Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4403
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: PREFERÊNCIA
Nº do Documento: SJ200701090044031
Data do Acordão: 01/09/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : Não tendo os AA. na petição inicial, alegado que, por força do regime de casamento, o contrato comercial celebrado entre os então proprietários e o A. marido, se comunicou à A., o problema do cumprimento das regras da preferência só se podiam colocar em relação ao A.- arrendatário. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -

Relatório

"AA" e mulher BB intentaram, no Tribunal Judicial de Alcobaça, acção ordinária contra CC e mulher DD, EE e marido FF, GG e marido HH, e II e mulher JJ, pedindo que lhes fosse reconhecido o direito de preferência na venda de um prédio urbano identificado no art. 1º da petição, pelo preço de € 102.750,00 com a consequente declaração de que são adquirentes desse prédio e a sua substituição aos RR. II e mulher e cancelamento de quaisquer registos efectuados com base na escritura respectiva.

Em suma, alegaram que, como arrendatários, exercem o comércio há mais de vinte anos no rés-do-chão do dito prédio urbano que foi vendido aos últimos RR., não tendo os primeiros RR., como proprietários do mesmo, lhes dado conhecimento da venda nem do projecto de venda.
Mais acrescentaram que o local foi dado de arrendamento ao A. marido e que a A. mulher ali exerce o comércio na qualidade de comerciante em nome individual.

Os RR. contestaram, defendendo a verificação da excepção da caducidade na medida em que deram conhecimento ao A. da intenção de venda e suas condições e este nada disse no prazo legal de oito dias. Mais disseram que a A. mulher não tem a qualidade de comerciante arrendatária, mas antes de trabalhadora por conta do marido.

Na réplica, os AA. vieram dizer que a comunicação para a preferência feita ao A. marido não tinha os elementos necessários sobre prazos e condições de venda e que foi omitida a notificação à mulher.

Em sede de saneador, a acção foi julgada procedente por via da consagração da defesa excepcional arguida pelos RR.

Com esta decisão não se conformaram os AA. que apelaram, com êxito, para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Foi a vez, então, de os RR. se mostrarem insatisfeitos e pedirem revista do acórdão revogatório.
Para o efeito apresentaram a sua alegação que fecharam com as seguintes conclusões:
1 - Não foi alegada nem provada a comunicabilidade do direito ao arrendamento à A. mulher em virtude de contrato de arrendamento para o exercício do comércio celebrado pelo A. marido.
2 - Não foi provada a data do casamento e respectivo regime de bens do casamento por parte dos A.A e o facto de serem casados nunca exprimiu vontade de se aproveitarem desse estado para alegarem a comunicabilidade do direito ao arrendamento.
3 - Só em alegações para o Tribunal da Relação de Coimbra é que os A.A. afirmam ser casados sem convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de adquiridos, em 1971, sendo, em consequência, o contrato de arrendamento comunicável à A. mulher.
4 - A A. mulher revela ter tido conhecimento de todo o projecto de venda ao mesmo tempo que o A. marido através da carta que enviou em 28 de Agosto de 2002 à Predial S. Bernardo.
5 - Foi violado no acórdão recorrido o art. 1652º do C. Civil e o art. 211º do C. de Registo Civil.
6 - Foi feito um errado e "muito maleável" entendimento do princípio dispositivo do art. 264º do CPC, designadamente do seu n°3, dando como aceites factos que não foram alegados e só podem ser provados por documento (data do casamento e regime de bens).
7 - O acórdão recorrido violou os limites impostos pelos arts. 664º e 264º do CPC.
8 - Os recorrentes alegam inúmeros factos na contestação conducentes a provar o conhecimento do projecto de venda por parte da A. mulher, apesar de não lhe ter sido enviada carta registada com aviso de recepção, como aconteceu com o A. marido.
9 - Tais factos foram totalmente ignorados no acórdão recorrido, no sentido de se ter dado cumprimento ao preceito do art. 416º do C. Civil, sendo violado tal preceito.
10 - O acórdão recorrido, mesmo aceitando a sua decisão - hipótese académica -, deveria ter ordenado a baixa dos autos à 1ª instância a fim de, em audiência de julgamento, se provar ou não a matéria controvertida (conhecimento ou não por parte da A. mulher da proposta de venda).
11 - Deveriam, no mínimo, os autos baixar ao Tribunal recorrido a fim de ser ordenada a ampliação da matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (arts. 729º, n°3 e 730º do C.P.C.).
12 - O acórdão recorrido é nulo nos termos e para os efeitos dos arts. 668, n°1, al. b e d), 716º, n°1 e 731º do C.P.C.
13 - Os A.A. litigam de má-fé, pelo que devem ser condenados em multa e indemnização aos recorrentes para reembolso dos prejuízos sofridos bem como despesas efectuadas, incluindo os honorários dos mandatários, a apresentar.

Em defesa da manutenção do aresto impugnado, apresentaram os RR. contra-alegações.

II -

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1 - Por escritura pública de 3/08/1981, KK, por si e na qualidade de representante dos filhos CC, EE e JJ (1º, 2ª e 3ª RR.) declarou dar de arrendamento ao Endereço-A para o comércio de electrodomésticos, louças, vidros, candeeiros, artigos de decoração e mobiliário e este declarou aceitar, a parte esquerda do rés-do-chão do prédio urbano sito na Endereço-B, Alcobaça, composto de casa de cave, rés-do-chão, 1º andar, sótão e logradouro, inscrito na matriz sob o art. 875º e descrito na Conservatória sob o nº 00720.
2 - O prédio supra referido pertence em comum, sem determinação de parte ou direito aos 1º, 2º e 3ºs RR..
3 - Por escritura pública de 16 de Outubro de 2002, os 1ºs a 3ºs RR venderam ao 4º R e este declarou comprar-lhes pelo preço de € 102.750, o prédio urbano composto de casa de cave ampla destinada a indústria de moagem de cereais, rés-do-chão direito e esquerdo, destinado a comércio, andar e sótão para habitação e logradouro, já atrás identificado.
4 - Em 6/12/2002, os AA efectuaram à ordem do processo o depósito de € 113.025,00, correspondendo o remanescente do preço declarado ao montante da sisa, depósito este que foi notificado aos RR..
5 - Os AA requereram a notificação judicial avulsa dos RR. para o exercício do direito de preferência na venda do prédio identificado em 1. e os RR. CC e mulher foram notificados em 9/10/02, os RR. JJ e marido em 19/9 09 e 23/09 de 2002 e os RR. EE e marido em 9/10/02.
6 - Em 14/06/02, por carta registada com aviso de recepção, a Predial S. Bernardo, em representação dos herdeiros de KK, notificou o A. marido na qualidade de locatário do rés-do-chão e cave do referido prédio urbano para declarar, no prazo de oito dias a contar da recepção do aviso, se pretendia preferir no contrato de compra e venda do imóvel projectado fazer ao 4º R. pelo preço de € 102.750,00, carta que foi recebida pelo A..
7 - Os RR. vendedores encarregaram a Predial S. Bernardo de promover a venda do imóvel referido em 1.
8 - Em 28/08/02, a A. BB comunicou à Predial S. Bernardo que tinha conhecimento do projecto de venda do prédio a favor da 4ª R. pelo preço de € 102.750,00 e que pretendia exercer o seu direito de preferência.
9 - Os AA. são entre si casados.
10 - Essa situação matrimonial remontava desde antes da celebração do contrato de arrendamento.
11 - A A. mulher trabalha e sempre trabalhou no locado.

III -

Quid iuris?

A principal questão que é colocada à nossa consideração pelos recorrentes é tão só esta: caducou ou não o direito à preferência invocado pelos AA.?

Só depois de obtida a resposta a esta questão se poderão equacionar todas as demais.
Analisemos, pois, desde já, a problemática da caducidade do direito de preferência.

No fundo, os RR. não se afastam, hic et nunc, de um milímetro em relação ao que vêm defendendo ab initi.
A resolução do problema passa, no caso presente, por saber, previamente, qual a verdadeira posição da A. em face do direito reclamado.
E isto porque, não tendo os AA. posto em crise, maxime por via do disposto no nº 3 do art. 684º-A do CPC, tudo o mais decidido pela Relação de Coimbra (saber se a notificação da preferência foi feita por pessoa com legitimidade para o efeito e saber se o conteúdo da mesma obedecia ao prescrito na lei), temos por assente que, na realidade, o A. foi notificado da preferência e não exercitou esse direito no prazo de oito dias contemplado no art. 416º, nº 2 do C. Civil.

Não se discute se, em tese geral, o arrendamento comercial, face à lei vigente e aplicável ao caso - RAU - se comunica ao cônjuge, mas apenas e só se, no caso concreto, isso foi alegado e de molde a permitir a conclusão de que a A., como arrendatária, não foi notificada, como deveria ter sido, para preferir.
Da resposta que vier a ser dada ao caso depende a sorte da lide.

Provado está que os AA. são casados um com o outro. E também que o casamento ocorreu em data anterior ao casamento (pontos 9 e 10 supra indicados).
Não nos preocupamos sequer em averiguar se tais factos estão devidamente provados, ou seja, se para se darem como provados não seria (como parece que é) necessário a juntar a respectiva certidão de casamento (cfr. art. 1º e 211º do CRC, e vide Lebre de Freitas, in A Confissão no Direito Probatório, pág. 151 e 152).
Centramos a nossa atenção sobre a questão da comunicabilidade do arrendamento, partindo do princípio de que está feita a prova de que os AA. são efectivamente casados entre si e que já o eram à data da outorga do contrato de arrendamento.

Ora, postas as coisas nos termos referidos, no ponto concreto que nos preocupa, o busílis está em saber o regime de bens pelo qual os AA. regem a sua vida matrimonial e isto pela singela razão que só nos regimes de comunhão é que é defensável a comunicabilidade do arrendamento não habitacional (in casu, arrendamento comercial).
Como resulta do facto enumerado sob o nº 1, o contrato de arrendamento foi outorgado apenas entre os então proprietários do locado e o A. AA.
Aceitando como certo que, então, os AA. já estavam casados um com o outro, interessa, então, saber se a posição locatícia se comunicou à A. não arrendatária.
E, como se poderia saber isso?
À luz das regras do direito processual civil vigente, a resposta só pode ser esta: através da alegação por parte dos AA. da verificação de tal facto, como resulta da al. d) do nº 1 do art. 467º do CPC.
E foi precisamente esta ideia que o Mº juiz da 1ª instância realçou ao negar aos AA. a consagração da sua tese por mor da verificação da excepção da caducidade: "no quadro factual delineado pelos autores, nada vem articulado a tal respeito, pelo que nenhum efeito jurídico se pode retirar".
Não foi esse o caminho seguido pela Relação: esta entendeu, louvando-se no art. 264º do CPC (o qual consagra o princípio do dispositivo no nosso direito adjectivo), dever presumir, face à comprovação do estado de casados dos AA., muito embora tenha reconhecido que tal "comunicabilidade" não foi alegada por estes.

Salvaguardado o muito respeito que temos pelas opiniões de outrem, não podemos deixar de expressar aqui a nossa total discordância com a tese advogada pela Relação.
Desde logo, porque o art. 264º do CPC (com a redacção dada pelo legislador de 95) só veio dizer que, o juiz pode (e deve) basear a sua decisão também nos chamados factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
Ora, por factos instrumentais entendem-se os que, por natureza, não carecem de alegação, antes se destinam a permitir alcançar a prova dos factos principais, sendo, por isso mesmo, oficiosamente considerados desde que resultem da discussão da causa.
Mas as coisas passam-se de modo diferente no que tange aos factos principais: aqui impera a ideia de respeito e responsabilidade das partes, incumbindo-lhes - a elas e só a elas - a alegação dos factos constitutivos do direito invocado (isto do lado do A.) ou dos factos modificativos, impeditivos ou extintivos (por banda dos RR.).
A falta de invocação de tais factos acarreta para a parte que deles deveria aproveitar a total improcedência das suas pretensões (absolvição do pedido no 1º caso, não consagração da excepção no 2º).
É para esta regra que o legislador chama a atenção do julgador no art. 664º do CPC: "...só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º".
Não tendo os AA. alegado (e, consequentemente, não provado) o regime de bens que regula a sua relação matrimonial), nunca podia o tribunal, de motu proprio, substituindo-se àqueles, transgredindo a regra de ouro do nosso processo civil (a regra que consagra o princípio dispositivo), presumindo que o mesmo era de comunhão.
É bem certo que a Relação, na sua qualidade de tribunal de instância, pode tirar presunções na sua tarefa de elaboração definitiva da base factual provada.
Mas se o pode fazer por via da sua competência própria, a verdade é que tal só lhe é permitido desde que a base da presunção esteja provada.
Ora, valha a verdade: nada nos autos permitia à Relação a extracção da presunção do que os AA. estão casados sob um regime de comunhão.
Ilegítima a presunção tirada pela Relação, por um lado, e falta de alegação de facto considerado como principal (porque integrador do direito alegado), por outro, são motivos suficientes para que a tese colocada na mesa da discussão pelo Tribunal da Relação de Coimbra não possa ter aqui aceitação.
Assim, não tendo os AA. na petição inicial, alegado que, por força do regime de casamento, o contrato comercial celebrado entre os então proprietários e o A. marido, se comunicou à A., o problema do cumprimento das regras da preferência só se podiam colocar em relação ao A.- arrendatário.
Ora, em relação a este ficou já decidido, que ele disse aos RR. a respeito da comunicação que estes lhe fizeram da venda, no prazo legal de oito dias.
Caducou, pois, o direito de preferência que foi invocado na petição.

Perante isto, outra sorte não podia ter a lide que não fosse a da absolvição pura e simples do pedido formulado pelos AA..
Esta conclusão, obriga a considerar prejudicado o conhecimento de todas as demais questões que os recorrentes suscitaram nas suas conclusões.
Apenas importa dizer que não vemos elementos suficientes para poder catalogar a lide dos AA. como sendo de má fé, tal como pretendem os recorrentes.

IV -

Decisão
Concede-se a revista.
Custas, aqui e nas instâncias, pelos AA..

Lisboa, 9 de Janeiro de 2007
Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro