Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
630/09.5YFLSB
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
VENDA JUDICIAL
EXTINÇÃO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
FALÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : Em caso de execução ou falência do promitente-vendedor, apreensão dos bens prometidos vender e sua subsequente venda no processo executivo ou de falência – que o credor não pode impedir -, a natureza e efeitos do direito de retenção mantêm-se, embora com a sua função de garantia, restrita à preferência concedida sobre outros credores.
O direito de retenção do credor-reclamante, incidente sobre o imóvel entretanto alienado em execução fiscal, transferiu-se para o produto da respectiva venda, assim se mantendo, para ser pago com a preferência que lhe couber, no processo executivo fiscal ou na execução universal que a integrou, nos mesmos termos em que o seria se o pagamento tivesse directamente lugar no âmbito daquela execução.
Nesse caso, o direito de retenção não se extingue nem caduca e há lugar a uma graduação de créditos especial em relação ao produto da venda do imóvel alienado em execução fiscal – sobre o qual o reclamante gozava do direito de retenção -, anteriormente à declaração de falência.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. - Declarada a falência de “AA – Indústria Transformadora de Madeiras, Lda.”, em 06.11.2003, por sentença transitada em jul­gado, foram, entre outros, reclamados créditos pela ora Recorrente “BB, Lda.”, por crédito resultante de incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel da falida, entretanto vendido em execução fiscal, e por trabalhadores da Falida.

Os créditos reconhecidos vieram a ser graduados para efeito de pagamento pelo produto da venda dos bens da massa falida pela ordem seguinte:
1 ° - os créditos dos trabalhadores;
2° - o crédito de “BB, Lda.”·
3° - os restantes créditos (incluindo os da Fazenda Nacional, Instituto da Segurança Social, e Autarquia).

A Reclamante “BB” impugnou a ordem de graduação sentenciada.
A Relação manteve o julgado.


A mesma Credora pede ainda revista para insistir em nova anulação do acórdão ou na sua revogação com a realização de uma graduação especial para o produto da venda do imóvel ocorrida no processo executivo fiscal, respeitando os créditos então existentes e reclamados e as respectivas garantias, graduando em primeiro lugar o seu crédito, que beneficia do direito de retenção, e em segundo lugar o crédito da Segurança Social, além da graduação geral para os bens da massa falida, nos termos do art. 200º-2 do CPEREF.
Para tanto argumenta nas conclusões:
- Continua agora a R. a chamar a atenção para o facto da Sentença ter omitido a necessidade de efectuar uma graduação de créditos especial, visando apenas o produto da venda do bem imóvel, que havia pertencido à falida, concretizada em 17/01/2003, no âmbito do processo executivo fiscal nº 1.350-92/101196.0 e apensos, instaurado e a correr termos no Serviço de Finanças de Caldas da Rainha, em data muito anterior à da Declaração da Falência, que só foi proferida em 06/11/2003;
- Não obstante, verificada a necessidade de suprir essa omissão pelo STJ, o Tribunal da Relação de Lisboa, no aresto recorrido, pronunciando-se longamente sobre a questão dos privilégios creditórios e da prevalência que a Lei estabelece a favor dos créditos emergentes do contrato de trabalho, não aborda de forma substantiva a questão da necessidade de efectuar, no mesmo processo, a chamada "bipartidação de graduação de créditos";
- De facto, o Tribunal da Relação de Lisboa continua a omitir uma referência objectiva ao essencial do que sempre foi requerido pela R. e que consiste na necessidade de realizar:
- uma graduacão especial, incidindo sobre o produto da venda do bem imóvel, propriedade da falida, efectuada no âmbito do referido processo executivo fiscal, muito antes da data da Declaração da Falência;
- uma graduacão geral pelo produto da venda dos restantes bens ocorrida no âmbito da Falência, sendo que só em relação ao produto desta haverá lugar à consideração dos créditos laborais, uma vez que na data da venda do referido imóvel não existiam quaisquer créditos laborais.
- Com efeito, o Douto Acórdão recorrido omitiu novamente a referência à existência de dois momentos processuais distintos que não podem deixar de ser devidamente considerados e ponderados em termos da graduação de créditos:
- a venda do imóvel da AA, LDA., no âmbito do processo de execução fiscal a correr termos no Serviço de Finanças de Caldas da Rainha, em 17/01/2003, e as reclamações de créditos efectuadas nesse contexto, onde apenas reclamaram créditos a Segurança Social e a ora Recorrente, e
- a declaração de falência da mesma AA, LDA., ocorrida em 06/11/2003, e a reclamação de créditos reportada a essa data onde aparecem, então e só aí, os créditos dos trabalhadores.
Pelo que persiste a causa de nulidade da sentença proferida em 1ª Instância (Art. 668º nº 1, alínea d), do CC) e, concomitantemente, continua a inquinar o Douto Aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que não reconheceu tal vício.

Respondeu apenas o Ministério Público, defendendo o acerto do julgado.

A conferência rejeitou a invocada comissão da nulidade de omissão de pronúncia.


2. - Tal como resulta do conteúdo das conclusões da alegação da Recorrente, vem proposta a resolução das seguintes questões:

- Se ocorre nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, com a consequente anulação para suprimento do vício;
- Se tem lugar uma graduação de créditos especial em relação ao produto da venda do imóvel alienado em execução fiscal, anteriormente à declaração de falência, sobre o qual o crédito da Recorrente gozava do direito de retenção; e,
- Se, nessa graduação, o crédito da Recorrente deve ser graduado em 1º lugar.


3. - Elementos de facto a considerar.

- A “AA” foi declarada falida por sentença de 06/11/2003, transitada em julgado;
- A Recorrente reclamou na falência o crédito de 97.778,00€ e invocou a garantia de que dispunha – direito de retenção sobre um imóvel da falida que foi objecto de venda num processo de execução fiscal;
- Essa venda teve lugar em 17 de Janeiro de 2003;
- O respectivo produto veio a ser apreendido e transferido para a massa falida.

- Sem qualquer impugnação, foi tido como provado e reconhecido na sentença que:
“No âmbito do processo de execução fiscal foram penhorados bens móveis e o imóvel sito no Alto do Nobre, na Estrada da Foz, freguesia de Stº Onofre, concelho de Caldas da Rainha, inscrito na respectiva matriz predial sob o nº 01435/970909.
Nesses autos foram reclamados créditos - pela ora Recorrente o mesmo crédito e garantia que veio a invocar na falência -, e, em 10.11.2003, foi proferida sentença de graduação de créditos.
Dessa sentença recorreu BB para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo este Tribunal ordenado a remessa dos autos ao "Tribunal de Falência"(…).
O termo de Remessa foi lavrado em 23 de Maio de 2006.
O processo de falência entrou em juízo em 2 de Abril de 2003. Por despacho 25 de Novembro de 2003 foi ordenada a notificação do Serviço de Finanças de Caldas da Rainha da avocação dos processos executivos existentes contra o falido, o que foi feito. Porém tais processos só foram remetidos a este tribunal em Maio de 2006.
(…)
(…) provado se mostra que em 29 de Outubro de 1999 a reclamante celebrou com a AA um contrato-promessa de compra e venda do prédio urbano sito no Alto do Nobre, na Estrada da Foz, freguesia de Stº Onofre, concelho de Caldas da Rainha, inscrito na respectiva matriz predial sob o n° 01435/970909, a transmitir livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço final de 55.000 contos, tendo sido entregue de sinal o montante de 10.000 contos. Em 1 de Janeiro de 2000 a reclamante obtém a tradição do imóvel e executa obras e benfeitorias no mesmo no valor de 20.000 contos.
O contrato prometido não foi celebrado até à data acordada: 24.10.2000, passando a promitente vendedora a incorrer numa situação de incumprimento, sendo a reclamante titular de um direito de garantia pelo valor de € 90.890,54 respeitante ao dobro do sinal e juros remuneratórios desde 24 de Outubro de 2000, até 17 de Dezembro de 2002, data em que o prédio foi vendido no âmbito do processo de execução fiscal.
O reclamante BB goza do direito de retenção pelo crédito resultante do não cumprimento do contrato de promessa, imputável à falida AA”. (segue-se referência ao que se dispõe nos arts. 754º e 755º-1-f) e 442º, todos do C. Civil).


4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Nulidade do acórdão.

A Recorrente imputa ao acórdão recorrido a nulidade de omissão de pronúncia, acusando-o de não abordar a questão da necessidade de efectuar as pretendidas duas graduações de créditos.

Vem, pois, arguida a nulidade de omissão de pronúncia a que se alude na al. d) do n.º 1 do art. 668º, que é a sanção estabelecida na lei processual para a violação do preceituado no art. 660º-2, ou seja, não ter o juiz resolvido todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação.


Não tem razão.

O acórdão emite claramente pronúncia sobre a questão que a Recorrente diz silenciada ao afirmar que “não há que proceder a uma graduação especial e a uma graduação geral como sustenta o recorrente…. (…) Atenta a interpretação expendida não há que proceder a uma graduação especial e a uma graduação geral”.

Poderá a Recorrente queixar-se, e aí com pertinência, de que a fundamentação utilizada é parca ou mesmo inexistente relativamente à questão proposta ou, talvez melhor, que não será a adequada à solução dessa questão, mas, apenas, à da fixação da prioridade dos créditos na graduação, geral ou especial.

Só que, não sendo essa a nulidade invocada, e não havendo lugar ao seu conhecimento oficioso ou convolação do tipo de vício arguido, resta a impossibilidade de reconhecimento da comissão do vício formal que foi objecto de arguição – a omissão de pronúncia, por não verificado (art. 668º-1-d)-1º segmento, 2 e 3).


Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se indefere a arguição e a consequente anulação do acórdão para suprimento de nulidade.


4. 2. - Graduação especial para o produto da venda do imóvel.

Vem defendendo a Recorrente dever ter lugar uma graduação especial dos créditos reclamados na acção falimentar relativamente ao produto da venda do imóvel apreendido para a massa, mas anteriormente alienado em execução fiscal, em virtude de sobre ele incidir o seu direito de retenção (direito real de garantia), conforme o estabelecido no n.º 2 do art. 200º do CPEREF.

A Relação respondeu negativamente à pretensão, conclusão que extraiu, sem mais, de argumentação relativa à preferência dos créditos de natureza laboral sobre os garantidos por hipoteca, com aplicação do regime do art. 751º do C. Civil, que não o do seu art. 749º.

Ora, se bem vemos, a questão da necessidade de realização de duas graduações nada tem que ver com a apreciada - da preferência da hipoteca ou dos créditos laborais -, questão esta que sempre se coloca, mas em momento posterior, haja uma ou mais graduações, sendo que, relativamente à graduação geral, não foi sequer impugnada.


Dispõe-se no n.º 2 do art. 200º do CPEREF, diploma aqui aplicável, que a graduação dos créditos verificados “é geral para os bens da massa falida e especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia”.

Vale isto por dizer que se tiverem sido apreendidos para a massa bens sobre os quais recaiam direitos reais de garantia terá lugar uma graduação especial relativamente a cada um deles, o que se justifica pela necessidade de, pelo produto da respectiva venda, poderem ser atendidas as específicas preferências de que gozem os respectivos credores em atenção às garantias reais de que beneficiem.

No caso sob apreciação, a Recorrente reclamou na falência o crédito de 97.778,00€ e invocou direito de retenção sobre o imóvel da falida que foi objecto de venda num processo de execução fiscal, cujo respectivo produto veio a ser apreendido e transferido para a massa falida, direito de retenção - pelo crédito resultante do não cumprimento do contrato de promessa, imputável à falida - que, sem impugnação vem reconhecido.


O direito de retenção traduz-se no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de coisa que deva ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfizer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela – arts. 754º e 755º C. Civil.
Trata-se de um direito real de garantia – que não de gozo -, em virtude da qual o credor fica com um poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma certa conexão eleita pela lei, e não, por exemplo, da própria natureza da obrigação, representa uma garantia directa e especialmente concedida pela lei.
Assim, desde que o credor tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, reconhece-se-lhe o direito de garantia, válido erga omnes e atendível no concurso de credores. Com efeito, o retentor não pode opor-se à execução, singular ou universal, movida por outros credores, mas é-lhe assegurada a posição preferencial que legitima a recusa em abrir mão da coisa até ao pagamento do seu crédito, faculdade que não desaparece pela acidental circunstância de o devedor se tornar insolvente e/ou haver um processo de falência (cfr. CALVÃO DA SILVA, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 339 e ss.; VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, in BMJ 65º- 103 e ss.).

Em caso de execução ou falência do promitente-vendedor, apreensão dos bens prometidos vender e sua subsequente venda no processo executivo ou de falência – que o credor não pode impedir - a natureza e efeitos do direito de retenção mantêm-se, embora com a sua função de garantia, que é o que aqui importa considerar, restrita à preferência concedida sobre outros credores.

Declarada a falência, procede-se à apreensão de todos os bens susceptíveis de penhora e os credores do falido devem reclamar a verificação dos seus créditos, quer comuns, quer preferenciais, por meio de requerimento no qual indiquem a sua proveniência, natureza e montante, mesmo no caso de terem já o seu crédito reconhecido por decisão definitiva noutro processo (arts. 175º e 188º-1 e 3 CPEREF).

Por ser "omnicompreensiva", a sentença declarativa de falência acarreta a apreensão de todo o património do devedor, em relação ao activo, e a avocação e conhecimento de todas as questões de natureza patrimonial, quanto ao passivo (princípio da plenitude da instância falimentar, consubstanciado nos citados preceitos). Aberta a execução universal contra o falido, concentram-se no respectivo processo todas as pretensões patrimoniais sobre este, iniciando-se um concurso que não se limita aos créditos comuns, mas se estende aos créditos preferenciais e ao direito de separação de bens (cfr. P. SOUSA MACEDO, "Manual do Direito de Falências", II, 28 e 291 e ss.).


Perante este conjunto de princípios parece não poder pôr-se em dúvida que o direito de retenção da Recorrente, incidente sobre o imóvel entretanto alienado, se transferiu para o produto da respectiva venda assim se mantendo, para ser pago, com a preferência que lhe couber, no processo executivo fiscal ou na execução universal que a integrou, nos mesmos termos em que o seria se o pagamento tivesse directamente lugar no âmbito daquela execução.

De resto, é a solução acolhida no art. 824º-2 e 3 C. Civil ao estabelecer que na venda em execução os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, mas “os direitos de terceiro que (por isso) caducarem transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”.

Ora, o direito de retenção assim transferido não se extinguiu e, porque não houve entrega voluntária da coisa – mas forçada em razão da penhora e, depois, da apreensão para a massa falida -, também não caducou, nos termos previstos no art. 761º C. Civil,


Conclui-se, consequentemente, respondendo à questão enunciada, que a lei – art. 200º-2 CPEREF – impõe a realização das mencionadas duas graduações.



4. 3. - Graduação (especial) do crédito da Recorrente.

Decidido que há lugar à pretendida graduação especial, tem agora lugar a apreciação do termos em que se verificam as preferências dos créditos reclamados no concurso relativamente ao produto da venda do imóvel onerado com o direito de retenção.

A graduação geral efectuada não foi objecto de impugnação.

Incluindo o crédito da Recorrente nesta última graduação, a decisão impugnada colocou-o a seguir aos créditos laborais, defendendo a aplicação do art. 751º C. Civil, que não do art. 749º.

Certa, de qualquer maneira, a inaplicabilidade do regime emergente do art. 377º do Código do Trabalho.


Isto posto, importa, então, graduar o crédito da Recorrente no concurso directo com os créditos laborais reclamados.

O direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, a qual, por sua vez, goza de preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial – arts. 759º-2 e 686º-1 C. Civil.


Está há muito adquirido no processo que os créditos dos Recorridos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral, no âmbito da previsão das als. b) dos arts. 12.º da Lei n.º 17/86 e 4.º da Lei n.º 96/2001.

Entendeu-se no acórdão recorrido que esse privilégio imobiliário geral determinaria a graduação dos créditos que dele gozam antes do crédito da Recorrente, referenciado pela hipoteca, face ao disposto nos arts. 751.º, 748.º e aos n.ºs 3 e 4 dos mencionados arts. 12.º e 4.º, respectivamente.
Mais especificamente, optou-se pela interpretação segundo a qual os privilégios imobiliários em questão se enquadram no âmbito de previsão da norma do art. 751.º C. Civil e, por ser assim, este artigo lhes é aplicável.


Está-se perante questão que foi muito debatida, mas que obteve resposta quase uniforme deste Tribunal de sentido contrário ao adoptado na decisão recorrida.

A este propósito, já no ac. de 03/05/2005, proc. n.º 05A946, entre outros não publicados com relato deste mesmo relator, se ponderou e decidiu que:
“ Ora, se é certo que o privilégio, apesar de geral, é imobiliário, também igualmente certo é que, sendo imobiliário, é geral.
Dado que, nem a Lei 17/86, nem a 96/2001, procedem à definição da eficácia do privilégio imobiliário geral relativamente a direitos de terceiros, nem o Código Civil, diploma para o qual a própria Lei n.º 17/86 remete expressamente como direito subsidiário, conhece a figura do privilégio imobiliário geral, surge, então, o problema do enquadramento da figura face à disciplina da lei geral: - se, para o efeito, deve prevalecer a espécie - - mobiliários e imobiliários (art. 735.º-1) -, ou, antes, o âmbito de incidência geral ou especial do privilégio.
Da opção que se tome dependerá, obviamente, a inserção da garantia na previsão daquele art. 751.º, se a dominante for a espécie, ou no art. 749.º, se a tónica distintiva for o âmbito de incidência geral ou especial do privilégio.

A questão não é, como se sabe, pacífica, tanto mais que, não admitindo o C. Civil, como já referido, privilégios imobiliários gerais, os privilégios a que o art. 749.º alude hão-de ser, então, os mobiliários.

No regime estabelecido no Código Civil, os privilégios gerais, que são só mobiliários, constituem-se apenas no momento da apreensão dos bens, não pressupõem uma relação entre o crédito e a coisa, por isso que são gerais e não são oponíveis a direitos reais, que se lhes não encontram especificamente afectos (art. 749.º), diversamente do que sucede com os privilégios especiais, sejam mobiliários ou imobiliários, que, baseando-se numa relação entre o crédito e a coisa que o garante, se constituem no momento da formação do crédito garantido e são direitos reais de garantia oponíveis a outros direitos reais (arts. 750.º e 751.º).
Não sendo de qualificar como direitos reais de garantia, dado o seu carácter de generalidade na incidência, os privilégios imobiliários gerais devem ter-se como constitutivos de "meros direitos de prioridade que prevalecem contra os credores comuns, na execução do património debitório" (ALMEIDA COSTA, "Direito das Obrigações", 5.ª ed., 824).
Também MENEZES CORDEIRO ("Direito das Obrigações", 2.º, 1994, 500/501), depois de analisar as figuras em confronto e de fazer notar que a distinção fundamental não é a contraposição entre privilégios mobiliários e imobiliários, mas entre gerais e especiais, conclui, face aos mencionados elementos distintivos, que o regime desses privilégios imobiliários se deve aproximar do dos gerais (mobiliários), tratando-se de "tão só preferências gerais anómalas", a que deve ser aplicado o regime constante do art. 749.º C. Civil.
No mesmo sentido, quanto aos créditos laborais, se pronunciam o mesmo MENEZES CORDEIRO, "Salários laborais e privilégios creditórios, ROA", A. 58, II, 665; LEAL AMADO, "A Protecção do Salário", 154; e, L. M. LUCAS PIRES, "Os Privilégios Creditórios dos Créditos Laborais", 165.
Na Jurisprudência deste Supremo, podem ver-se, entre muitos outros, os acórdãos de 27/6/02, 27/9/02, 27/5/03, 3/4/03, 12/6/03, 4/11/03, 30/9/04 e 26/10/04 os três primeiros na CJ/STJ, respectivamente em X-II-146, III, 55 e XI-II-86 e os últimos nos procs. 466/03-6ª, 1550/03- 2.ª, 3052/03-6.ª, 850/04-1ª e 2875/04-1ª (cfr. Sumários).

Efectivamente, o entendimento segundo o qual o art. 12.º da Lei n.º 17/86 teria consagrado um privilégio imobiliário geral oponível a terceiros, nos termos do art. 751.ºC. Civil, levando à existência de um direito real, embora de garantia, sobre todo o património imobiliário do devedor, sem que o legislador lhe tivesse expressamente atribuído uma tal eficácia, contrariaria o princípio da especialidade ou individualização do objecto dos direitos reais (cfr. a declaração de voto de P. Mota Pinto, no ac. TC., de 5/7/00 - DR-II, de 7/11/00).

Resta acrescentar que, no sentido de que esse foi, ou, pelo menos, com esse entendimento se conformou o legislador, aponta ainda, a nosso ver, a circunstância de, confrontado, desde 2 000 (22/3, DR, II, de 7/10), com decisões do Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade das normas que conferem privilégios imobiliários gerais se interpretadas no sentido de que os mesmos preferem à hipoteca nos termos do art. 751.º, não ter vindo fixar a respectiva eficácia, designadamente aquando da intervenção na matéria através da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, e, antes, com as alterações à redacção dos arts. 735º-3 e 751.º (DL 38/03, de 8/3) ter "separado águas", clarificando que são sempre especiais os privilégios imobiliários previstos no Código e que os privilégio imobiliários oponíveis a terceiros nos termos do art. 751.º são os imobiliários especiais.”

Não encontramos, entretanto, razões que justifiquem alteração da posição expendida que, como dito, reflecte o entendimento largamente dominante neste Supremo.


Do exposto resulta que, por aplicação do regime do art. 749.º (e afastamento do do art. 751.º), o crédito da Recorrente, garantido pelo direito de retenção, deve ser pago com preferência sobre os créditos laborais que, gozando embora de privilégio imobiliário geral, têm de ser graduados depois daquele, como o seriam depois dos hipotecários.

E, consequentemente, que relativamente ao produto do imóvel vendido na execução fiscal que foi apreendido para a massa se deva graduar:
- em primeiro lugar, o crédito do Recorrente sobre que recai o direito de retenção reconhecido;
- em segundo lugar, os créditos laborais; e,
- em terceiro lugar, os restantes créditos.


5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, decide-se:
- conceder a revista;
- revogar o acórdão impugnado; e,
- determinar a realização de graduação especial para o produto da venda do imóvel ocorrida no processo executivo fiscal, nos termos que se deixaram fixados.

- As custas serão suportadas pela massa, nos termos previstos nos arts. 248º-2 e 249º-2 do CPEREF.


Lisboa, 12 Janeiro 2010

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias