logo nos seguintes termos iniciais da fundamentação: “O segmento da natureza perigosa da actividade marítima exercida pela Ré apelante mereceu a sua adesão (do tribunal a quo) e, também do nosso ponto de vista, revela-se acertada a conformação normativa da sentença”.

Igualmente efectuou o acórdão recorrido uma digressão sobre as matérias que lhe eram colocadas na apelação, designadamente:

- as potenciais causas naturalísticas para o naufrágio do navio (nenhuma provada em concreto, mas podendo ter actuado isoladamente ou em conjunto);

- o nexo causal, de um ponto de vista do conceito de causalidade adequada: “A Ré não logrou prova positiva de outra causa para o afundamento do navio, e em particular, não demonstrou que procedeu nas circunstâncias exigidas a evitar o dano, em consonância com o disposto no artigo 493º, nº2, do Código Civil;  isto é, arrimado na factualidade apurada, o tribunal indagou e fixou a “causa jurídica” do naufrágio do navio, à luz dos critérios jurídicos aplicáveis; donde, no caso em juízo, afigura-se-nos que a formulação negativa da causalidade adequada, permite demonstrar o nexo causal entre os factores descritos e o afundamento rápido do navio, através do recurso à ideia de probabilidade ou de curso normal das coisas”;

- o nexo causal verificado pelas teorias do “escopo da norma” ou da “violação dos deveres de tráfego”;

- o alcance da presunção de culpa do art.º 493.º n.º2 do CCiv, enquanto presunção de ilicitude e, para alguns autores, também presunção de causalidade.

É claro que o acórdão insistiu argumentativamente nas matérias da ilicitude e do nexo causal, mas fê-lo em função do conteúdo das alegações de apelação, que apontavam para um necessário aprofundamento (ou conclusão de não verificação) dos apontados factores de responsabilidade civil extracontratual, elencados na sentença.

De modo algum se pode afirmar que a Relação fundamentou de forma contraditória ou ambígua, ou então que conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, pois que se moveu sempre em atenção à ilicitude e à causalidade, não deixando de enfatizar, por forma persuasiva, que considerava, ao igual de 1.ª instância, diversas hipóteses de causas para o afundamento do navio, todas potencialmente operantes, “não se logrando determinar com exactidão qual a concreta acção que levou ao afundamento do navio” – afirmação que coadjuvou a conclusão relativa à verificação da ilicitude e da causalidade na actuação da Ré e ora Recorrente.

Portanto, a matéria do presente recurso é outra, que não a da nulidade do acórdão, à luz do disposto no art.º 615.º n.º1 als. c) e d) do CPCiv – é matéria de mérito.

É claro que o acórdão conclui ainda que, “por força da especial perigosidade imanente à actividade, o dever de evitar o dano se tornava mais rigoroso do que aquele que é exigido, em geral, em sede de responsabilidade civil, situando-se num patamar de exigência superior e com referência aos mais elevados padrões de diligência e cuidado”.

Tal se referenciou por via da norma pressupor que o agente deve demonstrar que empregou “todas as providências exigidas pelas circunstâncias”, com o fim de prevenção de danos (art.º 493.º n.º2 do CCiv) – o que permite à doutrina afirmar que “a condução de perigos declarados postula, em tese, um tratamento jurídico especialmente severo, por se revelar mais elevada, por definição, a probabilidade de lesões danosas, impondo, desta forma, um standard superior à diligência devida” (Rui Ataíde, Responsabilidade Civil por Violação de Deveres de Tráfego, 2015, pg. 524), outra doutrina vendo no caso a imposição de um critério de culpa levíssima (Maria da Graça Trigo, Rodrigo Moreira, Comentário ao CC, Das Obrigações em Geral, UC Editora, 2018, pg. 324).

Estes considerandos doutrinários não fizeram derivar, nem a sentença, nem o acórdão, para a afirmação de um tertium genus entre a responsabilidade civil aquiliana e a responsabilidade pelo risco, tendo visado apenas realçar a necessária interpretação dos critérios impostos ao agente pela norma do art.º 493.º n.º2 do CC, critérios de responsabilidade subjectiva agravada ou de responsabilidade objectiva atenuada (cf. Ac.S.T.J. 13/3/2007 Col.I/124, rel. Nuno Cameira)

Sabe-se aliás como as presunções, p.e. aquela que a citada norma prevê, pretendem “firmar o facto desconhecido” (art.º 349.º do CC), logo o facto conducente à afirmação da culpa do agente, por via da inversão do ónus de prova, mas, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, art.º 493.º, nota 1, se é certo que se abre uma excepção à regra do n.º1 do art.º 487.º do CC, não se altera o princípio do art.º 483.º de que a responsabilidade depende da culpa, continuando sempre a situar-nos no âmbito da responsabilidade civil aquiliana, subjectiva.

É o critério que sufragamos, sem prejuízo dos enquadramentos doutrinários intermédios visando facilitar a compreensão do alcance concreto da norma.


II


Vejamos então a matéria substancial do processo – estamos perante uma hipótese fáctica enquadrável no disposto no art.º 493.º n.º2 do CC?

A norma parte do conceito de “exercício de actividade perigosa, por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados”.

Para Vaz Serra, in Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, Bol.85/378, actividades perigosas são as “que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades”; no mesmo sentido Almeida Costa, Dtº das Obrigações, 9.ª ed., pg. 538.

É actividade perigosa aquela que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes, sendo que a perigosidade deve ser aferida a priori e em abstracto e não em função dos resultados danosos, em caso de acidente, muito embora a magnitude destes resultados possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade ou risco dessa actividade (Ac.S.T.J. 17/5/2017, p.º 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, rel. António Piçarra).

A definição de actividade perigosa envolve uma apreciação casuística (resumo dessa casuística em Menezes Cordeiro, Tratado de Dt.º Civil Português, Dt.º das Obrigações, III – 2010, pgs. 585ss.).

Para o enquadramento da situação fáctica dos autos, irrelevam circunstâncias como a realização de alterações sem estudo prévio (facto 10.º), ausência de caderno de estabilidade (com a afectação de estabilidade daí decorrente) ou a igual ausência de comunicação à Inspecção de Navios e Segurança Marítima.

O circunstancialismo legal ou procedimental que regia as alterações ao navio, tenha sido ou não respeitado, não torna a actividade em si mais ou menos perigosa.

É apenas a actividade de navegação marítima, para ensaio de embarcação e experiência de redes, que torna a actividade perigosa, para efeitos da presunção legal citada – o que cabe afirmar.

Note-se que não se trata de uma simples actividade de navegação – apesar de Pires de Lima e Antunes Varela (CC Anotado, anotação 3.ª ao art.º 493.º) classificarem a navegação marítima simplesmente como perigosa, em função da sua natureza.

Trata-se de uma navegação especial, navegação de ensaio de embarcação e redes, ensaio mais a mais determinado pelo facto de a embarcação ter sido submetida a alterações profundas, designadamente as cerca de 20 alterações a que se reportam os factos provados 4.º e 10.º, alterações que visaram a estabilidade do navio e a respectiva adaptação a determinado tipo de pesca costeira.

Trata-se assim de uma actividade não apenas desenvolvida no meio aquático e marítimo, mas uma actividade de ensaio e de experimentação, designadamente de redes, com o risco de ensacamento excessivo das mesmas, num navio a experimentar novas aberturas a bombordo e estibordo.

Portanto, a navegação marítima, conjugada com as características de ensaio da embarcação e das redes que transportava, tornaram e tornam perigosa a actividade exercida, para efeitos da norma do art.º 493.º n.º2 do CCiv.

Não existe facto ilícito comprovado?

Não existe, de facto, enquanto comportamento efectivamente adoptado pelo lesante, revelador de uma deficiência da vontade exigível, mas decorre da actividade desenvolvida uma presunção de imputação do dano ao agente, com uma relativa indiferença entre culpa e ilicitude (Menezes Cordeiro, op. cit., pg. 589) – ao presumir-se a culpa (pela inversão do ónus de prova em matéria dos procedimentos idóneos para evitar o dano) presume-se, ao mesmo tempo, a ilicitude (de acordo com o próprio texto da norma do art.º 493.º n.º2 - cf. Ac.S.T.J. 13/3/2007 cit.).

E quanto ao nexo causal, partiu o acórdão recorrido de uma presunção do mesmo?

Estamos perante o que a doutrina apelida de “especial configuração da causalidade” (Menezes Cordeiro, op. e loc. cits.).

A causalidade entre o facto e o dano reporta-se a uma actividade, que não a um determinado comportamento humano.

Na verdade, a causalidade, no caso concreto dos autos, deriva de dois factores essenciais:

- da concretização do perigo típico da actividade levada a cabo pelo lesante;

- da não prova de que o lesante (a Ré/Recorrente) tenha posto em prática os deveres de prevenção do perigo ou de tráfego impostos pela natureza da actividade que levava a cabo.

Ora, o naufrágio da embarcação constitui notória expressão do perigo da actividade de ensaio náutico de navegação e pesca levada a cabo pela lesante, acrescendo que nenhuma prova se efectuou de um cumprimento (necessariamente escrupuloso, com a demonstração necessária de uma culpa levíssima) de regras de vistoria e fiscalização prévia da embarcação, em face das profundas alterações a que o navio se submetera – ao invés, a lesante negligenciou tais deveres e, como assinalou o acórdão recorrido, fê-lo até em condições diversas dos seus requisitos típicos de carga, optando por zarpar qual navio de carga geral (cf. facto provado n.º 56 – com electrodomésticos, passageiros, cartões, garrafões, e outros).

Em suma, tudo conduz à confirmação do acórdão recorrido.


Concluindo:

I - A norma do art.º 493.º n.º2 do CCiv impõe que a condução de perigos declarados, pela maior probabilidade de lesões danosas, esteja sujeita a um padrão superior de diligência devida, impondo um critério de culpa levíssima.

II - É actividade perigosa aquela que possui maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes, em perigosidade a aferir a priori e em abstracto, casuisticamente.

III - A actividade de navegação marítima, para ensaio de embarcação e experiência de redes, ensaio mais a mais determinado pelo facto de a embarcação ter sido submetida a alterações profundas visando a estabilidade do navio e a respectiva adaptação a determinado tipo de pesca costeira, constitui actividade perigosa, para efeitos da presunção legal do art.º 493.º n.º2 do CCiv.

IV – Nos danos causados por actividades perigosas, ao presumir-se a culpa (pela inversão do ónus de prova em matéria dos procedimentos idóneos para evitar o dano) presume-se, ao mesmo tempo, a ilicitude.

V - A causalidade deriva da concretização do perigo típico da actividade levada a cabo pelo lesante e da não prova de que o lesante tenha posto em prática os deveres de prevenção do perigo ou de tráfego impostos pela actividade que levava a cabo.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


S.T.J., 25/5/2023


Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira