Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
349/13.2TBALQ-A.L1.S3
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS SUCESSÕES / ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA / A QUEM INCUMBE O CARGO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PARTES / LEGITIMIDADE DAS PARTES – PROCESSO EM GERAL / FORMAS DO PROCESSO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS – PROCESSO DE EXECUÇÃO / PRESTAÇÃO DE CONTAS.
Doutrina:
-Luís Filipe de Sousa, Ações Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, p. 134.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2080.º, N.º 1, ALÍNEA A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 37.º, 547.º, 555.º, N.º 1, 941.º, 942.º, 943.º, 944.º, 945.º, 946.º E 947.º.
Sumário :
I. A prestação de contas por parte do cabeça-de-casal (cônjuge do de cujus) abarca não apenas o período da administração da herança posterior à designação para o exercício desse cargo, mas também o período anterior em que o mesmo já desempenhara, de facto, as mesmas funções que, por regra, lhe também competiam em face do art. 2080º, nº 1, al. a), do CC.

II. Ainda que a prestação de contas que corre por apenso ao processo de inventário abarcasse porventura apenas o período posterior à nomeação do cabeça-de-casal para o exercício do cargo (competência por conexão), tal não obstaria a que também fossem aí integradas as contas reportadas ao período anterior.

III. Por um lado, não existe qualquer diferença quanto à tramitação processual quando se estabelece a comparação entre a tramitação que decorre dos arts. 941º a 946º do CPC e a que decorre do art. 947; por outro, a possibilidade de cumulação de pretensões seria legitimada pelo art. 555º, nº 1, associado ao art. 37º; sempre restaria a possibilidade de aplicar o princípio da adequação formal se tal fosse necessário (art. 547º).

IV. Menos ainda se justificaria a recusa de apreciação da prestação de contas relativa a todo o período em causa numa altura em que, ultrapassada a fase dos articulados, já haviam sido apresentadas as contas pelo cabeça-de-casal, faltando apenas proceder à sua apreciação.

Decisão Texto Integral:
I - AA requereu contra sua mãe BB prestação de contas, por apenso ao processo de inventário instaurado por óbito do seu pai (e marido da requerida) CC.

O de cujus faleceu em 22-2-11 e foi instaurado processo de inventário, tendo sido designada a requerida como cabeça-de-casal com efeitos a partir do 2º semestre de 2013.

A Requerida, que tinha o cargo de cabeça-de-casal no referido inventário, foi citada no apenso relativo à prestação de contas e apresentou contestação.

Após diversas incidências que não interessam para a apreciação do presente recurso, a Requerida veio juntar o mapa de receitas e de despesas de 2011, 2012 e 2013, protestando apresentar ainda as atinentes ao ano de 2014.

Foi então que (a fls. 1630-1635) foi proferida decisão na 1ª instância de não admissão das contas referentes a 2011 e 2012 e aos meses de Janeiro a Junho de 2013, com fundamento em que a Requerida apenas foi nomeada para o exercício do cargo de cabeça-de-casal em 3-7-13.

A Requerente interpôs recurso de apelação, mas a Relação confirmou a decisão recorrida, com o argumento de que a prestação de contas na qualidade de cabeça-de-casal não se confunde com a prestação de contas referentes a um período em que a Requerida ainda não fora designada para desempenhar tal cargo. Mais se afirmou que, apesar de a tramitação processual ser idêntica, a cada um dos períodos correspondem formas de processo distintas, uma vez que a prestação de contas como cabeça-de-casal corre por apenso ao processo de inventário, nos termos do art. 947º do CPC, ao passo que relativamente ao período anterior é apropriada a ação autónoma com processo especial dos arts. 941º a 946º do CPC. Concluiu ainda que, embora o juiz pudesse determinar a adequação formal do processado, com vista a apreciar todas as contas, não o fez, estando a Relação impedida de o fazer.

A requerente interpôs recurso de revista que, apesar da situação de dupla conformidade decisória, foi admitido como revista excecional, insurgindo-se contra o acórdão recorrido a que imputa a violação de norma se princípios de direito adjetivo.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II – Decidindo:

1. Foi requerida a prestação de contas por parte da Requerente relativamente ao período em que a sua mãe vem administrando o acervo hereditário deixado pelo de cujus, pai da Requerente e marido da Requerida.

A Requerida apresentou as contas que abarcaram todo o período que decorreu desde o óbito do seu marido, mas quando o processo se encontrava no ponto em que deveria ser determinada a prestação de meios de prova para efeitos de apreciação de algumas questões suscitadas, sem que nenhuma das partes o requeresse, o Mº Juiz de 1ª instância proferiu um despacho em que rejeitou a apreciação no presente processo das contas referentes ao período que mediou entre o óbito do falecido marido da cabeça-de-casal e a sua nomeação como cabeça-de-casal no âmbito do processo de inventário.

A Requerente apelou de tal decisão mas a Relação confirmou-a considerando que estava inviabilizada a apreciação global das contas referentes a ambos os períodos, entendendo que por apenso ao processo de inventário apenas podem ser apreciadas as contas relativas ao período posterior ao da nomeação da requerida como cabeça-de-casal. E ainda que descobrisse no sistema um remédio para tal “falha”, considerou que tal implicava o uso dos poderes de adequação formal que deveriam ser da iniciativa da 1ª instância e que não estão ao alcance da Relação.

Este foi o resultado: rejeição das contas referentes a 2011, 2012 e metade de 2013, apesar de nenhuma das partes ter posto em causa a obrigatoriedade de prestar contas relativamente a tal período e de as contas já terem sido efetivamente apresentadas pela requerida, cumprindo apenas tramitar a ação com vista à sua verificação.

Naturalmente que tal resultado não pode manter-se e, para o efeito, não são necessárias difíceis operações, bastando enfrentar a realidade que emerge dos autos e confrontá-la com a simplicidade do que resulta do CPC.


2. Não é frequente, agora, ao fim de mais de 20 anos de aplicação da Reforma do Processo Civil de 1995/96, depararmo-nos com uma situação em que se verifique um tão grave desequilíbrio entre o que foi decidido e o que emerge das normas e dos princípios processuais que além sofreram uma profunda remodelação e cuja orientação foi sucessivamente reafirmada e reforçada em posteriores intervenções legislativas, sob a égide de se privilegiarem, em definitivo, os aspetos materiais em detrimento de outros de ordem formal.

Certo é que, apesar dos avanços legislativos e malgrado a profunda modificação que se vem verificando na doutrina e na jurisprudência relativamente à aplicação de tal orientação, continuamos a defrontar-nos ainda com alguma resistência que acaba por acentuar certos aspetos formais.

O caso presente é disso um exemplo.

Para a afirmação do resultado em que ambas as instâncias coincidiram, partiu-se de um pressuposto que não encontra na lei suficiente sustentação, qual seja, o de que era possível dividir a prestação de contas do cabeça-de-casal em dois blocos, um respeitante ao período posterior à sua designação para o cargo, que seguiria por apenso ao processo de inventário, nos termos do art. 947º do CPC (competência por conexão) e outro que abarcava o período anterior que deveria tramitada em ação autónoma, ao abrigo dos arts. 941º a 946º.

A falta de uma clara orientação legal num sentido tão estranho deveria, desde logo, fazer pender a balança argumentativa para a solução que mais favorecesse a concentração da tramitação processual destinada a apreciar contas relacionadas com uma mesma herança indivisa e que foi e é administrada por um único cabeça-de-casal desde a sua abertura. Mas a solução que foi encontrada para uma “questão” que, aliás, nenhuma das partes suscitou acabou por resvalar para a via menos adequada que, a manter-se, obrigaria à existência de dois processos diferentes para apreciação da mesma realidade substancial.


3. As contas a cargo do cabeça-de-casal correm por apenso ao processo de inventário, diz o art. 947º) do CPC. Trata-se de um regime de competência por conexão que, porém, não afasta a necessidade de ser conjugado com outros preceitos ou com outros argumentos.

Partiu-se para o efeito de uma distinção que deveria ser feita entre a administração da herança no período posterior e anterior à designação formal da Requerida para o exercício do cargo de cabeça-de-casal, solução que, além de não encontrar na lei substantiva um apoio formal, também não encontra, em nosso entender, qualquer sustentação de ordem racional.

A este respeito anota Luís Filipe de Sousa, Ações Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, p. 134, que “o cabeça-de-casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, independentemente de haver lugar a inventário”, o que é particularmente evidente no caso concreto, quando nos defrontamos com o art. 2080º, nº 1, al. a), do CC, que consagra a regra segundo a qual esse cargo deve ser exercido, em princípio, pelo cônjuge sobrevivo, como, aliás, se verificou, sem que algum interessado tenha questionado essa realidade que subjaz ao presente litígio.

Neste contexto, não temos quaisquer dúvidas em afirmar que a prestação de contas de cabeça-de-casal, ao abrigo do art. 947º do CPC, abarca tanto o período posterior à sua nomeação formal para o cargo, no âmbito do processo de inventário, como o período anterior em que a Requerida, viúva do de cujus e mãe da Requerente, veio a ser designada exerceu de facto esse cargo.

Aliás, sempre seria de duvidar, ao menos, que de uma mera competência por conexão, que é aquela que emerge do art. 947º do CPC, pudesse extrair-se uma solução que procederia a uma divisão artificial de uma mesma realidade substancial que é representada pela efetiva administração dos bens da herança indivisa desde o óbito do de cujus, com os inconvenientes da duplicação de processos e com os riscos da contradição.


4. Por aqui poderíamos ficar, mas o certo é que uma tal solução, que nos parece evidente, pode melhorar se lhe acrescentarmos argumentos que reforcem o mesmo resultado.

Ora, ainda que por acaso pudesse estabelecer-se aquela divisão formal segundo a qual no apenso o processo de inventário (art. 947º do CPC) apenas deveriam abarcar o período posterior à nomeação para o cargo de cabeça-de-casal e que para o período anterior caberia o recurso à ação autónoma de prestação de contas (arts. 941º a 946º), sem conexão formal com o processo de inventário, então haveria que apreciar se uma putativa “cumulação de pretensões” que na realidade decorre do processo, associada a uma alegada divergência de “causas de pedir” não encontraria ainda sustentação na norma do art. 555º do CPC, em conjugação com a do art. 37º.

Por esta via suplementar facilmente se constaria afinal que não existe afinal qualquer diferença entre a tramitação do apenso e da eventual ação, de modo que nada obstaria a que ambos os períodos da administração fossem submetidos à mesma tramitação processual. Afinal, a prestação de contas por apenso ao processo de inventário corresponde apenas a uma competência por conexão sem força suficiente para eliminar as vantagens potenciadas pela apreciação conjunta de ambos os períodos de administração de bens, tendo em conta princípios diversos: economia processual, preferência por aspetos de ordem material, celeridade processual, etc.

Ou seja, sendo perfeitamente idêntica a tramitação processual, nem sequer haveria necessidade de proceder a qualquer ajustamento que, de todo o modo, também estaria ao alcance das instâncias.


5. Na verdade se acaso houvesse – e não há – divergência de tramitação, estas seriam compatíveis com uma determinação judicial no sentido de adaptar todo o processado, a fim de garantir que a atividade judicial abarcasse ambos os períodos. Para isso existe o princípio da adequação formal (art. 547º do CPC). Foi também para isso que se reforçaram os poderes do juiz no campo da gestão processual (art. 6º, nº 1), acentuando a necessidade de acionar os mecanismos de simplificação e de agilização, com vista a alcançar a almejada celeridade da resposta judiciária.

Acresce ainda que nem o facto de essa solução – que como vimos é desnecessária – ser detetada pela Relação obstaria a que fosse usada para aqueles objetivos. A Relação, pelo facto de intervir apenas no âmbito do recurso de apelação, não deve ficar alheia ao modo como são ou não são compridos os objetivos do legislador.

Neste caso, se acaso a Relação considerava – sem motivos, como já se disse – que era necessária alguma diligência no sentido de corrigir alguma tramitação procedimental com vista a assegurar a apreciação conjunta de ambos os períodos de administração, então teria que o afirmar e dar à 1ª instância as necessárias determinações. Não existe motivo algum para afastar a Relação dos mesmos objetivos que foram propostos pelo legislador quando, por exemplo, consagrou explicitamente o princípio da adequação formal, para ser usado quando a concreta situação o justifique e independentemente da fase do processo.

O que de modo algum se compreende é a solução que foi encontrada, eliminando cada uma das três possibilidades que tinha ao seu dispor no sentido de corrigir o erro de que enfermava a decisão da 1ª instância, redundando num resultado manifestamente insustentável.


6. Se este é o resultado que se obtém perante tão singelos argumentos, o mesmo mais se “impõe” quando se verifica que o processo correu seus termos até chegar ao ponto em que as contas que a A. exigia foram efetivamente prestadas pela Requerida, bastando apenas proceder à sua apreciação.

A rejeição de uma parte das contas apresentadas, com base nos referidos argumentos destituídos de qualquer apoio formal ou racional, determinaria a inutilização de uma parte substancial da atividade que as partes (e o tribunal) já desenvolveram e que já se traduziu, além do mais, na apresentação pela Requerida de centenas de documentos sobre os quais a Requerente se pronunciou e que, em face daquela decisão formal, teriam de repetir numa outra ação sem qualquer benefício visível para ninguém.

Deste modo, em lugar de uma decisão formal que, na realidade, determinaria a inutilização de uma parte substancial do processado, para obrigar a Requerente a interpor outra ação com o mesmo objeto, impõe-se que os autos prossigam os seus termos de acordo com a tramitação do processo especial de prestação de contas.


III – Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido, assim como o despacho de 1ª instância que rejeitou a apreciação das contas referentes aos anos de 2011, 2012 e ao 1º semestre de 2013, devendo o processo prosseguir os seus termos normais para apreciação de todas as contas referentes á administração da herança por parte da requerida.

Custas da revista e da apelação a cargo da requerida.

Notifique.


Lisboa, 22-3-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo