Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
00P092
Nº Convencional: JSTJ00040435
Relator: OLIVEIRA GUIMARÃES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
Nº do Documento: SJ200006150000923
Data do Acordão: 06/15/2000
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N498 ANO2000 PAG148
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/SOCIEDADE.
Legislação Nacional: CP95 ARTIGO 172 N1 ARTIGO 177 N1 A.
Sumário : I - Sendo embora certo que a lei não fornece indicação definidora do que deva entender-se por acto sexual de relevo, a verdade é que como tal tem necessariamente de considerar-se toda a conduta sexual que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas no tocante à sua livre expressão do sexo.
II - O facto de o arguido ter introduzido "o dedo indicador de uma das suas mãos na vagina da sua filha" não pode deixar de integrar um acto sexual de relevo; relevância que mais avulta a relação familiar existente e que mais se agudiza enquanto expressão de desejo libidinoso tão incontrolável que nem sequer encontrou obstáculo na circunstância de a ofendida ser a sua própria filha.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Perante colectivo, no 2. Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, respondeu, em processo comum, o identificado arguido A, acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de violação de mulher inconsciente, sob a forma continuada, previsto e punido no artigo 202, n. 1, do Código Penal de 1982, agravado por força do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 208 do Código Penal de 1982 e artigo 30 do mesmo diploma legal (ilícito actualmente previsto no n. 2 do artigo 172, do Código Penal revisto, agravado por força do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 177 e artigo 30, do mesmo diploma legal), de um crime de abuso sexual de adolescente e dependente, sob a forma continuada, previsto e punido no artigo 173, n. 1, alínea a), agravado pelo disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 177 e artigo 30, do Código Penal revisto, de um crime de violação sob a forma continuada, previsto e punido no artigo 164, n. 1 do Código Penal revisto agravado por força do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 177 e artigo 30 do mesmo diploma e de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido no artigo 172, n. 1, do Código Penal revisto, agravado pelo disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 177 do mesmo diploma legal.

Contra o arguido, foi formulado pelas ofendidas B e C, representadas por sua mãe D, pedido cível de indemnização, a título de danos não patrimoniais, no tocante à primeira (B), consubstanciado no montante de 5500000 escudos e, no concernente à segunda (C), calculado em 2000000 escudos.
(Cfr: Fls. 125 e seguintes)

Realizado o julgamento, decidiu o Colectivo:
Absolver da instância crime o arguido quanto aos crimes de violação de mulher inconsciente, previsto e punido no artigo 202, n. 1, do Código Penal de 1982 e de abuso sexual de adolescente e dependente, previsto e punido no artigo 173, n. 1, alínea a), do Código Penal revisto.
Absolver o arguido do crime de violação, previsto e punido no artigo 164, n. 1, do Código Penal revisto.
Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido nos artigos 172, n. 1 e 177, n. 1, alínea a), do Código Penal revisto, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, declarando perdoada, em tal pena, um ano de prisão (artigos 1, n. 1 e 4, da Lei n. 29/99, de 12 de Maio), donde ficar ela reduzida a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Inibir o arguido do exercício do poder paternal, relativamente a sua filha C, pelo período de 10 (dez) anos.
Julgar parcialmente procedente e provado o pedido de indemnização cível deduzido, condenando o arguido demandado a pagar à B a quantia de 3000000 escudos (três milhões de escudos) e à C a quantia de 1000000 escudos (um milhão de escudos), a título de reparação por danos morais.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, concluindo a sua motivação da forma seguinte:
I - Quanto à matéria penal:
1) O douto Acórdão recorrido formou a sua convicção, quanto aos factos que serviram de base para a condenação do arguido como autor de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido no artigo 172, n. 1 do Código de Penal de 1995, agravado pelo disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 177 do mesmo diploma, com base unicamente no depoimento de C, a qual relatou o contacto que com ela manteve o arguido e descrito nos pontos 17 a 19 da matéria de facto dada como provada no referido Acórdão.
2) Sem pôr em causa a inocência e o pudor próprio de uma criança de 7 anos, tal será, contudo, insuficiente para com plena segurança, serem do seu depoimento retiradas, sem a menor das dúvidas, todas as conclusões que foram retiradas sobre a matéria em causa.
3) Ainda para mais tendo-se tratado de um acto perfeitamente isolado e "descontínuo" no tempo, ocorrido há mais de 3 anos, pela C e, sublinhe-se, só por ela relatado ao Tribunal "a quo".
4) Acresce que tal acto foi relatado sem qualquer descrição circunstancial de tempo, em relação à hora do dia em que os factos se terão produzido, ou contextual, relativamente a palavras que pudessem ter sido ditas ou algum diálogo que pudesse ter existido entre ambos, prévia ou posteriormente ao acto praticado pelo arguido, donde se pudesse retirar qualquer conclusão inequívoca acerca do ambiente, do propósito e da vontade associada ao referido comportamento.
5) O enquadramento dos factos praticados pelo arguido, dados como provados, é insuficiente para deles ser retirada a conclusão de se ter tratado de um "acto sexual de relevo" e de ter o arguido agido com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais.
6) Tendo ficado provado o facto de o arguido ter afastado as cuecas da C e ter-lhe introduzido um dedo indicador na vagina, não ficarão, sem mais, reunidos os pressupostos da punição do crime de abuso sexual de criança, uma vez que não se mostra provada a relevância ou gravidade do acto provado, nem que o arguido tivesse agido com o propósito de satisfazer os seus apetites sexuais.
7) Perante a singeleza dos factos dados como provados, que resultaram exclusivamente do depoimento de uma criança de 7 anos, reportado a factos ocorridos há mais de 3 anos, e que não tem, por certo, o necessário discernimento para se exprimir com autenticidade sobre os factos ocorridos, não deveria o douto Acórdão recorrido ter julgado a conduta do arguido como envolvendo a prática de um "acto sexual de relevo".
8) Tendo em conta o princípio do "in dubio pro reu", não deveria o douto Acórdão ter condenado o arguido como autor de um crime de abuso sexual de criança, devendo, assim, o arguido ser absolvido quanto à prática desse crime.

II - Quanto à matéria civil:
9) No que refere à indemnização de 3000000 escudos que o arguido/demandado foi condenado a pagar à B a título de reparação de danos morais, o douto Acórdão não tomou em consideração alguns pontos com relevante interesse na matéria.
10) Designadamente, o facto de a B, durante inúmeros anos, ter aceitado, sem qualquer oposição, manter relações sexuais com o seu pai, a troco da permissão de ir à discoteca e conviver com os amigos.
11) Grande parte do relacionamento sexual que existiu entre ambos resultou de uma ameaça de proibição da B em sair de casa e conviver com os amigos.
12) Tal ameaça não era, de modo nenhum, uma ameaça grave.
13) Grande parte do relacionamento sexual entre o arguido/demandado e a ofendida B, traduziu-se num acordo entre ambos, através do qual a permissão para sair de casa e conviver com os amigos era obtida pela B a troco da realização do acto sexual com o seu pai.
14) Pode-se concluir que grande parte das relações sexuais que o arguido/demandado manteve com a sua filha resultaram por concorrência de culpas de ambos. Dir-se-á que a B contribuiu inequivocamente para a sua dor, para a sua vergonha, para a sua própria humilhação, enfim, para a sua tristeza.
15) Sob o ponto de vista moral, a B não teria um "standart" moral de topo; pode mesmo dizer-se que os seus níveis de exigência moral seriam baixos.
16) Deste modo, é questionável o montante fixado a título de indemnização de danos morais da B.
17) Tais danos estão, pois, sobreavaliados e são, portanto, desajustados.
18) No que refere à indemnização da menor C a título de danos morais, não será fácil calcular o montante indemnizatório de um dano que resulta de um acto desta natureza ocorrido há mais de 3 anos.
19) Tratou-se de um acto isolado (descrito nos pontos 17 a 19 da matéria de facto dada como provada no douto Acórdão recorrido), sendo questionável se tal acto poderá ter causado ou não um grave dano moral.
20) Ainda para mais tendo em conta tratar-se de uma menor de 4 anos, inocente e ingénua, sem discernimento suficiente para perceber qualquer possível intenção sexual do próprio acto.
21) Sem menosprezar a dor que a C terá, obviamente, sentido, tal dor foi, no entanto, uma dor pontual e instantânea, não prolongada no tempo e não repetida.
22) Também não ficou provado que a menor, em virtude desse acto, ficasse ou viesse a padecer de distúrbios emocionais indemnizáveis.
23) Antes pelo contrário, a menor tornou-se, após a detenção do seu pai, uma criança mais extrovertida e participativa na sala de aula. É uma criança perfeitamente normal e equilibrada sob o ponto de vista emocional.
24) Pelo exposto, o montante indemnizatório de 1000000 escudos fixado pelo douto Acórdão para ressarcimento de danos morais à menor C é desajustado, por sobreavaliação.
25) Foi violado o princípio do "in dubio pro reu", assim como foram violados os artigos 172, n. 1 do Código Penal e os artigos 496, n. 1 e n. 3 e o artigo 494 ambos do Código Civil.
Termos em que deve o presente recurso ter provimento, devendo ser revogado o douto Acórdão recorrido e, em consequência, ser o arguido absolvido do crime de abuso sexual de criança e serem substancialmente reduzidos os montantes que o arguido/demandado foi condenado a pagar às ofendidas B e C, a título de indemnização por danos morais, como é de inteira JUSTIÇA.

Responderam as ofendidas-demandantes, no sentido da manutenção da decisão.
(Cfr: Fls. 261)

Contramotivou igualmente o digno Procurador da República, opinando pelo não provimento do recurso, logo pela confirmação do decisório.
(Cfr: Fls. 262-263).

Subidos os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Évora, suscitou a Excelentíssima Desembargadora Relatora a questão prévia de não caber à mesma Relação o conhecimento do recurso interposto, visando este, em exclusivo, o reexame de matéria de direito.
(Cfr: Fls. 266)

E nesse sentido, remetidos os autos a conferência, se decidiu, como se colhe do douto acórdão de fls. 267 e seguintes.

Enviado o processo a este Supremo e aqui recebido, pronunciou-se o Excelentíssimo Procurador Geral Adjunto; em douto parecer, no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso.
(Cfr: Fls. 275-275 verso)

Cumprido o preceituado no n. 2 dos artigos 417, do Código de Processo Penal (Cfr: despacho de fls. 276 e cota de fls. 276 verso), não foi exercitado direito de resposta.

Recolhidos os legais vistos, teve lugar audiência que decorreu com a observância do ritualismo exigido.

Cabe, então e agora, decidir.
A tanto se passa.

Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se em função das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Daqui se segue que o do ora interposto se circunscreve, em sede penal, a impetrar a absolvição do arguido quanto à prática do crime de abuso sexual de criança pelo qual foi condenado, na base de que os factos provados não permitem a qualificação jurídico-penal daquele ilícito e, em sede cível, a questionar os montantes das indemnizações fixadas que se reputam como exageradas.

Não se apontando vícios à decisão recorrida (sob a égide do artigo 410, n. 2, do Código de Processo Penal), nem eles se detectando, não arguidas, nem visionadas nulidades (designadamente com o rótulo de insanáveis) de que importasse conhecer e sendo certo que a invocação da violação do princípio "in dubio pro reo" não coloca em causa a essencialidade dos factos mas tão somente o juízo que sobre eles se emitiu, não colhe dúvida que o recurso se insere nos limites previsivos da alínea d), parte final, do artigo 432, do Código de Processo Penal, cabendo, portanto, a este Supremo, dele conhecer.
Entremos pois, sem mais entrave ou delonga, na análise da sua temática.

Recordemos, desde já, a realidade factológica certificada pelo douto Colectivo.
Foi ela, a seguinte:
1. O arguido A é pai de B, nascida em 29 de Setembro de 1979, e de C, nascida em 14 de Agosto de 1992.
2. Desde data não apurada do ano de 1991 que o arguido manteve relações de natureza sexual com a sua filha B , que naquela data tinha, no máximo, 12 anos de idade.
3. Com efeito, em data não apurada do ano de 1991, à noite, na residência onde o arguido habitava com a sua mulher e filha, sita na Ladeira do Vau, Portimão, área desta comarca, o arguido, encontrando-se sózinho em casa com a sua filha B, na altura com 11/12 anos de idade, decidiu manter com ela relações sexuais de cópula completa.
4. Na concretização dessa decisão, e aproveitando a circunstância da menor B se encontrar deitada no sofá da sala, local onde habitualmente dormia, o arguido aproximou-se da sua filha, despiu-a, acariciou-a e após, introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, friccionando-a até ejacular para cima do sofá.
5. Dada a sua pouca idade, a menor B, na altura, não teve consciência que seu pai havia mantido consigo uma relação sexual de cópula completa, tendo no entanto, ficado profundamente chocada com os factos praticados por aquele, não percebendo o motivo pelo qual o seu pai havia tido aquela atitude para consigo.
6. Porque o seu pai lhe disse que não podia contar o sucedido a ninguém, a menor nada contou à sua mãe.
7. Após a ocorrência dos factos supra descritos, e durante os anos de 1992, 1993 e 1994, quase diariamente, o arguido A aproveitava os momentos em que se encontrava sozinho em casa com a sua filha B, para com ela manter relações sexuais.
8. De cada vez que mantinha com a sua filha relações sexuais, o arguido introduzia o seu pénis erecto, sem preservativo, na vagina da B, friccionando-a até ejacular, sempre para cima da cama, pretendendo assim garantir que a menor não engravidasse.
9. De todas as vezes, o arguido obrigou a menor a manter as aludidas relações sexuais, obrigando-a a que não contasse os factos a ninguém.
10. No decurso do ano de 1995 a menor B começou a revoltar-se com o seu pai de cada vez que ele pretendia manter com ela relações sexuais. No entanto, e mesmo face à oposição da menor, e durante os anos de 1995, 1996, 1997 e 1998, o arguido A continuou a manter relações sexuais de cópula completa com a menor B, através da utilização de ameaças de não deixar a menor sair de casa, se ela não acedesse a manter essas relações sexuais.
11. Com efeito, no decurso desses anos, por diversas vezes a menor B recusou que o seu pai mantivesse consigo relações sexuais, sendo em consequência sempre castigada com proibições de sair de casa e conviver com os seus amigos, proibições que se mantinham até ao momento em que novamente o seu pai mantinha consigo relações de natureza sexual.
12. Quando a menor B atingiu 15 anos de idade, o arguido A, quando com ela mantinha relações sexuais, perguntava-lhe frequentemente se a menor tinha prazer. Perante a resposta negativa da B, o arguido dizia-lhe que ela deveria ser doente, pois as raparigas da idade dela já sentiam prazer ao manter relações sexuais.
13. Quando à menor B lhe começou a ser ministrada, por conselho médico, a pílula anticoncepcional, o que ocorreu no início do ano de 1998, o arguido A, quando com ela mantinha relações sexuais, passou a ejacular no interior da vagina da B.
14. A última vez que o arguido A manteve com B relações sexuais de cópula completa, ocorreu em 28 de Julho de 1998, tendo o arguido mais uma vez introduzido o seu pénis erecto na vagina da B, friccionando-a até ejacular.
15. Tais relações sexuais eram mantidas sempre contra a vontade da B, que por receio do seu pai, se via obrigada a aceder que este mantivesse consigo aquele tipo relações.
16. Receando pelo que pudesse vir a suceder com a sua irmã C, nascida em 14 de Agosto de 1992, após o dia 28 de Julho de 1998 a B contou à sua mãe os factos supra descritos, nunca mais tendo permitido que o arguido consigo mantivesse relações sexuais, tendo mesmo abandonado a casa da sua família.
17. Quando a C tinha apenas 4 anos de idade, em dia que não se logrou apurar do ano de 1996, encontrando-se esta sozinha em casa com o seu pai, no quarto deste, o arguido afastou as cuecas da C e introduziu o dedo indicador de uma das suas mãos na vagina de sua filha.
18. Em consequência de tal acto, sentiu a C algumas dores, não tendo, no entanto, contado o sucedido a sua mãe por vergonha.
19. O arguido agiu sempre com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, utilizando para tanto as suas filhas, as quais, estando sob a sua autoridade, sofreram as investidas do pai, contrariadas e com medo das suas reacções caso o contrariassem.
20. Assim agindo, o arguido ofendeu deliberada e conscientemente o sentimento de vergonha das menores, cujas idades bem conhecia.
21. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com perfeito conhecimento da reprovabilidade da sua conduta.
22. O arguido é motorista da ambulância nos Bombeiros Voluntários de Portimão, auferindo 92000 escudos mensais. Tem, como habilitações literárias, a 4. classe do ensino primário. É primário.
(do pedido cível)
23. O facto de ser publicamente conhecido, no seio da comunidade portimonense, o relacionamento sexual que o arguido/demandado manteve com a B, provoca nesta sentimento de vergonha e de grande humilhação.
24. Quando a B disse ao arguido que namorava, este reagiu dando-lhe uma bofetada.
25. Em consequência da mesma, a demandante disse-lhe: "foi a última bofetada que me deu, não me faça falar".
26. Perante tal resposta, o arguido fez-lhe um sinal para que a mesma se calasse.
27. No dia seguinte a tais acontecimentos, a B contou à sua mãe o relacionamento sexual que tivera com o seu pai e saiu de casa, indo viver para casa de uma tia.
28. O arguido/demandado, na presença da mãe da B, ainda telefonou a esta, de casa e para o seu local de trabalho, dizendo: "agora é que foste abrir a boca, porca de merda!".
29. A demandante C jamais pergunta pelo pai e tornou-se, após a detenção deste, uma criança mais extrovertida e participativa na sala de aula, contrariamente ao que sucedia até essa data, altura em que revelava dificuldades de concentração, de relacionamento e de aprendizagem.
30. Para evitar que a C revelasse o que o arguido/demandado lhe havia feito, este ameaçou-a que lhe batia caso ela contasse alguma coisa a alguém.

Não se provou, com reporte ao pedido cível.
Que o demandado dissesse à B que "a queria só para si";
Que em consequência dos actos praticados pelo arguido-demandado, a B tenha receio de andar desacompanhada na rua, de ficar sozinha em casa, que tenha usualmente insónias e que devido aos factos referidos se encontra impossibilitada de visitar a casa onde vivia com seus pais e irmã, pelas recordações que a mesma lhe suscita;
Que pelo conhecimento público do presente processo penal a demandante C sofra de estigmatização social, propiciada pelo relacionamento que a mesma tem com outras crianças;
Que essas outras crianças lhe digam aquilo que elas próprias ouvem dos adultos a propósito dela e do seu pai e que tais ditos lhe provoquem confusão, incompreensão, vergonha, medo e falta de confiança nela própria e nos outros;
Que o demandado seja proprietário, com sua mulher, da casa da morada de família e que esta tenha valor não inferior a 15000000 escudos;
Que o arguido sempre tenha sido amigo e respeitador das suas filhas e de todas as pessoas da família;
Que o arguido seja considerado por toda a gente um homem de elevado civismo.

Posto isto, vejamos.

Quanto à vertente penal do recurso:
Não pode obter ganho de causa alegar-se uma pretensa violação do princípio "in dubio pro reo".
Tal princípio, acha-se, de-resto, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (artigo 127, do Código de Processo Penal) do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
E daqui é lícito partir-se para a asserção de que o aludido princípio "in dubio pro reo" se situa em sede estranha ao domínio cognitivo do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista (ainda que alargada) por a sua eventual violação não envolver questão de direito (antes sendo um princípio de prova que rege em geral ou seja quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário), o que conduz a esta outra asserção de que o Supremo Tribunal de Justiça tão só está dotado do poder de censurar o não uso do falado princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal "a quo" chegou a um estado de dúvida patentemente insuperável e que, perante ele e mesmo assim optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido (cfr., a este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Maio de 1996, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, IV, tomo 2, página 177).
Por outro lado, como afirmou o Professor CAVALEIRO DE FERREIRA, o mencionado princípio respeita ao direito probatório implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante de ónus legal da prova para decidir da condenação do réu, a qual terá sempre que assentar na certeza dos factos probandos: contudo, como enaltece o insigne mestre, não há que interpretar as leis em sentido favorável ao réu, tratando-se de mero equivoco estender um princípio relativo à prova a matéria de interpretação. Só a prova de todos os elementos constitutivos essenciais de uma infracção permite a punição, mas este é um problema de direito probatório em processo penal e não uma regra de interpretação da lei penal (Cfr: Direito Penal Português, I, página 111).
Diga-se, aliás, que mesmo nos quadros da tese que defende que o princípio "in dubio pro reo" se assume como um princípio geral de processo penal (ou seja não forçosamente circunscrito a facetas factuais) pelo que a sua eventual violação pode conformar, também, uma autêntica questão de direito plenamente cabível adentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., neste sentido, o Prof. FIGUEIREDO DIAS, in Direito Processual Penal, volume I, página 217), não pode haver dúvida que a avaliação do correcto ou incorrecto uso do princípio demanda sempre um juízo sobre o acervo factológico obtido, pelo que, a não se erigirem reservas sobre tal acervo (ou sobre o modo como ele se obteve), não se legítima colocar em causa uma decisão do tribunal "a quo" que do mesmo modo que livremente apreciou a prova fixada, livremente expressou, por dúvidas não ter quanto à potencialidade daquela prova para a qualificação jurídico-penal preferenciada, uma decisão não favorável ao arguido.
In casu, portanto, não vemos que possa ou deva questionar-se o douto acórdão recorrido, tanto mais que foi da própria realidade factológica que deu como provada que retirou o decisório prolatado, sem que a essa operação de qualificação ou subsunção jurídicas possam apontar-se vícios susceptíveis de colocarem em causa o acerto de tal decisório.

Na verdade e já num outro ângulo:
Teve-se como provado que "Quando a C, tinha apenas 4 anos de idade, em dia que não se logrou apurar do ano de 1996, encontrando-se esta sozinha em casa com o seu pai, no quarto deste, o arguido afastou as cuecas da C e introduziu o dedo indicador de uma das suas mãos na vagina da sua filha".
É óbvio que, por sua própria natureza, os crimes sexuais, em sede de sua comprova, não assentam geralmente em prova directa, donde que, por via disto, assume, neste campo, papel decisivo o princípio da livre convicção na apreciação da prova, posto que se traduza em termos inculcadores de não ser essa convicção estribada em meras presunções ou em impressivos simplesmente mentais, resultado de um imotivável juízo apreciativo mas, antes, de uma base de apoio objectiva, criteriosa e susceptível de motivação e controlo.
Há que avalizar como positiva a convicção expressada pelo douto Colectivo ao certificar o segmento facticial atrás referido, tanto mais que a própria tónica global do demais certificado legítima plenamente aquela convicção.
E nada ensombrando tal (livre) convicção, é manifesto que não se consente afirmar que o tribunal "a quo" deveria ter feito uso do princípio "in dubio pro reo": incurial seria, de-resto, que este Supremo - não dispondo sequer do contributo da imediação - pudesse sobrepor-se, neste particular aspecto, à convicção do tribunal "a quo" ou ditar um procedimento diverso daquele que, com o suporte daquela convicção, o mesmo tribunal seguiu.

Por correcta se tem, de-resto, a qualificação jurídico-penal a que chegou o douto Colectivo no concernente aos factos que ora importa considerar.
A acção do arguido, identificada no aludido segmento, enquadra-se claramente no âmbito previsivo do n. 1 do artigo 172, do Código Penal.
E sendo embora certo que a lei não fornece indicação definidora do que deva entender-se por acto sexual de relevo, a verdade é que como acto sexual de relevo tem necessariamente que considerar-se toda a conduta sexual que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas no tocante à sua livre expressão do sexo.
É óbvio que para justificar a expressão "de relevo", terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o "relevo" tem de recortar-se.
E por patente se tem que, em sede de abuso sexual de crianças, o "relevo" como que está imanente a qualquer actuação libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser: o tipo penal do artigo 172, do Código Penal nos vários cambiantes nele previstos (designadamente no do seu n. 1 que é aquele que à hipótese vertente pertina) traduz isso mesmo, tanto mais que nele se visa a protecção de pessoas que presumível ou manifestamente não dispõem do discernimento necessário para que, no que ao sexo respeita, se exprimirem ou se comportarem com liberdade, com presciência ou com autenticidade.
A fragilidade dessas pessoas, face às condutas sexuais que sobre elas se exerçam, aumenta, por isso, a relevância ou empresta o relevo aos actos delitivos praticados: importa, pois, defendê-las e daí a ratio desta incriminação inovadora, bem se justificando, portanto, que o Prof. Figueiredo Dias tenha justamente observado, a propósito destes crimes contra a autodeterminação sexual, nos trabalhos da Comissão Revisora do Código Penal que a especificidade de tais crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade por estarem em causa menores.
Ora, na hipótese "sub judice", o facto de o arguido ter introduzido "o dedo indicador de uma das suas mãos na vagina da sua filha" não pode deixar de integrar um acto sexual de relevo, relevância que mais avulta a relação familiar existente e que mais se agudiza enquanto expressão de desejo libidinoso tão incontrolável que nem sequer encontrou obstáculo na circunstância de a ofendida ser a sua própria filha.

Ao ilícito praticado corresponde a moldura legal abstracta da pena de prisão de 1 a 8 anos (n. 1 do artigo 172, do Código Penal) agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo (n. 1, alínea a) do artigo 177, do Código Penal): quantificou o Colectivo a pena que aplicou ao arguido em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, sediando-a, pois, mais próxima do limite mínimo do que do limite máximo.
É elevado o grau da ilicitude da conduta praticada e intenso se apresenta o dolo (directo) que presidiu a essa conduta.
E a relevada circunstância de a ofendida ser sua filha e para mais de tenra idade, acentua a defeituosa personalidade do arguido, a qual se alcança dominada por desígnios sexuais primários e insensibilidade moral.
Não se mostrou arrependido, nem assumiu a gravidade do que cometeu.
Aliás, é sintomático que nem sequer haja questionado a parcela da decisão que o inibiu do exercício do poder paternal relativamente a sua filha C pelo período de 10 anos, o que logo por si demonstra (ou é susceptível de demonstrar) indiferença quanto a tão importante "munus".
Não concorrem a favor do arguido quaisquer expressivos condimentos favoráveis, sendo irrelevante a ausência de antecedentes criminais, atento o tipo de crime.
Por outro lado:
São prementes as necessidades de prevenção geral em ilícitos desta índole, maxime pela reprovação social que provocam.
De-resto, a sua alarmante frequência apela para juízos de censura rigorosos.
Ponderados os mandamentos dos artigos 40, ns. 1 e 2 e 71, ns. 1 e 2, do Código Penal e dentro da margem de liberdade que se situa entre o já adequado à culpa e o ainda adequado à culpa, não justifica qualquer reparo a dosimetria desencadeada, satisfazendo esta ao ponto de equilíbrio punitivo ajustado.
E não se legítima qualquer redução, certo sendo para mais que o arguido beneficia do perdão instituído pela Lei n. 29/99, de 12 de Maio (artigo 1, n. 1) pelo que lhe remanescerá cumprir apenas 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

No que tange à vertente cível:
Perfilhamos por inteiro os fundamentos avançados pelo tribunal "a quo" para justificar os montantes indemnizatórios que arbitrou.
Ajustada e criteriosamente foram eles fixados, face ao disposto nos dispositivos aplicáveis.
Apenas e tão só importa relevar que igualmente a indemnização civil pode e deve traduzir um juízo de censura a acrescer ao penal e, neste plano, moldadas foram as indemnizações em função da gravidade dos danos não patrimoniais que os factos ilícitos em causa determinaram e da tutela do direito que mereceram.
Não há, pois, que exprimir reserva, também nesta faceta, à decisão recorrida.

Em síntese conclusiva:
Nada se alcança a impor alteração ao aresto impugnado o qual, aliás, justo é que se assinale e, encareça, constitui uma peça modelar.
Improcede, consequentemente, o recurso interposto na totalidade das suas duas vertentes.

Desta sorte e pelos expostos fundamentos:
Decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se, na integra, o douto acórdão recorrido.

Para além das custas que couberem e da procuradoria mínima, vai tributado o recorrente por via do seu decaimento, em 3 (três) Ucs de taxa de justiça.

Ao Excelentíssimo defensor oficioso designado, fixam-se os honorários de 20000 escudos (a suportar pelo C.G.T.).

Lisboa, 15 de Junho de 2000.

Oliveira Guimarães,
Dinis Alves,
Costa Pereira,
Abranches Martins. (Dispensei o visto).

2. Juízo do Tribunal de Portimão - Processo n. 829/98.8PAPTM
Acórdão 12 de Novembro de 1999