Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1473
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VENDA EXECUTIVA
REGISTO
Nº do Documento: SJ20070605014736
Data do Acordão: 06/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Porque na ordem juridica portuguesa o usucapião prevalece sobre o registo, o comprador que não registou a aquisição de um imóvel mas logrou fazer prova da aquisição originária (usucapião), não vê o seu direito afectado por ulterior penhora daquele bem e subsequentemente venda executiva, mesmo tendo o adquirente registado o bem a seu favor e, posteriormente, tendo-o alienado ao reivindicado, sabendo este que o imóvel fora adquirido pelo reivindicante
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AAe mulher BB intentaram, em 24.2.2003, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Fafe – com distribuição ao 1º Juízo – acção declarativa de condenação com processo comum, sob forma ordinária, contra:

CC & C.ª, Ld.ª.

Pretendendo a declaração de que são proprietários de um lote de terreno que identificam, que são nulos os contratos de compra e venda efectuados após a sua aquisição, ordenando-se o cancelamento dos respectivos registos e a condenação da Ré a restituir-lhes tal prédio.

Para tanto alegam, em suma, ter adquirido o prédio em apreço por compra titulada pela escritura pública de 10.01.1984.

Alegam, ainda os factos atinentes à aquisição originária da propriedade por usucapião.

Em Julho de 2003 a Ré entrou no seu prédio com máquinas, aí efectuando trabalhos de terraplanagem, vindo a partir daí a depositar nele materiais diversos.

Contestando, a Ré alegou, em suma, ter adquirido por escritura pública de 4.02.2002 o prédio rústico onde efectuou os referidos trabalhos de terraplanagem, estando a respectiva propriedade inscrita a seu favor.

Foi-lhe vendido o prédio por uma sociedade comercial que, por sua vez, o adquiriu por venda em hasta pública.

Replicaram os réus reafirmando a posição expressa na petição inicial.

Foi elaborado despacho saneador e organizados os factos assentes e a base instrutória, apresentando as partes os seus requerimentos de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com obediência das formalidades legais, finda a qual se produziram as respostas que dirimiram a factualidade controvertida.
***


A final foi proferida sentença que:

Julgou a acção procedente e, consequentemente:

a) Declarou os AA. legítimos proprietários do prédio descrito no ponto 2) dos factos provados;

b) Declarou nulas as compras-e-vendas respeitantes ao referido prédio, realizadas posteriormente a 10.01.1994;

c) Ordenou o cancelamento do registo de penhora efectuado a 26.06.1995 e os das aquisições posteriores, designadamente a inscrição G6 e o registo a favor da Ré;

d) Condenou a Ré a restituir imediatamente o dito prédio aos autores, livre de pessoas e de bens.

***

Inconformada a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por Acórdão de fls. 232 a 243, de 11.1.2007, negou provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.
***

De novo inconformada recorre a Ré para este Supremo Tribunal e nas alegações apresentadas formulou as seguintes conclusões:

1° - Os Autores têm título — a escritura pública de compra e venda celebrada em 10 de Janeiro de 1984, mas não têm o registo da compra.

2° - A usucapião, por efeito do disposto no artigo 1296°, só se verifica ao fim de 15 anos, na caso de boa-fé, e de 20 anos, se de má-fé.

Pelo que, no caso sub judice, os Autores, estando de boa-fé, só podem adquirir o prédio, por usucapião, ao fim de 15 anos.

3° - A firma “DD - Imobiliária, Ldª” comprou o prédio através de venda judicial, tendo procedido ao seu registo no dia 2 de Março de 1998 — matéria assente nos presentes autos.

4° - Após a firma “DD-Imobiliária, Ldª” ter adquirido o prédio através da venda judicial, os Recorridos não podiam nele permanecer, tendo perdido a sua posse, por ter decorrido mais de um ano desde a entrega do prédio àquela firma até á propositura da acção – alínea d) do artigo 1267°do Código Civil.

5° - Assim, também, não se encontram verificados os requisitos previstos no artigo 1287° do Código Civil — o decurso do tempo para a verificação da usucapião.

6° - A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1251º, 1263°, 1267°, 1287° e 1296°, todos do Código Civil.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão da Relação, por assim ser de Inteira justiça.

Os AA. contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do Acórdão recorrido.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:


1) Os autores residem fora da área da comarca de Fafe.

2) Por escritura de 10.01.1984 os Autores compraram António de Moura e mulher Rosa Alves da Cunha o seguinte prédio: lote de terreno destinado à construção com a área de 543 m2, já dividido e demarcado, desintegrado do prédio rústico denominado “Sorte de Mato dos Campos Novos”, situado no lugar da Corujeira, da freguesia de Medelo, descrito na Conservatória sob o nº 24.290 e inscrito na matriz sob o artigo 277º, confrontando do Nascente com José Manuel Oliveira Rodrigues e Cª, Ld.ª, Sul com os vendedores, Poente com a estrada e Norte com herdeiros de Virgílio de Oliveira, como melhor consta da certidão junta a fls. 10 a 12 cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3) Os autores não registaram a sua aquisição na Conservatória do registo Predial.

4) No Tribunal Judicial de Vila Verde, pelo 1° Juízo, correu termos processo de execução n°9-A/93, contra a Herança Ilíquida Indivisa de António de Moura.

5) No âmbito desse processo de execução foi registada a penhora do prédio rústico objecto da compra por parte da Ré.

6) Esse processo de execução correu os seus termos normais tendo terminado com a venda judicial a favor da firma “DD-Imobiliária, Ldª”, com sede na Rua José Ribeiro Vieira de Castro, n°195, na cidade de Fafe, o qual procedeu ao registo respectivo em 2 de Março de 1998 – inscrição G6.

7) O registo da penhora foi, após a venda judicial, cancelado – Av. 4 – inscrição F1, em 7 de Outubro de 1998.

8) Os autores, por si e passados, há mais de vinte anos, procedem à limpeza, cortam matos e silvas, no lote de terreno, destinado à construção com a área de 543 m2, já dividido e desintegrado do prédio rústico denominado “Sorte de Mato de Campos Novos”, sito no lugar de Corujeira, freguesia de Medeio, descrito na Conservatória sob o n° 24.290 e inscrito na matriz sob o artigo 277, confrontar de nascente com José Manuel Oliveira Rodrigues e Cª Ldª, sul com os vendedores, poente com estrada e do norte com Herdeiros de Virgílio de Oliveira, lote este inscrito na matriz urbana sob o art. 722º.

9) E tudo à vista e com o conhecimento de todos, de forma contínua, sem interrupção nem oposição de ninguém.

10) Na convicção em que estão e sempre estiveram os AA. de que tal prédio lhes pertence e de que sobre ele, de modo exclusivo, exercem o seu direito de propriedade.

11) Tal prédio é o constante da escritura mencionada em 2).

12) Desde a data da escritura referida em 2) os Autores mantêm o lote devoluto, sem nele terem procedido a qualquer construção.

13) A Ré não ignorava, no momento da aquisição, que o prédio era propriedade dos Autores.

14) O representante legal da ré, João Freitas Sousa, nasceu, viveu e ainda vive no lugar da Corujeira, freguesia de Medelo, local onde se situa o terreno em causa.


Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber se os AA. adquiriram o imóvel por usucapião, o que passa por apreciar quais as consequências jurídicas de não terem registado tal aquisição, e o imóvel em causa ter sido penhorado e posteriormente vendido judicialmente a uma sociedade que, por sua vez, o vendeu à Ré que registou tal aquisição.

É inquestionável que atento o pedido e causa de pedir a acção intentada pelos AA. é de reivindicação – art. 1311º do Código Civil.

Os AA. alegaram terem adquirido o prédio por contrato de compra e venda por escritura pública notarial de 10.1.1984 – aquisição derivada – e ainda por usucapião – aquisição originária – fundada em actos de posse.

Se é incontroversa tal aquisição derivada, já se questiona a aquisição por usucapião porquanto os AA. não registaram a aquisição do prédio; este, em execução intentada contra a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por morte do vendedor aos AA. – António Moura – foi objecto de penhora – Execução nº9/93 que pendeu no Tribunal de Fafe –; o imóvel foi vendido judicialmente a “DD Ldª”, que registou a aquisição em 2.3.1998; o registo da penhora foi cancelado em 7.10.1998; por sua vez a “DD, Ldª” por escritura pública notarial de 4.2.2002 vendeu o dito imóvel à Ré – doc. de fls. 30 a 33 – cujo direito de propriedade, desde 19.2.2002, se acha registada a seu favor – certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 36 a 39.

Os factos sublinhados, que não foram objecto de impugnação, consideram-se provados por documentos autênticos.

Nas instâncias considerou-se que os AA. sendo a sua posse titulada, mas não dispondo de registo, adquiririam por usucapião já que no caso o prazo é de 15 anos – art. 1296º do Código Civil – “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé”.

Por sua vez a Ré entende que tal prazo de 15 anos, contado desde a data da aquisição pelos AA. – 10.1.1984 – não decorreu, porquanto a “DD” adquiriu em venda judicial esse imóvel tendo registado tal aquisição em 2.3.1998, sendo que a venda que fez à Ré, em 4.2.2002, foi por esta registada em 19.2.2002 – fls. 54.

Sustenta, assim, que, entre a data da compra pelos AA. e a da propositura da acção – 24.2.2003 – não decorreram 15 anos.

Vejamos:

Os AA., como antes dissemos ancoraram a sua pretensão em duas vertentes.

Uma, a aquisição derivada do direito de propriedade através de contrato de compra e venda, celebrado por escritura pública notarial, de 10.1.1984.

O contrato de compra e venda de imóveis celebrado através de escritura pública é válido e translativo do direito de propriedade – arts. 874º, 875º e 879º a) do Código Civil.

Outra, alegando uma forma originária de aquisição daquele direito real – a usucapião arts. 1287º e 1316º do citado diploma.

Por sua vez, a Ré afirma o seu direito de propriedade fundado na presunção registral – art. 7º do CRPredial.

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.

A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

“A doutrina dominante (Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado., III, 2.ª ed., pág.5; Mota Pinto Direitos Reais, p. 189; Henrique Mesquita, Direitos Reais. 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122."-65 e ss; Penha Gonçalves, Direitos Reais. 2ª ed., págs. 243 e ss.) entende que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “cor­pus" e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ªed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º nº2).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1).
Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz. pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu bene­fício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in Código Civil Anotado, 12ª edição 1999, pág.971.

Estando registada, a favor da Ré, a aquisição do direito de propriedade, por via do contrato de compra e venda, de harmonia com a regra do art. 7º do C.R. Predial, beneficia ela da presunção de que o direito de propriedade existe na sua titularidade, nos exactos termos em que o registo o define.

Tal presunção, é ilidível pois que, como afirma, o Professor Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 5ª edição, pág.382,

- É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião.
Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si.
Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”.

Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.

O Código Civil perfilha, como é dominantemente entendido um conceito subjectivo de posse – art. 1251º do Código Civil.

A posse pode ser exercida em nome próprio ou em nome alheio – art. 1252º do Código Civil.

Em caso de dúvida, presume-se a posse em quem exercer o poder de facto – nº2 do citado artigo.

Sobre este normativo escreveu o Professor Mota Pinto, in “Direitos Reais”, 1970, 191:

“Como a prova do “animus” poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, ao possuidor a lei estabelece uma presunção. Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorre que, sendo necessário o “corpus” e o “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste”.

“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – Ac. do STJ, de 14.12.1994, CJSTJ 1994, III, 183.

O art. 1478º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.

As instâncias nenhuma abordagem fizeram ao facto de prédio ter sido penhorado e vendido judicialmente a quem por sua vez vendeu à Ré, argumentando que se provaram os requisitos da posse conducente à usucapião.

Assim, no Acórdão recorrido, a fls. 242, pode ler-se “…Conforme se provou, a posse da parcela de terreno em apreço, tem sido exercida continuamente (sem suspensão, nem interrupção), pelos autores e antepossuidores desde há mais de 20 anos”.

Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva à luz do Código Revisto”, 2ª ed., págs. 214 e segs. atribui à penhora um triplo efeito:

- A transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado;
- A ineficácia relativa dos actos dispositivos do direito subsequentes;
- A constituição de preferência a favor do exequente.

O facto de a administração do imóvel penhorado estar confiada a outrem, normalmente um depositário, por incumbência do Tribunal da execução, não retira ao seu proprietário o poder de disposição ou oneração do mesmo, apenas contende com os seus poderes de gozo.
Os actos de oneração ou alienação não são inválidos, apenas são ineficazes em relação à execução.

Mas importa considerar que, quem vendeu à Ré – a “DD, Ldª” – adquiriu o imóvel em sede executiva – venda judicial.

Nos termos do art. 824º do Código Civil.
1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.

Os princípios da prioridade e do trato sucessivo levam a que a aquisição na venda executiva seja consequência da penhora anteriormente inscrita.
A alienação em acção executiva deve, pois, equiparar-se às alienações voluntárias.
A aquisição feita ao tribunal não é uma aquisição originária, mas antes uma aquisição derivada translativa” – vide o estudo “Penhora de imóveis e registo predial na reforma da acção executiva”, publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº4, de Mariana França Gouveia, citando Remédio Marques.

Na lógica decorrência do nº1 do art.824º do Código Civil, o direito do adquirente, em processo de execução, filia-se no direito do executado, dele dependendo, quer quanto à sua existência, quer quanto à sua extensão – “nemo plus juris in aliud transferre potest quam ipse habet".

Em caso deveras semelhante ao que nos ocupa, este Supremo Tribunal em Acórdão de 4.12.2003, in www.dgsi.pt – Proc.03B3639 – relator Conselheiro Moitinho de Almeida – ponderou:

“ […] A transmissão efectuada por hasta pública não tem origem no mesmo transmitente mas em acto judicial.
O tribunal não vende no exercício de poder originariamente pertencente ao credor ou a devedor, mas sim em virtude de um poder autónomo que se reconhece à própria essência da função judiciária.
[…] De salientar que o mencionado Acórdão Uniformizador 3/99, na sua fundamentação, equipara a venda judicial à alienação voluntária”.

Mesmo que se considere que a venda forçada, equiparada à venda voluntária, não pode deixar de ser aplicável o princípio “nemo plus juris in aliud transferre potest quam ipse habet”, pelo que quando o imóvel foi penhorado e, subsequentemente vendido, não era já propriedade do executado porque esta já o tinha vendido aos ora AA. quando a venda judicial se consumou.

Ademais, como se provou em 13), “A Ré não ignorava, no momento da aquisição, que o prédio era propriedade dos AA.”.

Analisando a questão, na perspectiva da natureza do registo e consequências do não registo da aquisição por parte dos AA. e do registo da penhora e da aquisição na sequência da venda judicial, sempre se dirá – acompanhando a douta argumentação do Acórdão deste Tribunal de 30.4.2003, de que foi relator o Conselheiro Araújo de Barros – in www.dgsi.pt Proc.03B996:
“O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário” (art. 1º do C. Registo Predial) e que, atento também o preceituado no art. 4º do mesmo diploma, tem valor meramente declarativo, não conferindo, salvo excepcionalmente, quaisquer direitos (…).

O conceito de terceiros, após larga divergência jurisprudencial veio a ser definido pelo Dec.Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, que acrescentou ao art. 5º do C. Registo Predial um nº 4, onde se fez constar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Esclareceu, aliás, o legislador, no preâmbulo daquele Dec.Lei nº533/99 que:

“Se aproveita tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no artigo 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens".

[…] Face à citada norma – e tendo também em consideração o caso concreto apreciado pelo Acórdão Uniformizador nº 3/99 – passou a seguir-se o entendimento de que:

O exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são terceiros; embora sujeita a registo, no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos actos em que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfação dos fins da execução.
A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que os actos de disposição ou oneração de bens, com data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta".

Isto é, em caso de conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não inscrita no registo e uma penhora posterior registada, aquela obsta à eficácia da última, prevalecendo sobre ela”. – [Acs. STJ de 10.02.2000, no Proc. 1223/99 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 17.02.2000, no Proc. 1061/99 da 2ª secção (relator Roger Lopes); e de 29.02.2000, no Proc. 1091/99 da 1ª secção (relator Ribeiro Coelho)] Citados no Acórdão de 30.4.2003..

No referido Acórdão, respondendo à questão da preponderância, entre o direito de propriedade derivado de uma compra e venda anterior, não registado, e o direito de propriedade, também derivado, decorrente de uma venda executiva, mas submetido ao registo escreveu-se:

“A este propósito entendeu-se já que “na venda executiva o executado é substituído no acto da venda pelo juiz enquanto órgão do Estado, gerando-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.
Por isso, ao adquirente em venda judicial não pode ser oposta uma transmissão anteriormente feita pelo executado a favor de uma outra pessoa que a não fez inscrever oportunamente no registo predial” – Ac. STJ de 7.07.1999, in CJSTJ Ano VII, II, pág. 164 (relator Ribeiro Coelho).

Solução que assenta, desde logo, no facto de o anterior adquirente, que não registou a aquisição, e o comprador na venda judicial, que registou, haverem, afinal, adquirido de alienante comum.
Como também se funda na redacção do nº2 do art. 824º do Código Civil, da qual se infere a caducidade, pela venda executiva, dos direitos reais de gozo que não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias".

Dir-se-á, em contrário, que, na execução, o tribunal não vende no exercício de poder originariamente pertencente ao credor ou ao devedor, mas sim em virtude de um poder autónomo que se reconhece à própria essência da função judiciária.

Estaremos perante uma venda forçada, naturalmente alheia à vontade do executado – que, aliás, nem legitimidade tem para proceder à venda, na medida em que estará a vender coisa alheia (art. 892º do Código Civil) – e para a qual, em princípio, em nada contribui, sobretudo não emitindo qualquer declaração negocial nesse sentido.
Constitui, nesta medida, mero artifício a afirmação de que na venda judicial é o executado que deve ser visto como vendedor.

Ademais, o direito de propriedade derivado da venda judicial (ao contrário do direito derivado da compra e venda, que se transfere e consolida no património do comprador por mero efeito do contrato - arts. 879º, al. a) e 408º do Código Civil) advém para o respectivo titular por força da lei e não por acto do executado, pelo que se não pode defender que ocorra um conflito de dois direitos adquiridos do mesmo transmitente.

Tanto mais quanto é certo que, tendo ele já alienado a terceiro o bem imóvel (e a eficácia da transmissão do direito de propriedade entre as partes não depende do registo - art. 4º, nº 1, do C. Registo Predial), quando a penhora foi feita e se lhe seguiu a venda executiva, este de todo lhe não pertencia, não se encontrando, como tal, sujeito à execução (arts. 601º do C.Civil e 821º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Razão por que se impõe admitir que, "tratando-se de coisa imobiliária, o adquirente, mesmo de boa fé, não adquire a propriedade de coisa não pertencente ao executado"... “e que, sendo o bem vendido em execução propriedade de terceiro, estar-se-á perante uma execução de coisa alheia, e o proprietário, terceiro no processo executivo, pode, nos termos gerais, recorrer, designadamente, à acção de reivindicação […]”

Donde, provado que, à data em que foi penhorado o imóvel (e registada a penhora) já se efectivara a venda pelo executado à autora do mesmo, a penhora foi de bens alheios, sendo a venda judicial também de bens alheios”.

Sufragando este entendimento, concluímos que aos AA. não é oponível a alienação do prédio reivindicado.

Ao concluir sempre se dirá que tendo os AA. comprado o imóvel em 10.1.1984 e intentado a acção em 24.2.2003, tendo-se provado que reportado a esta data:

Os autores, por si e antepassados, há mais de vinte anos, procedem à limpeza, cortam matos e silvas, no lote de terreno, destinado à construção com a área de 543 m2, já dividido e desintegrado do prédio rústico denominado “Sorte de Mato de Campos Novos”, … tudo à vista e com o conhecimento de todos, de forma contínua, sem interrupção nem oposição de ninguém, na convicção em que estão e sempre estiveram os AA. de que tal prédio lhes pertence e de que sobre ele, de modo exclusivo, exercem o seu direito de propriedade”, sempre se teria que considerar que adquiriram o imóvel por usucapião, independentemente das vicissitudes por que passou o imóvel.

Por outro lado, tendo-se provado – item 13) da matéria de facto – que a Ré não ignorava, no momento da aquisição, que o prédio era propriedade dos AA., é manifesto que tem de ser considerada adquirente de má-fé.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 05-06-2007


Fonseca Ramos (relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar