Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
103/16.0T8TMR.C1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I- O ónus da prova dos factos que permitem concluir pela descaracterização de um acidente de trabalho cabe a quem a invoca, por se tratar de um facto impeditivo dos direitos do trabalhador.
II- Uma vez que o sinistrado transitou do exterior para o interior do coletor, onde veio a morrer, através da caixa de visita, “em condições e por causas que não se determinaram”, não é possível afirmar a descaracterização do acidente de trabalho, tanto mais que não é possível, sequer, ter como demonstrada a violação pelo trabalhador das condições de segurança.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 103/16.0T8TMR.C1.S2

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Relatório

AA, BB e CC propuseram contra as Rés, Demorvaur – Recolha e Tratamento de Resíduos, Lda (empregadora) e Companhia de Seguros Tranquilidade, SA (seguradora) a presente ação especial emergente de acidente de trabalho.

Pediram que as rés fossem condenadas, na medida das suas responsabilidades, a pagar:

1) Uma pensão anual e vitalícia, à autora, no valor de € 3.222,91, com inicio em ../01/2016, dia imediato ao da morte, calculada com base em 30% da retribuição do sinistrado, até perfazer a idade de reforma por velhice e com atualização calculada com base em 40% a partir daquela idade ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, nos termos do artigo 59º, n.º 1 alínea a) e artigo 75º n.º 1 da Lei 98/2009, obrigatoriamente remível;

2) A título de subsídio por morte, a quantia de € 5.333,68, para a autora, nos termos do artigo 65º, n.º 1 e 2 alínea b) da Lei 98/2006 de 4/9;

3) A título de subsídio por despesas de funeral, à autora, a quantia de € 1600, nos termos do artigo 66º, n.º 1 e 2 da Lei 98/2006 de 4/9;

4) As despesas de deslocações obrigatórias no valor de € 20;

5) À autora, a título de danos não patrimoniais sofridos, o montante de € 25.000;

6) A pagar a cada um dos 2º e 3º, autores, título de danos não patrimoniais sofridos, o montante de € 30.000, sendo € 15.000 a cada filho;

7) Os juros de mora calculados à taxa legal desde a data do vencimento, data do falecimento do sinistrado, até integral e efetivo pagamento.

O empregador contestou, pugnando pela improcedência da ação. Alegou, em resumo, que o acidente a que os autos se reportam se deve ter por descaracterizado, por conduta culposa do sinistrado que o ocasionou, e que os autores não preenchem as condições legalmente previstas para serem reconhecidos como beneficiários legais do sinistrado.

O segurador também contestou, pugnando igualmente pela descaracterização do acidente a que os autos se reportam, por conduta culposa do trabalhador que lhe deu origem.

O processo prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.

Os Autores interpuseram recurso de apelação.

O Tribunal da Relação ......, conhecendo do recurso por acórdão datado de 28 de junho de 2019, decidiu nos seguintes termos: «Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação..... no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença apelada.»

Novamente inconformados os Autores interpuseram recurso de revista, impugnando a decisão do Tribunal da Relação de rejeitar o recurso em matéria de facto por incumprimento dos ónus impostos ao Recorrente pelo artigo 640.º do CPC.

Foi proferido a 6 de maio de 2020 acórdão por este Supremo Tribunal de Justiça, concedendo a revista, e decidindo que deveria o Tribunal recorrido conhecer do recurso em matéria de facto e pronunciar-se face à matéria de facto que viesse a ser dada como provada sobre os requisitos jurídicos da descaracterização.

Em cumprimento do decidido, o Tribunal da Relação realizou novo julgamento.  Neste alterou a matéria de facto dada como provada e julgou a apelação procedente, condenando: i) as Rés a pagarem à Autora uma pensão anual e vitalícia de € 3222,91, atualizável nos termos legais, sendo € 2990,19 a cargo do segurador e os remanescentes € 232,72 a cargo do empregador, tudo a contar do dia seguinte ao do falecimento do sinistrado e acrescido dos juros de mora legais; ii) o segurador a pagar à Autora € 5553,68, acrescidos dos juros de mora legais e no mais, absolvendo as Rés.

Inconformado, o segurador interpôs recurso de revista com as seguintes Conclusões:

“1. Vem o presente recurso de revista interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ....., no processo n.º 103/16......., notificado a 28.09.2020, que julgou procedente o recurso de apelação interposto pela ali Recorrente, alterando a sentença que havia sido proferida em primeira instância, pelo Juízo do Trabalho ...... (J1), tendo alterado a matéria de facto dada como provada, tendo, consequentemente, vindo a decidir pela condenação da ora Recorrente Seguradoras Unidas S.A. no pagamento de diversas quantias peticionadas pela Autora.

2. O presente recurso de revista tem como objeto as seguintes questões concretas: a) DA VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO N.º 1 DO ARTIGO 662.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO; b) DA ERRADA SUBSUNÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO AO DIREITO - VIOLAÇÃO DO ARTIGO 14.º DA LEI 98/2009, 4 de setembro; c) DA VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NA ALÍNEA A) DO N.º 2 DO ARTIGO 662.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – RENOVAÇÃO DA PRODUÇÃO DE PROVA;

3. Começando pela VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO N.º 1 DO ARTIGO 662.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO,

4. Salvo o devido respeito, mal andou o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ...... ao concluir pela condenação da ora Recorrente, em virtude da alteração à matéria de facto dada como provada, na medida em que violou, expressamente, o disposto no n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.

5. Isto porque, a alteração da matéria de facto não impunha decisão diversa pelo Tribunal da Relação!

6. Mesmo admitindo a alteração da matéria de facto e, consequentemente, incluindo no elenco da matéria assente alguns dos pontos suscitadas pelos Recorridos, como ocorreu, certo é que tal alteração não afastava a descaracterização do acidente de trabalho e, por conseguinte, a absolvição da Ré Seguradora, aqui Apelante.

7. Aliás, o Tribunal da Relação ignorou totalmente, e sem qualquer justificação, alguns elementos probatórios “chave” para a descaracterização do acidente, designadamente a prova documental existente e, em concreto, o Relatório da Autópsia.

8. Pois que mesmo incluindo alguma da factualidade no leque da matéria de facto provada, certo é que o Tribunal não poderia nunca desviar-se daquilo que foram as conclusões médico-legais constantes do Relatório da Autópsia: e este documento afasta, por completo, e de forma inequívoca, uma “situação de transição involuntária ou acidental”, na medida em que o sinistrado não apresentava qualquer lesão traumática, nem sequer escoriações, nada, e isso mesmo resulta do relatório da autópsia, junto aos autos, sendo um elemento probatório que não suscita dúvidas.

9. Pelo que, seria impossível o sinistrado ter caído inadvertidamente para o solo de uma altura de 5 metros.

10. Note-se que a conclusão pela impossibilidade de queda acidental não é ilação do Tribunal de primeira instância: resulta, de forma cabal e inquestionável, da prova documental dos autos, isto é, do Resultado da Autópsia realizada ao sinistrado, elaborado em função da análise criteriosa e objetiva dos Senhores Peritos Médicos.

11. Assim, e considerando que o (errado) pressuposto para a descaracterização foi, justamente, a possibilidade aventada pelo Tribunal de se tratar de uma queda acidental – possibilidade manifestamente infundada e sobejamente contrariada pela prova documental junta aos autos – só pode a Recorrente concluir que o Acórdão em análise assenta numa clara violação do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.

12. De igual modo, da matéria de facto assente consta: O sinistrado introduziu-se voluntariamente na caixa de visita; Sem qualquer indicação expressa da entidade patronal nesse sentido; Sem recorrer aos EPI’s existentes e fornecidos pela entidade empregadora; Dessa introdução na caixa de visita não resultaram quaisquer lesões traumáticas (nomeadamente na cabeça, no pescoço e nos membros superiores e inferiores); A causa da morte foi asfixia por inalação de gases tóxicos;

13. Nesta medida, mesmo que a decisão da matéria de facto tenha sido alterada e, consequentemente, mesmo admitindo que seja dado como provado que as tampas das caixas de visita estavam abertas – o que apenas se coloca como mera hipótese de raciocínio mas que não se concebe nem se concede – certo é que nada nos autos comprova que o sinistrado tenha caído de forma acidental e involuntária na referida caixa de acesso ao coletor.

14. Ainda, ficou cabalmente comprovado nos autos que apenas as testemunhas EE e KK é que tinham as tarefas que implicavam introduzirem-se nas caixas de visita, ou seja, não fazia parte das funções do sinistrado introduzir-se nas referidas caixas.

15. Ora, se não recebeu qualquer indicação nesse sentido e, ainda assim, o sinistrado optou por se introduzir na caixa de visita, tal redunda, apenas e só, numa única conclusão: a de que o sinistrado violou e desrespeitou as regras de segurança existentes e de que a sua actuação foi voluntária e consciente e sem qualquer causa justificativa, verificando-se assim sobejamente preenchidos os pressupostos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei 98/2009 (Lei dos Acidentes de Trabalho), ou seja, a descaracterização do acidente de trabalho.

16. Pelo que, deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação ......, substituindo-se, por uma outra que absolva a Ré Seguradora, aqui Apelante do pedido, por se ter como descaracterizado o Acidente dos Autos.

17. Continuando, DA ERRADA SUBSUNÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO AO DIREITO - VIOLAÇÃO DO ARTIGO 14.º DA LEI 98/2009, 4 de setembro

18. A Recorrente entende que o Acórdão fez uma errada subsunção da matéria e facto ao direito, na medida em que, da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, e mesmo admitindo a alteração da decisão da matéria de facto, efetuada pelo Tribunal da Relação ......, tais factos correspondem justamente à descaracterização do acidente de trabalho.

19. Ficou comprovado nos autos – e tal ponto não foi suscetível de alteração da decisão da matéria de facto pelo Acórdão de que ora se recorre – que o sinistrado tinha conhecimento das regras de segurança e tinha conhecimento da obrigatoriedade – e existência no local – de equipamentos de proteção individual, concretamente máscaras para evitar a inalação de gases tóxicos (o que foi, infelizmente, a causa da morte do sinistrado- conf. Relatório de autópsia junto aos autos), preenchido o primeiro pressuposto do n.º 1 do artigo 14.º da LAT;

20. Inexistem lesões traumáticas no Sinistrado, e a causa da morte foi a inalação de gases tóxicos, e consta do relatório de autópsia, o que afasta totalmente a hipótese da transposição involuntária da caixa de visita pelo Sinistrado.

21. Ou seja, o facto de o sinistrado não apresentar qualquer lesão corporal, evidencia de forma clara e inequívoca que o mesmo se introduziu de forma voluntária e consciente na dita caixa de visita.

22. De igual modo, ficou demonstrado e consta dos factos assentes, inclusivamente pelo Tribunal da Relação que o sinistrado não recebeu qualquer indicação da sua chefia para elaborar qualquer trabalho na caixa e muito menos lhe foi dito para se introduzir na mesma.

23. Isto posto, só importa concluir que não existiu qualquer causa justificativa para que o sinistrado tenha violado, como violou, as normas de segurança, introduzindo-se de forma voluntária naquela caixa, sem o respetivo equipamento de proteção, nos termos do artigo 14.º n.º 1 aliena a) da Lei 98/2009, de 4 de setembro.

24. Nesta medida, o Acórdão do Tribunal da Relação ...... fez uma errada subsunção dos factos ao direito, violando, expressamente, o disposto no artigo 14.º da LAT, na medida em que se verificam preenchidos os pressupostos/requisitos para a descaracterização do acidente de trabalho em análise nos presentes autos.

25. Pelo que, deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação ......, substituindo-se, por uma outra que absolva a Ré Seguradora, aqui Apelante do pedido, por se ter como descaracterizado o Acidente dos Autos.

26. Ainda, DA VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NA ALÍNEA A) DO N.º 2 DO ARTIGO 662.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – RENOVAÇÃO DA PRODUÇÃO DE PROVA

27. Salvo o devido respeito, entende a ora Recorrente que o Tribunal da Relação ...... a ter dúvidas sobre o que disseram as testemunhas, o que apenas se equaciona, por mera hipótese de raciocínio e cautela do mesmo, mas que não se concebe nem se concede, deveria ter ordenado a repetição do julgamento para inquirição das testemunhas sobre as quais teve dúvidas.

28. Assim, violou o disposto na referida alínea a) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, na medida em que deveria ter ordenado oficiosamente a renovação da produção da prova.

29. Ainda que, se considere que o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto, incluindo na matéria de facto assente alguns pontos e alterando a redação de outros quando, em bom rigor, a prova produzida nos autos, concretamente a prova testemunhal, é manifestamente inequívoca quanto aos mesmos e, por esse motivo, não podiam tais pontos ser alterados.

30. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos alínea a) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, n.º 1 do artigo 662.º do código de processo civil, e o artigo 14.º n.º 1 da Lei 98/2009, 4 de setembro.

31. Deste modo, deve o Acórdão em crise, proferido pelo Tribunal da Relação ..... ser revogado, substituindo-se, por uma outra que absolva a Ré Seguradora, aqui Apelante do pedido, por se ter como descaracterizado o Acidente dos Autos.

Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências, muito doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso, em conformidade com as precedentes CONCLUSÕES, será feita a VERDADEIRA E SÃ JUSTIÇA!”

Também o empregador interpôs recurso de revista com as seguintes Conclusões:

“1. A violação das normas de segurança pelo sinistrado a que se refere o art.º 14.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 98/2007, de 04 de Setembro não exige um comportamento diretamente dirigido à tal violação;

2. Se fosse intenção do legislador exigir o dolo no que se refere à violação das normas de segurança por parte do sinistrado tê-lo-ia referido expressamente, o que não sucede;

3. O n.º 2 do citado artigo esclarece que sempre que não exista a causa justificativa aí referida para a violação das normas de segurança o empregador não tem o dever de reparação do acidente;

4. O sinistrado era conhecedor dos riscos que corria se entrasse no interior da caixa de visita sem utilizar o equipamento de proteção individual (máscara);

5. A morte do sinistrado foi devida, exclusivamente, à não utilização dos equipamentos individuais de proteção;

6. O cumprimento das normas de segurança no trabalho constitui uma exigência de interesse público sendo o empregador estritamente obrigado a assegurar condições que permitam tal cumprimento, por um lado, e cabendo ao trabalhador, por outro, observá-las com rigor sempre que tais condições se verifiquem, como verificavam no caso dos autos;

7. O sinistrado não atuava em cumprimento de ordens ou instruções do empregador nem no âmbito das funções que lhe estavam cometidas, não sendo exigível ao empregador a prova dos factos que motivaram a sua introdução no coletor através da caixa de visita;

8. As circunstâncias em que foi encontrado o sinistrado, conjugadas com a profundidade do local e a ausência de lesões traumáticas, não permitem a conclusão de que não é de “excluir uma situação de transição involuntária ou acidental do exterior para o interior do colector através da caixa de visita”, por contrária às regras da experiência;

9. Não sendo admissível a consideração de tal hipótese para fundamentar a não descaracterização do acidente;

10. O sinistrado deslocou-se do exterior para o interior nas circunstâncias em que o fez – sozinho e sem máscara de proteção - por sua livre vontade, conhecendo os riscos e sabendo que o não podia nem devia fazer;

11. O empregador colocou ao dispor do sinistrado todos os equipamentos indispensáveis à prevenção do acidente e este tinha os conhecimentos que lhe permitiam adotar comportamento adequado a essa prevenção e não o adotou, não integrando a sua conduta uma omissão desculpável.

12. Seria manifestamente injusto e incoerente com o regime legal que, nesta situação, o empregador tivesse de suportar a reparação do acidente – quando é certo que fez tudo para o prevenir.

13. A Ré empregadora logrou a prova dos factos que ilidem a presunção legal da existência de acidente de trabalho, provando:

a) Que cumpriu com as condições de segurança;

b) A violação dessas condições por parte do sinistrado;

c) Que essa violação foi voluntária, ainda que não intencional, e sem causa justificativa;

d) O nexo de causalidade entre a violação, o acidente e seu resultado;

14. Devendo ser dados por verificados os requisitos para a descaracterização do acidente estabelecidos no art.º 14º., n.º 1, al. a) da LAT,

15. Pelo que mal andou o douto acórdão recorrido que, não descaracterizando o acidente, condenou a ora Recorrente nos deveres inerentes à reparação.

16. Decidindo como decidiu, o douto acórdão violou as normas contidas no art.º 414.º do NCPC e no art.º 14.º, n.º 1, al. a), segunda parte e n.º 2 da LAT., fazendo errada aplicação do direito aos factos provados.

17. Pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por outro que, dando por provados os factos integradores da descaracterização do acidente, absolva a Ré do pedido.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença proferida em primeira instância. ASSIM FARÃO, VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA!”

A beneficiária apresentou contra-alegações a ambos os recursos de Revista.

O Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência dos recursos e da manutenção do Acórdão recorrido.

O Segurador respondeu.

Fundamentação

De Facto

Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:

“A) DD faleceu no dia 18 de janeiro de 2016.

B) À altura da morte trabalhava por conta e sob a autoridade da ré “Demorvaur – Recolha e Tratamento de Resíduos, Lda”, desde a data da sua admissão, em ……2014.

C) A autora é a viúva do sinistrado.

D) O falecido exercia as funções de ...... na ...... de Resíduos, auferindo a remuneração de € 600,00 x 14 meses + € 124,30 x 11meses de subsídio de alimentação + 81,31 x 12 meses, num total ilíquido de € 10.743,02.

E) A entidade empregadora tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a ré seguradora apenas pelo montante salarial anual de € 9.967,30 através da apólice nº ...........

F) O acidente deu-se na obra “......” localizada nos terrenos da empresa Curtumes F......, executados por uma equipa de 4 trabalhadores.

G) A equipa encontrava-se dividida em grupos de 2, sendo que um dos grupos trabalhava na margem direita da linha de água que atravessa o parque da empresa, e a outra equipa na margem oposta.

H) Na altura, o sinistrado encontrava-se a executar trabalhos para a sua entidade empregadora, numa empreitada de obras públicas que havia sido adjudicada a esta, com o nº …/2014, que consistia na remodelação de coletores do sistema de saneamento público do concelho de .......

I) Trabalho esse que consistia na realização de tarefa de pintura das caixas de visita, com material de tinta impermeabilizante.

J) O que fazia acompanhado do seu encarregado de frente, EE.

K) Depois das 13.30h (depois do almoço), e antes das 15.00h do dia em referência, dentro do seu horário normal de trabalho, o sinistrado vestido com um fato de plástico branco (vestuário de proteção química descartável), calçado com as galochas de borracha impermeáveis, equipamento utilizado para aceder a zonas húmidas, fechadas e enlameadas, pegou num balde com produto betuminoso negro dentro (tinta impermeabilizante – Inertol-F) e num pincel.

L) E, assim equipado, e levando consigo o balde, deslocou-se para a referida caixa de visita.

M) O sinistrado transitou do exterior para o interior do coletor, através da caixa de visita, em condições e por causas que não se determinaram, ficando imobilizado e inconsciente no fundo da mesma, na posição de cubito lateral direito (alterado pelo Tribunal da Relação)

N) No período da tarde, pelas 15.00h, o Diretor Técnico da frente de obra em causa, Eng FF, da empresa S......, S.A., em conjunto com o fiscal da obra, Sr GG, da empresa P......, deslocaram-se ao local com o objetivo de verificar as condições do parque da empresa M......, contígua à Curtumes F......, para avaliar as condições para concretizar a aplicação de betuminoso na zona de intervenção da obra.

O) No parque exterior da M......, o ramal de saneamento executado já estava quase concluído, com as tampas das caixas de visita ao coletor aplicadas em momento anterior àquele em que o sinistrado se acercou daquela através de cuja entrada acabou por transitar para o interior do coletor (alterado pelo Tribunal da Relação)

P) Faltava, pelo menos, concluir o pavimento de betuminoso (alterado pelo Tribunal da Relação).

Q) Ao aceder ao parque aperceberam-se, o eng. FF e o fiscal da obra Sr. GG que uma das duas tampas de visita ao coletor de saneamento se encontrava levantada.

R) (Eliminado pelo Tribunal da Relação).

S) Na aproximação da abertura depararam-se então com DD no interior do coletor.

T) Tendo logo o Técnico da Obra e o Fiscal da Empreitada referidos, pedido ajuda a dois outros trabalhadores que se encontravam nas imediações, os trabalhadores HH e JJ.

U) Tendo estes dois trabalhadores, equipados com arnês de segurança, e com máscaras com 2 filtros, equipamentos que foram buscar à viatura de apoio, descido à caixa de visita para proceder ao resgate de DD.

V) O Técnico da Obra, procedeu ao telefonema que acionou os meios de assistência, ligando para o serviço do INEM por volta das 15.10horas.

W) No momento em que os operacionais do INEM dos Bombeiros de ...... chegaram ao local, já DD se encontrava com a parte superior do seu corpo, fora da caixa de visita, com a cabeça e tronco à superfície, tendo a restante parte do corpo ainda dentro da caixa de visita.

X) Concluíram os elementos que constituíam a equipa do INEM que DD se encontrava em paragem cardio-respiratória.

Y) Apesar de terem procedido de imediato às manobras de Suporte Básico de Vida com utilização de Desfibrilhador Automático Externo, não foi possível a reanimação do DD.

Z) A viatura do INEM procedeu então ao transporte do corpo para a Unidade Hospitalar ....., onde chegou cerca das 15.59 horas, com a vítima já morta.

AA) DD sofreu as lesões constantes do relatório de autópsia junto, que foram causa direta e necessária da sua morte.

BB) A sua morte ocorreu por asfixia por confinamento/carência de ar respirável.

CC) Ao autor não foi detetado qualquer ferimento derivado/associado a uma lesão traumática.

DD) Para se aceder ao interior do coletor, a tampa de ferro que selava o ponto de visita ao referido coletor tinha de estar destrancada e retirada, tendo o sinistrado transitado do exterior para o interior do coletor, através da caixa de visita, em condições e por causas que não se determinaram; (alterado pelo Tribunal da Relação)

EE) Não foi encontrado qualquer tipo de ferramenta de trabalho próxima do falecido, no fundo da caixa onde foi encontrado inanimado.

FF) A caixa de visita do coletor é um espaço confinado, com cerca de 5 metros de profundidade.

GG) A empreiteira (S......, S.A. e E......, S.A.) tinha plano de segurança.

HH) DD transitou sozinho do exterior para o interior do coletor, através da caixa de visita, em condições e por causas que não se determinaram, situando-se essa caixa numa zona distinta daquelas em que se encontravam a trabalhar os restantes colegas de equipa (alterado pelo Tribunal da Relação)

II) DD não recebeu ordens para entrar no coletor pela caixa de visita (alterado pelo Tribunal da Relação).

JJ) A ré tinha equipamento de proteção individual, adequado, no local onde se encontrava a executar os trabalhos, nomeadamente máscara de proteção.

KK) DD teve formação sobre segurança em trabalhos em espaços confinados.

LL) Era conhecedor dos riscos que correria se transitasse do exterior para o interior do coletor, pela caixa de visita, sem o equipamento de proteção individual respiratória (máscara) (alterado pelo Tribunal da Relação)

MM) DD não deu conhecimento ao seu chefe de equipa de que iria entrar no coletor pela caixa de visita, nem esperou ou recebeu desse chefe qualquer indicação com tal relacionada (alterado pelo Tribunal da Relação)

NN) Transitando do exterior para o interior do coletor, através da caixa de visita, sem utilização de máscara e sem prévia monitorização da atmosfera no interior do coletor (alterado pelo Tribunal da Relação).

OO) A morte ocorreu por asfixia por confinamento, resultado de se encontrar em local não ventilado e sem máscara de proteção.

PP) (Eliminado pelo Tribunal da Relação)

QQ) Após a conclusão dos trabalhos era normal fechar a caixa de visita com tampa, que é em ferro.

RR) A caixa de visita estava implantada num terreno vedado com muros e um portão, faltando, pelo menos, pavimentar esse terreno e verificar a caixa de regulação de cauda (alterado pelo Tribunal da Relação)

SS) As tarefas de pavimentação e verificação referidas na alínea RR) nenhuma relação tinham com a caixa de visita onde foi encontrado o trabalhador e nas quais este não tinha qualquer intervenção (alterado pelo Tribunal da Relação)..

TT) O trabalhador constituía uma equipa de trabalho que trabalhava nas imediações daquele local, onde não compareceu, sem qualquer justificação e sem que alguém da equipa tivesse conhecimento dos motivos dessa ausência.

UU) Todos os trabalhadores, incluído o falecido, sabiam que sempre que se deslocassem ao interior das caixas de visita, deveriam monitorizar previamente a atmosfera de trabalho utilizando para o efeito o detetor de gases.

VV) E que, somente após confirmados parâmetros seguros, podem aceder ao seu interior, munindo-se sempre de máscara protetora adequada (distribuída individualmente aos trabalhadores que realizavam trabalhos em espaços confinados similares) e fazendo-se acompanhar do medidor de gases, de forma a que a medição fosse contínua durante a realização dos trabalhos.

WW) Foi a entidade empregadora quem efetuou o pagamento das despesas de funeral, no valor de € 1.630,00.”.

De Direito

O recurso de revista interposto pelo segurador coloca questões a respeito da decisão do Tribunal da Relação em matéria de facto, num primeiro momento, e a respeito da descaracterização do acidente de trabalho, num segundo momento. Por seu turno, o empregador, nas conclusões do seu recurso, coloca em causa também a decisão do Tribunal da Relação de não considerar descaracterizado o acidente de trabalho.

Começando pela decisão do Tribunal da Relação em matéria de facto, o segurador, invoca nas suas Conclusões que o Tribunal da Relação terá violado os números 1 e 2, alínea a) do artigo 662.º do CPC. Ora resulta inequivocamente do artigo 662.º, n.º 3 que das decisões da Relação previstas nos números 1 e 2 desse mesmo artigo 662.º não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Acrescente-se que a autópsia, mesmo que conste de um relatório, é uma perícia sujeita à livre convicção do julgador e não tem valor legal tabelado. E as regras do ónus da prova destinam-se, precisamente, a resolver situações de dúvida, como o Acórdão referido refere na sua fundamentação.

Passando à questão da descaracterização do acidente importa sublinhar que o ónus da prova da descaracterização, como facto impeditivo do direito do trabalhador ao ressarcimento do dano cabe, como este Tribunal tem afirmado reiteradamente, a quem a invoca (neste caso tanto o segurador, como o empregador a invocaram): conferir, por todos, o Acórdão proferido por este Tribunal a 03/03/2016, no processo n.º 568/10.3TTSTR.L1.S1 (GONÇALVES ROCHA), “cabe á entidade responsável pela reparação do acidente de trabalho o ónus da prova dos factos donde se possa concluir pela descaraterização do acidente de trabalho, por se tratar de facto impeditivo do direito invocado”.

Basta atender ao facto M) em que se diz que “o sinistrado transitou do exterior para o interior do coletor, através da caixa de visita, em condições e por causas que não se determinaram (…)” – mas ver também por exemplo, o facto DD) – para concluir que não se pode ter por descaracterizado o acidente. Com efeito, não se sabe, sequer, se o trabalhador entrou voluntariamente ou não no coletor. E mesmo que tenha entrado voluntariamente desconhece-se por que é que o fez. Nestas condições é impossível afirmar que a conduta do trabalhador descaracterizou o acidente.

Acrescente-se, em todo o caso, que é errada a afirmação feita no recurso do segurador de que não tendo sido provado que o trabalhador agiu em execução de ordens do empregador não haveria responsabilidade por acidentes de trabalho: a lei abrange também, por exemplo, serviços prestados espontaneamente de que possa resultar proveito económico para o empregador.

Uma vez que não se apuraram as condições e causas da transição do trabalhador do exterior para o interior do coletor tão-pouco se pode apurar se o trabalhador agiu com culpa e qual o grau de intensidade desta.

Também aqui há, no entanto, que acrescentar que a gravidade das consequências da descaracterização do acidente de trabalho (artigo 14.º da Lei n.º 98/2009) pressupõe um comportamento subjetivamente grave por parte do trabalhador. A letra da lei é o ponto de partida da interpretação da lei, mas a interpretação tem de atender a outros elementos, como o histórico e o sistemático. Atendendo a que boa parte dos acidentes de trabalho decorre da violação de regras de segurança entender que mesmo uma atuação com culpa leve acarretaria a descaracterização entraria em contradição com outros aspetos da norma que devem ser aferidos no seu conjunto, como, por exemplo a definição de negligência grosseira e de que a mesma, a existir, seja causa exclusiva do acidente. Em suma, e como se pode ler no Acórdão deste Tribunal proferido a 12/12/2017, no processo n.º 2763/15.0T8VFX.L1.S1 (RIBEIRO CARDOSO), “a descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (…) exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento”.

Mas, em todo o caso, reitera-se que não é possível, face aos factos apurados fazer qualquer juízo sobre a existência de um comportamento culposo do trabalhador e qual a sua gravidade já que se desconhecem as condições e as causas da transição do trabalhador do exterior para o interior do coletor.

Assim, o Tribunal da Relação limitou-se a retirar as consequências legais da distribuição do ónus da prova e do incumprimento desse ónus pelo segurador e pelo empregador (artigo 414.º do CPC), pelo que há que confirmar o Acórdão recorrido.

Decisão: Negadas as revistas

Custas pelos Recorrentes (na proporção de 1/10 pelo empregador e 9/10 pelo segurador)

Para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020 de 1 de maio) consigna-se que o Ex.mo Conselheiro Joaquim António Chambel Mourisco e a Ex.ma Conselheira Maria Paula Sá Fernandes votaram em conformidade, sendo o Acórdão assinado apenas pelo Relator.

Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator)