Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3791
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OBJECTO DO RECURSO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
CONCLUSÕES
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
CHEQUE
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
OBRIGAÇÃO CAUSAL
REQUERIMENTO EXECUTIVO
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: SJ200612190037917
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A falta de fundamentação de facto ou de direito prevenida na al.b) do nº1º do art.668º CPC é tão somente a falta absoluta dessa fundamentação, não preenchendo essa previsão a fundamentação apenas insuficiente ou deficiente.

II - A deficiência prevenida no nº4º do art.690º CPC não abrange o caso, que não cabe ao tribunal controlar, de a parte ter omitido nas conclusões questão suscitada no texto da alegação respectiva.

III - Em vista do disposto no art.303º C. Civ., para poder ser tida em consideração, a prescrição prevista no art.52º LUC tem de ser invocada na petição inicial dos embargos de executado, sendo já extemporânea a sua arguição em sede de recurso.

IV - A menção expressa dos títulos cambiários antes constante do art.46º, al.c), CPC foi suprimida aquando da reforma do processo civil operada em 1995/96 por ter sido então considerada desnecessária.

V - Em causa saber se o cheque dado à execução constitui, ou não, título executivo, é despiciendo apurar se as partes se lhe referem enquanto título de crédito ou como documento particular, que igualmente é, valendo a esse respeito o disposto no art.664º CPC.

VI - As pretensões abstractas mantêm no processo executivo essa característica da abstracção, pelo que, emergindo a pretensão exequenda de um cheque, a pretensão cambiária é abstracta, isto é, accionável independentemente da alegação e demonstração da causa da sua subscrição pelos sujeitos cambiários.

VII - Na sua função normal de meio de pagamento (diferido, embora), a emissão de um cheque configura o reconhecimento da obrigação de pagamento, que, a par da assinatura do devedor, a al.c) do art.46º CPC estabelece como condição de exequibilidade dos documentos particulares.

VIII - Daí que os cheques que, por não observados os arts.29º e 40º LUC ou prescrita a obrigação cambiária, não possam produzir efeitos cambiários, tendo ficado sem valor enquanto títulos de crédito, possam ser invocados como quirógrafos, isto é, como títulos particulares da dívida que lhes deu origem.

IX - Assim, quando prescrita a acção cambiária correspondente, e, por consequência, sem a especial protecção que a lei concede a esses títulos de crédito, nem por isso os cheques deixam de constituir quirógrafos das dívidas tituladas por esse modo, isto é, de ser documentos particulares, dotados, nos termos dos arts.373º a 376º C.Civ., de valor probatório contra o seu signatário, demonstrativo da obrigação de pagamento do montante determinado dele constante.

X - Em tal caso, à pretensão abstracta ínsita no cheque sucede a pretensão causal : tendo deixado de produzir efeitos como título constitutivo da relação cambiária que documenta, o cheque passa a valer como título certificativo da relação obrigacional subjacente, e tendo a obrigação exigida nessa base deixado de poder ser a obrigação cartular, poderá sê-lo a obrigação causal, fundamental ou subjacente.

XI - Podendo, pois, a acção instaurada em tal base ser, em tais casos, a acção ex causa, isto é, a acção de direito comum resultante do negócio subjacente que determinou a obrigação cambiária, nada obsta a que essa acção seja a acção executiva.

XII - Considerado, em tradicional entendimento, que a causa de pedir era, nessa espécie de acções, constituída pelo título ou documento em que se corporiza a obrigação exequenda, isto é, pelo título executivo, tem-se mais recentemente entendido que mesmo na acção executiva a causa de pedir é, em bom rigor, o facto jurídico fonte da obrigação accionada, não sendo aquele título ou documento mais que especial condição (probatória, necessária e suficiente) da possibilidade de recurso imediato a esta espécie de acções, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito.

XIII - Daí a afirmada necessidade da menção de uma causa de pedir no requerimento inicial da execução, considerando-se que, não constando do título, a causa da obrigação exequenda deve, pelo menos, ser invocada no requerimento inicial da execução como causa de pedir da acção executiva, que pode ser impugnada pelo executado nos termos do art.815º, nº1º, CPC, e que, fundando-se a execução em título extrajudicial emergente de negócio jurídico, se o facto constitutivo dessa obrigação não constar do título executivo, o exequente deve indicar ( invocar ) esse negócio jurídico como facto constitutivo do seu direito e, assim, causa de pedir em sentido próprio, enquanto facto concreto que de acordo com as previsões das normas substantivas constitui a causa de aquisição do direito à prestação reclamada, a fim, até, de impedir o indeferimento liminar da petição executiva, atento o disposto no art.811º-A, nº1º, al.c), CPC, introduzido pela revisão da lei processual operada em 1995/96.

XIV - Fundada orientação minoritária contrária no estabelecido no art.458º, nº1º, C.Civ., e notado também que a exigência da menção da causa da emissão do título de crédito no requerimento inicial da execução contraria a noção clássica de título executivo como condição necessária, mas também suficiente, da execução, a solução maioritária acima referida foi, em todo o caso, firmada por via legislativa, com a redacção conferida ao art.810º CPC pelo DL 38/2003, de 8/3, cujo nº3º impõe ("deve"), na sua al.b), que o requerimento executivo contenha " exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo ". *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 27/4/2005, AA moveu, no Tribunal Judicial da comarca da Póvoa de Varzim, à Empresa-A, execução ordinária para pagamento de quantia certa, a que esta, dando por nula a execução, " por manifesta falta de causa de pedir ", deduziu, em 23/6/2005, por apenso, oposição por meio de embargos.

Alegou, em resumo, que o título dado à execução não se reveste da necessária força executiva, já que, tratando-se de um documento particular, não contém a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação : por isso, e uma vez que o exequente não alegou no requerimento inicial da execução a causa, isto é, a relação jurídica, subjacente à emissão do cheque, esse requerimento padece de ineptidão, por falta de causa de pedir, com a consequente nulidade de todo o processo, devendo a executada ser absolvida da instância executiva.

O embargado contestou, alegando, em suma, que o cheque dado à execução contém uma promessa de pagamento e um reconhecimento unilateral da dívida, a que se aplica o disposto no art. 458º, nº1º, C. Civ., pelo que o credor/exequente está desonerado da necessidade de alegar e provar a relação fundamental subjacente à sua emissão, recaindo, antes, sobre a devedora o ónus de provar a inexistência ou a cessação da respectiva causa.

Em saneador-sentença de 10/11/2005, julgou-se improcedente a nulidade invocada e, conhecendo do fundo da questão, julgaram-se improcedentes os embargos deduzidos.

O recurso de apelação que a embargante interpôs para o Tribunal da Relação do Porto foi julgado improcedente por acórdão de 23/5/2006, que confirmou essa sentença.

É dessa decisão que vem pedida revista.

Em fecho da alegação respectiva, a recorrente oferece, em termos úteis (1) , as conclusões seguintes :

1ª - O acórdão em recurso deve ser declarado nulo por violação das als.b) e d) do nº1º do art.668º, aplicável ex vi do art.716º CPC.

2ª - A sentença desconsiderou o já assente pelas partes no âmbito da matéria dispositiva, violando esse princípio processual, pois as partes tinham aceite que o título dado à execução era um título particular e não um título cambiário.

3ª - Não tendo a recorrente levado às conclusões o alegado sobre essa questão, competia ao relator convidá-la, nos termos do art.690º, nº4º, CPC, a completar as conclusões em consonância, pelo que foi violada a 1ª parte do nº1º do art.668º e o nº4º do art.690º CPC.

4ª - A afirmação não fundamentada de que a recorrente não invocou a excepção de prescrição da acção cambiária viola a al.b) do nº1º do art.668º CPC, " sufragando de uma forma infiel e fora do contexto da questão que a recorrente apenas o fez em sede de alegações de recurso " ; e se, ao alegar, na sua oposição, pela forma que alegou a recorrente invocou a prescrição, essa questão é de decidir, sustentando devidamente essa decisão.

5ª - A questão da verificação da recusa do pagamento do cheque ficou em branco, quer na sentença, quer no acórdão em recurso.

6ª - Trata-se, porém, de requisito de exequibilidade do título, que é de conhecimento oficioso, e que falta no cheque dado à execução.

7ª - O art.40º LUC elenca as formas por que pode ser verificada a recusa do pagamento, nenhuma delas sendo a declaração de extravio aposta pela câmara de compensação.

8ª - Não se tendo pronunciado a esse respeito, o acórdão recorrido violou a 1ª parte da al.d) do nº1º do art.668º, aplicável ex vi do art.716º CPC.

9ª - Quando falte ao cheque qualquer dos requisitos de exequibilidade da LU, pode, ainda assim, ter força executiva como título particular, nos termos dos arts.458º, nº1º, C.Civ e 46º, al.c), CPC, mas o exequente terá, para tanto, de alegar no requerimento inicial da execução a relação jurídica subjacente ao título, pois, caso assim não faça, verá esse requerimento declinar por falta de causa de pedir.

10ª - Foram violados os arts.40º e 52º LUC, 46º, al.c), 264º e 664º CPC, e 458º, nº1º, C.Civ.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

A matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue :

- O cheque nº 9631920993 sacado sobre a conta nº 421058720004 do Empresa-B, balcão da Póvoa de Varzim, de que é titular a executada, encontra-se emitido à ordem do exequente.

- Mostram-se inscritos nesse cheque, nos locais destinados para o efeito, para além de uma assinatura, o montante de € 18.000,00 ( dezoito mil euros ), o local de emissão - Póvoa de Varzim, e a data de 2004-08-20.

- Depositado em 23/8/2004, o cheque referido foi apresentado a pagamento, tendo sido devolvido pela entidade bancária sacada, em 26/8/2004, com a menção " extravio ".

Nem sempre à brevidade dos autos corresponde a simplicidade das questões nele colocadas.

Convém, em todo o caso, percorrer, antes de mais, a alegação da recorrente. Assim, sendo do CPC as disposições referidas ao diante sem outra indicação.

Absoluta, consoante doutrina e jurisprudência pacíficas, que não apenas eventualmente insuficiente ou, hoc sensu, deficiente, a falta de fundamentação de facto ou de direito prevenida na al.b) do nº1º do art.668º (2), a arguição dessa nulidade em relação ao acórdão recorrido manifesta-se, com evidência, sem tom nem som.

Delimitado o âmbito ou objecto dos recursos, como decorre dos arts.684º, nºs 2º a 4º, e 690º, nºs 1º e 3º, pelas conclusões da alegação de quem recorre, o convite previsto no art.690º, nº4º, supõe que essas conclusões faltem, ou que, por tidas, em si e por si mesmas, como obscuras ou deficientes, careçam de esclarecimento, ou devam ser melhoradas ou completadas, nomeadamente com a indicação da(s) norma(s) jurídica(s) violada(s).

Como melhor elucidado por Alberto dos Reis, " Anotado ", V, 363, 1º par., a deficiência prevenida no nº4º do predito art.690º não abrange o caso, que não cabe ao tribunal controlar, de se ter omitido nas conclusões questão suscitada no texto da alegação.

Não ocorre, pois, a omissão de pronúncia arguida, prevenida na al.d) do nº1º do art.668º.

Mencionado na alegação oferecida na apelação ter a execução embargada sido instaurada em 27/4/2005, o que, - isso sim -, do conhecimento oficioso do tribunal, sempre seria de se ter em conta ao abrigo do art.515º CPC, resulta, no entanto, incontornável face ao disposto no art.303º C. Civ., que, para poder ser tida em consideração, a prescrição prevista no art.52º LUC teria de ser invocada na petição inicial destes embargos - em que, na realidade, se lhe não faz qualquer referência. Não a há, então, sequer aos factos em que poderia fundar-se - sendo já extemporânea a sua arguição em sede de recurso (3) .
- v., a este respeito, citando Abel Pereira Delgado, " Lei Uniforme sobre Cheques ", 2ª ed. ( 1997 ), 184, ARC de 3/12/98, CJ, XXIII, 5º, 34, 2ª col. Finalmente :

Em causa saber se o cheque ajuizado constitui, ou não, título executivo, revela-se despiciendo apurar se as partes se lhe referem enquanto título de crédito ou como documento particular, que igualmente é : vale, indubitavelmente a esse respeito o disposto no art.664º, relativamente ao qual cumpre, bem assim, deixar claro que, na realidade não obrigada a recorrente a qualificar juridicamente o que alegou, não deixava, a todas as luzes, de o estar no que respeita à indicação dos fundamentos da oposição deduzida à execução embargada.

Não sofre, em todo o caso, dúvida ter efectivamente ocorrido a recusa de pagamento prevista no art.40º LUC - esse o seu motivo, em vista de alegado extravio.

Não confundíveis questões com argumentos, também, pois, neste particular se não verifica a omissão de pronúncia prevenida na al.d) do nº1º do art.668º. Isto arredado :

Como esclarecem Lebre de Freitas e outros, " CPC Anotado ", 1º, 91-4., a menção expressa dos títulos cambiários antes constante do art.46º, al.c), CPC foi suprimida aquando da reforma do processo civil operada em 1995/96 por ter sido então considerada desnecessária.

Nada se mostra concretamente oposto na petição destes embargos à validade e eficácia da obrigação cambiária constituída pelo saque do cheque dado à execução.

De modo algum tal contrariando os ora invocados items 7º e 8º da contestação, é essa obrigação, - por definição, literal, autónoma e abstracta, independente da causa da sua assunção -, que constitui a causa de pedir da execução embargada (4) .

Desta sorte, constituindo o cheque ajuizado título executivo de harmonia com o predito art.46º, al.c), CPC, resulta clara a improcedência destes embargos.

Como elucidado no acórdão ora em recurso, que cita Miguel Teixeira de Sousa, " Acção Executiva Singular " (1998), 13, 14, 29, 63 e 64, apud Ac. STJ de 29/2/2000, BMJ 494/336-9., as pretensões abstractas mantêm no processo executivo essa característica da abstracção.

" Assim, emergindo a pretensão exequenda de um cheque, a pretensão cambiária é abstracta, isto é, é accionável independentemente da alegação e demonstração da causa da sua subscrição pelos sujeitos cambiários ". Prossegue, então, o acórdão recorrido :

Se o cheque, apresentado a pagamento no prazo de oito dias a contar da data da sua emissão, não for pago e se a respectiva recusa for verificada por um acto formal de protesto ou outro equivalente, o portador pode exercer os seus direitos de acção contra o sacador - artºs 29º, 40º e 45º LUC

O cheque é, pois, título executivo quando, como é o caso, o seu pagamento haja sido recusado dentro do prazo de oito dias subsequentes à data da respectiva emissão.

Já feita referência a essa recusa, fundada em alegado extravio, tanto basta para resolver a questão sub judicio. Já só, pois, incidentalmente se nota quanto segue :

Como dito no acórdão ora em recurso na esteira do observado em Ac.STJ de 11/5/99, CJSTJ, VII, 2º, 88 ( v. 90, 2ª col., e 91, 1ª col.) (5), que cita assim Ferrer Correia, " ninguém se obriga sem causa ". Tal assim mesmo quando assumida obrigação cambiária.

Daí, porventura, que, como observado no artigo 9º da petição destes embargos, o entendimento manifestado em acórdão desta Secção de 20/11/2003, CJSTJ, XI, 3º, 154 - II e mantido em voto de vencido de 9/3/2004 no Proc.nº 4109/03, citado no item 8º dessa petição, de que a emissão dum cheque não importa o reconhecimento de dívida do montante nele indicado ( v.157, 2ª col., 1º par.), não constitua, " até ver, a orientação da jurisprudência portuguesa ".

Representa, na verdade, entendimento divergente de doutrina e jurisprudência tradicionais e, mesmo, da mais moderna, que seguiu maioritariamente o parecer de Lebre de Freitas ( em " A Acção Executiva ", 2ª ed.. (1997), 53 ss e 133-134 ), transcrito no acórdão recorrido - cfr. Acs. STJ de 18 e de 30/1/2001, CJSTJ, IX, 1º, 71 e 85, e de Miguel Teixeira de Sousa (ob.cit., 68-69), em que bem assim se apoiou o de 29/1/2002, CJSTJ, X, 1º, 64. Esse entendimento, a que aderira igualmente Remédio Marques, " Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto " ( 2000 ), 72, foi repetido em Ac.STJ de 16/12/2004, CJSTJ, XII, 3º, 153 - I e II. E exige também a alegação da relação subjacente Ac.STJ de 31/5/2005, com sumário no nº 91 dos Sumários de Acórdãos Cíveis Tribunal organizada pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo, p.97, 2ª col.-I (6).

A orientação contrária, - minoritária, ao que se conclui -, adoptada no acórdão recorrido corresponde à de acórdão anterior desta mesma Secção e relator, com data de 27/9/2001 e sumário na Edição Anual de 2001 dos Sumários de Acórdãos Cíveis deste Tribunal organizada pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo, 267, 2ª col.

Julgou-se então, em suma, que, deduzida acção executiva fundada em título de crédito que como tal não possa ser atendido(7), mas que importe confissão de dívida, o art.458º C.Civ. presume a existência de causa, que, em vista dessa presunção, não tem de ser alegada, conforme arts.344º, nº 1º, e 350º, do mesmo compêndio legal, sendo em eventuais embargos que haverá que conhecer de quanto houver a opor, como entendido por Alberto dos Reis, " Anotado ", I, 167.

Teve-se então por preferível o que se mostra ser parecer, ainda, de Abrantes Geraldes, " Títulos Executivos ", Themis, ano IV ( 2003 ), nº7, 63 ( citado, bem que sem menção da página, na contestação deduzida nestes autos e na alegação do recorrente ) :

" É que, atento o regime prescrito no art.458º C.Civ. e a conexão existente entre o ónus da alegação e o ónus da prova, não se vislumbra fundamento para impor ao credor o ónus da alegação/invocação da causa da dívida reconhecida, porquanto só faz sentido impor o ónus da alegação àquele sobre quem recai simultaneamente o ónus da prova.

Atendendo a que a lei, face a uma promessa de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento de dívida, presume a existência da respectiva causa, o credor está exonerado do respectivo ónus da prova ( art.344º, nº1º, C.Civ.) e, assim, não faz qualquer sentido impor-lhe o ónus da alegação, totalmente despiciendo no contexto processual ".

Para melhor compreensão, retoma-se, no mais imediatamente relevante, o discurso do falado acórdão desta Secção de 27/9/2001, no Proc.nº 2089/01 :

Quando prescrita a acção cambiária correspondente, e, por consequência, sem a especial protecção que a lei concede a esses títulos de crédito, nem por isso os cheques deixam de constituir quirógrafos das dívidas tituladas por esse modo, isto é, de ser documentos particulares, dotados, nos termos dos arts.373º a 376º C.Civ., de valor probatório contra o seu signatário, demonstrativo da obrigação de pagamento do montante determinado dele constante (8) .

À pretensão abstracta ínsita no cheque sucede, desta sorte, a pretensão causal (9).

Tendo deixado de produzir efeitos como título constitutivo da relação cambiária que documenta, passa a valer como título certificativo da relação obrigacional subjacente (10).

É certo que, como próprio da sua natureza e fim, o cheque accionado, simples meio de mobilização de fundos, enuncia apenas a ordem de pagamento dada pelo sacador ao Banco sacado ( arts.1º e 2º LUC ) (11).

Não só, no entanto, constitui a fonte da obrigação cambiária a que a sua emissão dá lugar, ou faz nascer, como sempre se entendeu que " os cheques que não podem produzir efeitos cambiários são invocáveis como quirógrafos " - id est, títulos particulares - " da dívida que lhes deu origem " (12).

O que significa ou quer dizer que são meios próprios para o devedor reconhecer essa dívida, pre-existente, cuja existência confirmam ou certificam.

Tal, aliás, necessariamente assim em vista da sua estrutural, mais comum, e, assim, normal, função de meio de pagamento ( diferido, embora ) (13).

Está-se, na verdade, em crer aceite que o Direito se determina, em regra, pelo que normalmente ocorre ( id quod plerumque accidit ) ; não pelo que a tal constitua desvio ou represente disfunção (14.

Na sua função normal, a emissão de um cheque configura, sem dúvida, o reconhecimento da obrigação de pagamento, que, a par da assinatura do devedor, a al.c) do art.46º CPC estabelece como condição de exequibilidade dos documentos particulares.

Aplicável a esse reconhecimento o disposto no art.458º, nº1º, C.Civ., e visto que assim presumida a existência da relação fundamental, não se tornaria, sequer, necessário indicar a causa dessa obrigação - v., neste sentido, Fernando Amâncio Ferreira, " Curso de Processo de Execução " (1999), 25, nota 21 (15) .

Devidamente assinado o cheque ajuizado, e prima facie configurado, pois, o reconhecimento, que a al.c) do art.46º CPC igualmente exige, da obrigação pecuniária invocada, bem, desta sorte, se não vê como, em tal perspectiva, negar-lhes a exequibilidade que essa disposição legal concede.

Mesmo se, por não observados os arts.29º e 40º LUC ou prescrita a obrigação cambiária, sem valor enquanto título de crédito, o cheque ajuizado assume, no entanto, então, a natureza de mero quirógrafo, isto é, de simples documento particular.

A obrigação exigida nessa base deixa de poder ser a obrigação cartular ; mas pode sê-lo a obrigação causal, fundamental ou subjacente.

A acção instaurada em tal base pode, enfim, ser a acção ex causa, isto é, a acção de direito comum resultante do negócio subjacente que determinou a obrigação cambiária (16); e nada se vê que efectivamente obste a que essa acção seja a acção executiva.

Considerado, em tradicional entendimento, que a causa de pedir era, nesta espécie de acções, constituída pelo título ou documento em que se corporiza a obrigação exequenda, isto é, pelo título executivo (17), tem-se mais recentemente entendido que mesmo na acção executiva a causa de pedir é, em bom rigor, o facto jurídico fonte da obrigação accionada, não sendo aquele título ou documento mais que especial condição ( probatória, necessária e suficiente ) da possibilidade de recurso imediato a esta espécie de acções, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito (18) .

Daí a afirmada necessidade da menção de uma causa de pedir no requerimento inicial da execução (19).
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Vinha-se, deste modo, considerando que, não constando do título, a causa da obrigação exequenda deve, pelo menos, ser invocada no requerimento inicial da execução como causa de pedir da acção executiva, que pode ser impugnada pelo executado nos termos do art.815º, nº1º, CPC (20); e que, fundando-se a execução em título extrajudicial emergente de negócio jurídico, se o facto constitutivo dessa obrigação não constar do título executivo, o exequente deve indicar ( invocar ) esse negócio jurídico como facto constitutivo do seu direito e, assim, causa de pedir em sentido próprio, enquanto facto concreto que de acordo com as previsões das normas substantivas constitui a causa de aquisição do direito à prestação reclamada, a fim, até, de impedir o indeferimento liminar da petição executiva, atento o disposto no art.811º-A, nº1º, al.c), CPC, introduzido pela revisão da lei processual operada em 1995/96 (21).

É, por outro lado, incontroverso que, só de tal exceptuados os títulos de crédito, o negócio jurídico sem causa é nulo (22).

Mais se vinha, nessa conformidade, entendendo, no caso de título de crédito que, extinta a acção cambiária, perdeu essa sua natureza e se encontra, por isso, reduzido a simples documento particular, que se a causa da obrigação não constar do mesmo, e a relação subjacente for um negócio jurídico formal, esse documento não pode constituir título executivo, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento ou requisito essencial de tal título (23).

Quando dependente a validade da obrigação titulada da observância da forma escrita, bem, porém, não se vê que efectivamente dependa também de concreta referência à sua causa, que o art.458º, nº1º, C.Civ. presume existente.

Mesmo se formal o negócio subjacente, bem, designadamente, não se vê que, quando respeitada essa forma no reconhecimento da obrigação exequenda, a falta, no entanto, de menção no próprio título de crédito da causa da sua emissão deva, de facto, equivaler, uma vez degradado a simples documento particular, a verdadeira e própria inexistência dessa causa - cuja existência, no entanto, no predito preceito, a lei presume -, ou à sua nulidade.

Afigura-se, antes, que, mesmo nesse caso, de se tratar de negócio formal e de o título de crédito lhe não fazer concreta referência, como lição de Alberto dos Reis (24) , "extinta a obrigação cambiária (...), surgem as questões de saber se subsiste a obrigação causal e se, nas relações entre o exequente e o executado, o escrito está em condições de valer como título particular de obrigação a que deva atribuir-se força executiva. Tais questões podem discutir-se e resolver-se na oposição à execução ; da solução que lhes for dada dependerá o termo ou seguimento da acção executiva " (destaque nosso).

Expresso esse entendimento quando considerado que a causa de pedir era constituída, nesta espécie de acções, pelo título ou documento em que se corporiza a obrigação exequenda, isto é, pelo título executivo, menos ainda, se bem se crê, se justificaria contrariá-lo quando notado, como mais recentemente se vem fazendo, que, em bom rigor, mesmo na acção executiva, a causa de pedir é, antes, o facto jurídico fonte da obrigação accionada, mais não sendo aquele título ou documento, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito, que especial condição ( probatória, necessária e suficiente ) da possibilidade de recurso imediato a esta espécie de acções. Finalmente :

No plano da doutrina, a exigência da menção da causa da emissão do título de crédito no requerimento inicial da execução contraria, de óbvio modo, a noção clássica de título executivo como condição necessária, mas também suficiente, da execução (25).

Com referência ao preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, " o aspecto prático da questão " foi também vivamente lembrado em ARL de 27/6/2002, CJ, XXIII, 3º, 122.

Como quer que seja, esta é questão, afinal, arrumada - e ao menos para já, de vez - por via legislativa, no sentido da orientação maioritária referida, o que sucedeu com a redacção conferida ao art.810º CPC pelo DL 38/2003, de 8/3, cujo nº3º impõe ( "deve" ), na sua al.b), que o requerimento executivo contenha " exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo " - v., sobre esse preceito, Lebre de Freitas e outro, " CPC Anotado ", 3º (2003 ), 280-4.-281-c), e Lopes do Rego, " Comentários ao CPC ", 2º vol. (2004), 215.

Como já adiantado, porém, não passa quanto por último notado de obiter dictum, uma vez que se trata de questão só, afinal, de considerar subsidiariamente, e que se revela prejudicada pela solução desde logo alcançada no plano da obrigação cambiária.

Chega-se, na conformidade do exposto, à decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006
Oliveira Barros - Relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) V. Rodrigues Bastos. " Notas ao CPC ". III, 299-3. Fim ou objectivo das conclusões a enunciação abreviada - cfr. art.690º, nº1º, CPC - dos fundamentos ou razões dados por conducentes ao provimento do recurso, excede, manifestamente, esse objectivo a indicação do efeito pretendido se realmente alcançado esse desiderato.
(2) V. Alberto dos Reis, " Anotado ", V, 140, Rodrigues Bastos, " Notas ao CPC ", III, 193, Anselmo de Castro, " Direito Processual Civil Declaratório ", III, 141, Antunes Varela e outros, "Manual de Processo Civil", 2ª ed., 687, e, v.g., Ac.STJ de 14/4/99, BMJ 486/250-10.

(3) Destinados que são os recursos, por sua natureza e função, à revisão do decidido na instância recorrida ( revisio priri instantiae ).

(4) Na concepção tradicional, era, até, o próprio título que constituía a causa de pedir na acção executiva. V., a este respeito, Antunes Varela, RLJ 121º/148, como citado no Ac.STJ de 29/1/2002, publicado na CJSTJ, X, 1º, 66, 1ª col., adiante referido em texto.

(5) Bem que relativo a acção declarativa, como observado em Ac.STJ de 18/1/2001, CJSTJ, X, 1º, 72, a citação que segue é insofismavelmente pertinente também na acção executiva.
(6) Esse entendimento obteve, ainda, vencimento, bem que por maioria, em ARC de 16/4/2002, CJ, XXVII, 3º, 11 ss.

(7) O que já se viu não acontecer no caso dos autos, visto, nomeadamente, ter sido apresentado tempestivamente a pagamento e não se mostrar, na realidade, invocada a extinção da obrigação cambiária por prescrição, como teria de ser para poder ser tomada em consideração.
(8) ARL de 16/1/79, CJ, IV, 86-87.

(9) Remédio Marques, loc.cit. em texto.

(10) V., a este respeito, Antunes Varela e outros, " Manual da Acção Executiva ", 2ª ed., 79 e 92 (-32.) ss.

(11) O cheque é, na lição dos tratadistas, um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal ou autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada de pagar á vista a soma nele inscrita, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis - v: Ferrer Correia e António Caeiro, " Revista de Direito e Economia ", ano IV ( 1978 ), 457, citando doutrina italiana. As características da literalidade, abstracção, e autonomia são, naturalmente, próprias da relação cambiária, apenas, única regulada na LUC. É na perspectiva, ainda, da lei cambiária que Lopes do Rego, " Comentários ao CPC ", ( 1999 ), 69-III, sustenta que " o cheque incorpora uma ordem de pagamento e não o reconhecimento de um débito ".

(12) Ac.STJ de 10/4/59, BMJ 86/398.Em vista da própria noção ou definição de quirógrafo como título particular de dívida, e aceite que tal efectivamente são os cheques não apresentados atempadamente a pagamento, ou prescritos, tem-se por inexacta a seguinte proposição dos ARC de 27/6/2000 e de 6/2/2001, CJ, XXV, 3º,39, e XXVI, 2º, 29, 2ª col. : " Um cheque em si " ( ? ) " não constitui qualquer fonte de obrigações " ( nem cambiárias ? ) "nem é meio próprio para as reconhecer " ( porquê assim ?). Esta afirmação mostra-se também claramente contrariada no ARL de 16/1/79 citado na nota 8.

(13) Gomes da Silva, CJ, XI, 4º, 45 e nota 14 ; ARP de 13/10/87, CJ, XII, 4º, 236.

(14) Atípica a sua utilização como instrumento de crédito (como observa Nogueira Serens, in Revista da Banca, nº18,, 101 e 102 ), v., aliás, sobre os denominados " cheques de garantia ", ARL de 3/10/2000, CJ, XXV, 4º, 101, 1º par., de que resulta claro que mesmo estes importam o reconhecimento duma obrigação.
(15) Sabido ser o ónus da alegação moldado pelo ónus da prova, é o que resulta do art.350º do mesmo compêndio legal. Tem-se, pois, por igualmente inexacta a proposição dos ARC e loc. cits. na nota 13, que, por sua vez, se louvam em anterior ARC de 9/3/99, CJ, XXIV, 2º, 20 ( 1ª col, 2 últimos par.), segundo a qual só constando do título de crédito a razão da ordem de pagamento, isto é, a razão determinativa da emissão do cheque - o que nem, afinal, se coaduna com a sua natureza -, se pode demonstrar que se constituiu ou reconheceu uma obrigação pecuniária. Com efeito, é a própria lei, por via do disposto nos arts.350º e 458º, nº1º, C. Civ., que, até prova do contrário," atesta ou certifica a existência do direito do exequente ". A afirmação no mais recente desses arestos de que " não se podendo reconhecer que os cheques em causa reconheçam qualquer dívida pecuniária, é evidente que o estipulado no art.458º do C. Civil não pode ter aqui aplicação " contraria, se bem se entende, a própria noção ou definição de quirógrafo como título particular de dívida. Que os cheques não apresentados a tempo a pagamento ou prescritos, e que por isso perdem a especial protecção da lei cambiária, constituem-se degradam em - quirógrafos, isto é, em simples documentos particulares com a força ou eficácia probatória da obrigação fundamental, causal ou subjacente própria dessa espécie de documentos, nunca, enfim, terá anteriormente sofrido dúvida. A exposição do texto corresponde no essencial à desenvolvida em ARP de 23/9/99 no Proc.nº1022/99 da 3ª Secção, do mesmo relator deste, não publicado, e encontra apoio no Ac. STJ de 11/5/99, CJSTJ, VII, 2º, 89 ss, já referido.

(16) Abel Pereira Delgado, " Lei Uniforme Sobre Cheques ", 5ª ed. (1990), 220-221 e 223.

(17) Entendimento tradicional manifestado, v.g., no Ac.STJ de 26/11/83, BMJ 331/471-1ª, com apoio na lição de Alberto dos Reis, " Comentário ", I, 98, e de Lopes Cardoso, " Manual da Acção Executiva ", 3ª ed., 22, e em ARL de 17/ 12/76, CJ, I, 857-II. É, se bem se crê, nessa perspectiva que se funda a opinião de Manuel de Andrade manifestada nas suas " Noções Elementares de Processo Civil " ( 1976 ), 65.

(18) Antunes Varela, RLJ, 121º/147-148, e, nessa base, Acs. STJ de 28/5/91, BMJ 407/448-3.1., e de 27/9/94, CJ STJ, II, 3º, 70-V. Sobre a distinção conceitual entre as figuras do título executivo e da causa de pedir na acção executiva, v., ainda, ARC de 16/3/99, cit., CJ, XXIV, 2º, 20, 2ª col., e demais doutrina aí referida.

(19) José Maria Gonçalves Sampaio, " A Acção Executiva e a Problemática das Execuções Injustas " ( 1992 ), 67-68.

(20) Assim, referindo-se à hipótese, paralela da de falta de apresentação oportuna a pagamento, de perda da acção cambiária por prescrição da obrigação cartular, Lebre de Freitas, " A Acção Executiva ", 2ª ed., 54, e, citando-o, Ac. STJ de 18/1/2001 e de 30/1/2001, CJSTJ, IX, 1º, 71 e 85. No sentido, igualmente, da exigência da menção da relação fundamental no requerimento inicial da execução, v. Remédio Marques, ob. cit., 73, e por este mencionados ARP de 13 e 26/1 e 3/2/2000.
Como emerge do nº4º do art.498º CPC, entende-se por causa de pedir os concretos factos de que - independentemente da qualificação jurídica que deles as partes façam - efectivamente resulta a pretensão submetida a juízo - v., v.g., para melhor desenvolvimento, ARP de 15/12/94, CJ, XIX, 5º, 237-2. e 3.

(21) José João Baptista, " Acção Executiva ", 7ª ed. (1999), 127, nota 65, e 130, nota 67.

(22) Castro Mendes, " Direito Civil - Teoria Geral ", III, 677-678. Sobre causa do negócio jurídico, v. Vaz Serra, BMJ 83/13 a 15.

(23) Lebre de Freitas, " A Acção Executiva ", 2ª ed., 54 e 134, e, seguindo-o, Ac.STJ de 30/1/2001, CJSTJ, IX, 1º,86, 2.3.1.(2ª col., 1º período do último parágrafo ). V. também Lopes do Rego, " Comentários ao CPC ", (1999), 69-IV.

(24) "Anotado ", I, 167.

(25) V. Anselmo de Castro, " A Acção Executiva Singular, Comum e Especial ", 2ª ed. ( 1973 ), 14 ( nº4.).