Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
53/12.9TTVIS.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: REMISSÃO ABDICATIVA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO / REMISSÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / ACTOS DAS PARTES ( ATOS DAS PARTES ) / APRESENTAÇÃO A JUÍZO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, p. 247 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º1, 246.º, 247.º, 253.º A 256.º, 374.º, N.º1, 376.º, N.ºS 1 E 2, 787.º, N.º1, 863.º.
LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO.
PORTARIA N.º 114/2008, DE 6 DE FEVEREIRO,
PORTARIA N.º 1538/2008, DE 30 DE DEZEMBRO.
PORTARIA N.º 280/2013: - ARTIGO 15.º, N.º 4 (MANTÉM A ORIENTAÇÃO QUE JÁ VINHA DO N.º 4 DO ART. 14.º-C DA PORTARIA N.º 1538/2008, DE 30-12).
Sumário :

I – Cessada a relação juslaboral, o ex-trabalhador pode dispor livremente dos (eventuais) créditos laborais resultantes do contrato findo, da sua violação ou cessação, por terem deixado de subsistir os constrangimentos psicológicos existentes durante a constância do vínculo.

II – A remissão é uma das causas de extinção das obrigações, traduzindo-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe seja devida, feita com a aquiescência da contraparte, que, embora não conste do texto do documento que contém a declaração – e não tem que constar necessariamente, por se tratar de um negócio não formal –, se revela, de forma clara, no contexto, seja pela sua não-impugnação, seja pela sua junção aos autos com invocação do respectivo teor.

III – A invalidade/ineficácia de tal declaração negocial, consubstanciada em documento particular cuja assinatura foi reconhecida/não-impugnada pelo emitente, (só) pode ser questionada se/quando ocorra falta de consciência ou um qualquer outro vício da vontade, endógeno ou induzido por terceiro (v.g. erro, dolo, coação).

Decisão Texto Integral:

         Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                                                                                   I.

1.

AA instaurou, no (extinto) Tribunal do Trabalho de Viseu, a presente ação, com processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra BB, ambos adequadamente identificados, pedindo que se declare justa a causa de resolução de contrato de trabalho celebrado entre o A. e o R. e se condene este a pagar-lhe a quantia de € 61.150,00, acrescida dos juros legais.

Alegou, para tanto e em síntese, que esteve ligado ao R. por contrato de trabalho, desde 1997, desempenhando as funções de pedreiro, e que nunca o R. lhe pagou a retribuição mínima correspondente a tal categoria, prevista nos IRCT’s aplicáveis.

Nunca gozou férias ou recebeu o respetivo subsídio, não lhe tendo o R. pago o vencimento de diversos meses, que identifica.

Em 12/10/2010, o Autor sofreu um acidente de trabalho e, na respetiva ação, o R. foi responsabilizado pelo pagamento de parte do capital de remição, uma vez que não havia declarado à seguradora a totalidade dos montantes auferidos mensalmente pelo trabalhador.

Após a alta, nunca mais o R. foi buscar o A. à sua residência, como acontecia anteriormente.

Em 28 de Junho de 2011, o R. comunicou ao A. que decidira instaurar-lhe um processo disciplinar por alegadas faltas injustificadas.

Em 12 de Julho de 2011, o A. comunicou ao R. a resolução, com justa causa, do contrato de trabalho, invocando, para o efeito, que:

- O R. deixou de lhe fornecer meio de transporte;

- Nunca lhe pagou a retribuição mínima para a função;

- Também nunca lhe foi dada a oportunidade de gozar férias, nunca lhe ter sido paga qualquer quantia a título de retribuição de férias, subsídio de férias ou de Natal, não tendo o R. feito os devidos descontos para a Segurança Social.

2.

O R. contestou, dizendo, em resumo, que o A., em 16 de Setembro de 2011, subscreveu declaração da qual consta que “nada mais lhe é devido a que título for, quer a título de remição, quer a título de créditos laborais”.

O A. começou a trabalhar para o R. em 1 de Março de 2001, tendo dado catorze faltas injustificadas seguidas, razão pela qual lhe instaurou procedimento disciplinar com vista ao seu despedimento.

Em 28 de Junho de 2011, o Réu endereçou ao Autor a respetiva nota de culpa.

Por outro lado, a base da retribuição do Autor foi sempre o salário mínimo, já que não trabalhava, por mês, mais do que dez a onze dias.

  A função do Autor era fazer massa e carregar baldes para os colegas.

As férias foram gozadas e pagas, nada lhe sendo devido a título de férias e subsídio de férias.

O Autor respondeu à contestação.

Discutida a causa, foi proferida sentença que condenou o R. a pagar ao A. a quantia de € 12 439,53, acrescida de juros, à taxa legal, nos termos sobreditos, contados a partir de 20.01.2012, até integral pagamento.           

                                

  3.

  Inconformadas com tal decisão, ambas as partes apelaram.

No acórdão que conheceu dos recursos deliberou-se julgar procedente a apelação do R. e improcedente o recurso do A., revogando a sentença e absolvendo o R. da totalidade do pedido.

O A., ainda irresignado, traz-nos a presente Revista, cuja motivação conclui assim:

- O documento-declaração em apreço foi feita pelo punho do advogado, que ali declarou que ao A. nada mais era devido a título de créditos laborais; estes são de data anterior a estes autos, nada tendo a declaração a ver com o presente processo.

- A declaração genérica do trabalhador, dizendo que a entidade patronal nada lhe deve, a título de créditos laborais, sem os concretizar e quantificar, não pode ter um sentido de declaração quitação liberatória/confissão de pagamento, muito menos, antes da sua liquidação/quantificação e exigibilidade dos mesmos.

 - O ónus da prova do pagamento – como exceção perentória que é – incumbe à entidade patronal, o que esta não fez, nem podia fazer nos presentes autos. Aliás:

- Conforme se disse, tais créditos, no momento da sua emissão, não se encontravam quantificados, nem estavam peticionados.

 - Ainda que assim não fosse, isto é, que tal declaração se referisse aos créditos atinentes a este contrato, nem tal declaração, que tem natureza de um mero recibo de quitação, poderá ter a virtualidade de inverter o ónus da prova sobre este aspeto, pois, nos termos do artigo 787.º, n.º 1, do Código Civil, "Quem cumpre a obrigação, tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita,", e, por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição refere que …o autor do cumprimento pode recusar a prestação, enquanto a quitação não for dada.

- Isto não significa que as regras do ónus da prova do pagamento se invertam, ou seja, apesar dessa declaração de quitação, o ónus do pagamento de tais créditos impende sobre o Réu, (entidade patronal), que não o fez …

- Muito mais estranho quando essa declaração tem data anterior aos presentes autos e até ao vencimento de alguns créditos que estão aqui a ser peticionados.

- O que quer dizer que essa declaração jamais poderá dizer respeito a estes autos, nem pode ter o efeito que se lhe quis atribuir, sob pena de haver uma inversão das regras do ónus da prova.

Violaram-se, pelo menos, os arts. 787.º e 342.º do CC.

O R. respondeu, concluindo, por sua vez, nestes termos:

- O douto Acórdão proferido pela Relação não merece o mais pequeno reparo, encontrando-se devida e detalhadamente fundamentado e explicado, pelo que não deverá ser dado provimento ao recurso interposto pelo Recorrente;

- Desde logo por ser discutível a sua admissibilidade, porquanto o presente processo corre termos já ao abrigo da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que contém a regra prevista na alínea b) do artigo 1.º e n.º 1 do artigo 15.º do NCPC (Lei 41/2013, de 26 de Junho), artigos 144.º n.ºs 1 a 3, 7 e 8), art. 132.º, n.ºs l e 3 e art. 140.º, que consagra a inadmissibilidade do envio da interposição do recurso e alegações por correio sob registo;

- Deste modo, o recurso do Recorrente AA para o Supremo Tribunal de Justiça não deve ser sequer apreciado, ordenando-se o desentranhamento do mesmo dos presentes autos, mantendo-se a decisão contida no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, já transitada em julgado;

- Nas motivações de recurso por si interposto, o Recorrente começa por dizer, " que o Autor assinou o que assinou, a pedido e a mando do Sr. advogado, Dr. CC": nada mais falso, na medida em que, quando o Autor assinou o documento, o signatário não estava presente, tratando-se de um facto novo, não tendo sido alvo de apreciação, quer na primeira, quer na segunda instância;

- O Recorrente invoca factos novos e surpreendentes: só falta dizer que foi coagido pelo signatário a assinar a remissão abdicativa.

- Continua o Recorrente a faltar à verdade quando refere, no seu arrazoado torpe, que "foi este o documento que o Sr. Dr. CC, advogado do Réu, quiçá, lhe pôs à frente nesse processo, outro processo", como de um malabarista se tratasse, quando o signatário, conforme já foi dito supra, não esteve presente aquando da assinatura da remissão abdicativa;

- Tal insinuação brejeira consubstancia um facto novo e desrespeitoso, que igualmente não foi alvo de apreciação na primeira nem na segunda instância;

- As alegações de Recurso do Recorrente não passam de um embuste, utilizando, no seu todo, insinuações e falsidades, mais uma vez quando refere que o recorrente encontrava-se sozinho quando assinou a remissão abdicativa; trata-se de mais um facto novo descrito pelo recorrente que não foi alvo de apreciação na primeira e segunda instância.

- O acórdão é claro e cristalino, e faz a correta interpretação e aplicação do corpo normativo em causa. Se não vejamos: À data em que o recorrente assinou a remissão, 16/09/2011, já não era trabalhador do recorrido e não existia subordinação jurídica por parte do credor ao devedor;

- Em momento algum o recorrente impugnou a assinatura contida nesse documento, o que equivale a ter assumido a veracidade do mesmo; desta forma, os factos compreendidos na declaração, na medida em que são contrários aos seus interesses, consideram-se provados, não podendo ser infirmados por prova testemunhal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 1, 376.º, n.ºs 1 e 2 e 394.º, n.º 1, do CC, conforme descrito no douto Acórdão da Relação de Coimbra;

- Ademais, também não foi alegado que tal documento tenha sido subscrito pelo recorrido sob alguma forma de coação ou embuste, como pretendeu o recorrente fazer crer pela primeira vez nas suas alegações;

- A declaração foi assinada após o recebimento do valor e não antes; logo, a sua assinatura, para o efeito, correspondeu à data, à sua vontade, livre e esclarecida, pois caso não o fosse, poderia ter invocado o instituto do erro, o que não fez;

- O pagamento, da importância referida, associado à emissão daquela declaração, vale como aceitação da declaração negocial feita pelo trabalhador e o consenso, assim obtido, configura um contrato de remissão abdicativa;

- Vem agora o recorrente alegar que a declaração que assinou é genérica, quando a mesma é clara quanto à sua extensão ou alcance, fazendo alusão a duas situações distintas: a primeira, a título de remição e a segunda, a título de créditos laborais, sendo que a primeira não está sujeita a quaisquer formalidades, ao contrário do que acontece no acordo de cessação;

- A declaração feita pelo recorrente, em documento por si assinado, concedendo ao recorrido, sua ex-entidade empregadora, integral quitação, nada mais tendo a exigir, reclamar ou receber por efeito das relações que cessaram, é usualmente utilizada com um sentido liberatório e deve ser interpretada, à luz do disposto no n.º l do artigo 236.º do CC, como uma declaração negocial de remissão dos créditos emergentes da relação laboral e não como mera declaração de quitação, de forma que esteve bem, também aqui, o Acórdão da Relação de Coimbra, não merecendo qualquer reparo ou alteração;

- Vem o recorrente alegar que é ao recorrido que cabe fazer o ónus da prova, mas esquece-se que, na declaração que assinou, refere, de forma clara e inequívoca, que nada mais lhe é devido a título de créditos laborais; ora, tal declaração, conjugada com o facto de à data em que a mesma foi proferida não existir vínculo laboral e portanto, no âmbito de direitos inteiramente disponíveis…

- E não tendo a assinatura da declaração sido impugnada pelo recorrente, os factos compreendidos na mesma, na medida que são contrários aos seus interesses, consideram-se provados, não podendo ser infirmados por prova testemunhal, tudo nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 1, 376.º, n.ºs 1 e 2 e 394.º,  n.º 1, do CC, o que importa a extinção da relação creditória, obstando à procedência da pretensão de tutela jurídica pelo trabalhador, não tendo por via do descrito sido violado os artigos 342.º e 787.º do CC;

- Em conclusão, e bem, o Acórdão da Relação de Coimbra faz referência ao Acórdão proferido no âmbito do processo 493/11.0TTLRA.C1 (Relator Azevedo Mendes): “mesmo a circunstância de se tratar de uma declaração genérica, não discriminando os diversos créditos salariais, não invalida, por si só, essa conclusão, sob pena de como refere o Acórdão desta Relação de 19.01.2005, in www.dgsi.pt. processo 3598/04, se entrar em colisão com as normas que regem quer a figura da remissão, quer as próprias normas que regulam a forma de interpretar as declarações negociais, quer ainda o princípio da possibilidade de renúncia a direitos de natureza disponível”.

- Seja como for, e pelo que já se deixou dito supra, não tem cabimento as pretensões do Recorrente, devendo manter-se o Acórdão recorrido.

                                                                       ___

Já neste Supremo Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, consignando que se lhe afigura que …a declaração de quitação, tal como consta do documento de fls. 43, embora não discriminativa dos créditos salariais, consubstancia uma declaração negocial plenamente válida, através da qual o mesmo (o A.) renunciou a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação.

O parecer, notificado às partes, não suscitou reação.

                                                                       ___

                                                                               

                                                                               

4.                                                 

O ‘thema decidendum.’                            

Como flui do rol conclusivo que antecede – por onde se afere e delimita, por regra, o objeto da impugnação, inexistindo temáticas de conhecimento oficioso – é questão (única) a de aferir da validade/eficácia e alcance da declaração contida no documento de fls. 43 (remissão abdicativa).

Preparada a deliberação, cumpre conhecer.

   ___

 

    II.

                                               Dos Fundamentos

- De Facto

Vem estabelecida a seguinte materialidade:

1. O autor foi admitido por contrato verbal em 1 de março de 2001 para, sob a autoridade, direção e fiscalização do réu, exercer a atividade de pedreiro de 2.ª, mediante a retribuição mínima para a função;

2. No exercício das suas funções, o autor assentava pedra, em muros e moradias, picava pedra, assentava tijolo, e fazia alvenaria.

         3. O autor recebeu mensalmente:

         - No ano de 2001, € 400,00;

         - De 2002, inclusive, até 2011, inclusive, € 450,00, num total anual de € 5 400,00;

         4. Por acordo entre autor e réu, o autor não lhe prestava trabalho vários dias por ano;

5. O réu efetuou os descontos que entregou na Segurança Social, conforme fls. 99 a 105;

6. Fora convencionado que o autor auferiria a retribuição mínima para a categoria;

7. O autor prestava trabalho nas obras que o réu empreitava em diversos pontos do país, nomeadamente, concelhos de Tondela, Águeda, Oliveira de Frades, Vouzela, e outros concelhos limítrofes;

8. Por vezes o réu vinha de carro buscar o autor a sua casa, bem como os demais trabalhadores em caminho, que depois transportava para os seus locais de trabalho, nas obras de clientes, e, no final do dia, trazia novamente a casa;

         9. O autor nunca teve veículo de transporte, nem carta de condução;

         10. Bem sabe o réu que o autor não tem viatura nem carta de condução;

         11. A aldeia do autor e do réu não é servida por transportes públicos;

         12. Correu termos, no Tribunal do Trabalho de Viseu, sob o n.º 794/10.5 TTVIS, processo de acidente de trabalho em que era sinistrado o aqui autor, no âmbito do qual houve conciliação em 1 de Junho de 2011, vindo o aqui réu a ser responsabilizado pelo pagamento de uma parte do capital de remição (€ 587,58), uma vez que não haviam sido declarados, à seguradora, a totalidade dos rendimentos auferidos pelo trabalhador.

13. Após 1 de Junho de 2011, o réu não transportou o autor de casa para o trabalho; 

14. Em diversas ocasiões, após 1 de junho de 2011, de manhã, o autor ficava parado em local, onde noutras ocasiões fora recolhido pelo réu ou por alguém a seu mando, nomeadamente o filho, para o transportar para o trabalho;

15. O autor não trabalhou para o réu nos dias desde o dia 27 de maio de 2011 a 17 de junho do mesmo ano.

16. Em 15 de junho de 2011, o autor enviou ao réu carta registada com A/R, dessa mesma data e recebida a 17 de junho de 2011, dando conta ao réu de que ali continuaria presente diariamente, à espera que a entidade patronal o fosse buscar;

17. Uma carta do mesmo teor enviou o seu advogado, reiterando a carta do seu cliente;

18. O réu, em 17 de Junho de 2011, nomeou o advogado signatário da contestação, para instrutor do processo disciplinar do seu trabalhador, aqui autor;

19. Consta da nota de ocorrência que o autor deu catorze faltas seguidas injustificadas e que tal realidade foi presenciada pelos trabalhadores DD, EE e FF;

20. Em 20 de Junho de 2011, tais trabalhadores prestaram declarações perante o instrutor sobre os factos ocorridos a partir de 27 de Maio de 2011, assinando no fim os respetivos autos;

21. Em 22 de Junho de 2011, foi proferido, pelo instrutor, relatório onde concluiu haver indícios que permitiam dar lugar à abertura de um processo disciplinar ao ora autor;

22. Em 24 de Junho de 2011, o réu determinou a abertura de processo disciplinar ao autor com intenção de despedimento;

23. Foi realizado o termo de abertura do processo disciplinar pelo instrutor em 27 de Junho de 2011;

24. Em 28 de Junho de 2011, o réu endereçou ao autor carta registada com aviso de receção e a respetiva nota de culpa;

         25. Em 7 de Julho de 2011, o autor enviou a resposta à nota de culpa;

         26. O autor respondeu a essa nota de culpa, referindo a estranheza por ninguém o ir buscar à sua residência;

27. O autor requereu a inquirição de três testemunhas a saber: GG, HH e II, todos residentes em ...;

28. Em 8 de Julho de 2011, o instrutor do processo disciplinar enviou carta registada ao autor, solicitando-lhe que as testemunhas por ele indicadas comparecessem no seu escritório, a fim de serem ouvidas em auto de declarações;

29. Na data, hora e local designados as testemunhas do autor não compareceram, não justificaram a sua falta, nem solicitaram que fosse marcada nova data;

30. Perante tal silêncio, o instrutor endereçou nova carta ao autor, dando-lhe conta de que as testemunhas que tinha indicado não compareceram na data, hora e local designado, marcando nova data para serem ouvidos em auto de declarações;

31. De igual modo, na data, hora e local designados, as testemunhas do autor não compareceram nem justificaram a sua falta nem solicitaram o que quer que fosse;

32. Por carta enviada a 12 de julho de 2011, o autor declarou resolver o contrato de trabalho, invocando justa causa;

33. Foram os seguintes os fundamentos invocados pelo autor para a resolução do contrato:

O autor nunca auferiu a retribuição mínima nacional para aquela função, nos termos da convenção laboral; nunca lhe foi dada a oportunidade de gozar férias; nunca lhe foi paga qualquer quantia a título de subsídio de férias; nunca lhe foi paga qualquer quantia a título de retribuição de férias; nunca lhe foi paga qualquer quantia a título de subsídio de natal; nunca lhe foram pagos os descontos legais para a Segurança Social pelo trabalho prestado;

         34. A esta carta respondeu o réu, mediante a sua carta de 14 de julho de 2011;

         35. Em 26 de Julho de 2011, o réu enviou ao autor o relatório final, datado de 25 de Julho de 2011, entregue pelo instrutor, e proferiu a decisão, despedindo o autor com justa causa;

36. O autor subscreveu, a 16.09.2011, declaração de que «… nada mais lhe é devido a que título for, isto é, quer a título de remição, quer a título de créditos laborais.».

                                                        ___

         (Os factos elencados como ‘não provados’ não relevam, no geral, para a equação e solução da questão decidenda, à exceção do (31.) que respeita às circunstâncias (não provadas) em que foi produzida a declaração de setembro de 2011).

                                                                        ___

Não vindo posta em crise, é com base nesta factualidade que vai enfrentar-se e resolver-se a identificada questão.

                                                                       *****

- O Direito.

1.

Consideração prévia:

O recorrido suscita, nas contra-alegações, a hipótese da inadmissibilidade do envio para o Supremo Tribunal de Justiça, por correio, sob registo, do requerimento de interposição do recurso/alegações, invocando para o efeito a disciplina constante da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto.

Pretende significar com isso que o recurso não deveria ser sequer apreciado, subsistindo assim a decisão contida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, como tal transitada já em julgado.

Não tem razão.

Como vem sendo sustentado por esta Secção, a referida Portaria – que foi publicada por via e na sequência da entrada em vigor do novo C.P.C., aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho – implicou a revisão de várias matérias, dentre elas a da tramitação eletrónica de processos, alertando o legislador, desde logo, no respetivo preâmbulo, no sentido de que as mesmas não eram significativas relativamente ao regime anterior.

 Seguiram-se, portanto, as linhas de orientação que vinham da Portaria n.º 1538/2008, de 30 de dezembro, e que havia alterado e mandado republicar a Portaria n.º 114/2008, de 6 de fevereiro, a primeira a regular a apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica.

Visava-se, com a implementação deste regime, como é sabido, a desmaterialização, eliminação e simplificação dos atos e processos, pretendendo-se que as partes e seus mandatários pudessem praticar atos judiciais e relacionar-se com o Tribunal por meios eletrónicos.

No entanto, este sistema apenas vigora para a 1.ª Instância, como resulta/va da mencionada Portaria de 2008…e, embora este diploma legal tenha sido revogado a partir de 15.9.2013, conforme flui do art. 37.º da supracitada Portaria n.º 280/2013, subsistem as mesmas linhas do regime anterior, cujas introduzidas alterações, como antedito, não foram significativas, sendo que, no que tange ao processamento dos recursos, o art. 15.º/4 mantém a orientação que já vinha do n.º 4 do art. 14.º-C da Portaria n.º 1538/2008, de 30-12.

Neste conspecto, os atos processuais a praticar nos tribunais superiores podiam ser apresentados em juízo – como cremos – por entrega na Secretaria Judicial ou mediante remessa pelo correio, sob registo.

Assim, no caso, sem reparo e/ou consequências, maxime as pretendidas pelo postulante.

                                                                       ___

2.

Do mérito.

. Como resulta do petitório, o A., tendo posto termo à relação juslaboral protagonizada mediante resolução com alegada justa causa, veio a juízo reclamar o seu reconhecimento e validade, e, por via disso, a condenação do R. no pagamento das importâncias que discrimina, tudo no valor final de € 61.150,00.

  

. A sentença, julgando inverificada a invocada justa causa de resolução do contrato de trabalho, considerou tão-somente que a declaração subscrita pelo A. em 16 de setembro de 2011 (…’nada mais lhe é devido a que título for, quer a título de remição, quer a título de créditos laborais’) é …conceito de direito que não tem a virtualidade de extinguir créditos laborais – Sic, a fls. 218.

E, na sequência, condenou o R. no pagamento ao A. da quantia de € 12.439,53.

. O acórdão revidendo começou por conhecer da apelação interposta pelo R. e enfrentou desde logo – …por invocadas/compreensíveis razões de lógica prejudicialidade – o tratamento da (única) questão nela suscitada, a da epigrafada remissão abdicativa.

Depois de identificar o instituto (da remissão) como um contrato/causa de extinção das obrigações, configurada no art. 863.º do Cód. Civil, convocou, a propósito, a lição de Antunes Varela (‘Das Obrigações em Geral’, Vol. II, 7.ª edição, pgs. 247/ss.) em cujos termos a mesma se caracteriza basicamente ‘como a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contraparte, necessitando de revestir a forma de contrato (embora a aceitação da proposta contratual do remitente se possa considerar especialmente facilitada pelo disposto no art. 234.º do Cód. Civil), quer se trate de remissão donativa, quer de remissão puramente abdicativa’.

E recenseando, na sequência, o entendimento jurisprudencial prevalecente no sentido da admissibilidade da remissão abdicativa por banda dos (ex-)trabalhadores, quando inexista já, naturalmente após a rotura do vínculo juslaboral, subordinação jurídica relativamente ao empregador – está-se, portanto, no puro âmbito dos direitos disponíveis –, concretizou, quanto ao caso sujeito, nestes termos (transcrição parcial):

…’[T]endo o Autor assinado uma declaração – facto 36/fls. 43 – onde se afirma que “Nada mais lhe é devido a que título for, isto é, quer a título de remissão, quer a título de créditos laborais”, deve concluir-se, a nosso ver, que se trata de uma renúncia a reclamar direitos, com efeitos situados no domínio do contrato de remissão.

O autor considerou-se, assim, pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, pelo que esta declaração integra uma renúncia aos eventuais créditos que eventualmente pudessem resultar do contrato de trabalho e da sua cessação. 

Não colhendo a argumentação do A. de que essa declaração apenas se referia à remição da pensão decretada no processo de acidente de trabalho, dada a ausência de qualquer suporte factual (…tendo até sido dado como (não) provado que nada se apurou quanto às ‘circunstâncias em que foi produzida a declaração de setembro de 2011’) e tendo em conta que tal se não retira da própria declaração, onde a ‘remissão’ e os ‘créditos laborais’ aparecem como claramente autonomizados. (…)

Não esquecendo que não tendo a assinatura da declaração sido impugnada pelo Autor, os factos compreendidos na mesma, na medida em que sejam contrários aos seus interesses (e, de facto, são) consideram-se provados, não podendo ser infirmados por prova testemunhal (e já não por outro meio de prova), tudo nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374.º, n.º 1, 376.º, n.ºs 1 e 2 e 394.º, n.º 1, do Cód. Civil.

E uma vez que a anuência do Réu resulta da natureza da própria declaração e também da circunstância de juntar essa declaração abdicativa aos presentes autos com a contestação, temos que a mesma foi aceite pelo Réu, constituindo tal encontro de vontades um verdadeiro contrato de remissão abdicativa – cfr. (…).

…Cessada a relação laboral, já nada justifica que o trabalhador não possa dispor dos seus eventuais créditos resultantes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, uma vez que já não se verificam os constrangimentos existentes durante a vigência dessa relação.

E, como se refere no Ac. desta Relação proferido no âmbito do Proc. n.º 493/11.0TTLRA.C1 (…), mesmo a circunstância de se tratar de uma declaração genérica, não discriminando os diversos créditos salariais, não invalida, por si só, essa conclusão, sob pena de (…) se entrar ‘em colisão com as normas que regem quer a figura da remissão, quer as próprias normas que regulam a forma de interpretar as declarações negociais, quer ainda o princípio da possibilidade de renúncia a direitos de natureza disponível’.

Deste modo, concluímos que essa declaração de quitação total é plenamente válida e eficaz, tendo a remissão conduzido à extinção de créditos, ficando prejudicado o conhecimento das questões levantadas no recurso do Autor.’

. Ao assim ajuizado, o que, de juridicamente consistente e atendível, contrapõe o A./recorrente?

Vejamos.

A parte terminal da relação juslaboral protagonizada – …sequente à conciliação alcançada, em 1 de junho de 2011, no processo de acidente de trabalho em que o A. se sinistrou – passou, primeiro, pela instauração de um processo disciplinar, com intenção de despedimento (decisão com data de 25.7.2011), cessando, afinal, por antecipação do A., que, por carta enviada ao R. em 12.7.2011, declarou resolver o contrato de trabalho, com invocação de justa causa, tudo como factualizado, v.g., sob os n.ºs 12, 15, 16, 18, 22, 32 e 35 da FF[1].

 

O A. subscreveu/assinou posteriormente, em 16.9.2011, a declaração acima reportada, não se tendo apurado as circunstâncias em que a mesma foi produzida.

Apenas isto consta, pois, da factualidade relevante.

Vem ora o A., em sede de motivação recursória, alegar que foi no âmbito do processo de acidente …que assinou o que assinou…E que pretendia dizer que nada lhe era devido no processo de acidente de trabalho, onde o R. lhe pagou cerca de € 500,00…

E acrescenta que a declaração não só não refere créditos em concreto, como não o poderia fazer, pois, aquando da sua emissão, o presente processo judicial ainda não existia, sendo que a declaração genérica do trabalhador, em tais termos, não pode ter o sentido de declaração de quitação liberatória (confissão de pagamento).

[O mais que aduz é, basicamente, um reparo crítico – em desagravo, com hipotético fundamento subjetivo – …que é, porém, juridicamente inconsequente].

O recorrente não tem razão.

Ao tempo da assinatura da referida declaração havia cessado já, por iniciativa do próprio A., a relação de trabalho com o R., sendo portanto absolutamente disponíveis os (eventuais) créditos laborais.

A declaração negocial (é disso que se trata) vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante – art. 236.º, n.º 1, do Cód. Civil.

Interpretando os termos da declaração, deles emerge que, dando quitação da importância recebida, nada mais é devido ao declarante, a que título for (…quer a título de créditos laborais).

Aceitando aquele valor, e dispondo sobre os pretensos créditos atinentes ao contrato por si antes resolvido (seja, renunciando a reclamá-los), só a alegada (e demonstrada) atuação com falta de vontade/consciência da declaração, ou determinada por um qualquer vício da mesma (v.g. erro, dolo, coação), seria suscetível de pôr em crise a sua validade e a sua consequente eficácia extintiva.

E nada disso aconteceu.

Acresce que, havida por verdadeira a assinatura não impugnada (constante do documento particular em causa), este faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração...na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante – arts. 246.º, 247.º, 253.º a 256.º, 374.º/1 e 376.º, n.ºs 1 e 2, todos do Cód. Civil.

Resultando da reportada fundamentação jurídica do acórdão revidendo – que globalmente se ratifica – claramente refutada, no mais, a argumentação que sustenta o inconformismo do recorrente, nada, de relevante, se justifica acrescentar.

Uma nota final: firmado o entendimento de que prevalece a eficácia extintiva da declaração remissiva em causa, carece de sentido a convocação do cenário prefigurado na norma do art. 787.º/1 do Cód. Civil, que tem como pressuposto do direito à quitação, proprio sensu, o cumprimento da correspetiva obrigação.

 Não é disso que se trata.

Extinguindo eficazmente todos os (eventuais) créditos, a declaração remissiva corresponde, nessa medida e perspetiva, a uma declaração de quitação total. É esse o sentido e alcance da locução usada na fundamentação jurídica da deliberação sujeita.

Em suma:

Como bem se ajuizou, a declaração remissiva em causa é válida e plenamente eficaz, implicando a extinção dos créditos reclamados. O mais fica consequentemente prejudicado.  

Soçobram as proposições conclusivas que rematam a motivação recursória.

                                                                       ___

                                                                       III.

                                                             DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se negar a Revista, confirmando o acórdão impugnado.

Custas pelo recorrente.

                                                                     ****

(Anexa-se sumário do acórdão).

Lisboa, 9 de Julho de 2015

Fernandes da Silva (Relator)

Gonçalves Rocha

António Leones Dantas

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[1] - FF = Fundamentação de Facto.