Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1768/21.6T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: SUB-ROGAÇÃO LEGAL
TERCEIRO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
Data do Acordão: 04/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Para haver sub-rogação legal (art. 592º do CCivil), não basta que um terceiro cumpra uma obrigação alheia. É ainda necessário que o faça numa de duas situações: ou porque garantiu (previamente) o cumprimento e pretende evitar a execução da garantia, ou porque tem interesse directo, que terá de ser patrimonial, na satisfação do crédito.

II - Por acto do devedor, a prescrição pode ser interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular (art. 325º, nº1 do CC).

III – A exigência do reconhecimento perante o titular do direito justifica-se como forma de assegurar a intenção inequívoca do devedor em reconhecer o direito, podendo ser tácito, desde que resulte de factos que inequivocamente o exprimam.

IV – Vale como reconhecimento do direito perante o respectivo titular a descrição da dívida na Informação Empresarial Simplificada (IES) da sociedade devedora, apresentada anualmente nos termos do DL 8/2007 de 17.01.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Agromais – Entreposto Comercial Agrícola, CRL”, intentou a presente ação contra “Medway Terminals, S.A.”, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €1.701.972,11, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, com referência aos últimos cinco anos e até integral pagamento, os quais já somam €340.580,94.

Alega em suma que, na qualidade de acionista da sociedade TVT - Terminal Multimodal do Vale do Tejo, S.A., mais tarde incorporada na Ré por efeito de fusão, a Autora interveio como garante no âmbito dum contrato de financiamento celebrado em 2001 entre a TVT e a Caixa Geral de Depósitos, S.A. (doravante CGD).

Nesse contexto, garantiu as obrigações assumidas pela TVT perante a CGD, tendo constituído a favor da instituição bancária, penhor sobre as 775.477 ações nominativas de que era, à data, titular. Bem como sobre as que, no futuro, viesse a ser titular.

Fê-lo, conferindo à credora CGD poderes para proceder à sua alienação, através da subscrição de uma procuração irrevogável.

Tendo ocorrido incumprimento do contrato de financiamento pela TVT, a CGD em 2007, procedeu à venda extrajudicial das referidas ações, pagando-se, com elas, do valor em dívida pela financiada.

Em consequência, alega a Autora que passou a ser credora da TVT na quantia correspondente ao valor de venda das suas ações, ou seja, na quantia de €1.701.972,11, seja pela via da sub-rogação legal, seja, subsidiariamente, pela via do enriquecimento sem causa.

Mais alega que a passagem da Autora à situação de credora, foi assumida pela TVT através da sua contabilidade.

O direito de crédito da Autora incide atualmente sobre a Ré Medway, porque incorporou a TVT, através da fusão das duas sociedades

O direito de crédito da Autora incide atualmente sobre a Ré Medway, porque incorporou a TVT, através da fusão das duas sociedades.

A Ré contestou.

Impugnou o direito da Autora, afirmando que o facto de as ações da Autora na TVT terem sido empenhadas e posteriormente vendidas extrajudicialmente pela CGD não confere àquela o direito a ser reembolsada pela Ré do produto da referida venda.

Segundo a Ré, a Autora não garantiu voluntariamente a obrigação da TVT, de forma a evitar a execução da garantia, designadamente, a perda das suas ações empenhadas, apesar de informada pela CGD da venda extra processual das mesmas e de ter sido notificada para exercer o correspondente direito de preferência na aquisição. Direito que a Autora optou por não exercer, conformando-se, assim, com as consequências contratuais decorrentes desse não-exercício, isto é, com o cumprimento coercivo da obrigação da TVT.

Cumprimento que foi coercivo e não voluntário, da exclusiva iniciativa da CGD, que promoveu a venda extrajudicial das ações e satisfez o seu crédito à custa do produto da venda, o que não permite reconhecer a Autora como credora da Ré no âmbito da sub-rogação legal.

Sem prescindir, excecionou o abuso de direito da Autora, na medida em que, tendo esta, tido conhecimento da venda extrajudicial das suas ações no dia 31 de outubro de 2007 e tendo intentado a presente ação apenas em 5 de julho de 2021, isto é, volvidos quase 14 anos, sem que, até então, tenha interpelado a Ré para pagamento de qualquer valor, criou nesta a representação legítima de que o seu putativo direito não seria mais exercido, gerando, dessa forma, uma situação de confiança justificada.

Ainda sem conceber, mesmo que enquadrando o direito da Autora na figura jurídica do enriquecimento sem causa, o mesmo encontrar-se-ia prescrito, uma vez decorrido o prazo legal de três anos desde o momento em que a Autora tomou conhecimento da venda extrajudicial das suas ações.

Acrescenta que a circunstância de a TVT ter provisionado nas suas contas os valores devidos aos seus anteriores acionistas tem explicação meramente contabilística, não podendo tal facto ser equiparado a um reconhecimento de dívida, que refuta.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que considerou que a factualidade provada não se enquadra no instituto legal da sub-rogação e, conhecendo subsidiariamente do enriquecimento sem causa, julgou procedente a exceção de prescrição do direito da Autora, absolvendo a Ré do pedido contra si formulado.

A Autora interpôs recurso de apelação do assim decidido.


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A Relação de Évora, por acórdão de 28.09.2023, julgou procedente o recurso, revogou a sentença, e na procedência da acção condenou a Ré a pagar à Autora a quantia global de €1.701.972,11 (um milhão, setecentos e um mil, novecentos e setenta e dois euros e onze cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a citação, até integral pagamento.

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É a vez da Ré interpor recurso de revista, concluindo que:

A. Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 28-09-2023, que, revogando a sentença proferida pelo tribunal judicial da comarca de ..., julgou a acção instaurada pela Recorrida Agromais procedente, com fundamento na aplicação do instituto da sub-rogação legal (cfr. artigo 592.º, nº 1 do CC).

B. A pretensão da Recorrida gira em torno de um penhor sobre as acções que aquela detinha na T.V.T. (correspondentes a 25,8% do respectivo capital social), constituído para assegurar o cumprimento das obrigações assumidas por esta sociedade no âmbito do Contrato de Financiamento celebrado com a CGD em 05-06-2001.

C. Em virtude do incumprimento do Contrato de Financiamento pela T.V.T., a CGD, em conformidade com os termos contratualmente previstos, executou unilateralmente o penhor constituído pela Recorrida (e pelos restantes accionistas da T.V.T.) e procedeu à venda extra-processual daquelas acções a terceiro, assim resultando liquidada a dívida da T.V.T. para com aquela instituição de crédito.

D. O Tribunal recorrido considerou que o regime da sub-rogação legal tem o alcance de permitir a transmissão do crédito tanto nos casos em que exista cumprimento voluntário da obrigação pelo terceiro que garantiu previamente o cumprimento como naqueles em que a satisfação do crédito seu deu pela realização coactiva da prestação à custa do património do terceiro garante.

E. Contudo, a decisão vertida no Acórdão recorrido é censurável a diversos níveis.

F. Em primeiro lugar, o Acórdão recorrido ofendeu o caso julgado formado em torno do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2013 (Moreira Alves), que foi proferido no âmbito de um caso idêntico ao dos presentes autos, desencadeado por outro ex-accionista da T.V.T., e onde estava em causa a apreciação do mesmo penhor de acções, prestado para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Financiamento.

G. Através de Acórdão datado de 12-09-2013, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que o ex-accionista da T.V.T., colocado numa situação idêntica à da aqui Recorrida Agromais, não merecia qualquer protecção ao abrigo do instituto da sub-rogação legal.

H. Considerando a identidade total de objectos e a identidade parcial de sujeitos entre acção judicial no âmbito da qual foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2013 e os presentes autos, a interpretação normativa do artigo 592.º, nº 1 do CC que ficou cristalizada naquela decisão impõe-se positivamente no caso em apreço, por via da autoridade de caso julgado, assim obstando à prolação de uma decisão diversa.

I. Com efeito, tendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido, relativamente a um litígio idêntico ao presente, que um ex-accionista da T.V.T. não pode, com base no instituto da sub-rogação legal, reclamar desta sociedade o valor correspondente à venda extrajudicial das acções que aquele ex-accionista nela detinha por efeito da execução do penhor prestado como garantia do cumprimento do Contrato de Financiamento, é evidente que esta decisão constitui um pressuposto indiscutível de qualquer determinação ulterior que incida sobre o mesmo objecto e que tenha sido desencadeada por um sujeito com igual qualidade (ex-accionista da T.V.T.) contra a mesma sociedade, impedindo que a situação jurídica aí definida venha a ser contemplada diversamente.

J. Em qualquer caso, mesmo que se entenda que a invocação da figura da autoridade do caso julgado não prescinde da verificação do requisito da identidade de sujeitos, sempre se deveria concluir que, ainda que tal identidade não exista in casu, os interesses que se visam acautelar com essa exigência foram totalmente observados.

K. Com efeito, a Recorrida Agromais, na configuração da sua demanda, invocou exactamente os mesmos fundamentos fácticos e jurídicos que tinham sido aduzidos peloex-accionista da T.V.T.na primeira ação, nãotendointroduzido quaisquer especificidades que justifiquem uma diversidade de tratamento.

L. Assim, resulta claro que o Acórdão recorrido, ao decidir pela aplicabilidade do instituto da sub-rogação legal in casu e pela consequente atribuição de tutela à Recorrida com base no mesmo, violou a autoridade do caso julgado subjacente ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2013.

M. Independentemente da ofensa do caso julgado, a interpretação do artigo 592.º, nº 1 do CC, tal como propugnada pelo Acórdão recorrido, constitui uma violação qualificada do princípio da igualdade (cfr. artigo 13º da CRP), uma vez que trata de forma flagrantemente desigual dois sócios da mesma sociedade sem queexista qualquerfundamentolegítimo para essetratamento desigual, gerando uma inconstitucionalidade, que desde já se invoca para todos os devidos efeitos.

N. Sem conceder, o Acórdão recorrido violou o artigo 592.º, n.º 1 do CC.

O. Em primeiro lugar, a interpretação sufragada pelo Acórdão recorrido não tem suporte na letra do artigo 592.º, n.º 1 do CC.

P. Com efeito, o artigo 592.º, nº 1 do CC refere o “terceiro que cumpre a obrigação”, e o cumprimento consiste na realização voluntária, plena, diligente e de acordo com a boa-fé da obrigação a que se vinculou o devedor, não se confundindo com a execução coactiva da obrigação.

Q. A realização coactiva da obrigação, seja judicial ou extrajudicial, não constitui evidentemente o seu cumprimento, porquanto não consubstancia um acto voluntário de satisfação do crédito, e tem logicamente como base a negação do cumprimento: é precisamente por não ter existido qualquer acto voluntário de satisfação do crédito que o credor procede à sua execução, fazendo-se pagar judicial ou extrajudicialmente à custa dos bens do devedor ou de terceiro.

R. Esta conclusão é reforçada pelo artigo 592.º, n.º 2 do CC, dado que esta norma apenas equipara ao cumprimento outros actos voluntariamente praticados pelo solvens, porquanto apenas estes são susceptíveis de revelar uma intencionalidade específica que é conciliável com as finalidades da sub-rogação.

S. Adicionalmente, não existem, no plano da razão-de-ser do artigo 592.º, nº 1, do CC, quaisquer “razões materiais” atendíveis que justifiquem a pretensa equiparação entre o cumprimento e a realização coactiva da prestação.

T. O propósito nuclear do artigo 592º do CC consiste em atribuir o «benefício» da sub-rogação ao terceiro que, cumprindo a obrigação a cargo do devedor, fá-lo com a intenção de prevenir a execução de uma garantia que aquele (terceiro) prestou.

U. Assim, o «interesse do terceiro no cumprimento», que constitui o cerne da sub-rogação legal também nos casos em que o terceiro garantiu o cumprimento, tem de se manifestar no próprio cumprimento, dando-lhe causa, sendo por essa razão, e mediante a sua verificação, que se atribui ao solvens os direitos do credor.

V. Nos casos de realização coactiva da obrigação, para além de o terceiro não ter satisfeito voluntariamente o crédito, não se pode dizer que o crédito foi satisfeito no interesse do terceiro executado, já que tal satisfação se materializou contra a sua vontade ou, quando muito, em consequência da sua inércia.

W. A pretensa equiparação entre cumprimento voluntário e cumprimento coercivo também não encontra a mínima justificação no facto de estes alegadamente consubstanciarem “sacrifícios e interesses correspondentes”, dado que esta suposta equiparação é alheia ao conceito legal de «terceiro que cumpre a obrigação», o qual constitui a pedra angular de todo o edifício da sub-rogação legal.

X. Ou seja, a suposta correspondência entre sacrifícios e interesses alegadamente na base do cumprimento voluntário e coercivo é intrinsecamente insusceptível de fundar qualquer «interpretação ampla» do instituto da sub-rogação legal, uma vez que não é enquadrável no critério geral do interesse directo do terceiro no cumprimento da obrigação.

Y. Em síntese, a execução do penhor constituído sobre as acções da T.V.T., que não implicou a realização da prestação ou de qualquer acto voluntário do devedor (T.V.T.) ou do dono da coisa empenhada (Agromais), não corresponde, em nenhum dos sentidos comuns e juridicamente correctos da expressão, ao cumprimentoda obrigação, etão-poucocorporiza uma situação susceptível de satisfazer qualquer interesse directo do terceiro garante da obrigação.

Z. Destarte, o Acórdão recorrido violou o estabelecido no artigo 592º, nº 1 do CC ao concluir que o regime legal da sub-rogação legal previsto no artigo 592.º, n.º 1 do CC, tem o alcance de permitir a transmissão do crédito aos casos em que tenha existido uma realização coactiva da prestação à custa do património do terceiro garante, sem que este tenha praticado qualquer acto voluntário ou que seja titular de qualquer outro interesse próprio.

AA. Por outro lado, e contrariamente ao que refere o Acórdão a quo, não se verificou qualquer inversão determinante na orientação jurisprudencial relativa ao âmbito da sub-rogação legal, e muito menos de molde a justificar uma solução diferente relativamente a um caso com factos idênticos aos daquele que estiveram na base da prolação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2013.

Subsidiariamente,

BB. Sem prejuízo do exposto, o Acórdão recorrido violou ainda o artigo 334º do CC, porquanto, mesmo reconhecendo a existência do suposto direito invocado pela Recorrida – no que não se concede apenas se admite pelo mais elevado dever de patrocínio – sempre deveria ter concluído que o respectivo exercício foi abusivo e, portanto, ilegítimo – no quadro da figura da supressio – e, em consequência, deveria ter determinado a paralisação da pretensão da Recorrida (“surrectio”).

Subsidiariamente,

CC. Sem prejuízo do que antecede, a decisão de facto recortada pelo Tribunal a quo é manifestamente insuficiente para alicerçar a decisão de direito quanto a ausência de comportamento abusivo da Recorrida e, bem assim, que aquela decisão encerra diversas contradições e omissões relevantes.

DD. Destarte, e caso por algum motivo não se acolha algum dos fundamentos da revista acima descritos – o que não se concebe – sempre deveria o Supremo Tribunal de Justiça ordenar a remessa dos autos ao Tribunal a quo para ampliaçãodadecisãodefacto,emordem aqueesta possa constituir base suficiente para a decisão de direito e para sanar as contradições e omissões que inviabilizam a decisão jurídica da lide (cfr. artigo 682º, nº 3 do CPC).


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Contra alegou a Autora/recorrida pugnando pela improcedência da revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) O acórdão da Relação de Évora recorrido considerou o regime da sub-rogação legal aplicável à situação dos autos e este é o ponto central da Revista, uma vez que a Recorrente entende que a interpretação sufragada pelo acórdão recorrido não tem suporte no artigo 592.º, n.º 1 do CC que só seria aplicável às situação de cumprimento voluntário e já não às de cumprimento coercivo (cfr. conclusões N. a AA.).

B) Ressalvado o devido respeito, a Recorrente não tem razão.

C) A Recorrida, através da garantia prestada com o penhor das suas ações, permitiu o cumprimento da obrigação da TVT junto da CGD através daquilo que tinha dado em garantia, o que inscreve a sua situação no âmbito da previsão da norma legal em causa.

D) Por outro lado, acresce que, havendo outras garantias prestadas a caucionar o débito da TVT junto da CGD, as quais afetavam a consistência económica do seu direito enquanto acionista da TVT (referentes à hipoteca sobre imóveis da TVT e ao penhor sobre equipamentos da TVT), a Recorrida estava diretamente interessada na satisfação do crédito, o que igualmente faz inscrever a sua situação no âmbito da previsão daquela norma legal.

E) Para o efeito do art. 591.º do CC, a função do pagamento ou cumprimento executivo é exatamente a mesma. O interesse do terceiro solvens a que se refere o artigo 592.º (interesse direto na satisfação do crédito) não é, pois, um interesse subjetivo que deva revelar-se no ato da realização da prestação pelo terceiro, mas sim um interesse objetivo na satisfação do crédito, dê-se esta como se der.

F) Não se ignora a jurisprudência constante do acórdão do STJ de 12.09.2013, que a Recorrente e a sentença de 1.ª instância convocam.

G) Mas a verdade é que, como bem se assinala no acórdão Recorrido, houve uma evolução dessa jurisprudência, a qual, hoje, é maioritária no sentido sustentado no acórdão recorrido. Deve ver-se, por todos, acórdão da Relação de Évora, de 12.09.2019 (processo 590/17.9T8STR.E1), e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.03.2017 (processo 3088/07.0TBTVD.L1.S1), com o sumário seguinte: «O instituto da sub-rogação legal previsto no n.º 1 do art. 592.º do Cód. Civil preenche-se com o pagamento por terceiro que haja garantido a dívida em causa, mesmo que esse pagamento seja efetuado coercivamente por execução da garantia referida.».

Tenha-se ainda em conta a posição doutrinária de LEBRE DE FREITAS em parecer junto aos autos de que se extrai a seguinte síntese conclusiva:

«1. O efeito da sub-rogação pressupõe literalmente o cumprimento da obrigação (por pagamento ou outro modo de extinção).

2. O cumprimento forçado do processo executivo constitui ainda um cumprimento, ou melhor, por faltar a vontade de quem cumpre, um seu sucedâneo.

3. O interesse direto do terceiro exigido pelo art. 592-1 CC é um interesse objetivo e sempre cumulável com o interesse, também objetivo, do credor, seja o cumprimento voluntário ou forçado; neste caso, o terceiro limita-se a suportar a penhora e a venda, mas o facto de não exercer atividade não elimina esse seu interesse objetivo.

4. O interesse do credor pode consistir na liberação da garantia prestada, conservando os bens do seu património que a ela estavam afetos (todos no caso da fiança; o objeto da garantia, quando esta é real), em evitar a perda, limitação ou afetação da consistência económica dum seu direito ou até em se substituir ao credor na titularidade dum direito de garantia de que o credor disponha contra terceiro.».

F. De resto, o entendimento de que o regime do artigo 592.º, n.º 1 do CC aproveita apenas às situações em que há um cumprimento voluntário da obrigação garantida, mas já não quando se está perante uma situação em que o pagamento é efetuado coercivamente por execução da garantia prestada, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP.

G. É que não há razões materiais, ou de interesse patrimonial ou económico, plausíveis para diferenciar um comportamento do outro, sendo idênticas as razões que justificam que o regime seja aplicável a ambas as situações. Estabelecer-se-ia uma diferenciação sem justificação razoável entre situações materialmente idênticas e merecedoras da mesma tutela.

H. No limite, mesmo que assim não fosse, ou seja, mesmo que não se pudesse falar em sub-rogação legal, sendo a ora Recorrida um terceiro interessado, nos termos do artigo 767.º, n.º 1 do CC, sempre teria direito de regresso contra o devedor, nos termos gerais de direito, o qual se distinguiria da sub-rogação porque não consubstanciaria uma transmissão do crédito, mas antes a constituição ex novo de um crédito, constituído com o ato de cumprimento da obrigação do devedor através do produto da venda da garantia prestada, pelo que sempre procederia o pedido principal formulado na ação (cfr. parecer de LEBRE de FREITAS supra citado, págs. 15 a 18).

DA ALEGADA AUTORIDADE DO CASO JULGADO

I. A Recorrente sustenta ainda que a solução consagrada pelo acórdão recorrido violaria o caso julgado ou a autoridade do caso julgado, porque não teria tido em conta aquilo que, relativamente a factos idênticos, já fora decidido pelo acórdão do STJ de 12.09.2013, que teria consagrado a solução inversa à ora adotada, não admitindo o regime da sub-rogação legal quando o cumprimento da obrigação é assegurado em fase executiva pelo credor (cfr. conclusões F. a L.).

J. Não se contesta que a solução do acórdão de 2013 é diferente da do acórdão recorrido, bem como, entre outros, do acórdão do STJ de 14.03.2017 supra convocado. Mas, em Portugal, não vigora a regra do precedente. Estamos perante uma divergência jurisprudencial, a qual eventualmente poderá ser objeto de um acórdão de fixação de jurisprudência.

K. In casu, não há caso julgado nem autoridade de caso julgado, porque não se verifica identidade nem de sujeitos, nem de causa de pedir, nem de pedido, como previsto no artigo 581.º do CPC. Não há identidade de sujeitos porque a Recorrida não foi parte no processo a que se reporta o acórdão do STJ de 2013. Mas também não há identidade nem de causa de pedir nem de pedido, porque, nesta ação, a factualidade reporta-se à concreta relação estabelecida entre a Recorrida e a TVT, sendo o pedido por si formulado relativo às ações por si detidas e vendidas em execução do penhor por si constituído.

L. Mesmo para quem defende a relevância da figura da autoridade do caso julgado, o certo é que essa autoridade só podia ser convocada se entre as decisões proferidas nas duas ações existisse uma contradição incontornável, o que não acontece, porque o julgamento da primeira não constitui um pressuposto do julgamento da segunda.

In casu, o objeto processual da ação anterior não é condição para apreciação do objeto processual desta ação, pelo que a questão da autoridade do caso julgado não tem de se colocar no âmbito da ação em curso.

M. O entendimento normativo dado ao artigo 621.º do CPC, devidamente conjugado com os artigos 581.º e 619.º do mesmo código, no sentido de que pode existir autoridade de caso julgado de uma ação anterior em relação a uma ação posterior, quando não há identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, com o fundamento em que se está perante situações fácticas idênticas que envolvem uma das partes, mas sem que o objeto processual da primeira ação seja condição para apreciação do objeto processual da ação posterior, é inconstitucional por violar os princípios da independência dos tribunais e da separação de poderes.

N. Com efeito, na nossa ordem jurídica, os tribunais são independentes e apenas sujeitos à lei e não a qualquer precedente (cfr. artigo 203.º da CRP). Por outro lado, decorre do princípio da separação de poderes, ínsito ao artigo 2.º da CRP, que não cabe à função judicial estabelecer interpretações obrigatórias quanto ao sentido das leis, fora do contexto das ações objeto da sua apreciação. Não há “assentos”, nem regra do precedente, na ordem jurídica vigente.

O. A Recorrente sustenta, por fim, a aplicação ao caso dos autos do instituto do abuso de direito, porquanto a ora Recorrida apenas teria exercido o seu direito, ao fim de 14 anos, quando, com a propositura da ação dos presentes autos, em 05.07.2021, se assumiu credora da MEDWAY, e pediu a sua condenação no pagamento da quantia de €1.701.972,11 (a que acrescem juros), correspondente ao montante da venda das suas ações dadas em garantia do contrato de financiamento à TVT (cfr. conclusão BB.).

P. Mas também sem razão da ora Recorrente.

A venda das ações da ora Recorrida teve lugar em 26.10.2007 (cfr. facto provado 26.) e, desde então, não houve, por parte da ora Recorrida, qualquer renúncia expressa ou tácita ao exercício de tal direito.

Ademais, ao longo dos anos de 2007 a 2019, as inscrições contabilísticas da ora Recorrente refletiram sempre a dívida da TVT para com os seus acionistas (cfr. factos provados 31. a 38.) e só com a fusão da TVT na ora Recorrente é que essa inscrição contabilística deixou de existir.

Acresce que as atas do Conselho de Administração da TVT estabeleciam, em 2008, a adoção de um tratamento igualitário quanto a todos os acionistas que viram as suas ações, dadas em garantia do financiamento em causa, vendidas em execução dessa mesma garantia, no caso de vir a ser condenada no âmbito da primeira ação judicial proposta para o efeito por um desses acionistas/credores (cfr. docs. 25 e 26 juntos aos autos em 25.10.2022).

Q. Ora, não só a ora Recorrida não renunciou, expressa ou tacitamente, ao exercício deste seu direito, como, até pelo menos 2019, a Recorrente praticou atos que não a podiam deixar com qualquer expetativa desse não exercício pela ora Recorrida, designadamente aquilo que inscreveu na sua contabilidade, de acesso público.

R. Por cautela, admitindo-se um cenário em que o pedido principal da Recorrida não procedesse – quer por via da aplicação ao caso dos autos do instituto da sub-rogação legal, quer por via do exercício do direito de regresso nos termos gerais do direito –, a factualidade em causa e o direito à prestação peticionada inscrever-se-iam ainda no âmbito do instituto do enriquecimento sem causa, o que, nesse caso, deve ser ponderado.

S. Tendo-se a TVT desonerado de uma dívida contraída junto da CGD à custa do património da ora Recorrida, sempre assistiria à ora Recorrida o direito a ser restituída do valor das ações dadas em garantia e vendidas para satisfazer a obrigação da TVT, acrescida dos juros peticionados, nos termos previstos pelo regime do enriquecimento sem causa (artigos 473.º e seguintes do CC).

T. A sentença de 1.ª instância admitiu-o, mas julgou prescrito o respetivo direito, considerando que a prescrição teria ocorrido em 31.10.2010, nos termos do artigo 482.º do CC, três anos após a ora Recorrida ter tomado conhecimento da venda das suas ações na TVT, sem que entretanto tivesse ocorrido facto interruptivo ou suspensivo dessa prescrição.

Salvo melhor opinião, no âmbito da apreciação da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa à situação destes autos, a prescrição não teria ocorrido.

U. Tendo por presente a factualidade dada como provada e particularmente, os factos provados 28. a 40. do probatório, verifica-se que, pelo menos até 12.07.2018, a TVT, na sua IES com referência ao ano de 2017, fez constar no balanço, na conta de “outras contas a pagar”, o valor de €6.374.000,00, correspondente ao valor total das ações representativas de 97,75% do capital social vendidas pela CGD à G..., SGPS, S.A., o que incluía o valor de venda das ações da ora Recorrida representativas do capital social da TVT no montante de €1.701.972,11 (cfr. facto provado 36. conjugado com os factos provados 30. a 35.).

Em face do exposto, pelo menos até essa data – 12.07.2018 –, a TVT, antecessora da ora Recorrida, reconheceu perante a ora Recorrida o direito desta, o que gera a interrupção da prescrição, nos termos do artigo 325.º do CC.

V. É certo que a TVT não dirigiu uma carta ou outra comunicação à A., reconhecendo-lhe o crédito, mas não se exige que o tivesse feito, porque se tem de presumir que as suas contas, a partir do momento em que constam das plataformas oficiais de acesso público, consubstanciam o reconhecimento dos direitos que nelas estão inscritos. Pelo menos, é a presunção que se deve estabelecer de acordo com um princípio de boa-fé aplicável à situação em apreço. A não ser assim, seriam pervertidos os princípios e valores subjacentes às regras que estabelecem a publicidade das contas das sociedades, defraudando expectativas legítimas e o princípio da proteção da confiança.

W. O que está em causa no reconhecimento do direito, tal como previsto no artigo 325.º, n.º 1 do CC, é a garantia de seriedade da declaração, o que se tem de presumir ocorrer em relação às contas do devedor objeto de divulgação pública através das plataformas oficiais onde essas contas devem ser divulgadas.


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Atendendo às conclusões formuladas pela Recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:

- Autoridade de caso julgado formado pelo acórdão de 12.09.2013, proferido no P. nº 749/08.TBTNV.1.S1;

- sub-rogação legal;

- enriquecimento sem causa.


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Fundamentação.

Vêm provados os seguintes factos:

1. A MEDWAY TERMINALS, S.A. incorporou por fusão a TVT – TERMINAL MULTIMODAL DO VALE DO TEJO, S.A., tendo-lhe sido transferidos, nos termos da fusão, os ativos e passivos da sociedade incorporada, bem como todas as responsabilidades desta.

2. A AGROMAIS – ENTREPOSTO COMERCIAL AGRÍCOLA, CRL, desde a constituição da TVT, em 05.08.1994, participou no seu capital social como uma das suas acionistas.

3. Em junho de 2001, o capital social realizado da TVT – de €3.000.000,00 –, era repartido da seguinte forma:

ACIONISTA -------------N.º DE AÇÕES --------- % DE CAPITAL

R..., Lda.-------------------- 900 000 ---------------- 30,0%

Agromais, CRL ----------------775 477------------------- 25,8%

Construtora .., S.A.---------750 000------------------25,0%

O..., Lda.------------------427 500------------------14,3%

CM ...-------------------74 820--------------------2,5%

N...----------------------37 680--------------------1,3%

Ri..., Lda.----------------37 750---------------------1,1%

L..., S.A..-----------------750 ----------------------0,0%

AA-----------------------23----------------------0,0%

TOTAL------------------ 3 000 000------------------------100,0%-

4. Em 5 de junho de 2001, foi celebrado um contrato de financiamento entre a TVT, como mutuária, e a Caixa Geral de Depósitos (doravante CGD), como mutuante, destinado a dotar a TVT dos meios financeiros necessários para assegurar os custos do projeto que esta tinha a seu cargo (e que era a construção do Terminal Multimodal do Vale do Tejo), cobrir eventuais necessidades de tesouraria e prestar garantia(s) bancária(s).

5. No âmbito deste contrato de financiamento, a CGD constituiu a favor da TVT dois créditos:

- Um crédito até ao montante máximo de €8.000.000,00 e

- Um crédito até ao montante máximo de €750.000,00.

6. Nesse contrato de financiamento, a Autora, a par de outras entidades, interveio como 3.ª Outorgante, na qualidade de acionista da TVT e garante das obrigações assumidas por esta perante a CGD, ou seja, como garante do cumprimento do aludido contrato de financiamento.

7. A respeito das obrigações assumidas pela Autora, na cláusula 25.ª do contrato de financiamento, sob a epígrafe “Penhor de Ações”, pode ler-se o seguinte: «1. Em garantia do cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato (…) designadamente para assegurar o reembolso do capital, o pagamento dos juros remuneratórios, moratórios, comissões, demais despesas e encargos, os Acionistas, com exceção do Município de ... e da N..., constituem, cada um de per si, a favor da CGD, primeiro penhor sobre as ações nominativas, de que são plenos proprietários, no valor nominal de 1 euro cada uma, representativas de 96,25% (noventa e seis vírgula vinte e cinco por cento), do capital social da TVT, melhor identificada no Anexo I, as quais se encontram livres de quaisquer ónus e encargos e depositadas na conta de títulos da TVT n.º ...........44, Agência de ...:

a) 900.000 ações pertença de R..., Lda;

b) 775.477 ações pertença de Agromais;

c) 750.000 ações pertença de Construtora .., S.A.;

d) 427.500 ações pertença de O..., Lda;

e) 33.750 ações pertença de Ri..., Lda;

f) 750 ações pertença de L..., S.A.;

g) 23 ações pertença de AA.

(…)

5. No caso de incumprimento, as ações dadas de penhor podem ser vendidas extrajudicialmente, pelo preço “ao melhor” e nas demais condições que a CGD entender convenientes, em qualquer dos mercados em que as mesmas se encontrem admitidas à negociação, no mercado de balcão ou por qualquer forma legalmente permitida, designadamente, por intermédio de corretor ou particularmente e sem dependência de qualquer formalidade ou aviso prévio, com exceção do previsto no número seguinte.

6. No caso de venda das ações prevista no número anterior, a CGD obriga-se a dar preferência aos Acionistas (…).

(…)

9. O produto da venda das ações nos termos referidos nos números anteriores será imputado à satisfação dos créditos da CGD emergentes do presente contrato.

10. Os Acionistas entregaram nesta data à CGD uma procuração irrevogável conferindo-lhe poderes para proceder à alienação das ações dadas de penhor nos termos desta cláusula, procuração esta passada de acordo com o modelo anexo (Anexo II).».

8. Resulta assim, nos termos da cláusula 25.ª do referido contrato de financiamento, que, em garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela TVT no contrato de financiamento, a Autora constituiu, a favor da CGD, primeiro penhor sobre as ações nominativas de que era plena proprietária, conferindo-lhe os poderes, através de uma procuração irrevogável, para proceder à sua alienação.

9. E, nos termos da cláusula 26.ª, a Autora ainda se obrigou perante a CGD a constituir tal penhor sobre todas as ações que viesse a subscrever em resultado de aumentos de capital, conferindo-lhe os poderes, através de uma procuração irrevogável, para constituir os penhores e ainda para proceder à alienação das ações.

10. Pode ler-se na cláusula 26.ª, sob a epígrafe “Promessa de Penhor de Ações”, o seguinte:

«1. Os Acionistas, com exceção do Município de ... e da N..., obrigam-se perante a CGD a subscrever quaisquer aumentos de capital e a constituir primeiro penhor, a favor da CGD, sobre todas as ações que resultarem de quaisquer aumentos de capital da TVT, de modo a que se mantenha sempre empenhado, nos termos do presente contrato, pelo menos, 96,25% (noventa e seis vírgula vinte e cinco por cento) do capital social da TVT.

(…)

4. Os Acionistas (…) entregaram nesta data à CGD uma procuração irrevogável conferindo-lhe poderes para constituir os penhores prometidos e ainda proceder à venda das respetivas ações em execução do penhor e nos termos do n.º 10 da cláusula anterior, procuração esta passada de acordo com o modelo anexo (Anexo II).».

11. E, na cláusula 29.ª do aludido contrato de financiamento, também ficou previsto que, em garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela TVT no contrato de financiamento, a TVT constituía, em instrumento contratual acessório, hipoteca sobre o prédio urbano onde iria exercer a sua atividade (parcela de terreno para construção urbana, sito no ..., com área de 205.832,50m2, sito na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00950 da referida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo 3117), considerando-se a mesma materialmente acessória do contrato de financiamento.

12. À data da celebração do contrato de financiamento, a Autora estava convicta de que o património da TVT e o seu projeto de negócio em desenvolvimento seriam suficientes para cobrir o financiamento contraído junto da CGD.

13. Os referidos aumentos de capital e penhor sobre novas ações vieram, de facto, a ocorrer, pois, em 2002, foi realizado um aumento do capital social da TVT, para €4.000.000,00, sendo que as ações não subscritas pelo Município de ... e pela N... foram rateadas pelos restantes acionistas, tendo o capital social passado a ser repartido da seguinte forma:

ACIONISTA-------------N.º DE AÇÕES-----------% DE CAPITAL

R...,Lda.------------------------121189------------------------30,3%

Agromais,C.R.L.-----------------1044040----------------------------26,1%

Construtora .., S.A..---------1 009 740-------------------------25,2%

O...,Lda.---------------------575 552-------------------------14,4%

CM de ...--------------------74 820---------------------------1,9%

N...-----------------------------37680---------------------------0,9%

Ri...,Lda.----------------------45438--------------------------1,1%

L...,S.A..----------------------1010----------------------------0,0%

AA-----------------------------31----------------------------0,0%

TOTAL---------------------------4000 000--------------------------100,0%

14. Em 2004, procedeu-se a uma redução do capital social, de €4.000.000,00 para €2.000.000,00, para cobertura de prejuízos de anos anteriores, seguida de novo aumento para €2.500.000,00, operações estas a que a CGD não se opôs.

15. Em face das alterações ao capital social da TVT, em 2006, este era repartido da seguinte forma:

ACIONISTA--------------N.º DE AÇÕES----------% DE CAPITAL

R...,Lda.------------------------1211 689---------------------24,2%

Agromais, C.R.L. ---------------1305 050--------------------- 26,1%

Construtora...S.A..--------------1748 470------------------35,0%

O...,Lda-------------------------575 552----------------------11,5%

CM de ...-----------------------93525-----------------------1,9%

N...-----------------------------18975-----------------------0,4%

Ri...,Lda.-----------------------45438-----------------------0,9%

L...,S.A..-----------------------1262-----------------------0,0%

AA-----------------------------39--------------------------0,0%

TOTAL--------------------------5000 000-----------------------100,0%

16. Assim, em resultado das alterações ao capital social da TVT, em 2006, a Autora era detentora de 1.305.050 ações representativas daquele capital social, dadas em penhor à CGD, livres de quaisquer ónus ou encargos, como garantia do cumprimento do contrato de financiamento.

17. Para além do penhor das ações dos seus acionistas, a TVT concedeu à CGD outras garantias, nomeadamente:

a) cessão de créditos emergentes dos contratos celebrados pela TVT;

b) penhor, em primeiro grau, sobre equipamentos da TVT;

c) promessa de penhor sobre os equipamentos que a TVT viesse a adquirir;

d) hipoteca sobre o prédio urbano onde iria exercer a sua atividade (parcela de terreno para construção urbana, sito no ..., com área de 205.832,50m2, sito na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n.º 00950 da referida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo 3117), considerando-se a mesma materialmente acessória do contrato de financiamento e

e) promessa de hipoteca sobre imóveis que a TVT viesse a adquirir.

18. Em 24 de novembro de 2001 foi inaugurado, pela TVT, o Terminal Multimodal do Vale do Tejo, na Zona Industrial de ....

19. Não obstante os aumentos de capital operados nos anos de 2002 e de 2004, a TVT deixou de cumprir o contrato de financiamento.

20. Em maio de 2006, a CGD deu conhecimento à AGROMAIS de uma carta enviada à TVT a exigir o pagamento integral dos valores vencidos decorrentes do incumprimento do contrato de financiamento.

21. Também em maio de 2006, a TVT enviou uma comunicação aos acionistas, dando conta do incumprimento junto da CGD.

22. Em junho de 2006, a CGD deu conhecimento à AGROMAIS da venda extra-processual das ações da TVT dadas em penhor pelos acionistas, nomeadamente pela Autora.

23. Em maio de 2007, a CGD notificou a AGROMAIS para efeitos do exercício do direito de preferência, da proposta de compra e sua aceitação das ações representativas de 97,75% do capital da TVT pela G..., SGPS, S.A.

24. Esta interpelação para o exercício do direito de preferência da Autora referia-se à totalidade das ações da TVT e não apenas às ações tituladas pela Autora.

25. Em outubro de 2007, a CGD comunicou à AGROMAIS a venda de 1.305.050 ações representativas do capital social da TVT (ou seja, das ações detidas pela Autora) à G..., SGPS, S.A..

26. A venda ocorreu em 26 de outubro de 2007.

27. A venda de 1.305.050 ações da Autora foi efetuada pelo montante de €1.701.972,11.

28. Com a venda das ações da TVT, a CGD considerou paga a dívida da TVT com referência ao aludido contrato de financiamento.

29. A TVT deixou, assim, de ser devedora da CGD, com referência ao contrato de financiamento.

30. No dia 11/03/2008, o Revisor Oficial de Contas da TVT emitiu parecer no sentido de dever ser registado o pagamento à CGD e, considerando ter sido apenas acionado o penhor das ações dos acionistas da TVT para pagamento de tal dívida, que estes acionistas deveriam ser considerados como credores da TVT.

31. Na IES da TVT, apresentada em 2009, com referência ao ano de 2007, na rubrica do balanço “outros credores”, consta o valor de €6.374.000,00, correspondente ao valor total das ações representativas de 97,75% do capital social vendidas pela CGD à G..., SGPS, S.A..

32. Na mesma IES, no balanço, não se reconhecem quaisquer dívidas a instituições de crédito, nomeadamente à CGD, porque as mesmas foram consideradas liquidadas em função da execução do penhor às ações representativas do seu capital social.

33. Na IES da TVT, apresentada em 2009, com referência ao ano de 2008, na rubrica do balanço “outros credores”, consta o valor de €6.374.000,00, correspondente ao valor total das ações representativas de 97,75% do capital social vendidas pela CGD à G..., SGPS, S.A..

34. Na nota 48, “Outras informações consideradas relevantes”, consta o seguinte:

“A rubrica Credores Diversos evidencia uma responsabilidade de 6.374.000,00 Euros relativa à liquidação do empréstimo da Caixa Geral de Depósitos, através da execução da penhora sobre ações detidas pelos ex-acionistas da Sociedade, ocorrida em 2007.”. (...)

“OUTROS DEVEDORES E CREDORES

Em 31 de Dezembro de 2008, o saldo desta rubrica tinha a seguinte composição:

Construtora .., S.A. (2.280.255,30)

Agromais – Entreposto Comercial Agrícola, CRL (1.701.972,11)

R..., Lda (1.580.216,00)

O..., Lda (750.602,24)

Ri..., Lda (59.257,66)

L..., S.A. (1.645,83)

AA (50,86)

(6.374.000,00)”

35. Nos balancetes acumulados da TVT, pelo menos de 2009 a 2016, a Autora surge na rúbrica “Outros devedores e credores”.

36. Na IES da TVT, submetida em 12.07.2018, com referência ao ano de 2017, no balanço, na conta de “outras contas a pagar”, consta o valor de €6.374.000,00, correspondente ao valor total das ações representativas de 97,75% do capital social vendidas pela CGD à G..., SGPS, S.A..

37. Nessa IES, nos quadros 0532-A e 08, é feita uma referência a ações judiciais em curso por dois dos ex-acionistas.

38. Na IES da TVT, submetida em 16.07.2019, com referência ao ano de 2018, no balanço, na conta de “outras contas a pagar”, consta o crédito dos ex-acionistas em consequência da venda pela CGD das ações representativas de 97,75% do seu capital social; porém, o valor reconhecido passou a ser de € 4.184.839,18, no decurso da sua condenação judicial a pagar a dívida aos dois acionistas referidos no facto 36. ("leia-se 37" na sequencia do decidido em sede de impugnação da matéria de facto).

39. A Autora deu entrada em Juízo da presente ação no dia 05/07/2021.

40. A Ré foi citada no dia 14/07/2021.

Foi julgado não provado:

a. Que a Autora, ao outorgar a procuração irrevogável, dando poderes à CGD para, em caso de incumprimento, vender as suas ações, entendia que as garantias que oferecia eram apenas acessórias;

b. Que nas IES, referidas nos factos 31. a 38., a TVT reconheceu o crédito reclamado pela Autora;

c. Que a TVT reconheceu a dívida à Autora pelo menos até à apresentação, em 16.07.2019, da IES relativa ao ano de 2018.


///

Fundamentação de direito.

Com a presente acção a Autora pretende a condenação da Ré, que incorporou por fusão a “TVT Terminal Multimodal do Vale S.A.”, a pagar-lhe a quantia de €1.701.972,11, mais juros, valor por que foram vendidas em execução as 1.305.050 acções nominativas de que era titular no capital social da TVT entregues como garantia (penhor) no contrato de financiamento celebrado entre a Caixa Geral de Depósitos SA (CGD) e a TVT. Fundamento o pedido, em primeira linha, no instituto da sub-rogação legal (art. 592º/1 do CC), e subsidiariamente no instituto do enriquecimento sem causa.

Como já referido, a acção improcedeu na 1ª instância por se ter entendido que o instituto da sub-rogação é inaplicável à factualidade que subjaz à presente acção, não podendo também a acção proceder com base no instituto do enriquecimento sem causa por via da prescrição.

Outro foi o entendimento da 2ª instância, que considerou que com o pagamento efectuado, à custa da venda executiva das acções de que era titular, a Autora ficou sub-rogada nos direitos do credor CGD, S.A..

Se esta decisão viola a autoridade de caso julgado.

Sustenta a Recorrente que o acórdão recorrido viola a autoridade do caso julgado por ter decidido em sentido contrário ao Acórdão do STJ de 12-09-2013 (P. 749/08.0TBTNC.C1.S1), proferido no âmbito de um caso idêntico ao dos presentes autos, desencadeado por outro ex-accionista da T.V.T..

Mas não tem razão.

Como é sabido, o caso julgado material (arts. 619º e 621º do CPC), implica dois efeitos – um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 320, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, p. 576, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, 2º, p. 599).

Conforme entendimento constante da doutrina e da jurisprudência, pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.

Sobre a autoridade do caso julgado, decidiu acórdão do STJ de 11.07.2023, P. 2816/20:

A autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença num segundo processo, não sendo exigível a coexistência da tripla identidade prevista no art. 581º do CPC.”

No mesmo sentido o acórdão desta secção, de 12.12.2023, P. 141/21.0YHLSB-A.L1.S1:

O que fundamenta a especial protecção força e autoridade de uma decisão transitada para alem do prestígio dos tribunais, é a certeza e segurança na definição dos direitos sobre os quais incide.

A vinculação de uma decisão transitada em julgado exige que os titulares de relações juridicamente estáveis tenham tido a oportunidade de nela influir: é este o fundamento do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo, e que justifica a oponibilidade relativa do caso julgado.

O princípio do contraditório exige que a oponibilidade da força e autoridade do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos.”

Posição esta também seguida no acórdão de 11.01.2024 (P. 1736/20), relatado pelo Conselheiro Nuno Oliveira, que também subscreve o presente:

“A autoridade de caso julgado resultante de sentença proferida num primeiro processo só poderia ser invocada num segundo processo se estivesse preenchido o requisito de identidade subjectiva.”

Tendo presente estes princípios, não ocorre violação de autoridade do caso julgado pela razão simples de não se mostrar preenchido o requisito de identidade subjectiva. A acção a que o acórdão de 12.09.2013 pôs termo foi proposta por um outro ex-accionista da TVT, sem que Recorrida nela tenha tido intervenção.

Diz também a Recorrente que a interpretação do artigo 592.º, nº 1 do CC propugnada pelo Acórdão recorrido, constitui uma violação do princípio da igualdade (cfr. artigo 13º da CRP), por tratar de forma desigual dois sócios da mesma sociedade, sem queexista fundamento legítimo para tal.

Mas também aqui sem razão.

O acórdão recorrido não tratou de “forma desigual dois sócios da mesma sociedade”, uma vez que apreciou apenas a pretensão deduzida pela Recorrida, sem estar obrigado a seguir a interpretação perfilhada no acórdão do STJ de 12.09.2013 quanto ao art. 592º, nº1, do CCivil, dado não vigorar entre nós a regra do precedente, típica da Common Law.

O que a lei impõe ao julgador é que nas decisões que proferir tenha em “consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito” (art. 8º, nº3 do CC), tendo em vista “uma interpretação e aplicação tanto quanto possível uniforme do direito”, não mais que isso.


///

Se o regime da sub-rogação legal é aplicável à situação dos autos.

A sub-rogação, nas palavras de Antunes Varela, pode definir-se como “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento.” (Das Obrigações Em Geral, II, pag. 336, 7ª edição).

“Através da figura da sub-rogação, a ordem jurídica admite que aquele que satisfaz a obrigação de outrem utilize a relação obrigacional primitiva como um meio para obter o reembolso do que despendeu com o cumprimento.

(…) O nosso Código Civil prevê duas espécies de sub-rogação: a voluntária e a legal, conforme a sua fonte constitutiva.

A sub-rogação voluntária tem na sua origem uma declaração de vontade do credor, prevista no art. 589º do CCivil, ou do devedor (…).

A sub-rogação legal é a que resulta directamente da lei, estando genericamente regulada no art. 592º do CCivil, e especialmente prevista noutras disposições deste diploma, como sejam os arts. 477º, nº2, 717º e 956º, nº4, assim como em legislação avulsa (v.g. art. 54º do DL nº 98/2009 de 21.08, art. 17º da Lei nº 98/2009 de 04.09, ou o art. 5º do DL nº 64/99 de 13.05.

Quando a sub-rogação se encontra prevista na lei é desnecessária qualquer declaração do credor ou do devedor, para que o solvens fique sub-rogado no direito de crédito satisfeito, passando a ocupar a posição do credor originário. Essa substituição da pessoa do credor decorre ope legis, da satisfação do crédito (…) ocorrendo a sub-rogação da “vontade” da lei e não pela vontade manifestada nesse sentido pelo credor ou pelo devedor.” (transcrição do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2021, publicado no DR, nº 251, 1ª série, de 29.12.2021).

A sub-rogação legal, a que aqui interessa, está prevista no art. 592º do Cód. Civil que estatui no nº1:

“ Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito.”

No caso em análise, a dívida da TVT perante a CGD foi paga em parte com o produto da venda executiva das acções de que a Autora era titular e sobre as quais tinha sido constituído penhor em garantia do crédito. A questão que cabe decidir é se também neste caso, de cumprimento coercivo e não voluntário, se operou a transmissão do crédito do credor originário, a CGD, para a Autora por sub-rogação.

Questão que dividiu as instâncias, tendo a Relação entendido que sim, posição que justificou nos termos seguintes:

“…. Mal se entende, assim, que a lei só permita a sub-rogação nos direitos do credor, a terceiro que cumpra a obrigação alheia tendo o cumprimento em vista evitar a execução de garantia que prestou, excluindo da sub-rogação o cumprimento através da execução da garantia que prestou.

As razões que justificam o regime legal de favor que coloca o terceiro na posição jurídica do primitivo credor, mantendo o crédito “vivo” e transferindo-o para o terceiro que cumpre em vez do devedor, são idênticas num caso e noutro.

Por sua vez a letra da lei não distingue cumprimento voluntário ou cumprimento coercivo.

Assim, é nosso entendimento que, o regime geral da sub-rogação legal previsto no artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil, tem o alcance de permitir a transmissão do crédito aos casos em que: exista cumprimento coercivo ou voluntário da obrigação pelo terceiro, e o terceiro tenha previamente garantido o cumprimento, ou o terceiro esteja, por outra causa, “diretamente interessado na satisfação do crédito”.

Não era exigível à apelante que para beneficiar da sub-rogação legal, se colocasse na situação de pagante imediata da dívida “anulando” o penhor sobre as suas ações.

No caso, a apelante garantiu o cumprimento e cumpriu a obrigação coercivamente através da garantia prestada, sendo indiferente para a lei que tal cumprimento tenha sido coercivo através da garantia, e não voluntário, inutilizando a garantia.

Mantém-se, por conseguinte, na titularidade da apelante, o mesmo direito de crédito de que era titular a CGD e que através do penhor previamente prestado, aquela pagou.

O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam (art. 593, 1 Cód. Civil).

Deste modo, com o pagamento efetuado ficou a Autora sub-rogada nos direitos da credora Caixa Geral de Depósitos, S.A., nos termos do art. 592º, 1 do Cód. Civ., assistindo-lhe, o direito de reaver da Ré aquilo que pagou em cumprimento das obrigações que sobre aquela impendiam (art. 593º,1, do Cód. Civ.), ou seja, a quantia global de €1.701.972,1, acrescida dos juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal contados desde a citação, e não como peticionado, tendo em conta não se ter provado qualquer outra interpelação anterior (art. 805º, 1 e 806º, 2 do Cód. Civ.).

Direito cujo prazo legal de prescrição é de 20 anos (art. 309º Cód. Civ.) e não se mostra verificado.”

Vejamos.

É incontroverso, à luz da redação do nº1 do art. 592º do CCivil, que para haver sub-rogação não basta que um terceiro cumpra uma obrigação alheia. É necessário que o faça em determinadas circunstâncias, valoradas pela lei, a saber: quando tiver garantido (previamente) o cumprimento, isto é, quando o cumprimento tenha em vista evitar a execução de garantia que prestou ou estiver por qualquer outra causa interessado no cumprimento do crédito.

O primeiro grupo de situações é constituído pelos casos em que o solvens tenha garantido antes o cumprimento. Com o pagamento em lugar do devedor o terceiro visa evitar a execução da garantia e a perda do bem ou bens onerados.

O segundo núcleo de situações abrange os casos em que o solvens tem um interesse directo na satisfação do crédito – interesse que deve revestir carácter patrimonial - excluindo-se assim os casos em que o cumprimento se realize no exclusivo interesse do devedor ou por mero interesse moral ou afectivo do solvens (cf. Antunes Varela, Das Obrigações, II, 7ª edição, pag. 344, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pag. 286/287, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 3ª edição, pag. 40).

Sendo assim, e sem embargo do respeito por diferente opinião, não parece que o caso se subsume a qualquer das situações previstas no nº1 do art. 592º, uma vez que o pagamento não foi realizado no interesse directo da Autora, nem para evitar a execução da garantia.

É dizer que não se verificam pressupostos da sub-rogação legal, como bem viu o já citado acórdão do STJ de 12.09.2013, merecendo a nossa adesão as seguintes considerações ali feitas:

“Ocorreu, é certo, pagamento, mas pagamento coercivo ou forçado, promovido pela própria credora, que vendeu as acções dadas em penhor e se pagou pelo respectivo produto.

Por conseguinte, é evidente que esse “cumprimento” realizado em fase executiva pela credora, não foi efectuado no interesse directo e próprio da Autora e da GG (terceiros garantes), mas no exclusivo interesse da credora, que viu o satisfeito o seu crédito e da Ré, devedora, que se liberou da obrigação.

Não ocorreu, pois, cumprimento efectuado pelos terceiros garantes com a finalidade de evitar a execução, a perda das acções empenhadas, o agravamento da sua posição jurídica ou com qualquer outro interesse directo e próprio.

Ora, como se disse, é exactamente o interesse directo na satisfação do crédito alheio, que justifica o tratamento de favor que a lei dá ao terceiro, através do instituto da sub-rogação, daí que inexistindo tal interesse, não possam a A. e os intervenientes beneficiar de tal direito.

(…)

Por conseguinte, diferentemente do afirmado no acórdão recorrido não é irrelevante que o cumprimento ocorra voluntariamente, por iniciativa do terceiro ou seja promovido pelo credor através da execução e venda do penhor, como no caso se verificou.

É que só na primeira situação o terceiro cumpre a obrigação alheia (no seu próprio interesse como diz a lei), designadamente com a finalidade especial de evitar a execução, ou a consumação desta, pela venda (e consequentemente) perda da coisa empenhada, sendo exactamente esse cumprimento interessado a razão de ser da sub-rogação.”

Pelas razões indicadas, não pode a Autora/recorrida ser sub-rogada no direito da credora CGD SA, por não verificados os pressupostos do art. 592º, nº1, do CCivil, e nesta medida procede a revista.


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A título subsidiário, a Autora/recorrida pediu o reembolso dos € 1.701.972,1, com base no instituto do enriquecimento sem causa, posição que reitera, prevendo a possibilidade de improcedência do pedido principal, nas conclusões R) a final.

A sentença de 1ª instância julgou verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa, mas considerou o direito extinto por prescrição.

O acórdão recorrido não abordou esta questão por a ter considerado prejudicada pela solução encontrada, mas não deixou de referir que por esta via o direito sempre seria negado por verificada a prescrição, de 3 anos (art. 482º do Cód. Civil), “sem que tivesse ocorrido interrupção”.

Como é sabido, o art. 679º do CPC consagra a inaplicabilidade ao recurso de revista da “regra da substituição ao tribunal recorrido” prevista no art. 665º.

O STJ tem entendido que “se a resolução de questões que são objecto da revista determinar a revogação da decisão do acórdão da Relação, não pode o STJ conhecer, pela primeira vez, questões que as instâncias deixaram de apreciar por as terem considerado prejudicadas pelas soluções dada ao litígio” (acórdãos do STJ de 14.06.2018, P. 2069/14 e de 04.04.2017, P. 5371/15).

Perfilhamos este entendimento. Como a questão foi apreciada na 1ª instância não sendo, pois, uma questão que o STJ iria apreciar pela primeira vez, nada obsta a que este Tribunal conheça da mesma, sem que haja necessidade de ampliar a matéria facto por o acervo factual apurada ser suficiente para a decisão da questão prejudicada.

O art. nº1 do 473º do CCivil enuncia o princípio geral do enriquecimento sem causa nos seguintes termos: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”

O direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve no prazo de três anos (art. 482º do CC), contados do momento em que o empobrecido sabe que ocorreu um enriquecimento injustificado de outrem à custa do seu património e quem foi a pessoa que dele beneficiou.

A 1ª instância considerou prescrito o direito da Autora por o prazo prescricional de 3 anos já se ter completado há muito quando a Ré foi citada para a acção.

Contra este entendimento a Recorrente defende que a prescrição se interrompeu pelo reconhecimento do direito (art. 325º), isto por a TVT, antecessora da Recorrida, ter reconhecido nos seus balanços e nas IES, o crédito da Autora correspondente ao valor da venda das acções no montante de €1.701.972,11.

Será assim?

Estatui o nº1 do art. 325º do Cód. Civil que “a prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.”

O reconhecimento do direito corresponde a uma declaração de ciência e não de vontade. “Trata-se de um acto que não é necessariamente formal, podendo ser um reconhecimento expresso ou tácito, ainda que neste caso seja necessário que “resulte de factos que inequivocamente o exprimam” (cf. Júlio Gomes, anotação ao art. 325º, Comentário ao Código Civil da Universidade Católica)

No mesmo sentido, decidiu o acórdão do STJ de 23.03.2007, P.06A3279:

O reconhecimento do direito é uma declaração de ciência quanto ao direito do titular; para que o reconhecimento interrompa a prescrição não é de exigir que o seu autor o faça com essa intenção de interromper a prescrição.”

Diz o nº1 do art. 325º que o reconhecimento deve ser feito “perante o titular do direito”.

“Esta exigência justifica-se como forma de assegurar a intenção inequívoca do devedor em reconhecer o direito do credor, o que não sucederia se se admitisse como eficaz o reconhecimento feito perante um terceiro (…). Aquele que declara perante terceiro que existe certo direito pode fazê-lo com leviandade maior do que se essa declaração fosse feita perante o próprio titular”(cf. Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, BMJ nº 106, pag. 226/227, citado por Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª edição, p. 269).

Neste particular, resulta da matéria de facto provada que nos balancetes da TVT e nas IES (Informação Empresarial Simplificada) consta a menção ao crédito dos seus ex-accionistas por via da venda das acções representativas de 97,75% do capital social feita pela CDG à G..., SGPS, S.A., nelas se incluindo as ações da ora Recorrida representativas do capital social da TVT no montante de €1.701.972,11. (factos 30 a 38.).

No entanto, deu-se como não provado, que “ b) nas IES, referidas nos factos 31. a 38., a TVT reconheceu o crédito reclamado pela Autora; c. Que a TVT reconheceu a dívida à Autora pelo menos até à apresentação, em 16.07.2019, da IES relativa ao ano de 2018.

O IES, ou Informação Empresária Simplificada, criada pelo DL nº 8/2007 de 17.01., com vista a simplificar o cumprimento das obrigações fiscais e legais das empresas, consiste numa declaração anual que reúne várias declarações para fins contabilísticos, fiscais, estatísticos e legais.

É obrigatória para todas as empresas e empresários com contabilidade organizada, sendo apresentada por via electrónica na Autoridade Tributária, através do Portal das Finanças.

Como documentos particulares que são, os factos compreendidos nas declarações de IES consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (art. 376º, nº2 do CCivil).

Assim, quando nas IES a Recorrente reconhece os créditos dos seus ex-accionistas por virtude da venda das acções, este facto deve considerar-se plenamente provado (art. 358º, nº2 do CC).

Acresce que o art. 75º da Lei Geral Tributária consagra uma presunção de verdade e de boa fé nas declarações apresentadas pelos contribuintes, ao estabelecer que: “Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”

Assim, as instâncias ao darem como não provado que “nas IES, referidas nos factos 31 a 38, a TVT reconheceu o crédito reclamado pela Autora” e que “a TVT reconheceu a dívida à Autora pelo menos até à apresentação, em 16.07.2019, da IES relativa ao ano de 2018”, violaram “disposição expressa da lei que fixa a força de um determinado meio de prova”, o que autoriza o STJ a excepcionalmente alterar a matéria de facto (arts.674º, nº3 e 682º, nº2 do CPCivil).

Em consequência, elimina-se da matéria de facto não provada os factos referidos sob as alíneas b) e c).


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Os factos provados, nomeadamente sob os nºs 33, 34, 35, 36 e 38, evidenciam sem margem para dúvidas que a Recorrida reconheceu os créditos dos seus ex-accionistas em consequência das venda pela CGD das acções representativas de 97,75% do seu capital social, nelas se incluindo as acções da Recorrente.

As informações constantes da IES são de acesso público (art. 10º, nº6, do DL nº 8/2007).

O reconhecimento do crédito da Autora feito nas IES, considera-se feito perante o titular para efeitos do nº1 do 325º, merecendo a nossa concordância o que a Recorrida diz nas alíneas V e W supra transcritas.

Tendo a Recorrido reconhecido a existência do crédito da Autora ainda na declaração de IES que apresentou em 2019, que vale como reconhecimento do direito para efeitos do art.325º do CC, e a data da citação da Ré na acção, em 14.07.2021, não ocorre a prescrição do direito.


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Aqui chegados, cumpre verificar se se verificam os pressupostos do enriquecimento sem causa.

A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem justa causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios, que de outro modo não era possível obter-se (Rodrigues Bastos, Das obrigações em Geral, II 1972 e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º, 2001, pag. 45).

Por isso, se atribui à acção de enriquecimento sem causa o fim de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido (PEREIRA COELHO, O enriquecimento e o dano, 2003, pag. 36).

A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento sem causa, pressupõe, nos termos do disposto no art. 473º, nº1 do CCivil, a verificação cumulativa de três requisitos: o enriquecimento de alguém; o enriquecimento sem causa justificativa; ter sido obtido à custa de quem requer a restituição, (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, pag. 480 e sgs).

No caso, verificam-se estes três requisitos, como bem decidiu a 1ª instância:

“ Tendo a Autora procedido ao pagamento parcial de uma dívida à CGD que era da TVT, encontra-se demonstrado o “enriquecimento” por parte desta e o empobrecimento daquela. E, no enriquecimento por despesas efetuadas, o requisito “à custa de outrem”, reconduz-se à averiguação de qual foi o património que suportou economicamente a despesa, uma vez que só o titular deste património tem legitimidade para recorrer à pretensão de enriquecimento.

E no caso em apreço, o enriquecimento da TVT, a agora aqui Ré, carece de causa justificativa, uma vez que nenhuma relação contratual existia entre a ela e a Autora que justificasse o benefício atribuído àquela com o pagamento da dívida à CGD por incumprimento do contrato de financiamento celebrado.”

Em caso em tudo idêntico, numa acção proposta também por um ex-accionista da TVT, este Supremo Tribunal, acórdão de 06.06.2019, P. 593/14.5TBTNV.E2.S2, desta sessão, reconheceu o enriquecimento sem causa, tendo consignado:

Não há dúvida de que a Recorrente beneficiou da vantagem da venda das ações da sociedade, entretanto liquidada, entregues como uma das garantias (penhor) do contrato de financiamento, celebrado entre a E e a Recorrente. Efectivamente, através de acto de terceiro, a Recorrente deixou de ter o correspondente débito para com a mutuante, em particular à custa da sociedade titulara das ações.

Sustenta a Recorrente que a pretensão dos AA é ilegítima, por constituir um abuso de direito, na modalidade de supressio.

Nos termos do art. 334º do CCivil, “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Na formulação genérica do art. 334º cabem diversas categorias doutrinárias do abuso de direito, entre as quais a supressio.

A supressio é uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inação do titular do direito.

Nas palavras de Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, parte geral, pag. 323, “a supressio por não dispor da precisão facultada pelo factum proprium (por definição, uma actuação positiva), vai requerer circunstâncias colaterais que melhor alicercem a confiança do beneficiário (...). Ela deverá, para ser relevante, reunir os elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida.”

No acórdão deste STJ de 12.01.2021, P. 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1, fez-se aplicação desta modalidade de abuso de direito, nele se tendo consignado:

“A supressio traduz-se no não exercício do direito durante um certo lapso de tempo, suscpetível de criar na contraparte a confiança de que esse direito não mais será exercido. Mas não basta o exercício tardio do direito. É necessário que se atenda ao poder dos factos e sejam ponderadas todas as circunstâncias do caso, à luz do princípio da boa fé, e ainda que se verifique a obtenção de uma vantagem excessiva para o titular do direito, acompanhada da imposição de sacrifícios relevantes e injustificados para a contraparte.”

Posição esta reiterada no acórdão deste STJ de 28.06.2023, P. 9036/19:

“No quadro da jurisprudência consolidada do STJ, não é o simples decurso do tempo de inação do credor que permite concluir, automaticamente, pela existência de um comportamento abusivo.

Para se concluir pela existência de abuso de direito, na modalidade de supressio, terão de ser demonstradas circunstâncias de que, para além de determinado tempo de inação, o credor já não exercerá o direito.”

Circunstâncias estas que não se verificam, pelo que não se pode concluir que a Autora ao exercer o direito o está a fazer de forma reprovável, atentatória dos princípios da boa fé.

Termos em que o recurso improcede, e embora com diferente fundamentação, confirma-se o acórdão recorrido.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 17.04.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Pinto Oliveira (1º Adjunto)

Nuno Ataíde das Neves (2º Adjunto)