Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B497
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
CONFIANÇA JUDICIAL DE MENORES
ADOPÇÃO PLENA
FUNÇÃO JURISDICIONAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
CONSTITUCIONALIDADE
RECURSO DE REVISTA
Nº do Documento: SJ200703080004977
Data do Acordão: 03/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A decisão da matéria de facto pela Relação baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
2. A responsabilidade imputada ao Estado por informações de assistentes sociais, técnicos de reinserção social ou pareceres de magistrados do Ministério Público, instrumentais de decisões judiciais de confiança de menor e de adopção, não é susceptível de autonomização da imputada ao exercício da função jurisdicional.
3. Assume gravidade tutelada pelo direito para efeito de compensação por danos não patrimoniais a situação da mãe que representou a alegria do nascimento do único filho, encarado em termos da sua realização como mulher, que sofreu por ele ter sido adoptado plenamente contra a sua vontade, e, por isso deixou de poder tê-lo consigo e de vê-lo crescer e de o visitar.
4. O Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967 não prevê a responsabilidade civil do Estado por actos lícitos ou ilícitos no exercício da função jurisdicional.
5. A lei ordinária vigente não comporta a responsabilização do Estado por danos causados no exercício da função jurisdicional cível stricto sensu, e o artigo 22º da Constituição não é susceptível de a envolver, seja sob aplicação directa, seja por mediação do diploma mencionado sob 4 ou de normas estabelecidas pelo juiz ao abrigo do artigo 10º, nº 3, do Código Civil. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA", instaurou, no dia 8 de Abril de 2001, contra o Estado Português, no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, através de patrono por ela escolhido, com pagamento de honorários no quadro do apoio judiciário, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 500 000 000$, a título de indemnização por danos não patrimoniais resultantes do seu desgosto e sofrimento em virtude de haver decretada judicialmente a adopção plena do seu filho, BB, retirando-lho sem razões atinentes de facto e de direito, com base em informações, relatórios de assistentes sociais, de técnicos de reinserção social, de pareceres de magistrados do Ministério Público falsos ou ilegais.
Na contestação, excepcionou o réu a incompetência material do tribunal e a ilegitimidade passiva, e impugnou, contrapondo, por um lado, que relativamente ao dito menor havia uma situação de risco social, necessitando de uma medida de protecção e que isso justificou a adopção.
E, por outro, que as informações e os relatórios sociais tinham sido prestados com verdade, mediante visitas ao domicílio dos pais do menor, observação das condições em que eles viviam, entrevistas, informações médicas sobre a real situação do nascimento, desenvolvimento psico-afectivo e material do menor e dos seus pais, sem que algum interveniente tivesse abusado das suas funções.
O apoio judiciário na modalidade de patrocínio e de dispensa de pagamento de taxa de justiça e de outros encargos com o processo foi concedido à autora por despacho proferido no dia 8 de Maio de 2001.
Absolvido o réu da instância com fundamento na incompetência material dos tribunais da ordem administrativa por sentença proferida no dia 15 de Julho de 2002, o processo foi remetido à Vara Mista do Tribunal de Braga a fim de aí prosseguir nos seus termos.
No despacho saneador foi o réu declarado parte legítima, realizou-se a audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, no dia 20 de Abril de 2005, por via da qual o réu foi absolvido do pedido.
Apelou a autora, impugnando também a decisão da matéria de facto, e a Relação, por acórdão proferido no dia 26 de Outubro de 2006, negou provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- deve valorar-se o depoimento do desembargador CC e desvalorizar-se o depoimento das assistentes sociais;
- a recorrente e o pai do menor não punham, por acção ou omissão, em perigo a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação dele;
- as informações prestadas pelos serviços sociais de apoio não foram correctas nem verdadeiras, pois não versavam sobre a situação fáctica efectivamente existente, visando tão só atingir a adopção do menor;
- o pai nunca foi ouvido no processo de adopção, a recorrente só o foi sobre o requisito legal do consentimento, e nunca houve factos justificativos da confiança judicial do menor ou da dispensa de consentimento para adopção;
- foram impedidos de se pronunciar sobre os factos contra si deduzidos porque nunca receberam cópia de articulados, relatórios, informações ou exames e ela apenas foi confrontada com a cópia da decisão de adopção;
- a recorrente foi sempre mãe carinhosa a lutar pelo filho, deixou de beber por lhe ter sido assegurado que se o fizesse ser-lhe-ia entregue, e sempre ela e o pai lutaram por ele;
- as informações prestadas pelos serviços sociais de apoio não foram correctas nem verdadeiras, pois não versavam sobre a situação fáctica efectivamente existente, visando tão só atingir a adopção do menor, como ocorreu;
- decidiu-se erradamente com base na informação da Maternidade onde ocorreu o parto por lhe terem sido detectados problemas psíquicos, mas não foi avaliada por qualquer técnico com vista à decisão;
- o encaminhamento do menor para a adopção violou as regras processuais e substantivas do instituto em causa, e a indicação de família idónea só poderia ter como finalidade a aplicação de medida de protecção do menor e dos seus pais;
- a falta de fundamento da dispensa do consentimento implica a nulidade da decisão de adopção, não relevando as reais vantagens que para o adoptando advenham da adopção;
- não havia nem há fundamento que determinasse ou impusesse essa adopção, tendo-se feito errada aplicação do direito aos factos, e a recorrente sofreu e sofre enorme desgosto, perturbação e ansiedade por falta do filho único que lhe foi brutalmente subtraído;
- a adopção do menor foi motivada por erro grosseiro de pareceres e informações gratuitas e intencionalmente vertidos nos autos, sem o mínimo de correspondência com a realidade, tendo-se feito errada aplicação do direito aos factos;
- foram violados os artigos 341º, 346º,1918º e 1978º do Código Civil, e 3º e 517º do Código de Processo Civil, 12º, 18º, 19º, 26º, 146º, 157º, 166º, 194º-A e 198º da Organização Tutelar de Menores, os Decretos-Leis nºs 190/92 e 185/93 e os artigos 67º, 68º e 69º da Constituição.
Respondeu o réu, em síntese de conclusão:
- a decisão da 1ª instância não merece reparo;
- o recurso deve ser rejeitado porque reedita as questões levantadas no recurso de apelação;
- as questões reeditadas estão fora do âmbito do recurso de revista porque só respeitam à decisão da matéria de facto.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. BB, nascido no dia 20 de Julho de 1994, é o único filho da autora, nascido quando ela tinha trinta e nove anos de idade, e de DD, quando ele tinha setenta e dois anos de idade e com ela vivia.
2. DD tinha outros filhos, os quais, com excepção de um, por razões sucessórias, viram com desagrado o nascimento do irmão.
3. A autora viu no nascimento do filho a sua realização como mulher, e, nos momentos e nos dias que se seguiram ao seu nascimento, mostrou-se preocupada com ele e com interesse em acompanhar o seu internamento.
4. BB corria então risco se não fosse afastado da mãe e do pai.
5. No dia 3 de Agosto de 1994, o Tribunal de Menores do Porto decidiu confiar provisoriamente BB ao Centro Regional de Segurança Social, para que providenciasse pelo seu encaminhamento, vindo o mesmo a ser colocado no Centro Social Padre David, onde esteve até 22 de Dezembro de 1995, data em que foi entregue ao casal com quem ainda se encontra.
6. À data do nascimento do seu filho, tinha a autora sequelas de alcoolismo, e consumia, ainda, bebidas alcoólicas em excesso, e procurou tratamento de desintoxicação, em Nogueiró, sem sucesso.
7. A autora e DD visitavam o filho, e aquela representou as alegrias que o nascimento de um filho produz e potencia, sabe que ele foi adoptado, sofre por via de tal adopção, deixou de poder tê-lo consigo e de vê-lo crescer e de o visitar.
8. Os técnicos da segurança social puseram a autora ao corrente da situação do menor, foi ouvida nos processos tutelar e de adopção, pretendeu reavê-lo e opôs-se à sua adopção.
9. As aludidas informações e relatórios sociais foram efectuados com base, quer em visitas ao domicílio dos pais do menor, onde eram observadas as condições em que viviam, quer em informações prestadas pela filha mais velha do pai do menor, de nome EE, quer em entrevistas aos pais do menor, quer na informação social do Hospital Júlio de Matos, onde o menor nasceu, quer no relatório médico do Centro de Acolhimento Infantil de Ruílhe, quer no relatório médico-psicológico do Hospital de São Marcos, de Braga.
10. Por sentença proferida no dia 18 de Maio de 1995 pelo Tribunal da Comarca de Braga foi regulado o exercício do poder paternal relativamente a BB, ficando confiado ao Centro de Acolhimento Infantil de Ruilhe, Braga.
11. Por sentença proferida no dia 30 de Junho de 1998, proferida pelo Tribunal da Comarca de Guimarães, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto por acórdão proferido no dia 1 de Junho de 1999, foi BB adoptado plenamente por FF e GG.
12. Constam nos autos os documentos de folhas 46 a 59 - informações sociais, relatório social e relatório médico-psicológico - o assento de nascimento do menor nº 1419 de folhas 72, o assento de nascimento do menor, nº 1148, de folhas 73, a certidão judicial de folhas 116 e seguintes extraída do processo tutelar nº 10027895.7TMBRG, da 2ª Secção do Tribunal de Família e Menores de Braga, a informação social de folhas 117 a 121 da técnica do serviço social da Maternidade Júlio Dinis, a informação social de folhas 127 e 128 do Centro Regional da Segurança Social, a informação social de folhas 140 do mesmo Centro, o despacho judicial cuja cópia consta a folhas 141, a informação social que consta de folhas 142 e 144, o despacho judicial de folhas 153, a certidão judicial extraída dos autos de adopção e o relatório social de folhas 162.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir do recorrido a pretendida compensação no montante de € 2.493.989,49.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões da recorrente e do recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação do objecto do recurso;
- pode ou não sindicar-se a decisão da matéria de facto proferida pela Relação?
- enquadramento jurídico do litígio em causa na perspectiva da causa de pedir e do pedido;
- assumem ou não relevo para efeito de compensação os danos não patrimoniais sofridos pela recorrente?
- ocorrem ou não no caso vertente os pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual?
- o direito de indemnização derivado de dano causado pelo exercício da jurisdição cível;
- tem ou não a recorrente o direito a compensação por danos não patrimoniais?
- a interpretação da lei nos termos referidos envolve algum vício de inconstitucionalidade?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela delimitação do objecto do recurso.
O objecto do recurso é, na espécie, delimitado pelas conclusões de alegação formuladas pela recorrente (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código Civil).
A recorrente invocou, nas conclusões de alegação, o demérito das sentenças e do acórdão da Relação de que derivou a adopção plena por outrem do seu filho.
As referidas decisões transitaram em julgado, pelo que não pode, nesta sede, ser sindicado o seu mérito em jeito de reapreciação, como se elas próprias fossem objecto deste recurso (artigos 676º, nº 1 e 677º do Código de Processo Civil).
Assim, o objecto do recurso circunscreve-se à problemática da responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos não patrimoniais decorrentes do exercício da função jurisdicional na área cível lato sensu.

2.
Atentemos agora na sub-questão de saber se este Tribunal pode ou não sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
A recorrente impugnou para a Relação a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância.
A Relação concluiu no sentido de não haver fundamento legal para a alteração daquela decisão, sob o argumento de o juiz ter valorado, quanto aos factos impugnados, correcta e prudentemente a prova, e que se não evidenciava erro notório na sua apreciação que justificasse a sua alteração
O regime geral nesta matéria é o de que, salvo casos excepcionais legalmente previstos, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que este Tribunal aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode apreciar o erro na apreciação das provas e ou na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova formado pela Relação sobre a matéria de facto quando ela tenha dado como provado algum facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Como a recorrente impugna a decisão da matéria de facto proferida pela Relação com base em erro de apreciação de meios de prova de livre apreciação judicial, não pode este Tribunal sindicar o juízo probatório em que ela assentou.

3.
Vejamos agora o enquadramento jurídico do litígio em causa na perspectiva da causa de pedir e do pedido.
A recorrente põe essencialmente em causa na acção declarativa de condenação que intentou contra o Estado, por um lado, a sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Braga, no dia 18 de Maio de 1995, que regulou o exercício do poder paternal relativamente ao filho e o confiou ao Centro de Acolhimento Infantil de Ruilhe.
E, por outro, a sentença do Tribunal da Comarca de Guimarães, proferida no dia 30 de Junho de 1998, que declarou a adopção plena do filho por outrem, e o acórdão da Relação do Porto de 1 de Junho de 1999 que confirmou aquela sentença.
A responsabilidade que a recorrente imputa ao Estado por via das informações, relatórios ou pareceres da autoria de assistentes sociais, de técnicos de reinserção social ou de magistrados do Ministério Público não pode ser autonomizada da responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional.
As mencionadas informações, relatórios ou pareceres, formulados pelas entidades referidas pela recorrente, limitaram-se, naturalmente, a auxiliar na formação das decisões judiciais acima referidas, da plena responsabilidade dos respectivos órgãos decisores.
Por isso, só aparentemente a causa de pedir da acção se enquadra na responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos ou omissões ilícitos praticados no âmbito da função administrativa.
Assim, a conclusão é no sentido de que a causa de pedir em que a recorrente fundamentou o pedido de compensação por danos não patrimoniais que formulou no confronto do recorrido se circunscreve à responsabilidade civil extracontratual por ilícito exercício da função jurisdicional.

4.
Atentemos agora sobre se a recorrente experimentou danos não patrimoniais relevantes para efeito de compensação.
Um dos pressupostos do direito de indemnização no quadro da responsabilidade civil é a existência de dano.
O dano é a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo direito, patrimonial se tiver conteúdo económico, não patrimonial se o não tiver, ou seja, conforme for ou não susceptível de avaliação pecuniária.
Os danos não patrimoniais não atingem, pois, bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza.
O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória.
Expressa a lei que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, aferida em termos objectivos, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil).
No caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (artigo 494º do Código Civil).
As circunstâncias a que, em qualquer caso, o artigo 496º, nº 3, manda atender são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
Estamos no caso vertente perante um quadro de sofrimento psíquico particularmente intenso, pelo que o dano envolvente, pela sua considerável gravidade, aferida em termos objectivos, merece, para efeito de compensação, a tutela do direito.

5.
Atentemos agora se ocorrem ou não no caso espécie os restantes pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual.
Independentemente do direito substantivo aplicável ser o administrativo ou o civil, os pressupostos da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil do Estado por danos causados a terceiros pelos seus órgãos ou agentes, além do dano a que acima já se fez referência, envolvem, em regra, a acção ou a omissão ilícita, a culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (artigos 2º do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, 483º, nº 1 e 563º do Código Civil).
A ilicitude da acção ou da omissão - contrariedade à ordem jurídica - é susceptível de derivar da violação de um direito subjectivo ou de uma disposição destinada a proteger interesses alheios.
No conceito de culpa lato sensu - nexo de imputação ético-juridica do facto ao agente - demarca-se, por um lado, a culpa consciente e a culpa inconsciente - omissão da diligência exigível - a primeira quando o agente consciencializou a possibilidade de o ilícito ocorrer e confiou na sua não ocorrência e, só por isso, não agiu como devia e podia, e a última quando o mesmo nem sequer confiou na possibilidade da verificação do ilícito.
Envolve um juízo de censura, apreciado em concreto, face à acção ou omissão, segundo a diligência de um bom pai de família (artigos 4°, nº 1, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967 e artigo 487°, nº 2, do Código Civil).
Tal como se referiu na sentença proferida no tribunal da primeira instância, pela natureza das coisas, podem os juízes, nas suas decisões jurisdicionais, incorrer em erro, quer de direito quer de facto, porque são seres humanos e o erro é próprio da natureza de um qualquer.
Mas o ónus de prova da culpa que imputou a quem subscreveu as sentenças e o acórdão acima referidos incidia na recorrente (artigos 342º, nº 1 e 487º, nº 1, do Código Civil).
Ora, os factos provados revelam, por um lado, que o tribunal em acção de regulação do poder paternal relativo ao filho da recorrente o confiou a determinada instituição e, pouco depois, decretou a sua adopção plena, com dispensa do seu consentimento e contra a vontade dela.
Todavia, os factos não revelam que algum dos juízes dos tribunais da primeira instância ou da Relação tivesse consciência de que decidia ou votava a decisão contra o sentido dos factos provados ou das normas aplicáveis.
Assim, na perspectiva seguida pelas instâncias, de que o Estado é sujeito da obrigação da indemnização pelos danos causados no exercício da função jurisdicional cível, não há fundamento para alterar o acórdão recorrido.
Com efeito, os factos provados não revelam a ilicitude do decidido nem a culpa dos decisores na prolação das referidas decisões, ou seja, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, tal como foi delineada pela recorrente.
Todavia, conforme se referirá no ponto seguinte, ainda que a recorrente tivesse provado todos os factos integrantes dos pressupostos gerais da obrigação de indemnização, não poderia proceder a sua pretensão.

5.
Vejamos agora a estrutura do direito de indemnização derivado de dano causado pelo exercício da jurisdição cível.
No acórdão recorrido considerou-se, por um lado, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos ilícitos de gestão pública praticados no exercício da função jurisdicional estava prevista no artigo 2º do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967.
E, por outro, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado derivada de ilícito praticado por magistrados depende da sua acção ou omissão com dolo ou culpa grave.
Acrescentou-se, ademais, que o erro de direito cometido por juízes no âmbito da jurisdição cível só releva como fundamento da responsabilidade civil do Estado se for grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, de tal modo grave que torne a decisão judicial claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.
Seguiu-se, por isso, o que tem sido considerado pela maior parte da doutrina e da jurisprudência, embora em quadro de não consenso, certo que não é uniforme o resultado da determinação do sentido prevalente do quadro normativo de referência.
Enquanto uns entendem que o artigo 22º da Constituição é aplicável aos danos decorrentes de actos ou omissões no exercício da função jurisdicional, outros consideram o contrário.
Os que entendem no sentido afirmativo divergem, porém, sobre se o mencionado normativo constitucional é ou não directamente aplicável, ou seja, se carece ou não de lei concretizadora.
E os que entendem que a determinação da indemnização pelos referidos danos depende de lei ordinária concretizadora divergem sobre se esta última é o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, ou aquela que o juiz estabelecer como se tivesse de legislar com respeito dos princípios do nosso ordenamento jurídico, nos termos do artigo 10º, nº 3, do Código Civil.
E, no plano da culpa, tem sido decidido, a maioria das vezes, que o erro de direito cometido por juízes no âmbito da jurisdição cível só releva como fundamento da responsabilidade civil do Estado se reunir as características acima mencionadas que o acórdão recorrido acolheu.
E, algumas vezes, foi decidido que a diligência no exercício da judicatura se traduz no cumprimento, em termos de cidadão médio, em conformidade com as suas capacidades pessoais, dos deveres da profissão definidos de acordo com o padrão comum de actuação do corpo judicial.
Mais recentemente, foi o referido artigo interpretado no sentido de assumir a função de garantia do direito de indemnização das entidades públicas por via da consagração na lei fundamental do regime já constante da lei ordinária já vigente, designadamente no Decreto-Lei nº 48 051, de 22 de Novembro de 1967 (Ac. do Tribunal Constitucional, nº 92/2003, de 13 de Abril de 2004).
Perante este quadro de divergência doutrinal e jurisprudencial, importa atentar no que, nesta matéria, resulta da lei.
Sabe-se que os magistrados judiciais são responsáveis pelos danos causados, além do mais, quando tenham sido condenados por crime de peita, suborno, concussão ou prevaricação ou de denegação de justiça, e, por via de regresso do Estado, com fundamento em dolo ou culpa grave (artigos 5º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 1083º do Código de Processo Civil).
O artigo 22º da Constituição refere-se à responsabilização solidária do Estado e das demais entidades públicas com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, naturalmente se, nos termos da lei ordinária, os últimos estiverem sujeitos ao dever de indemnizar.
De qualquer modo, considerando o seu elemento literal - responsabilidade solidária do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público com os seus órgãos, funcionários ou agentes - não se pode concluir no sentido da abrangência dos danos causados no próprio exercício da função jurisdicional.
Com efeito, essa responsabilização do Estado, consta no nº 5 do artigo 27º do mesmo diploma, com o âmbito específico nele definido, ou seja, no quadro da jurisdição penal, dada a gravidade do dano a que se reporta, de qualquer modo nos termos constantes na lei ordinária, ou seja, no Código de Processo Penal.
Acresce que a lei ordinária ainda não densificou o conteúdo do artigo 22º da Constituição, ou seja, não regulou a efectivação do direito de indemnização nos seus aspectos adjectivos e substantivos, incluindo a caracterização do dano indemnizável e das suas causas ou pressupostos específicos.
Com efeito, não é à Constituição, mas sim à lei ordinária que incumbe a delimitação dos pressupostos substantivos e adjectivos da indemnização por danos causados no exercício da função jurisdicional.
Ademais, o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, reporta-se à responsabilidade civil por actos lícitos e ilícitos no âmbito da função administrativa do Estado, e não à responsabilidade civil por actos lícitos ou ilícitos no âmbito da actividade jurisdicional.
Inexiste, por isso, fundamento legal para operar a aplicação do disposto no mencionado diploma para superar a falta de concretização por via da lei ordinária do referido normativo constitucional.
Com efeito, a função jurisdicional do Estado, enquanto titular da administração da justiça, ou seja, a de seleccionar, interpretar e aplicar as normas envolvidas pelos factos que são submetidos à apreciação dos tribunais, diverge da função administrativa propriamente dita.
E não se trata de uma lacuna jurídica, superável por via da aplicação do disposto no artigo 10º, nºs 1 e 3, do Código Civil, mas de lacuna de motivação político-legislativa, apenas susceptível de ser superada por via do legislador ordinário.
Na realidade, em sede de obrigação de indemnização do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional, em concretização dos normativos constitucionais dos artigos 27º, nº 5 e 29º, nº 6, da Constituição, o que decorre da lei ordinária é apenas o que consta nos artigos 225º e 462º do Código de Processo Penal, que nada têm a ver com o caso vertente.
Por fim, importa salientar não resultar do nosso ordenamento jurídico qualquer norma que permita a interpretação de que a responsabilidade civil do Estado por erros cometidos no exercício da função jurisdicional apenas pode derivar da grave violação da lei por dolo ou negligência grosseira.
Em consequência, ainda que a recorrente tivesse provado os factos integrantes dos pressupostos gerais da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, não poderia proceder a sua pretensão no confronto do recorrido.

7.
Atentemos agora na sub-questão de saber se a interpretação da lei ordinária pela Relação nos termos em que o fez envolve ou não algum vício de inconstitucionalidade.
A recorrente invocou a violação pela Relação do disposto nos artigos 67º a 69º da Constituição.
Os referidos artigos referem-se, respectivamente, à família, à paternidade e à maternidade e à infância.
A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros (artigo 67º, nº 1).
Os pais e as mães têm direito à protecção a sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país, e a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes (artigo 68º, nºs 1 e 2).
As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais constituições (artigo 69º, nº 1).
O acórdão recorrido não se pronunciou directamente sobre alguma relação familiar prevista nas mencionadas normas constitucionais, certo que o seu objecto se consubstanciou na responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos causados no exercício da função jurisdicional.
E não se vislumbra que no acórdão recorrido se tenham interpretado as normas da lei ordinária aplicadas em termos de infringir as mencionadas normas constitucionais ou algum dos princípios nelas consignado.

8
Vejamos, finalmente, a síntese para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Face aos termos do pedido e da causa de pedir, o litígio enquadra-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual decorrente de decisões jurisdicionais, certo que as acções e as omissões que a recorrente imputa a assistentes sociais, técnicos de reinserção social e magistrados do Ministério Público são no que concerne àquelas meramente instrumentais.
O Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, reporta-se à responsabilidade civil por actos lícitos e ilícitos no âmbito da função administrativa do Estado, e não à responsabilidade civil por actos lícitos ou ilícitos no âmbito da actividade jurisdicional.
Não ocorrem no caso vertente os pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual concernentes à ilicitude da acção e ou da omissão e à culpa, e a lei ordinária ainda não prevê a responsabilidade civil extracontratual do Estado derivada de decisões judiciais proferidas no âmbito da jurisdição cível.
A recorrente, por virtude da execução da sentença de adopção plena relativa ao seu único filho, experimentou sofrimento psíquico com relevo jurídico no quadro dos danos não patrimoniais, mas não tem direito a exigir a correspondente compensação no confronto do Estado.
A Relação não infringiu qualquer das normas da lei ordinária invocadas pela recorrente.
A interpretação da lei ordinária pela Relação no sentido em que o foi não envolve qualquer vício de inconstitucionalidade.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas relativas ao recurso (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como a recorrente beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, tendo em conta o disposto nos artigos 15º, alínea a), 37º, nº 1 e 54º, nºs 1 a 3, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que seja condenado no pagamento das referidas custas.
Considerando que a recorrente também beneficia do apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários ao respectivo patrono que escolheu - o Advogado HH - tem este direito a percebê-los à conta do erário público (artigo 15º, alínea c), da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro).
Ele tem, por isso, por virtude de ter formulado o requerimento de interposição do recurso de revista e da apresentação do instrumento de alegação, a perceber honorários no montante de € 200,25 (nº 1.3.1. da Tabela aprovada pela Portaria nº 150/2002, de 19 de Fevereiro.

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e fixam-se os honorários devidos ao Advogado HH no montante de duzentos euros e vinte e cinco cêntimos.

Lisboa, 8 de Março de 2007.

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís