Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2773/04.2TJVNF.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
REGRAS E USOS UNIFORMES
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
CARTA DE CRÉDITO
IRREVOGABILIDADE
ABUSO DO DIREITO
REVOGAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
DOLO
PAGAMENTO
BOA FÉ
Data do Acordão: 05/24/2011
Nº Único do Processo:

Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO COMERCIAL - COMÉRCIO INTERNACIONAL
DIREITO BANCÁRIO - OPERAÇÕES BANCÁRIAS
Doutrina: - Calvão da Silva, “Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque”, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ, 1994, Ano II, Tomo I, pág. 15 e segs., e "Estudos de Direito Comercial (pareceres)", Coimbra. 1999, págs. 66 e 69;
- Carlos Costa Pina, “Créditos Documentários – As Regras e Usos Uniformes na Câmara de Comércio Internacional e a Prática Bancária”, 2000, págs. 45, 106/107.
- Gonçalo Andrade e Castro, “O Crédito Documentário Irrevogável”, 1999, págs. 288, 289, 265/299.
- José Maria Pires, “Direito Bancário – As Operações Bancárias”, 2.º Volume, 1994, págs. 289/290.
- Luís de Lima Pinheiro, “Direito Aplicável às Operações Bancárias Internacionais”, Revista da Ordem dos Advogados, 2007, ano 67, Volume II, págs. 573/627.
- Menezes Cordeiro, “Créditos Documentários”, Revista da Ordem dos Advogados, 2007, ano 67, Volume I, pág. 93; Manual de Direito Bancário, 3ª ed., 2006, pág. 549/550.
- Miguel Marques Vieira, “A apresentação e exame dos documentos electrónicos em face à operação de crédito documentário irrevogável”, in “Garantias das Obrigações – publicação dos trabalhos do mestrado”, 2007, págs. 420/421, 426/427.
- Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito das Garantias”, 2010, pág. 581.
- Mónica Jardim, "A Garantia Autónoma", 2002, págs. 211, 295.
- Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, 5.ª edição, 2006, pág. 137.
- Rafael Marimón Durá, “El Crédito Documentario Irrevocable: Configuración Jurídica Y Funcionamento”, Universitat de Valência, 2001, págs. 475-501, 586, 591-592.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 405.º, 428.º, N.º1, 847.º.
DL Nº 303/2007 DE 24/08: -ARTIGOS 11º E 12º.
REGRAS E USOS UNIFORMES RELATIVOS AOS CRÉDITOS DOCUMENTÁRIOS (RUU N.º 500): - ARTIGOS 3.º, AL.A), 4.º,6.º, AL.C), 9.º, ALS. A) E D), 14.º AL. D).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27/04/06, PROCESSO N.º 06B705, ACESSÍVEL NO SÍTIO DO ITIJ.
-DE 09/10/07, PROCESSO N.º 07A2628, DISPONÍVEL NO ITIJ
-DE 22/09/09, PROCESSO N.º 406/09.0YFLSB, DISPONÍVEL NO SÍTIO DO ITIJ.
Sumário : I - O crédito documentário, associado às compras e vendas internacionais – regulado, em geral, pelas Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários (RUU) –, consiste na abertura de crédito, pelo comprador/importador (ordenante), junto a um banco (banco emitente), em favor do vendedor/exportador (beneficiário), mediante a apresentação de documentos exigidos pelo banco, sendo sua condição preliminar a existência de um contrato de compra e venda celebrado entre exportador e importador (contrato-base).
II - O crédito documentário irrevogável traduz-se na assunção, pelo banco emitente, e perante o beneficiário, do compromisso firme, insusceptível de alteração ou cancelamento, sem acordo daquele interessado (e, eventualmente, do banco intermediário), de realizar a prestação constante da abertura de crédito, desde que, dentro do prazo de validade estabelecido, lhe sejam entregues os documentos respeitantes à expedição das mercadorias a que tal crédito se reporta – cf. art. 9.º, als. a) e d), das RUU.
III - O crédito documentário irrevogável goza das características de abstracção e literalidade, comuns aos títulos de crédito, devendo o banco cumprir a sua obrigação de pagar, exceptuando as situações de divergência dos documentos com as condições estipuladas – cf. arts. 9.º, al. a), e 14.º, al. d), das RUU – e de fraude ou abuso evidente por parte do beneficiário, que ponham em causa aquele crédito.
IV - A fraude relativa ao contrato-base só relevará, em matéria de crédito documentário, se implicar a completa destruição daquele contrato, ou quando for enorme, ou quando determinar uma total failure of consideration (desaparecimento da causa da contraprestação do ordenante) ou quando constituir uma egregious fraud.
V - No âmbito do funcionamento do crédito documentário irrevogável não é possível recorrer à figura da exceptio non adimpleti contractus que permite à parte credora, em virtude do cumprimento defeituoso da prestação pela outra parte (traduzido no fornecimento da coisa comprada com defeito) exercitar o seu direito de não cumprir a sua parte (pagamento do preço).
VI - Só ocorrerá fraude relevante, para efeitos de preenchimento da figura da exceptio doli, desde que se registem, concomitantemente, os seguintes elementos: a) elemento objectivo: que a reclamação de pagamento não corresponda em absoluto à prestação devida pelo beneficiário em virtude da relação subjacente; b) elemento subjectivo: que o beneficiário não actue de boa fé ao reclamar o pagamento.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO 

“AA” – Comércio Internacional, Limitada, com sede na Av. M…, nº …, V… N… de F…, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, demandando, com sede no Bahrain, e Banco “CC”, S.A., com sede na Av. da …, nº …, Lisboa, pedindo que:

a) seja a primeira ré condenada a reconhecer a existência, na mercadoria por si fornecida à autora, dos defeitos descritos em II (arts. 18º a 49º) e III (arts. 50º a 54º) da petição inicial;

b) seja a primeira ré condenada a reconhecer que, face a tais defeitos, está a autora impossibilitada de utilizar a mercadoria adquirida nos termos e para os fins que foram negociados;

c) seja a primeira ré condenada a reconhecer que, por virtude dos defeitos da mercadoria por si fornecida, teve a autora os prejuízos elencados em IV (arts. 55º a 72º) da petição inicial e os demais que se apurarão em sede de liquidação de sentença;

d) seja a primeira ré condenada no pagamento à autora da quantia de € 67.390,00, correspondente aos prejuízos referidos na al. c) deste pedido, e no pagamento das quantias correspondentes aos prejuízos que se vierem a apurar em sede de liquidação de sentença;

e) seja o segundo réu, condenado a pôr termo, definitivamente, a todas as operações de pagamento relativas à carta de crédito documentário irrevogável nº LIC 566/124013, no valor de USD 31.459,53, ordenada pela autora e em benefício da 1ª ré, relativa à factura MTM/EXP/01-2004-00314;

f) seja a autora, em consequência, autorizada a proceder ao levantamento da caução bancária por si prestada conforme ordenado nos autos de providência cautelar;

g) seja a primeira ré, em qualquer dos casos, condenada no pagamento à autora dos juros devidos, à taxa legal, e desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, contabilizados sobre as quantias peticionadas nas als. c) e d) deste pedido.

Para tanto, alega haver comprado à 1ª ré tela têxtil pelo preço de 73.2000,00 dólares americanos, tendo por sua solicitação, para pagamento, o 2º réu emitido uma carta de crédito documentário irrevogável, que todavia não foi paga por em procedimento cautelar intentado pela autora haver sido ordenado suspender qualquer procedimento tendente a esse pagamento.

Isso, porque, a tela apresentava defeitos que lhe causaram avultados prejuízos, que particulariza, e a 1ª ré ignorou as reclamações apresentadas pela autora.

O Banco réu contestou, impugnando na sua generalidade, por desconhecimento, os factos alegados pela autora, e referindo apenas ter procedido à abertura de um crédito de importação, nesse campo tendo agido com toda a diligencia exigível, e só não pagou por força da decisão proferida no procedimento cautelar, pelo que pede a improcedência da acção no que a si concerne.

Igualmente contestou a ré “BB”, impugnando na generalidade a matéria invocada, alegando, em síntese, que a mercadoria vendida à autora era de boa qualidade, os defeitos reportavam-se a uma pequena quantidade, não se furtou ao contacto com a autora na tentativa de apurar a causa dos defeitos, a natureza irrevogável da carta de crédito emitida pelo banco não permite o cancelamento do pagamento, e deduzindo pedido reconvencional pediu a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de USD 34.592,22, a que devem acrescer juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.

A autora replicou mantendo a posição assumida na petição inicial, e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional deduzido.

Elaborado tabelar despacho saneador e condensado o processo, com reclamações parcialmente atendidas, realizou-se a audiência de julgamento.

No decurso deste a autora ampliou o pedido, ao abrigo do disposto no art. 273º do CPC, nos seguintes moldes:

- a ampliação do pedido constante das als. c) e d) a final da petição inicial, no que se reporta ao alegado nos n.ºs 58º, 59º, 60º e 61º da petição inicial e constante dos quesitos 41º, 42º, 43º e 44º da base instrutória, de modo a que a 1.ª ré seja condenada no pagamento à autora de todas as indemnizações que esta efectuou aos seus clientes, face aos defeitos apresentados pela mercadoria por ela vendida e para evitar a total devolução da mercadoria expedida àqueles, no montante de € 8493,40 (e não somente € 5000, como antes peticionado e alegado);

- a ampliação do pedido constante das als. c) e d) a final da petição inicial, no que se reporta ao alegado no n.º 64º da petição inicial, constante do quesito 47º da base instrutória, de modo a que a primeira ré seja condenada no pagamento à autora da quantia que esta teve de despender para a vistoria exaustiva da tela adquirida à 2.ª ré, no montante de € 8059,92 (e não somente € 6750, como antes peticionado e alegado);

 - a ampliação do pedido constante das als. c) e d) a final da petição inicial, no que se reporta ao alegado no n.º 71º da petição inicial e constante do quesito 52º da base instrutória, de modo a que seja a 1.ª ré condenada no pagamento à autora de todos os encargos que esta tem de assumir pela prestação de caução bancária, tal como ordenado pelo tribunal, e que totaliza(va) nesse momento, a quantia de € 1 074,50, bem como no pagamento dos demais encargos que entretanto se viessem a vencer até ao levantamento da caução em causa (e não somente € 640, como antes peticionado e alegado).

Concluído o julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu:

a) Condenar a ré “BB” a pagar à autora a quantia de € 42.936,51, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da citação e até integral pagamento.

b) absolver esta ré do restante contra si peticionado.

c) absolver o réu Banco “CC”, S.A., dos pedidos contra si deduzidos.

d) absolver a autora do pedido reconvencional contra si deduzido.”.

Inconformada, apelou a autora sem êxito uma vez que, por unanimidade, a Relação do Porto confirmou a decisão impugnada.

Mantendo-se inconformada, interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal, e das alegações que apresentou extraiu as seguintes conclusões:

1.Vem o presente recurso interposto do, aliás douto, acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (que decidiu julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença de lª instância) porquanto não pode a recorrente conformar-se com o conteúdo desta na parte em que decide, na alínea c) da parte decisória final, absolver o réu Banco “CC”, S.A. dos pedidos contra si deduzidos.

2. No pedido formulado a final da sua petição inicial a recorrente, entre o mais que ao presente recurso não é pertinente, requereu:

Alínea e) do pedido: ser o 2.° R. condenado a pôr termo, definitivamente, a todas as operações relativas à carta de crédito documentário irrevogável n.° LIC 566/124013, no valor de USD 31.459,53, ordenada pela A. e em benefício da 1.ª R, relativo à factura MTM/EXP/01 - 2004 - 00314;

Alínea f) do pedido: ser a A., em consequência, autorizada a proceder ao levantamento da caução bancária por si prestada conforme ordenado nos autos de providência cautelar.

3. Porém, na douta sentença recorrida e agora confirmado pelo TRP, foi decidido, neste particular assunto e na matéria ora em relevância: absolver o Banco “CC”, S.A., dos pedidos contra si formulados.

4. No recurso de apelação ora posto em crise, entendeu o Tribunal da Relação que a questão a resolver em sede de recurso se resume ao seguinte, a saber: (cfr. pág 7 do acórdão do TRP) "Assente que o pagamento do preço da compra e venda celebrada entre a autora e a 1ª ré seria feito através de crédito documentário irrevogável e que essa ré (vendedora) cumpriu defeituosamente a sua pretensão contratual, discute-se no recurso se este cumprimento é susceptível de integrar fraude por parte desta (beneficiária) e de obstar a que a 2.ª ré (banco emitente) proceda ao pagamento a que se obrigou no âmbito daquela operação de crédito."

5. O 2.° R., no âmbito da sua actividade, desenvolveu diligências relativas à carta de crédito documentário irrevogável n.° LIC 566/120413, no valor de USD 31.459,53, ordenada pela A. e em benefício da l.ª R., relativo à factura MTM/EXP/01 - 2004 - 00314.

6. Relativamente a tal factura e à mercadoria constante da mesma (vendida pela l.ª R. à A.), se constatou a existência de defeitos vários e que levaram, nos presentes autos, à condenação daquela l.ª R no pagamento à A. de quantia indemnizatória.

7. Assim, não há qualquer razão, de facto ou de direito, que justifique, neste momento, que o 2.° R. mantenha as operações bancárias relativamente a tal factura e respectiva carta de crédito.

8. E, no caso concreto, crê-se estar perante uma situação factual que consubstancia a hipótese de fraude do beneficiário na medida em que o mesmo vendeu mercadoria que apresenta evidentes defeitos (conf. 14) dos factos provados)

9. De facto, a l.ª R. obrigada pela celebração de um contrato de compra e venda com a A. acaba por não cumprir com o mesmo na medida em que vende mercadoria não apta para o efeito contratado e fazendo repercutir na A. todos os efeitos nefastos (prejuízos) de tal inaptidão da mercadoria.

10. Assim, é lícito à A. sustentar a possibilidade legal de invocar tais argumentos com vista a afectar aquela obrigação de pagamento pelo emitente ao beneficiário.

11.O que consegue, precisamente, com a procedência da alínea e) do pedido formulado pela recorrente e na medida em que for o 2.° R. condenado a pôr termo, definitivamente, a todas as operações de pagamento relativas à carta de crédito em causa.

12. E, nessa medida, deverá também a A., ora recorrente, ser autorizada a proceder ao levantamento da caução bancária que oportunamente foi por si prestada.

13. Acresce que, no nosso entender, a irrevogabilidade do crédito documentário depende - como não poderia deixar de ser - do cumprimento do contrato-base.

14. Só assim se poderá compreender a essência deste crédito documentário irrevogável. A irrevogabilidade do crédito realizado depende do cumprimento total (e não parcial ou defeituoso) do contrato-base.

15. O cumprimento parcial ou defeituoso do contrato-base tem de legitimar - só por si - a possibilidade de revogação do crédito documentário sob pena de (não sendo assim) haver uma manifesta violação do equilíbrio da relação jurídica principal. O que traduzido à escala da nossa realidade significaria pagar (na totalidade) por aquilo que não se recebeu ou se recebeu com defeito.

16. Na hipótese de improcederem os pedidos formulados contra o 2.° R. na acção e não for posto termo às operações bancárias tendentes ao pagamento da mesma, criar-se-á, no entender da recorrente, uma manifesta situação de abuso de direito já que a R. “BB” - ao abrigo da irrevogabilidade do crédito documentário -receberá, de modo claramente injusto e desproporcionado, o preço da mercadoria que vendeu como sendo de qualidade quando era manifesto - e assim está provado - que apresentava defeito.

17. Cumpre mal a sua obrigação e recebe como se a tivesse cumprido bem.

18. De igual forma se enquadra o caso em análise na figura da "exceptio doli generalis" enquanto o poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor, por este ter incorrido em dolo. Ou seja, o doloso provoca, na outra parte, a impressão de que o negócio é eficaz e assume, assim, a confiança desta: deve responder, pois, pela situação de confiança obtida.

19. Já na parte final, o acórdão do Tribunal da Relação ora recorrido recorre a um outro argumento: Não são substancialmente compatíveis as soluções de ressarcimento da A. dos prejuízos que sofreu com os defeitos da mercadoria e de não satisfação do preço estipulado, (cfh pág. 22)

20. Também aqui não se concorda com tal perspectiva pois que estas soluções são, no nosso entender, compatíveis. Compatibilidade essa justificada à luz do preceituado no art. 847.° e seguintes do Cód. Civil.

21. De facto, será perfeitamente possível que através da compensação, fazer o acerto de contas entre A. e R. “BB”.

22. E desta forma fácil - e perfeitamente legal - se resolveria, "em duas penadas", a saída jurídica para o diferendo comerciai entre uma empresa de Portugal e uma outra do longínquo Bahrain.

23. O, aliás douto, acórdão recorrido violou - na parte ora posta em causa - o disposto nos art. 3.º, 8.° e 9.° das RUU e art. 334.° e 847.°, ambos do Cód. Civil.

Os réus não contra-alegaram.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

            As conclusões da recorrente – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil[1] – doravante CPC) – consubstanciam as seguintes questões:

            a) Apurar se tendo a 1.ª ré cumprido defeituosamente a sua prestação contratual, referente à compra e venda em que interveio a autora, tal circunstância é susceptível de obstar a que o 2.º réu proceda ao pagamento a que se obrigou, no âmbito da operação de crédito documentário irrevogável, seja por haver uma manifesta violação do equilíbrio da relação jurídica principal, conducente a uma situação de abuso de direito, seja por tal caso ser enquadrável na figura da exceptio doli generalis (cf. arts. 3.º, 8.º e 9.º das Regras e Usos Uniformes e art. 334.º do Código Civil);

            b) Compatibilidade do ressarcimento da autora pelos prejuízos que sofreu com os defeitos da mercadoria e de não satisfação do preço estipulado, através do mecanismo da compensação (cf. art. 847.º do CC).

                                                              

I I – FUNDAMENTAÇÃO

 DE FACTO

Mostram-se assentes os seguintes factos:

1) O pagamento mediante carta de crédito assume uma dupla vantagem para as partes contratantes pois que:

- garante que o vendedor (1ª ré) recebe o pagamento do preço dos bens que vendeu em quaisquer circunstâncias;

- garante ao comprador (autora) que o banco não paga a quantia devida enquanto o vendedor não apresentar os documentos exigidos na respectiva carta de crédito.

2) Assim, por solicitação da requerente, o 2º réu Banco “CC”, S.A., no dia 22 de Março de 2004, emitiu a carta de crédito documentário irrevogável nº LIC 566/124013, a favor da 1ª ré, no valor de USD 73.200,00, com as demais condições específicas constantes do respectivo documento, nomeadamente o pagamento a 150 dias da data de embarque.

3) As facturas referidas no art. 9º da p.i. correspondem respectivamente aos conhecimentos de embarque (“bill of landing”) nº 500DAM11W e BAHOMS09G, emitidos pela entidade transportadora em 11 e 22 de Abril de 2004 e que correspondem às respectivas datas de embarque.

4) Ora, o prazo de vencimento da factura (designada em língua inglesa “Commercial invoice original”) MTM/EXP/01-2004-00249, com data de 07/04/2004, no valor de USD 26.416,05, ocorreu em 8 de Setembro de 2004.

5) O pagamento foi cumprido pela autora e pelo banco emissor (2º réu) face à carta de crédito existente.

6) O prazo de vencimento da factura (designada em língua inglesa “Commercial invoice original”) MTM/EXP/01-2004-00314, com data de 21/04/2004, no valor de USD 31.459,53 ocorreu no passado dia 20 de Setembro de 2004.

7) Porém a mesma não foi paga pelo 2º réu.

8) A primeira ré é uma sociedade comercial, tendo sede em P…. 15455, S… (Industrial Área), Bahrain, que se dedica à actividade comercial de produção e exportação de artigos têxteis.

9) No âmbito de relações comerciais entre autora e primeira ré foi celebrado um contrato de compra e venda, em 15 de Dezembro de 2003, com o nº MTM-SC-2003-00552.

10) Tal contrato (designado em língua inglesa “As per sale contract nº MTM-SC-2003-00552”) consistiu na venda pela primeira ré à autora, e que esta efectivamente comprou, pelo preço de USD 73.200,00, de tela têxtil designada pela referência 30 CM x 30 CM / 151x841/1 63”, 100% algodão e boa para tingimento (designada em inglês pela expressão “Top deying goods”).

11) Mais ficou acordado entre autora e primeira ré que o pagamento seria feito através de carta de crédito documentário irrevogável (“LC”), a 150 dias após a data de embarque.

12) A mercadoria comprada pela autora à 1.ª ré, e acima mencionada foi enviada para Portugal em dois carregamentos, por via marítima, traduzidos pelas seguintes facturas:

a) factura (designada em língua inglesa “Commercial invoice original”) MTM/EXP/01 – 2004 – 00249, com data de 7/04/2004, no valor de USD 26.416,05;

b) factura (designada em língua inglesa “Commercial invoice original”) MTM/EXP/01 – 2004 – 00314, com data de 21/04/2004, no valor de USD 31.459,53.

13) Toda esta transacção comercial foi acompanhada pela sociedade comercial intermediária e representante da 1ª ré em Portugal – a sociedade comercial “DD”, Comércio Internacional de Produtos Têxteis, Limitada, com sede na Rua T… de P…, n.º 75, 2º piso, salas 8/9, G… (nomeadamente aos seus agentes Dr.ª “EE” e “FF”).

14) Parte da mercadoria fornecida pela 1ª ré e recebida pela autora nos termos acima descritos apresenta evidentes defeitos.

15) Defeitos esses de tecelagem e, assim, da inteira responsabilidade da fabricante, exportadora, 1ª ré.

16) Logo que detectados tais defeitos na tela, a autora, imediatamente, comunicou a existência dos mesmos à empresa representante da 1ª ré em Portugal – a sociedade comercial “DD”, Comércio Internacional de Produtos Têxteis, contactando directamente com os seus agentes Dra. “EE” e “FF”.

17) Comunicações essas efectuadas por diversas vezes, por contactos pessoais e telefónicos entre os funcionários e legais representantes da autora e os referidos agentes da “DD”.

18) Reiteradas, posteriormente, através de mensagem de correio electrónico (e-mail), emitido pela autora dirigida à referida Dra. “EE” (agente da “DD” – representante da 1ª Ré em Portugal) em 14 de Julho de 2004.

19) Identificando tal defeito como “risco a toda a largura da trama”.

20) Nessa mesma data, a autora entregou aos agentes, em mão, uma amostra representativa dos defeitos invocados.

21) Por sua vez, os agentes da “DD” deram perfeito e cabal conhecimento de tais reclamações à 1ª ré.

22) Nomeadamente através da mensagem de correio electrónico (e-mail) enviada pela “DD” para a 1ª ré em 15 de Julho de 2004.

23) Posteriormente, em 21 de Julho de 2004, novamente através de mensagem de correio electrónico (e-mail), a autora respondeu (por intermédio da “DD”) às questões formuladas pela 1ª ré.

24) Em 22 de Julho de 2004, a autora envia novo fax à “DD” onde reitera a existência de evidentes defeitos na tela vendida, a origem de tais defeitos (tecelagem), expressa a sua apreensão face aos compromissos assumidos pela autora face aos seus clientes e solicita que a 1ª ré se pronuncie rapidamente quanto à solução proposta.

25) Tal fax foi devidamente traduzido e enviado, através de mensagem de correio electrónico (e-mail), para a 1ª ré pelos agentes da “DD”, em 22 de Julho de 2004.

26) Porém, a 1ª ré continuou a não responder em concreto às solicitações que lhe eram dirigidas.

27) No dia seguinte, 23 de Julho de 2004, a “DD” responde à 1ª ré informando, entre outras, que:

a) a amostra do tecido, com defeito invocado, já havia sido entregue pessoalmente ao representante da 1ª ré no Bahrain pelo Sr. “GG” (agente comercial da 1ª ré e que havia passado, em trabalho, por Portugal nessa altura) no dia 19 de Julho de 2004;

b) a autora estava muito apreensiva e desgastada com toda a situação e com as responsabilidades que tinha para com os seus clientes;

c) a autora iria enviar amostra para análise a um laboratório oficial português;

d) o tecido tinha já sido visto por um engenheiro da Fábrica Têxtil M… G… (…) (fábrica de acabamento) e que havia concluído pelo defeito no processo de tecelagem;

e) a atitude da 1ª ré vinha sendo a de ganhar tempo e não responder às solicitações urgentes por parte da autora.

28) No seguimento, a autora informou a “DD”, através de fax enviado no dia 26/07/2004, ao cuidado da Dra. “EE”, das quantidades de artigo na sua posse (ainda em armazém) e ainda dos valores de indemnização a clientes.

29) Nomeadamente:

- mercadoria em armazém (com acabamento) - € 15.646,80;

- créditos efectuados a clientes para compensação do defeito - € 3.698,75;

- artigo em cru - 23.100 metros.

30) Em 27 de Julho de 2004, através de mensagem de correio electrónico (e-mail), a “DD” insistiu, junto da 1ª ré por uma tomada de posição.

31) Em 6 de Agosto de 2004, através de mensagem de correio electrónico (e-mail), a “DD” informou a 1ª ré entre outras que:

a) lhe iriam enviar cópia traduzida do relatório efectuado pelo Citeve e que confirmou a existência de um problema de tecelagem;

b) lhe iriam enviar, via Fedex, amostra em cru;

c) aguardavam os comentários urgentes da 1ª ré.

32) O relatório e respectiva tradução foi efectivamente enviada à 1ª ré.

33) Em 16 de Agosto de 2004, a “DD”, uma vez mais, solicitou uma resposta da 1ª ré.

34) O que não aconteceu.

35) Em 18 de Agosto de 2004, a “DD” insistiu por uma resposta da 1ª ré.

36) No entanto, já havia a autora, uma vez mais, dirigido comunicação à 1ª ré, através da “DD”, onde dava conta:

a) de os agentes da “DD” se terem deslocado às suas instalações onde verificaram os defeitos comunicados;

b) que, nessa altura, foi entregue pela autora uma amostra da tela em que os defeitos apontados são evidentes (amostra essa, desta vez, retirada de um rolo cru);

c) que, porém, passados cerca de 40 dias, a 1ª requerida vem solicitar uma amostra de tela para analisar a reclamação.

37) Sucede que, já em 30 de Julho de 2004, a requerente havia enviado amostras da tela em questão para o Departamento de Investigação de Defeitos (DIAD) do CITEVE – Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal, em Vila Nova de Famalicão, com o intuito de “averiguar a causa do defeito que as amostras de tecido apresentam”.

38) Elaborou tal departamento o respectivo estudo verificando, como características externas do defeito que:

a) a amostra de tecido castanho:

- apresentava sete barras visíveis a toda a largura (direcção da trama) e distribuídas aleatoriamente a todo o comprimento da amostra de tecido;

- as referidas barras caracterizavam-se por serem de reduzidas dimensões (+ - 35 mm) e de tonalidade mais clara que o restante tecido e serem visíveis em ambas as faces do tecido, quer quando se observava em determinados ângulos quer quando se observava em contraluz;

b) a amostra de tecido vermelho:

- apresentava três barras visíveis a toda a largura (direcção da trama) e distribuídas aleatoriamente a todo o comprimento da amostra de tecido;

- as referidas barras caracterizavam-se por serem iguais às barras observadas no tecido castanho, ou seja: de reduzidas dimensões (+ - 35 mm) e de tonalidade mais clara que o restante tecido e serem visíveis em ambas as faces do tecido, quer quando se observava em determinados ângulos quer quando se observava em contraluz;

- ao desfiar-se a amostra de tecido, detectou-se que as barras eram coincidentes com os respectivos fios de trama. (conf. doc. n.º 18).

39) Conclui tal estudo que:

“... o defeito visível nas amostras de tecido está relacionado com o seu processo de tecelagem, o que significa que o tecido já transportava este tipo de defeito logo ao cair do tear (cru).

Este tipo de defeito designa-se, em nomenclatura de defeitos, por zona de menor densidade de fios e pode ser provocado por diversos problemas associados com o tear, onde se destaca:

c) paragens do tear (caso mais frequente);

d) deficiente batida do pente;

e) dispositivo que acciona o desenrolamento da teia desajustado e/ou danificado;

f) dispositivo que acciona o enrolamento do tecido desajustado e/ou danificado.”.

40) Tal como se disse, tal resultado do estudo efectuado pelo referido DIAD foi levado ao conhecimento da 1ª ré através de fax dirigido, em 6 de Agosto de 2004, à “DD”, ao cuidado da Dra. “EE”.

41) Porém, nenhuma resposta foi dada pela 1ª ré às reclamações apresentadas pela autora.

42) O defeito de tecelagem de que padecia a tela fornecida inviabilizava, como efectivamente inviabilizou, um correcto tingimento da tela.

43) De facto, a tela evidenciava, após tingimento, todas a marcas descritas no relatório do DIAD.

44) Donde resulta evidente que a tela fornecida não possui as características anunciadas pela 1ª ré e esperadas pela autora.

45) Inviabilizando-se assim todo o processo de tingimento e posterior confecção a que, em termos normais, se destinava.

46) Na verdade, face aos defeitos apresentados pela mercadoria vendida pela 1ª ré teve inúmeros e avultados prejuízos.

47) Desde logo, possui a autora em armazém muita mercadoria (seja tela tal qual foi importada (em cru) seja tela pronta a tingir, seja ainda tecido já acabado com cor) com um valor global de €12.271,77 e que, face aos defeitos que apresenta (tela e tecido), não sugere qualquer possibilidade de ser comercializado.

48) Por outro lado, alguma da mercadoria importada pela autora à 1ª ré já havia sido expedida pela autora para alguns clientes.

49) Porém, face aos defeitos apresentados, e para evitar a total devolução da mercadoria expedida, teve a autora de indemnizar tais clientes recorrendo a reduções substanciais (na ordem dos 50%) no valor cobrado aos mesmos pela venda de tal mercadoria.

50) Como aconteceu, entre outras, com a sociedade comercial “HH”- Confecções Limitada, com sede na Rua da L…, L… de A… N…, A…, S… T….

51) Indemnizações essas, efectuadas pela autora, através de lançamento de crédito na conta corrente dos clientes, no valor de € 8.493,40.

52) No entretanto, a autora teve de proceder à vistoria exaustiva de toda a tela adquirida à 1ª ré.

53) Vistoria essa que requer um trabalho minucioso e muito demorado e que a autora, a final, teve de pagar.

54) No que despendeu a quantia de € 8.059,92.

55) Acresce que a autora, com a transacção comercial que efectuou (importação da identificada mercadoria à 1ª ré), tinha uma natural expectativa de lucro, expectativa de lucro que se frustrou face à existência dos referidos defeitos.

56) Ainda, face ao defeito da mercadoria e a impossibilidade da sua comercialização em termos normais, tem a autora de contabilizar como prejuízo o valor dos encargos assumidos com os direitos aduaneiros (6,4%) e respectivas despesas aduaneiras e, ainda, o pagamento de IVA de 19% à saída da alfândega.

57) Despesas e encargos esses no valor de € 14.111,42.

58) Tem também a autora de contabilizar como prejuízo imputável à actuação da 1ª ré todos os encargos que tem de assumir pela prestação de caução bancária tal como ordenada por este Tribunal, no valor equivalente a USD 31.459,53 X 2%/ano, que totaliza, até ao momento, o valor de € 1.074,50.

59) Por outro lado, a ré vendeu mercadorias do mesmo tipo e destinada ao mesmo fim, a outros clientes seus de outros países.

60) Quanto a este aspecto, convém recordar que a ré vendeu à autora tecido em cru.

61) Posteriormente, e antes de a autora ter enviado amostras para a CITEVE, o tecido foi sujeito a outros processos, designadamente de tingimento.

62) Como igualmente consta do doc. nº 2, contabilizada a referida quantidade de tecido ao preço de € 1,86/metro, a perda patrimonial decorrente do eventual defeito na mercadoria fornecida pela ré seria, no máximo, de € 6.190,00, quantia essa que a ré se disponibilizou a pagar, mesmo desconhecendo se o tecido em causa pertencia aos rolos por si fornecidos – vide e-mail de 30 de Setembro de 2004, enviado pela Ré à “DD”, junto como doc. nº 3, com a contestação, sendo que tal proposta é posterior á providência cautelar intentada pela autora.

63) Em resposta a esta mensagem da ré, a autora recusou a referida proposta, conforme resulta do fax enviado pela autora à “DD” no mesmo dia 30 de Setembro de 2004.

64) O teor do e-mail de 22 de Julho de 2004 junto aos autos como doc. nº 10 com a p.i.

65) Na mesma mensagem, a ré solicitou que a autora não procedesse ao corte do tecido e que lhe enviasse 100 metros de tecido alegadamente defeituoso para a realização de testes, nos seus próprios laboratórios.

66) A autora não enviou tal quantidade de tecido à ré.

67) Propondo antes que esta se deslocasse aos seus armazéns para verificação dos defeitos invocados.

68) Foi proposta pela ré à autora a devolução do tecido alegadamente defeituoso e o pagamento, em contrapartida, do lucro eventualmente perdido pela autora, sendo que tal proposta foi posterior à providência cautelar.

69) Contudo, embora tenha aceitado que a margem internacionalmente praticada para os casos de defeitos é de 2 a 3%.

70) E recusou a proposta da ré.

71) E comunicou a sua recusa à ré, informando-a que o seu caso merecia uma compensação de 16,86%.

72) Para além disso, a ré reconvinte suportou todos os custos relativos à produção de tela de tecido adquirida pela autora, bem como os custos de transporte inerentes à sua entrega em Portugal.

73) A autora é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica à comercialização de malhas, artigos têxteis e afins e tem sede na Avª G… H… D…, nº …, 1º, sala…, V… N… de …..

74) O 2º réu é uma sociedade comercial por acções, tendo sede na Avª da L…, nº …, Lisboa, que se dedica, com intuito lucrativo, às actividades bancária e demais com estas conexas.

            DE DIREITO

Vistos os factos apurados, importa decidir, optando-se por abordar as questões jurídicas a dirimir em conjunto, dada a sua íntima conexão.     

Consideraram as instâncias – no que as partes não divergiram – que a situação sub judicio consubstancia um crédito documentário irrevogável, sujeito às Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários (RUU)[2].

Com grande frequência, as empresas remetem a regulação das suas relações comerciais e contratuais internacionais, para as RUU, que funcionam como lex mercatoria, sendo essa opção perfeitamente legítima, à luz do ordenamento jurídico nacional, ex vi do art. 405.º do Código Civil (CC)[3].

Conforme se exarou no Acórdão deste STJ de 22/09/09, e desta Secção subscrito pelo aqui 2º Adjunto, “este corpo normativo (das RUU) uniformizado e principiológico actua, hoje, no mínimo, como direito dispositivo, para o qual as empresas remetem, frequentemente, a regulação das suas relações contratuais plurilocalizadas, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, constante do artigo 405º, n.º 1, do Código Civil, sendo, assim, perfeitamente, admissível, por exemplo, que as partes de um contrato jusmercantil internacional escolham o direito aplicável, através de uma remissão, directa ou indirecta, para semelhante “lex mercatória”, de que as RUU constituem expressão”[4].

Menezes Cordeiro dá notícia que “(o)s bancos portugueses, na sua prática relativa ao crédito documentário, remetem invariavelmente para as RUU. Estas são, pois, acolhidas aquando da contratação. Isso faz delas, tecnicamente, cláusulas contratuais gerais”[5].

No crédito documentário, de uma forma simples, temos um banco que se obriga a realizar um pagamento a um terceiro, mediante a entrega (e verificação pela instituição de crédito) de determinados documentos por este último.

O figurino contratual que se desenvolve no crédito documentário, corresponde a uma relação trilateral, referente a três contratos distintos, celebrados separada e sucessivamente:

- o contrato-base, que será, por exemplo - como é, no caso dos autos - o contrato de compra e venda entre o vendedor/exportador e o comprador/importador, celebrado nos termos e com as condições entre ambos acordadas.

É a relação Ordenador/Beneficiário.

- a abertura de crédito documentário, relação contratual que se desenvolve entre o comprador da mercadoria e o seu Banco e que se materializa com a ordem que aquele dá a este para abrir o crédito, nos termos negociados.

É a relação Ordenador/Emitente; e

- a realização do crédito documentário, relação que se dá entre o Banco e o vendedor da mercadoria e se materializa com o pagamento daquele a este último, contra a entrega dos documentos que estejam em aparente conformidade com os termos da carta de crédito.

É a relação Emitente/Beneficiário[6].

Assim, nesta vertente – de crédito documentário associado às compras e vendas internacionais – o crédito documentário consiste na abertura de crédito, pelo comprador/importador, junto a um banco, em favor do vendedor/exportador, mediante a apresentação de documentos exigidos pelo banco, sendo condição preliminar dessa abertura do crédito documentário a existência de um contrato de compra e venda entre o importador e o exportador[7].

Numa definição mais complexa, o crédito documentário é a operação bancária, pela qual um banco - emitente -, agindo por mandato e instruções do seu cliente – ordenador -, se compromete a regularizar a favor de um terceiro – beneficiário -, em troca dos documentos estipulados, o valor das mercadorias expedidas por aquele beneficiário, em virtude de um contrato de compra e venda celebrado entre este e aquele ordenador [8].

O crédito documentário assenta, pois, numa relação triangular, que envolve o credor e o devedor, de um contrato-base, e um banco ao qual é feita a solicitação do ordenador (devedor) para que pague ao beneficiário (credor) contra a apresentação, por este, dos documentos estipulados[9].

Na prática, o crédito documentário exerce uma dupla função. Traduzindo-se num negócio de crédito bancário em que o banqueiro disponibiliza uma importância em dinheiro que irá reaver com lucro, tem ainda a função de pagamento à distância de uma dívida proveniente de um contrato (por ex., compra e venda) entre operadores internacionais e conferência de determinados documentos[10].

Há que distinguir, no que aqui nos interessa, entre créditos documentários revogáveis e irrevogáveis, resultando do disposto no art. 6.º, al. c), das RUU, que, na ausência de indicação clara no texto, a regra é da irrevogabilidade.

Um crédito irrevogável significa, em princípio, que o mesmo não pode ser objecto de nenhum acto jurídico que, unilateralmente, faça cessar os seus efeitos ou alterar o seu conteúdo.

O crédito documentário irrevogável traduz a modalidade mais utilizada pelos comerciantes internacionais, em que o compromisso do banco, por solicitação do importador de pagar o crédito ao exportador, é incancelável ou inalterável, salvo (em princípio) na hipótese de fraude dos documentos apresentados pelo exportador.

Como escreve Miguel Marques Vieira, a propósito das relações entre o banco (emissor) e o exportador (beneficiário): “… o banco emite uma carta de crédito em benefício do exportador para pagamento do preço objecto do contrato base, de forma irrevogável, mediante a apresentação dos documentos necessários e comprovativos da entrega da mercadoria ao importador. Portanto, nessa relação jurídica, existe somente a obrigação do banco emissor de pagar ao beneficiário a quantia estipulada na carta de crédito, trata-se de um contrato unilateral. Destaca-se que, nesse momento, o banco examinará detalhadamente os documentos, e não as mercadorias e ou quaisquer prestações às quais os documentos se possam reportar em consonância com o artigo 4.º das RUU. Após exame dos documentos que representam a aquisição das mercadorias o banco pagará o crédito ao importador[11] ou recusará o pagamento do crédito em decorrência da não conformidade dos documentos ou a verificação de fraude na documentação apresentada pelo vendedor. Dessa maneira, em caso de aceitação dos documentos o exportador terá uma garantia formal quanto ao pagamento, pelo banco, do preço relativo às mercadorias, restando ao banco, para a sua própria garantia, o poder dos referidos documentos que asseguram a propriedade das mesmas até efectivo pagamento dos valores devidos pelo importador. Portanto, da apresentação e do exame dos documentos surgem sérias consequências para os agentes económicos em face à operação de crédito documentário irrevogável” [12].

No fundo, o banco assume uma obrigação perante o beneficiário a que não pode eximir-se unilateralmente.

O crédito documentário é, pois, pela sua natureza, uma operação distinta da(s) venda(s) que possa(m) servir de fundamento à sua abertura, não constituindo esta(s) última(s), contrato(s) que diga(m) respeito ao banco ou o vincule(m), mesmo que, no documento titulador do(s) referido(s) crédito(s), seja feita qualquer referência àquele(s) contrato(s), donde decorre que o compromisso de pagamento por parte do banco emitente, ao abrigo do crédito documentário pelo mesmo concedido, autonomiza-se, tanto no que diz respeito às suas relações com o ordenador, como às relações entre este e o beneficiário – art. 3º, al. a), das RUU[13].

Sintetizando, o crédito documentário irrevogável traduz-se na assunção, pelo banco emitente, e perante o beneficiário, do compromisso firme, insusceptível de alteração ou cancelamento, sem o acordo daquele interessado (e, eventualmente, do banco intermediário), de realizar a prestação constante da abertura de crédito, desde que, dentro do prazo estabelecido para a sua validade, lhe sejam entregues os documentos respeitantes à expedição das mercadorias a que tal crédito se reporta – art. 9.º, als. a) e d), das RUU.

Efectivamente, a existência do crédito documentário baseia-se na entrega, pelo beneficiário, de certos documentos previamente estabelecidos que hão-de servir ao ordenante para levantar a mercadoria, objecto do contrato-base. Os diversos documentos requeridos e o seu exame pelo banco atestam a priori ao comprador/importador o bom cumprimento do contrato pelo vendedor/exportador, dando-lhe a certeza de não ser debitado pelo seu banco se o beneficiário não apresentar os documentos exigidos. Aqui reside toda a importância do crédito documentário, como alicerce da segurança do tráfico internacional, como garantia de pagamento para o exportador que sabe não correr o risco de incumprimento ou da insolvência da outra parte[14] e garantia do exacto cumprimento do contrato para o importador.

O crédito documentário irrevogável goza das características de abstracção e literalidade, comuns aos títulos de crédito, devendo o banco cumprir a sua obrigação de pagar, exceptuando as situações de divergência dos documentos com as condições estipuladas, nos termos do disposto pelos artigos 9º, a) e 14º, d), das RUU, e de fraude ou abuso evidente por parte do beneficiário, que atinjam ou ponham em causa o crédito documentário irrevogável.

A garantia que subjaz ao princípio da independência do crédito documentário não pode, com efeito, amparar situações fraudulentas: o crédito documentário, mormente o irrevogável, chamado a garantir o tráfego jurídico, não pode converter-se em instrumento idóneo para o lucro injustificado de uma parte, em prejuízo de quem, actuando de boa fé, acedeu a ordenar a abertura do crédito.

Tal como se consignou no acórdão recorrido: “Da autonomia e formalismo do crédito documentário decorre que ao direito do beneficiário não podem ser opostas excepções resultantes, designadamente, da relação comercial de base e, por outro lado, o exame dos documentos pelo banco deve conter-se nos limites da verificação da sua conformidade aparente e formal com os termos da carta de crédito “.

Há desta forma que concluir que, numa primeira análise, os vícios de que enfermava o artigo objecto do contrato de compra e venda versado nos autos (“risco a toda a largura da trama”, “defeito de tecelagem… inviabilizou, um correcto tingimento da tela”, e as “marcas descritas no relatório do DIAD”, factos provados descritos sob os n.ºs 19, 42 e 43) e cujo contrato determinou a efectivação da operação bancária em causa neste processo, dada a autonomia desta relativamente àquele, são totalmente irrelevantes para aferir a obrigação de pagamento decorrente para o banco (2º réu) do crédito documentário irrevogável.

Mas decorrerá de tal cumprimento defeituoso, a obstaculização deste réu proceder ao pagamento a que se obrigou, à 1ª ré, no âmbito da operação de crédito documentário irrevogável, seja por haver uma manifesta violação do equilíbrio da relação jurídica principal, conducente a uma situação de abuso de direito, seja por tal caso ser enquadrável na figura da exceptio doli generalis. Em suma, registar-se-á fraude, como pretende a recorrente?

Na doutrina estrangeira, tal como dá conta Rafael Marimón Durá, assinalam-se, entre outros, os seguintes casos “patológicos”, derivados das relações entre o ordenante e beneficiário do crédito, no âmago da sua relação comercial, que, por norma, não darão lugar a qualquer efeito sobre o crédito documentário:

a) cumprimento defeituoso da relação subjacente – entende-se que é de repudiar a intenção do ordenante de impedir o pagamento pelo banco ao beneficiário que está formalmente legitimado para exigir a prestação, não devendo o juiz tomar medidas cautelares tendentes a paralisar o funcionamento do crédito: cumprido este, o ordenante poderá instaurar as oportunas acções de indemnização por vícios e defeitos ou por incumprimento contratual;

b) falta de legitimidade material do beneficiário (exceptio doli) – parece pacífico que só em casos mais graves e excepcionais se deve admitir a oponibilidade da exceptio doli, pois nessas situações o beneficiário carece de legitimidade material para pedir o pagamento do crédito documentário;

c) ineficácia da relação subjacente – em geral, na falta dos elementos essenciais do contrato subjacente; quando o contrato seja nulo por contrário à lei; quando seja anulável por vício da vontade; ou quando seja proferida decisão judicial de resolução a pedido de uma das partes, deve manter-se a vigência do crédito documentário[15].

No direito positivo português, a fraude remete-se ao instituto do abuso de direito, previsto e sancionado no artigo 334º do Código Civil. Mas vejamos o que tem dito a doutrina nacional sobre estas situações.

Segundo Carlos Costa Pina, após assinalar que as RUU não tratam a questão, a fraude tem sempre que ver com os documentos apresentados e implica, além disso, a existência de aparente conformidade – a nível formal – com os termos do crédito, pois caso esta não exista a invocação da fraude torna-se desnecessária.

Para além disso, implica ainda, da parte do banco em causa, o conhecimento de que, apesar da aparente conformidade, sob ela se escondem factos que, se expressos, imporiam que os documentos fossem rejeitados.

Estes factos tanto podem respeitar às mercadorias como aos emitentes dos documentos. No primeiro caso, estaríamos perante mercadorias sem correspondência com aquelas a que o crédito documentário indirectamente se refere pela indicação que faz das mesmas através das menções exigidas nos documentos. Já na segunda hipótese estaria em causa a emissão de um documento por entidade não legitimada para o efeito[16].

Para Mónica Jardim, fazendo uma análise comparativa com a justificação da excepção de fraude na garantia autónoma, o objecto da fraude no crédito documentário são os documentos. “A fraude é constituída pela falsidade ou alteração de um dos documentos que o beneficiário tem de apresentar ao banco para que este efectue o pagamento. Consequentemente, a fraude justifica a recusa de pagamento no estrito quadro do crédito documentário, sem se tornar necessária qualquer referência ao contrato base”[17].

Por sua vez, Gonçalo Andrade e Castro, após reiterar que a autonomia e o formalismo do crédito documentário postulam que ao direito do beneficiário não possam ser opostas excepções resultantes da relação comercial de base, nem da relação entre o ordenante e o banco emitente (ou da relação entre este e o banco confirmador, caso o crédito seja confirmado) e, por outro lado, que o exame dos documentos pelo banco deva conter-se nos limites da verificação da sua conformidade aparente, formal, com os termos da carta de crédito, enfatiza que estas regras são justificadas por necessidades de certeza e segurança particularmente sentidas nas transacções comerciais internacionais, mas tornam possíveis certos comportamentos abusivos do beneficiário, o qual poderá ser tentado a exigir do banco a realização do crédito entregando-lhe documentos falsos, não tendo cumprido a sua obrigação emergente do contrato-base, tendo enviado mercadoria sem qualquer valor ou mercadoria diversa daquela que havia sido objecto de tal acordo[18].

E continua este autor: “É geralmente aceite que a obrigação do banco desaparece, podendo ele recusar-se ao pagamento, em caso de fraude do beneficiário. O problema está em delimitar as situações em que o comportamento abusivo daquele merece este qualificativo, de forma a justificar a paralisação do mecanismo do crédito documentário. Perguntar-se: constituirá utilização fraudulenta do crédito documentário apenas a chamada “fraude documental”, aquela que resulta da apresentação de documentos falsificados ou contrafeitos, ou deverá incluir-se também nesta categoria todos aqueles casos em que o beneficiário tenta obter o pagamento não obstante não ter cumprido ou ter cumprido defeituosamente a sua obrigação de entrega da mercadoria vendida?”[19].

Detendo-se na análise da designada fraud in the transaction, Gonçalo Andrade e Castro, refere que constituem comportamentos susceptíveis de paralisar a realização do crédito documentário: o envio de mercadoria sem qualquer valor económico ou a pura e simples não expedição de mercadoria alguma.

Mas logo a seguir sustenta que é também pacífico que não é qualquer incumprimento do contrato-base que justifica a recusa de pagamento com base em fraude, sob pena de se estar a eliminar, por esta via, a autonomia do crédito documentário. “O problema – como diz – está no preenchimento de uma ampla zona cinzenta entre estas duas situações extremas, ou melhor, na definição do critério pelo qual se deva aferir da gravidade, para o crédito documentário, de um facto relativo ao contrato subjacente”[20].

Procurando densificar o conceito de fraud in the transaction, explicita que a doutrina europeia ao admitir a recusa de pagamento fundada em fraude no contrato-base apela a princípios gerais dos respectivos ordenamentos jurídicos, como a boa fé, a proibição do abuso de direito, a máxima fraus omnia corrumpti e a exceptio doli.

Estes princípios são entendidos como fundamentais e, como tal, inderrogáveis, pelo que se considera que a utilização de um crédito documentário não envolve a renúncia do banco emitente ou, sobretudo, do ordenante, a fazê-los valer contra uma pretensão abusiva do beneficiário, mas é geralmente aceite que a sua aplicação aos créditos documentários deve ser muito prudente, dada a necessidade de não pôr em causa os princípios da autonomia e do formalismo que são próprios deste negócio.

Por tudo isso, a excepção de fraude constituirá um remédio excepcional e de carácter residual, a utilizar com extrema reserva[21].

E conclui este mestre: “Alguma doutrina apela para um critério de boa fé objectiva, nos termos do qual o comportamento do beneficiário será relevante em matéria de fraude na utilização do crédito documentário quando este tente obter uma vantagem económica aproveitando-se da legitimidade, apenas aparente, da situação de direito resultante da apresentação de documentos formalmente correctos, prescindindo-se da prova do dolo do beneficiário. Esta tese deixa ainda no ar a questão do grau de aproveitamento indevido da situação vantajosa pelo beneficiário, a não ser que se admita, como parece fazer Giampieri, que a fraude só relevará quando aquele «não sofra nenhum sacrifício económico no contexto da operação considerada no seu conjunto», o que nos leva de novo para o envio de mercadorias sem valor ou com um valor insignificante, i.e., situações próximas do incumprimento total. Daí que, reconhecendo embora que a solução para o problema não possa ser dada de forma apriorística, sendo só perante a situação concreta, com toda a sua riqueza, que se poderá encontrar o equilíbrio entre os interesses em conflito, julguemos útil que só se continue a afirmar que a fraude relativa ao contrato-base só releva em matéria de crédito documentário quando implicar a completa destruição daquele contrato, ou quando for enorme, ou quando determinar uma total failure of consideration (ou seja, o desaparecimento da causa da contraprestação do ordenante: o pagamento), ou quando constitua uma egregious fraud [22].

Pelo mesmo diapasão alinha o pensamento de Calvão da Silva, ao sustentar que do crédito irrevogável nasce uma obrigação autónoma e independente que o Banco deve cumprir mesmo que o ordenante haja incumprido ou cumprido defeituosamente o contrato principal de compra e venda, salva a hipótese de fraude do beneficiário (fraus omnis corrumpit).

E adianta que a compreensibilidade da inoponibilidade das excepções tiradas da compra e venda se compagina com a necessidade de não subverter a economia e a ratio essendi do crédito documentário sobre que assentam a celeridade e a segurança do comércio internacional[23].

Por isso mesmo, e em perfeita coerência com o exposto, o banco, ao proceder à realização do crédito documentário, cinge-se a uma verificação ou exame formal da documentação que lhe é facultada, sem que tenha de controlar a conformidade dos documentos com os bens vendidos. Resulta essa realidade do banco desconhecer o conteúdo exacto da compra e venda e não ter meios, nem competência técnica para controlar directamente a execução desse contrato.

         

Retomando o caso sob análise é ostensivo que se o incumprimento total do contrato-base não suscitaria qualquer dúvida, já o mesmo não se passa com o cumprimento parcial ou defeituoso, em que se terá de registar, perante os ensinamentos acima expostos, uma manifesta violação do equilíbrio da relação jurídica principal que se visou garantir.

Isto é, os princípios da literalidade e independência do crédito documentário parecem impor que o banco pague e que seja o ordenante (comprador) a reclamar posteriormente contra o beneficiário (vendedor), se considerar que o crédito foi utilizado de forma abusiva. Não se tratará, pois, de uma situação habitual, mas sim, precisamente, de uma situação patológica e absolutamente excepcional, em que não se pode exigir a manutenção da eficácia vinculante dos acordos, mormente a inoponibilidade das excepções decorrentes das relações causais, porque fraus omnia corrumpit.

Destarte, correndo deliberadamente o risco de nos repetirmos, concluímos, com a melhor doutrina, que a fraude relativa ao contrato-base só relevará, em matéria de crédito documentário, se implicar a completa destruição daquele contrato, ou quando for enorme, ou quando determinar uma total failure of consideration (ou seja, o desaparecimento da causa da contraprestação do ordenante: o pagamento), ou quando constituir uma egregious fraud.

Ou seja, tirando os casos excepcionais antes enunciados, o banco não se pode desvincular da sua obrigação de pagamento decorrente do crédito documentário irrevogável, valendo-se das excepções nascidas no seio da relação entre o ordenante e o beneficiário, dado que é um terceiro estranho a essa relação (assim, por ex., se a mercadoria está em mau estado, o comprador gozará de uma acção de indemnização contra o vendedor, se este tiver cobrado o preço através do crédito documentário. Todavia, o banco cumpriu a sua obrigação e pagou bem).

Postas estas considerações, detenhamo-nos, de novo, na situação vertida nos autos.

Não restam quaisquer dúvidas, de que ficou provado que parte da mercadoria vendida pela 1.ª ré à autora apresentava defeito, proveniente da tecelagem, o que inviabilizou o aproveitamento e utilização pela autora dessa mercadoria, sendo certo, outrossim, que estas mantiveram contactos diversos, em que chegaram a ser apresentadas propostas para solução consensual da questão surgida com os defeitos da mercadoria, o que não se concretizou (cf. factos nºs 62 a 71).

Acresce que, como pertinentemente destaca o acórdão sob recurso, de um total de 31.626 metros de tecido, resultantes dos dois fornecimentos, resulta que, segundo documentos emanados da própria autora (e juntos pela ré), aquela ficou em armazém com 5.331,12 metros de tecido com defeito, tendo o restante sido acabado e utilizado na produção (cf. docs. de fls. 16 e 17 e docs. de fls. 137 e 138, com tradução a fls. 585 e 586).

Como consequência do cumprimento defeituoso da 1ª ré, reconheceu-se, quer na sentença da 1.ª instância, quer no acórdão da Relação, que assistia à autora o direito de ser ressarcida pelos prejuízos daí decorrentes, designadamente pelo valor da mercadoria mantida em armazém sem possibilidade de comercialização e pela redução do preço efectuada pela autora na mercadoria entretanto vendida a clientes desta (para evitar a sua devolução).

É todo este circunstancialismo que deve ser atendido para decidir se a atitude da ré consubstancia fraude manifesta que deva obstar à satisfação pelo Banco réu do crédito documentário.

A este propósito sufragamos na íntegra, e por fazerem uma correcta análise dos factos, as palavras do acórdão sob recurso: “Mas, fora dos casos de incumprimento total desse contrato, em que fica plenamente justificada a quebra da autonomia do crédito, as demais situações, designadamente de cumprimento defeituoso, devem revelar uma evidente violação do equilíbrio de interesses das partes que o contrato-base deveria concretizar. Isto é, uma grosseira desproporção entre as prestações das partes desse contrato.

No caso, estamos em presença de um cumprimento defeituoso por parte da 1ª ré, que abrange uma parte relativamente pequena de todo o tecido vendido. Situação que está longe, bem longe, do incumprimento total a que acima se aludiu e que, por isso, como parece evidente, não pode fazer cessar a obrigação a que o comprador, a autora, se vinculou de pagamento do preço. Por se constatar, desde logo, que esta acabou por aproveitar e utilizar grande parte do tecido vendido (cerca de 5/6).

Ajustada nesta situação seria uma redução do preço, que as partes chegaram a negociar, mas que não se concretizou, nem é já possível nesta fase.

Por outro lado, apesar do defeito que parte da mercadoria apresentava, não existem elementos que permitam imputar à 1ª  ré um comportamento consciente e de má fé.

É certo que a utilização de todo o crédito documentário, envolve agora – reconhecido o defeituoso cumprimento – em parte, um aproveitamento ilegítimo da natureza autónoma daquele.

A questão a ponderar é do grau desse aproveitamento ilegítimo, em contraponto com a necessidade de salvaguardar, na medida do possível, a autonomia e independência do crédito documentário, em que assenta, em grande medida, como é reconhecido, a celeridade e segurança do comércio internacional.

Pois bem, crê-se que a excepção de fraude – que, como se disse, constitui remédio excepcional, a utilizar com extrema reserva – não pode ser oposta, no caso, à satisfação do crédito.

A oponibilidade, nesta situação de simples – e de importância relativa na economia do contrato – cumprimento defeituoso conduziria a total subversão da essência do crédito documentário, ficando este, muito frequentemente, dependente da discussão sobre se ocorreu o adimplemento devido do contrato-base; sendo esta, justamente, a situação que se pretende evitar com a consagração da natureza autónoma e independente do crédito documentário, como pressuposto da segurança e celeridade que o mesmo deve propiciar. Para além de que, essa situação legitimaria, como no caso, o também frequente recurso a providências cautelares destinadas a suspender a realização do crédito, em contraste com a finalidade visada com a estipulação desse tipo de crédito”.

Com efeito, perante o alcance do cumprimento defeituoso, imputável à 1ª ré, não se antolha que se possa, nem sequer à distância, vislumbrar qualquer resquício de uma manifesta violação do equilíbrio da relação jurídica principal, conducente a uma situação de abuso de direito, pelo facto de ela receber o preço da mercadoria, nem, muito menos ainda, exceptio dolis, conforme sustenta a recorrente nas suas alegações e conclusões de recurso.

Ademais, no âmbito do funcionamento do crédito documentário irrevogável, não é possível recorrer à figura da exceptio non adimpleti contractus (cf. art. 428º, n.º 1, do Código Civil), que permite à parte credora, em virtude do cumprimento defeituoso da prestação pela outra parte – traduzido no fornecimento da coisa comprada com defeito – exercitar o seu direito de não cumprir a sua parte – o pagamento do preço.

Neste preciso sentido, pronunciou-se este STJ, no Acórdão de 27/04/06, ao decidir, tal como vertido no respectivo sumário: “Se o pagamento do preço numa compra e venda é feito através de crédito documentário irrevogável, o facto da coisa vendida apresentar defeitos não permite à compradora invocar a excepção de não cumprimento para não pagar, uma vez que a sua prestação, esse pagamento do preço, é como já se encontrasse cumprida[24].

Recapitulando, a exceptio dolis configura uma excepção, derivada de circunstâncias localizadas na relação subjacente, as quais, em princípio, não deveriam ocorrer ou repercutir-se na relação decorrente do crédito documentário, mas que traduzem uma derrogação excepcional ao princípio da independência em casos manifestamente irregulares.

Precisamente por isso – carácter excepcional da exceptio dolis –, deve ser-se muito cuidadoso “na hora” de admitir a virtualidade da excepção de fraude actuar e deverá utilizar-se tal figura de forma muito restritiva.

Nesta medida, considera-se que só ocorrerá fraude relevante, para efeitos de preenchimento da figura da exceptio doli, desde que se registem, concomitantemente, os seguintes elementos: a) elemento objectivo: que a reclamação de pagamento não corresponda em absoluto à prestação devida pelo beneficiário em virtude da relação subjacente; b) elemento subjectivo: que o beneficiário não actue de boa fé ao reclamar o pagamento[25].

Para que haja fraud in the transaction é, pois, necessário que ocorram situações que não se podem classificar de simples defeitos ou vícios da mercadoria, mas em que a mesma não se pode denominar como tal, carecendo de toda e qualquer utilidade e de qualquer valor comercial. Só nestes casos extremos é de admitir a legitimidade do banco de se opor ao pagamento da mercadoria por absolutamente inidónea.

Por isso mesmo, aliás, é de afastar a possibilidade de tomar como referência, para fundamentar a exceptio doli no âmbito do crédito documentário, a doutrina sobre a entrega de aliud pro alio, aplicável aos contratos de compra e venda, por falta de similitude das situações[26].

A exceptio doli deve reservar-se para os casos em que se produz um incumprimento total da relação subjacente, o que não ocorre em tais situações de aliud pro alio[27].

Torna-se assim ostensivo que o facto da 1ª ré ter entregue à autora parte da mercadoria (tela têxtil designada “Top deying goods”) com defeito de tecelagem, que inviabilizava um correcto tingimento da tela, traduzindo-se em cumprimento defeituoso do contrato (factos n.ºs 10, 14 e 42), não permite, de modo algum, excepcionar o pagamento do crédito documentário irrevogável.

Convém realçar, outrossim, que a própria ré não só solicitou à autora que não procedesse ao corte do tecido e lhe enviasse 100 metros de tecido alegadamente defeituoso para a realização de testes, nos seu laboratórios, como lhe propôs a devolução do tecido alegadamente defeituoso e o pagamento, em contrapartida, do lucro eventualmente perdido pela autora (após a providência cautelar apensa aos autos principais) (factos n.ºs 65 e 68), o que demonstra que não ocorrem sinais de má fé da sua parte, muito menos de comportamento doloso, nem, tão pouco, qualquer abuso de direito (cf. art. 334.º do Código Civil).

A terminar, umas brevíssimas palavras no que tange à 2ª questão sob recurso.

Contrariamente à ideia da recorrente, de empregar o mecanismo da compensação (cf. art. 847.º do Código Civil), não é despiciendo o raciocínio do acórdão quando refere que a “ autora não pode pretender, simultaneamente, ser ressarcida dos prejuízos que sofreu com os defeitos da mercadoria e não satisfazer o preço estipulado, isto apesar de ter aproveitado e utilizado grande parte da mercadoria vendida. Estas soluções não parecem substancialmente compatíveis”.

Na verdade, além de se subscrever tal entendimento, por correcto, não se antolha que haja que recorrer ao mecanismo da compensação, para resolver a situação, sendo certo, aliás, que a autora não pediu, em devido tempo, que se operasse esse mecanismo, nem o mesmo se afigura de aplicar in casu.

Por todo o exposto, não pode o recurso apreciado deixar de naufragar, sendo de concluir que o cumprimento defeituoso da ré não constitui, no caso, excepção oponível à satisfação do crédito documentário, quer por não se estar em face de um caso de fraude relevante, quer por não ocorrer, perante o reconhecimento do direito de indemnização da autora, um aproveitamento ilegítimo por parte da ré ao pretender utilizar o crédito documentário.

Sem dúvida que improcedem as conclusões do recurso.

III-DECISÃO

Termos em que se julga improcedente a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas do recurso pela recorrente.

Lisboa, 24 Maio de 2011

Gregório Silva Jesus (Relator)
Martins de Sousa
Sebastião Póvoas

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[1] No regime anterior ao introduzido pelo Dec. Lei nº 303/2007 de 24/08 ainda aqui aplicável (cfr. arts. 11º e 12º deste diploma).
[2] Correspondendo aos usos e práticas comerciais, em face da ausência de disposições normativas sobre a matéria, a Câmara de Comércio Internacional (CCI) elaborou uma compilação denominada Regras e Usos Uniformes em ordem a garantir uma certa uniformização da regulamentação desses usos comerciais que foram adoptadas por bancos de muitos Estados. Sofreram ao longo dos anos sucessivas revisões, sendo aplicáveis aos autos as RUU n.º 500, em vigor desde 01/01/94 (revisão de 1993).
[3] A respeito das normas de direito internacional privado, na área específica do direito bancário, cf. Luís de Lima Pinheiro, “Direito Aplicável às Operações Bancárias Internacionais”, Revista da Ordem dos Advogados, 2007, ano 67, Volume II, págs. 573/627.
[4] Proc. n.º 406/09.0YFLSB, disponível no sítio do ITIJ.
[5] In, “Créditos Documentários”, Revista da Ordem dos Advogados, 2007, ano 67, Volume I, pág. 93.
[6] Cfr. Calvão da Silva, “Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque”, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ, 1994, Ano II, Tomo I, pág. 15 e segs., e "Estudos de Direito Comercial (pareceres)", Coimbra. 1999, pág. 66; Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito das Garantias”, 2010, pág. 581.
[7] Miguel Marques Vieira, “A apresentação e exame dos documentos electrónicos em face à operação de crédito documentário irrevogável”, in “Garantias das Obrigações – publicação dos trabalhos do mestrado”, 2007, págs. 420/421.

[8] José Maria Pires, “Direito Bancário – As Operações Bancárias”, 2.º Volume, 1994, págs. 289/290.
[9] Carlos Costa Pina, “Créditos Documentários – As regras e usos uniformes na Câmara de Comércio Internacional e a Prática bancária”, 2000, pág. 45.
[10] Refere Menezes Cordeiro, no Manual de Direito Bancário, 3ª ed., 2006, pág. 549/550, tratar-se do cash against documents (CAD); cfr. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, 5.ª edição, 2006, pág. 137.
[11] Cremos que ocorre aqui um erro de impressão, devendo ler-se “exportador”.
[12] In obra citada, na nota 6, págs. 426/427.
[13] Art. 3.º, al. a), das RUU: “Os créditos são, pela sua natureza, transacções distintas das vendas ou de outro(s) contrato(s) em que se possa basear. Esse(s) contrato(s) de modo algum diz(em) respeito aos bancos, nem os vinculam, mesmo que o crédito inclua qualquer referência a esses(s) contrato(s)”.
[14]Por isso se diz que o crédito documentário é um meio de pagamento por excelência” (Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, 2002, pág. 211).
[15] Cf. “El Crédito Documentario Irrevocable: Configuración Jurídica Y Funcionamento”, Universitat de Valência, 2001, págs. 475-501 (tradução nossa).
[16] In obra citada, na nota 8, págs. 106/107.
[17] In loc. cit., pág. 295.
[18] Cf. “O Crédito Documentário Irrevogável”, 1999, pág. 288.
[19] Obra citada, pág. 289.
[20] Idem, pág. 295.
[21] Idem, págs. 296/ 298.
[22] Idem, págs. 298/299.
[23] Vide, “Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque”, in Estudos de Direito Comercial, pág. 69, e Colectânea de Jurisprudência, pág. 20 (publicações citadas na nota 7).
[24] Proc. n.º 06B705, acessível no sítio do ITIJ. Nesse mesmo aresto, considerou-se, inclusive: “Nem releva a má fé com que o vendedor terá actuado, dado que o art. 3.º das Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários prescreve que o compromisso de um banco pagar não pode dar lugar a reclamações pelo ordenador resultantes das suas relações com o beneficiário”.
[25] Neste sentido Rafael Marimón Durá, obra citada, pág. 586.
[26] Cf. na jurisprudência deste Tribunal, entre outros, o Acórdão de 09/10/07, Proc. n.º 07A2628, disponível no ITIJ: “I. Se, para cumprimento da sua obrigação, o vendedor entrega ao comprador coisa diferente da convencionada, o devedor (vendedor) presta um aliud, sem correspondência com a prestação devida; II. Sendo a coisa entregue qualitativa e estruturalmente diferente da convencionada (aliud pro alio), a falta de realização da prestação devida importa incumprimento da obrigação e enquadra-se na falta de cumprimento”.
[27] Uma vez mais, cf. Rafael Marimón Durá, obra citada, págs. 591/592.