Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B2871
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: FALÊNCIA
CONCURSO DE CREDORES
CRÉDITO LABORAL
MÚTUO
HIPOTECA
Nº do Documento: SJ200609210028717
Data do Acordão: 09/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. Os privilégios imobiliários gerais não se consubstanciam em garantia real de cumprimento de obrigações por não incidirem sobre imóveis certos e determinados, funcionando apenas como causas de preferência legal de pagamento.
2. O conflito em relação aos mesmos bens imóveis entre a garantia especial de cumprimento obrigacional decorrente de privilégio imobiliário geral e de hipoteca resolve-se por via da aplicação do disposto no nº 1 do artigo 749º do Código Civil.
3. No processo de falência, os direitos de crédito garantidos por hipoteca sobre imóveis apreendidos para a massa prevalecem sobre os direitos de crédito da titularidade de trabalhadores garantidos por privilégio imobiliário geral.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I
A Empresa-A e a Empresa-B reclamaram no processo apenso ao da declaração da falência de Empresa-C, cuja data foi fixada no dia 29 de Maio de 2000, direitos de crédito da sua titularidade, no montante global, respectivamente, de 230 880 543$ e de 149 951 338$.
Por sentença proferida no dia 20 de Dezembro de 2004, que procedeu à graduação dos créditos, posicionou os direitos de crédito daqueles reclamantes garantidos por hipoteca depois dos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores garantidos por privilégio imobiliário geral.

Apelaram os referidos reclamantes, e a Relação, por acórdão proferido no dia 9 de Março de 2006, negou provimento ao recurso.
Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- o artigo 751º do Código Civil só é aplicável aos créditos com garantia imobiliária especial;
- aos créditos dos trabalhadores, que gozam de privilégio imobiliário geral, é aplicável o disposto no artigo 749º do Código Civil e, por isso, não preferem à hipoteca;
- o privilégio imobiliário geral não pode prejudicar direitos de terceiros registados sobre os bens, devendo no concurso da garantia especial da hipoteca e a geral dos trabalhadores prevalecer aquela;
o acórdão recorrido violou as normas constantes dos artigos 749º e 751º do Código Civil
- são inconstitucionais, por violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica a que se reporta o artigo 2º da Constituição, as normas da alínea a) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, e da alínea a) do artigo 4º da Lei nº 96/2001, quando interpretadas no sentido de que os créditos dos trabalhadores prevalecem sobre os créditos hipotecários;
- deve o acórdão ser revogado em consonância com os referidos juízos de legalidade e de constitucionalidade, por forma a que os créditos dos recorrentes garantidos por hipoteca sejam graduados preferencialmente aos créditos dos trabalhadores garantidos por privilégio imobiliário geral.

"AA" e outros formularam, por seu turno, as seguintes conclusões de alegação:
- por força do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, e 4º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, os seus créditos derivados de salários em atraso e outros derivados do contrato trabalho gozam de preferência em relação aos créditos dos recorrentes garantidos por hipoteca;
- os seus créditos foram graduados em primeiro lugar nos termos da lei e não há violação do artigo 2º da Constituição.

"BB", representado pelo Ministério Público, formulou, por seu turno, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- por força de lei especial - artigos 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, e 4º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto - o seu direito de crédito prevalece sobre os dos recorrentes garantidos por hipoteca
- trata-se de leis especiais, que revogam o regime geral que dimana do Código Civil, pelo que importa aplicar o regime do artigo 751º e não o do artigo 749º, ambos do Código Civil;
- o seu direito de crédito garantido por privilégio imobiliário prevalece sobre o direito de crédito dos recorrentes garantido por hipoteca;
- inexiste a inconstitucionalidade invocada pelos recorrentes.

"CC" respondeu, por seu turno, em síntese de alegação:
- a graduação do seu direito de crédito garantido por privilégio imobiliário geral antes do direito de crédito dos recorrentes garantido por hipoteca, por força do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, decorre do nº 3 do artigo 59º da Constituição;
- não há razão para afastar no caso a norma do artigo 751º do Código Civil, que se refere aos privilégios em sentido amplo;
- não é inconstitucional a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca;
- a alteração dos artigos 735º e 751º do Código Civil pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, só vale para o futuro, e ainda se tratasse de alteração meramente interpretativa, tinha que ser salvaguardado o efeito já produzido nos termos do nº 1 do artigo 13º do Código Civil.

"DD" , respondeu, por seu turno, em síntese de alegação:
- o artigo 751º do Código Civil, que vigorava à data do vencimento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, refere-se a privilégio imobiliário em sentido amplo, independentemente de ser geral ou especial;
- a entender-se dever aplicar-se o artigo 751º do Código Civil na sua redacção actual, terá de se aplicar também o artigo 377º do Código do Trabalho, segundo o qual os créditos dos trabalhadores preferem à hipoteca, mantendo o nível de protecção anteriormente atribuído aos créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação;
- o facto de os privilégios imobiliários não estarem sujeitos a registo não afecta a segurança do comércio jurídico nem o princípio do Estado de direito, uma vez que são estabelecidas por lei, do que decorre o conhecimento da sua existência por todos os intervenientes no comércio jurídico de forma mais eficaz que o próprio registo.

II
É a seguinte a dinâmica processual, declarada assente no acórdão recorrido, que releva no recurso:
1. Várias pessoas, trabalhadores, incluindo AA, BB, CC e DD, reclamaram direitos de crédito resultantes da extinção de contratos de trabalho sobre os bens móveis e imóveis integrantes da massa falida.
2. A Empresa-A reclamou o pagamento da quantia de 230 880 533$ resultante de contrato de mútuo com garantia hipotecária no valor de 37 964 042$, relativos ao capital de
28.000.000$, juros compensatórios de 591 070$, juros de mora no montante de 8 989 739$ e imposto do selo com o valor de 383 233$, de uma confissão de dívida com garantia hipotecária com o valor de 129 373 215$ - 109 000 000$ de capital, 19 589 630$ de juros moratórios e compensatórios e 783 585$ de imposto do selo, e de um contrato de abertura de crédito, datado de 21 de Janeiro de 1998, com o valor de 63 543 276$ - 39 511 908$ de capital e o restante de juros e imposto de selo.
3. O Empresa-B reclamou o pagamento de 149 951 338$, resultante de um contrato de mútuo no valor de 112.000.000$, e juros de mora no valor de 36 491 671$ e imposto de selo no valor de 1 459 667$.
4. A requerida, por um lado, e A Empresa-A e o Empresa-B, por outro, declararam, a primeira constituir hipoteca a favor dos últimos sobre o prédio apreendido pela a massa falida para garantia de pagamento dos montantes mencionados sob 2 e 3, respectivamente.
5. A Empresa-A e o Empresa-B são titulares de hipoteca sobre o prédio apreendido para a massa falida objecto de registo predial.
6. O crédito da Empresa-A no montante de 37 964 042$, e o crédito do Empresa-B, no montante de 149 951 338$, foram, na sentença de verificação e graduação de créditos proferida no tribunal da 1ª instância, declarados na mesma posição, rateadamente, por virtude da simultaneidade da constituição de ambas as hipotecas, e a seguir o crédito da primeira de 129 373 215$ em razão de a respectiva hipoteca ter sido constituída depois da acima mencionada.
7. Na referida sentença de verificação e graduação de créditos, pelo produto do prédio apreendido para a massa falida, foi decidida a seguinte ordem de graduação de créditos: rateadamente os créditos dos trabalhadores; os créditos reclamados pela Empresa-A, no montante de € 189 363, 84 e Empresa-B, no montante de € 747 954,12, rateadamente; Empresa-A, no montante de € 645 310,88.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o direito de crédito reconhecido aos recorrentes deve ou não ser graduado antes do direito de crédito dos recorridos que reclamaram direitos de crédito decorrentes de contratos de trabalho.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei falimentar e relativa aos privilégios imobiliários aplicável na espécie;
- estrutura e efeitos do direito de hipoteca voluntária;
- estrutura e efeitos dos privilégios creditórios imobiliários;
- graduação de créditos de trabalhadores no processo de falência;
- a ordem de graduação dos direitos de crédito dos recorrentes e dos recorridos;
- a interpretação das normas conducentes à referida solução jurídica infringe alguma norma ou algum princípio constantes da Constituição?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação da lei falimentar e relativa aos privilégios imobiliários aplicável na espécie.
O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, foi substituído pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2004, de 19 de Março, que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2004.
Mas o actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não é aplicável ao concurso de credores em análise (artigo 12º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 57/2004, de 19 de Março).
Por isso, é aplicável, no caso espécie, o que se prescreve no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa de Falência - CPEREF.
O Código do Trabalho, que contém o novo regime dos privilégios mobiliários que servem de garantia dos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores, entrou em vigor no dia 28 de Agosto de 2004, 30 dias depois da publicação da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho, que regulamentou a Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto (artigos 3º e 21º, nº 2, alínea e)).
O artigo 377º do referido Código, que se reporta aos mencionados privilégio, é aplicável a todos os direitos de crédito dos trabalhadores constituídos desde o dia 28 de Agosto de 2004, independentemente de derivarem de relações jurídicas laborais ou de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados, conforme os casos, antes ou depois daquela data.
Apenas se exceptuam do mencionado regime, com a consequência de dever aplicar-se o pertinente regime anterior, os direitos de crédito laborais que se tenham constituído antes de 28 de Agosto de 2004 no âmbito de contratos de trabalho que se tenham extinguido anteriormente.
Assim, não é aplicável aos direitos de crédito laborais constituídos antes de 28 de Agosto de 2004 por via de contratos de trabalho que anteriormente se tenham extinguido.
Como no caso vertente os direitos de crédito reclamados pelos trabalhadores se constituíram antes de 28 de Agosto de 2004 por via de contratos de trabalho que se extinguiram, por via da declaração da falência, antes da mencionada data, certo é que o regime legal aplicável nesta matéria é o de pretérito, ou seja, o previsto nos artigos 737º, nº 1, alínea d), do Código Civil, 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, e 4º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto (artigo 12º, nº 1, do Código Civil).
No acórdão recorrido expressa-se que os créditos laborais em causa se venceram em Junho de 2001, ou seja, antes de 15 de Setembro de 2003, data em que começou a vigorar a alteração dos artigos 735º, nº 3, 749º e 751º do Código Civil implementada pelo artigo 5º do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (artigo 23º).
Todavia, essa circunstância não assume qualquer relevo no quadro da aplicação do artigo 749º do Código Civil no âmbito da sucessão de leis no tempo, porque o nº 1 mantém a redacção anterior do mesmo artigo, e o nº 2 não tem aplicação no caso vertente.
Ademais, a alteração do disposto no nº 3 do artigo 735º e do artigo 751º, ambos do Código Civil, dada a sua estrutura normativa, visou o esclarecimento de dúvidas que se suscitavam no âmbito da aplicação daqueles normativos.
Trata-se, por isso, de normas interpretativas, que, nos termos do nº 1 do artigo 13º do Código Civil se integram nos normativos que visaram esclarecer, sem que se verifique, ao invés do que afirmou o recorrido José Augusto, a restrição a que alude a segunda parte daquele normativo.
Em consequência, é eventualmente aplicável na espécie o disposto no nº 3 do artigo 735º, no nº 1 do artigo 749º e no artigo 751º, todos do Código Civil, sem que isso implique, ao invés do que o mencionado recorrido alegou, a aplicação do artigo 377º do Código do Trabalho.
Importa, no entanto salientar que a aplicação na espécie das normas dos artigos 735º, nº 3, 749º e 751º, na redacção anterior à implementada pelo artigo 5º do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, não conduzia a solução jurídica diversa do litígio em causa.

2.
Atentemos agora na estrutura e efeitos do direito de hipoteca voluntária em causa.
No caso vertente, estamos perante a apreensão de uma coisa imóvel, isto é, um prédio urbano (artigo 204º, nº 1, alínea a), do Código Civil).
Entre as hipotecas contam-se as voluntárias, ou seja, as que resultam de contrato ou de declaração unilateral (artigo 712º do Código Civil).
Os representantes de Empresa-C declararam que ela constituía a favor dos recorrentes Empresa-A e Empresa-B hipoteca sobre o prédio, que depois foi apreendido para a massa falida, para garantia de direitos de crédito da titularidade dos últimos derivados de contratos de mútuo (artigo 687º do Código Civil).
Tendo os referidos direitos de hipoteca sido objecto de registo, eles produzem efeitos em relação à massa falida e a terceiros, designadamente no confronto dos outros credores reclamantes que com os recorrentes concorrem sobre o mencionado imóvel (artigo 687º do Código Civil).
A hipoteca consubstancia-se em garantia real de cumprimento de obrigações presentes ou futuras, condicionais ou incondicionais, conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686º do Código Civil).
É, pois, de salientar que, em geral, o direito de crédito do credor hipotecário relativamente a determinado imóvel só cede perante o direito de crédito dos credores que disponham de algum privilégio imobiliário especial ou de prioridade de registo.

3.
Vejamos agora a estrutura e os efeitos dos privilégios creditórios imobiliários.
Os privilégios creditórios em geral consubstanciam-se na faculdade que a lei, em atenção à causa do direito de crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros (artigo 733º do Código Civil).
Distinguem-se em mobiliários e imobiliários, consoante incidam sobre bens móveis ou imóveis.
São gerais se abrangerem todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente, e especiais se compreenderem o valor de determinados bens móveis (artigo 735º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil são sempre especiais (artigo 735º, n.º 3, do Código Civil).
Depois da entrada em vigor do Código Civil, leis especiais instituíram vários privilégios imobiliários gerais, com o que afectado ficou o referido normativo enquanto expressa que os privilégios imobiliários são sempre especiais.
De entre os referidos privilégios, só os especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento.
O privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas por ele abrangidas, sejam oponíveis ao exequente (artigo 749º, nº 1, do Código Civil).
Sobre a solução do conflito entre os privilégios imobiliários especiais e os direitos de terceiro rege o artigo 751º do Código Civil, segundo o qual, os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas últimas garantias sejam anteriores.

4.
Atentemos agora na ordem graduação de créditos de trabalhadores no processo de falência.
Relativamente aos direitos de crédito relativos a salários em atraso da titularidade de trabalhadores rege a Lei 17/86, de 14 de Junho, a qual estabelece gozarem de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral (artigo 12º, nº 1).

No que concerne aos direitos de crédito dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não previstos na Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, reclamáveis em processos de falência, rege a Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, segundo a qual gozam, em regra, de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral (artigo 4º. nº 1).
Os direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores a que alude a Lei nº 17/86, de 14 de Junho, que gozem de privilégio imobiliário geral, são graduados antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e dos créditos relativos a contribuições devidas à segurança social (artigo 12º, nº 3, alínea b)).
Por seu turno, os direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não previstos na Lei 14/86, de 14 de Junho, reclamáveis nos processos de falência, que gozem de privilégio imobiliário geral, a que se reporta a Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, são também graduados antes dos créditos previstos no artigo 748º do Código Civil e dos créditos da titularidade da segurança social (artigo 4º, alínea b)).
Em consequência, no dia 25 de Agosto, data da entrada em vigor da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, também os direitos de crédito indemnizatório da titularidade dos trabalhadores passaram a ser garantidos por privilégio imobiliário geral, tal como os derivados de salários em atraso a que se reporta a Lei nº 17/86, de 14 de Junho.
Assim, a Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, alterou a preferência de pagamento dos direitos de crédito dos trabalhadores consubstanciada, além do mais, em privilégio creditório imobiliário, tal como o regime da respectiva graduação nos processos instaurados ao abrigo do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
Ainda que anteriores ao início da vigência da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, são os referidos direitos de crédito envolvidos da preferência de pagamento a que alude o n.º 3 do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, embora com a salvaguarda de, em caso de concurso entre eles e aqueles a que for aplicável a última das referidas leis, os últimos assumirem preferência de pagamento em relação aos primeiros (artigo 4º, n.º 3, da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto).

5.
Vejamos agora a ordem de graduação dos direitos de crédito dos recorrentes e dos recorridos.
Na sentença deve o juiz proceder à verificação e graduação dos créditos, sendo que esta é geral para os bens da massa falida e especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia (artigo 200º, nºs 1 e 2, do CPEREF)
O privilégio imobiliário geral incide sobre os imóveis, e constitui-se aquando da constituição do direito de crédito a que se reporta, embora a sua eficácia dependa e ocorra com o respectivo acto de penhora ou de apreensão para a massa falida, consoante os casos.
As Leis nºs 17/86, de 14 de Junho, e 96/2001, de 20 de Agosto, não contêm normas reguladoras do conflito entre o privilégio imobiliário geral garantia de direitos de crédito a que se reportam, da titularidade de trabalhadores, e os direitos de hipoteca garantia de direitos de crédito de outrem sobre os mesmos bens.
Importa, porém, ter em conta que os privilégios imobiliários gerais não incidem sobre bens certos e deter­minados, pelo que não funciona a sequela que é própria dos direitos reais de garantia, antes se configurando, conforme já se referiu, como meras preferências legais de pagamento.
A referida lacuna não pode ser suprida por via da aplicação, na espécie, do disposto no artigo 751º do Código Civil, porque este normativo se reporta a privilégios imobiliários especiais, cuja estrutura é essencialmente diversa da dos privilégios imobiliários gerais.
Atendendo ao elemento negativo ausência de sequela, a similitude que se impõe ao intérprete é entre privilégios imobiliários gerais e privilégios mobiliários gerais (artigo 10º, n.º 2, do Código Civil).
A referida lacuna deve, por isso, ser suprida por via de uma regra equivalente à do n.º 1 do artigo 749º do Código Civil, segundo a qual, os direitos de crédito da titularidade de trabalhadores garantidos por privilégios imobiliários gerais constantes das Leis nºs 17/86, de 14 de Junho, e 96/2001, de 20 de Agosto, são preteridos pelos direitos de crédito de outrem garantidos por hipoteca.
A circunstância de os artigos 12º, nº 3, alínea b), da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, e 4º, nº 1, alínea b), da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, estabelecerem que os direitos de crédito a que se reportam são graduados antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil não assume qualquer relevo para a resolução do conflito relativo à graduação de direitos de crédito garantidos por direitos de hipoteca e de privilégio imobiliário sobre os mesmos imóveis penhorados ou apreendidos.
Com efeito, o referencial de prevalência, no quadro da graduação de direitos de crédito a que se reportam os mencionados normativos, são créditos que já nem existem, que eram de entidades públicas, situação essencialmente diversa da que envolve os direitos de crédito em geral garantidos por direito de hipoteca.
Fica, por isso, prejudicado o conhecimento da questão de saber se a interpretação da alínea a) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, e a alínea a) do artigo 4º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, em sentido contrário da aqui operada infringe ou não os princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos na ideia de Estado de direito constante do artigo 2º da Constituição (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2 e 726º do Código de Processo Civil).

6.
Atentemos agora na sub-questão de saber se a interpretação das normas conducentes à referida solução jurídica infringe ou não alguma norma ou algum princípio constantes na Constituição.
Alegou o recorrido CC que a graduação do seu direito de crédito garantido por privilégio imobiliário geral antes do direito de crédito dos recorrentes garantido por hipoteca, por força do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, decorre do nº 3 do artigo 59º da Constituição.
Expressa o nº 3 do artigo 59º da Constituição que os salários gozam de garantias especiais nos termos da lei.
Remete, assim, o referido normativo constitucional, integrado no artigo relativo aos direitos dos trabalhadores, para a lei ordinária o estabelecimento das garantias especiais dos direitos de crédito de salário da titularidade dos trabalhadores em geral.

Daí que a interpretação das normas das alíneas a) do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho e do artigo 4º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, 755º, nº 3, 749º, nº 1 e 751º do Código Civil, no sentido em que o foi, seja insusceptível, como é natural, de infringir o nº 3 do artigo 59º da Constituição.

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
É aplicável na espécie o Código de Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência de 1993.
No plano substantivo é aplicável ao caso vertente o disposto nos artigos 12º da Lei nº 14/86, de 14 de Junho, e 4º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, a par do que estabelecem os artigos 735º, nº 3, 749º, nº 1 e 751º do Código Civil, destes últimos, o primeiro e o último meramente interpretativos das normas anteriores.
Os privilégios imobiliários gerais não se consubstanciam em garantia real de cumprimento de obrigações, por não incidirem sobre imóveis certos e determinados, funcionando apenas como causas de preferência legal de pagamento.
O conflito entre a garantia especial de cumprimento obrigacional decorrente de privilégio imobiliário geral e de hipoteca é legalmente resolvido por via da aplicação do disposto no nº 1 do artigo 749º e não do que se prescreve no artigo 751º, ambos do Código Civil
Em consequência, o direito de crédito dos recorrentes garantido por hipoteca prevalece na graduação em causa, em relação ao produto do prédio apreendido para a massa falida, sobre o direito de crédito dos recorridos garantido por privilégio imobiliário geral.
A solução interpretativa da lei nesse sentido não infringe o disposto no nº 3 do artigo 59º da Constituição.

Procede, por isso, o recurso.
Vencidos, seriam os recorridos responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, com base no valor dos direitos de crédito que cada um dos recorrentes pretendeu fazer valer (artigos 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 9º, nº 4, do Código das Custas Judiciais).
Todavia, para efeito de custas, o processo de falência, cujas custas são da responsabilidade da massa falida, abrange a fase de verificação do passivo, incluindo as relativas ao recurso em causa (artigos 248º, n.º 2, e 249º, n.º 2, do CPEREF).


IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido e gradua-se o direito de crédito dos recorrentes garantido por hipoteca imediatamente antes dos direitos de crédito dos recorridos e dos outros reclamantes de créditos derivados de contratos de trabalho no confronto do prédio apreendido para a massa falida.

Lisboa, 21 de Setembro de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís