Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2335/17.4T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: TESTAMENTO
CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA
ANOMALIA PSÍQUICA
NULIDADE
ANULABILIDADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
LEGITIMIDADE
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. — A decisão interlocutória que julga improcedente a excepção de ilegitimidade, ainda que não possa ser objecto de recurso de apelação autónomo, transita em julgado, desde que não tenha sido impugnada no recurso da decisão final.
II.— Entre os arts. 257.º e 2199.º do Código Civil há uma diferença fundamental: no art. 257.º do Código Civil exige-se que a prova de que incapacidade acidental é notória ou de que, ainda que não seja notória, era conhecida do declaratário; no art. 2199.º do Código Civil, não. Exige-se, tão-só, a prova de que o testador “se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade”.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

   1. GG, HH e II intentaram a presente acção sob a forma de processo comum contra AA, CC, DD, EE, FF e Santa Casa da Misericórdia de….. pedindo:

  — Que o testamento outorgado no dia 20 de setembro de 2016, no cartório notarial em …, freguesia de ....., concelho de ...., a cargo do Dr. JJ seja declarado nulo, por anomalia psíquica da testadora;

   Ou, alternativamente, seja declarado anulável, por à data da sua outorga, a testadora se encontrar incapacitada de entender o sentido e o alcance da sua declaração, nomeadamente em virtude de doença mental grave (demência e alzheimer) de que padecia;

 — Em qualquer um dos casos, sejam condenados os réus a restituírem ao acervo hereditário todos os bens e/ ou direitos legados pela Exma. Senhora D. KK juntos com a presente petição inicial;

 — Seja declarado ineficaz relativamente aos Autores e restantes herdeiros qualquer acto de disposição ou oneração dos bens e/ou direitos que constituíam o acervo hereditário à data da abertura da sucessão;

 — Seja declarada a nulidade dos registos feitos pelos Réus ou por terceiros relativamente bens e/ou direitos que constituíam o acervo hereditário à data da abertura da sucessão, ordenando-se o seu respetivo cancelamento.

   2. Por despacho transitado em julgado a ré Santa Casa da Misericórdia de ...... foi absolvida da instância, por procedência da excepção de ilegitimidade processual passiva.

  3. Por incidente de intervenção provocado, foi admitido o chamamento à acção do cônjuge da Ré AA, BB.

  4. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção totalmente improcedente.

    5. Inconformados, os Autores GG, HH e II interpuseram recurso de apelação.

   6. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida no passado dia 13.12.2019, com a qual os Recorrentes não se conformam, a qual julgou a acção totalmente improcedente e,em consequência, absolveu os Recorridos da totalidade dos pedidos que contra si foram deduzidos.

B. Entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo mal andou ao decidir, como decidiu, tendo incorrido num evidente erro de julgamento (error in judicando), quer quanto à matéria de facto erradamente dada como provada (error facti), quer quanto à aplicação do direito (error juris).

C. Relativamente ao error facti, entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto constante da alínea d) dos factos não provados, segundo o qual à data da outorga do testamento em causa, a falecida não tinha liberdade de querer e entender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, em virtude da doença (demência e alzheimer) que lhe havia sido diagnosticada meses antes”, em face da prova documental e testemunhal produzidas, nomeadamente:

C.1. Declaração, datada de 2de Maio de 2016, elaborado pelo Dr. LL, médico do Lar da Terceira Idade da Santa Casa da Misericórdia de ...., a fls. dos autos;

C.2. Relatório de Perícia Psiquiátrica realizada a KK, elaborado pelo Dr. MM, médico psiquiatra, a fls. dos autos;

C.3. Relatório de avaliação psicológica elaborado por NN, na qualidade de psicóloga clínica e OO, na qualidade de psicóloga, datado de julho de 2016, a fls. dos autos;

C.4. Declaração médica, datada de 22 de agosto de 2016, elaborada pelo Dr. PP, a fls. 169 dos autos;

C5, Declarações tomadas à falecida no âmbito do procedimento cautelar que, sob o número 2110/16.3…, correu termos no Juízo Local Cível de …, em que foram requerentes GG, HH e II, aqui Recorrentes e AA e KK, as quais se encontram gravadas em cd junto aos autos;

C.6. Depoimento da testemunha MM, médico psiquiatra, prestado na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 02/10/2019, cuja transcrição se junta como documento n.º 1comas alegações;

C.7. Depoimento da testemunha NN, psicóloga de formação e directora do Lar da Terceira Idade da Santa Casa da Misericórdia de ..., prestado na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 02/10/2019, cuja transcrição se junta como documento n.º 2comas alegações;

C.8. Depoimento da testemunha QQ, médico de medicina familiar, prestado na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 02/10/2019, cuja transcrição se junta como documento n.º 3 com as alegações; e

C.7. Depoimento da testemunha PP, médico de clínica geral, prestado na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 02/10/2019, cuja transcrição se junta como documento n.º 4 comas alegações.

D. Em face dos factos dados como provados, incluindo o facto cuja reapreciação se requer, é evidente que, à data da outorga do testamento, a falecida sofria de demência e alzheimer, condição essa que se veio a agravar com o passar dos meses.

E. O que equivale a dizer que, à data da outorga do testamento, a falecida não tinha liberdade de querer e de entender, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, designadamente demência e alzheimer, o que a impedia de compreender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, o que determina a nulidade do testamento nos termos do artigo 2190.º do Código Civil.

Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que o testamento em causa é anulável, nos termos do disposto no artigo 2199.º do Código Civil.

G. De acordo com a repartição do ónus da prova, constante do artigo 342.º do Código Civil, compete ao interessado na anulabilidade o ónus de alegar e provar os factos de onde se conclua tal incapacidade acidental, ónus que foi cumprido pelos Recorrentes.

H. Por seu turno, ao interessado na validade compete o ónus de alegar e provar que, não obstante aquele estado, o testador estava, no acto de testar, em estado lúcido e capaz (lucidez episódica).

I. Efectivamente, competia ao interessado na validade do testamento alegar e provar que, no momento da outorga, apesar daquela presunção, o testador estava perfeitamente lúcido e capaz de entender o sentido da sua declaração e de exercitar livremente a sua vontade, ónus esse que competia aos Recorridos.

J. Pelo que, não tendo os Recorridos logrado demonstrar a chamada“janela de lucidez” da falecida, a acção deveria ter sido necessariamente julgada procedente.

 7. Os Réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

   8. O Tribunal da Relação julgou o recurso totalmente procedente.

   9. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

Por todo o exposto acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente e em consequência revogam a decisão recorrida substituindo-a por outra que decreta a anulação do testamento outorgado pela falecida KK, em 20 de Setembro de 2016, no Cartório Notarial em …, a cargo do Dr.º JJ.

Custas a cargo dos recorridos.

 10. Inconformados, os Réus interpuseram recurso de revista.

   11. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

I. — Não sendo os Recorridos herdeiros testamentários antes, meros legatários beneficiados no testamento, não lhes assiste legitimidade processual e notarial para requerer em Tribunal a apreciação da capacidade mental da testadora no momento da outorga do testamento, pois que carecem de interesse em agir.

II. — Verificando-se ainda que os legatários estão beneficiados no primeiro testamento outorgado pela testadora, em 1982 e são, ainda, contemplados com legados idênticos, que os favorecem no testamento outorgado em 20 de Setembro de 2016, carecem os legatários e Recorridos de legitimidade processual e material para dirimir em juízo e questionar a capacidade mental da testadora.

III. — Tendo a testadora assinado o seu último testamento, em … de Setembro de 2016, mas antes, tendo a mesma, em … de Junho de 2016, assinado um cheque de €10.000,00 (dez mil euros), que entregou ao Recorrido GG, tendo a testadora assinado uma procuração constituindo mandatário forense em … de Agosto de 2016, tendo a testadora, em … de Agosto de 2016, assinado uma citação pessoal, para contestar em Tribunal uma Providência Cautelar, tendo a testadora assinado o cheque para pagar a conta 3presentada pelo Notário, em ... de Setembro de 2016 e tendo a testadora, em ... de Outubro de 2016, assinado uma declaração de venda do seu veículo automóvel, sendo todas estas assinaturas próprias e autênticas, todos os actos e negócios jurídicos praticados pela testadora são considerados válidos e eficazes.

IV. — Tendo os Recorridos apresentado recurso da douta decisão, com o fundamento na incapacidade da testadora de fazer testamento, estando os Recorridos beneficiados no novo testamento, como estavam no testamento que este revogou, não tendo os Recorridos sido prejudicados com a elaboração do segundo testamento, antes pelo contrário, ficaram mais beneficiados, pois que, agora, puderam juntar, direitos de propriedade à metade dos armazéns herdados da sua avó, com direitos a metades dos mesmos armazéns, legados pelo testamento, não se vislumbra qual o interesse subjacente a tal ação de declaração de nulidade do testamento.

V. — Tendo os Recorrentes apresentado prova bastante e suficiente de que a testadora não sofria de incapacidade mental, não é suficiente para aquilatar da saúde mental da testadora, a elaboração a pedido, de um relatório médico, em que o médico, não conhece o historial clínico da testadora, não sabe quais os medicamentos que toma, não tem ao seu dispor nenhum meio auxiliar de diagnóstico e todo o seu relatório se baseia numa conversa de pouco mais de 20 minutos, à noite, quando já lhe havia sido ministrado um comprimido para testadora dormir, factos que o médico perfeitamente sabia, pois não é curial um médico ir observar uma pessoa internada num lar, depois das 20.00 horas e daí concluir, que a testadora era uma paciente totalmente incapacitada, como descreve no seu relatório.

Assim será feita JUSTIÇA

  12. Os autores contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

  13. Como objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a apreciar são as seguintes: .

    I. — se os Recorridos tinham legitimidade para requerer a anulação do testamento; II. — se o acórdão recorrido errou, ao dar como provado o facto que o Tribunal de 1.ª instância dera como não provado sob a alínea d): — que à data da outorga do testamento em causa, a falecida não tinha liberdade de querer e entender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, em virtude da doença (demência e alzheimer.) que lhe havia sido diagnosticada meses antes; III. — se o acórdão recorrido errou, ao anular o testamento por incapacidade acidental da testadora.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

        OS FACTOS

  14. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

1. Os autores são sobrinhos-netos de KK.

Era o sobrinho-neto GG que tratava de toda a escrituração e correspondência e cobrava as rendas a dois inquilinos.

2. Através de testamento lavrado em … de outubro de 1983, no Primeiro Cartório Notarial de …., em ……, perante o respetivo Notário, Dr. RR, KK declarou:

"Que não tem herdeiros legitimários, pelo que pode dispor dos seus bens, como entender; assim,

Lega o usufruto vitalício a seu irmão SS; casado, residente na Quinta do ....., freguesia de ..., concelho de ...., e deixa a nua propriedade à Santa Casa da Misericórdia, desta vila, para a construção de um orfanato ou qualquer outra obra de assistência, de metade indivisa do seguinte prédio: rústico, constituído por terra de cultura, com árvores, no sítio de ..., freguesia de ..., concelho de ..., confrontando do norte com Bairro Municipal, do nascente com caminho e TT, do sul com herdeiros de UU e outros, e do poente com VV;

Lega também à Santa Casa da Misericórdia desta vila, com destino ao lar da terceira idade e ao orfanato a criar, ou outra obra assistencial, os seguintes prédios:

- Urbano, térreo para comércio, com um compartimento e logradouro, na rua de Acesso ao Bairro Municipal, desta vila e freguesia de ..., confrontando do nascente com proprietário, do sul também com proprietário, do poente com WW e outro, e do norte com a dita rua de Acesso ao Bairro Municipal;

- Urbano, térreo para comércio, com um compartimento e logradouro, no sítio de ..., freguesia de ..., concelho de ..., confrontando do sul e norte com proprietário e outro, do nascente com Rua de Acesso, e do poente com …., limitada;

Lega a seu referido irmão, SS e aos filhos de seus sobrinhos

Termo de encerramento

Contem este livro 50 folhas numeradas e rubricadas com a rubrica (rubrica ilegível) que uso, nas folhas que não vão assinadas.

…., 23 de Maio de 1983

O notário do primeiro Cartório

(Assinatura ilegível)

Termo de abertura

Há-de este livro de notas que tem o número vinte e nove e pertence ao Primeiro Cartório da Secretaria Notarial de ..., servir para nele se lavrarem testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos.

…, vinte de outubro de 1983

O notário do Primeiro Cartório

(Assinatura ilegível)

Sobrinhos AA, casada, e XX, divorciado, ambos residentes em …, freguesia de ...., concelho de ...., em partes iguais, pelas respectivas estirpes, ou seja na proporção de metade, conjuntamente, para os filhos de cada mencionado sobrinho sucessivamente, nos termos do disposto no artigo dois mil duzentos e oitenta e seis, e seguintes do Código Civil, sendo pois seu referido irmão o primeiro instituído ou fiduciário e os restantes fideicomissários, o seguinte prédio:

- Rústico, constituído por terra de cultura, com árvores, no sítio do ..., freguesia de ..., Concelho de ..., confrontando do norte com caminho, do nascente com SS, do sul com casa do … e do poente com YY;

Lega também aos filhos de seus referidos sobrinhos, AA e XX, em partes iguais pelas respectivas estirpes, ou seja, na proporção de metade, conjuntamente para os filhos de cada mencionado sobrinho metade indivisa dos seguintes prédios, todos situados na Rua de Acesso ao Bairro Municipal, desta vila e freguesia de ....;

- Urbano, constituído por um armazém para comércio ou indústria, com uma divisão e lavabo, confrontando do norte com a dita Rua de Acesso, do nascente e sul com proprietário, e do poente com ZZ;

- Urbano, com a mesma composição do anterior, confrontando do norte com a dita Rua de Acesso, e dos restantes lados com proprietário;

- Urbano, com a mesma composição dos anteriores, confrontando do norte com a dita Rua de Acesso e dos restantes lados com proprietário;

Lega a seu referido irmão, SS, e a sua sobrinha, DD, casada, residente na Rua de …, …, em …, sucessivamente nos termos do citado artigo dois mil duzentos e oitenta e seis, e seguintes do Código Civil, sendo pois, seu referido irmão o primeiro instituído ou fiduciário e sua sobrinha fideicomissária, os seguintes bens:

- prédio urbano, de rés do chão e primeiro andar, com vários compartimentos para arrecadação e habitação, garagem, alpendre e logradouro, no Sítio da Quinta do ...., freguesia de ..., Concelho de ..., confrontando do norte e sul com proprietário e outro, do poente com estrada nacional e do nascente com TT e caminho; e

- todo o recheio da sua casa de habitação, ou seja, do prédio anteriormente descrito;

Lega a suas sobrinhas DD, já referida, e CC, casada, residente na Rua …, desta vila, e freguesia de …, em partes iguais os seguintes bens:

- A quota que possui na sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com sede nesta vila, que gira sob a firma de "J….., e Companhia Limitada;

- um prédio rústico, constituído por terra de cultura, no sítio da …, freguesia de ...., deste concelho de ..., confrontando do norte com AAA, do nascente com BBB, do sul com CCC, e do poente com DDD;

- Um prédio rústico com a mesma constituição ou composição do anterior, e no mesmo sítio da …, confrontando do norte com caminho, do nascente com EEE, do sul com herdeiros de FFF e outros e do poente com GGG.

- A fracção F constituída pelo … andar,…, com vários compartimentos para habitação, de um prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, situado na povoação e freguesia de ...., concelho de ...., confrontando do nascente com HHH, do sul com Avenida …, do poente com III e do norte com rua.

Lega a sua referida sobrinha DD, o seguinte prédio: rústico, constituído por terra de cultura, no …, freguesia de ..., concelho de ..., confrontando do norte com JJJ, do nascente com KKK e outros, do sul com LLL e outros e do poente com MMM;

Lega a NNN, casada e residente nesta vila, um jazigo, que possui no cemitério desta vila;

Que nomeia por seus testamenteiros, seu dito irmão, SS, NNN e OOO, casada, residente também nesta vila; podendo os dois primeiros movimentar as contas bancárias, dela testadora, para o que for necessário.

E, que assim, termina esta sua disposição de última vontade, declarando ser o primeiro testamento que faz.

Assim outorgou.

Foram testemunhas instrumentárias, o Engenheiro PPP, e QQQ, ambos casados, residentes nesta vila.

Foi este testamento lido à testadora e à mesma explicado o seu conteúdo, em voz alta, na presença simultânea de todos os intervenientes.

O mesmo testamento foi começado a folhas quarenta e nove, verso, do livro imediatamente anterior, número vinte e oito, o qual, por falta de espaço, não pôde ser concluído naquele livro.

Em tempo:

Que lega ainda a sua sobrinha CC, já referida, o seguinte prédio: Rústico, constituído por terra de cultura, com árvores, no Sítio de …, freguesia de ..., concelho de ..., confrontando do norte com RRR, do nascente com estrada, do sul com SSS e do Poente com TTT.

Foi este acrescentamento igualmente lido à testadora e feita a explicação do seu conteúdo, em voz alta, na presença simultânea de todos os intervenientes.

Rasurei "a seu irmão"; "urbano", "terceiro", "pois"; "e outros”.

(seguem-se três assinaturas) O Notário

(assinatura ilegível)

Conta registada sob o n° 440. (rubrica ilegível)”

4. No mês de setembro de 2010 KK foi alvo de um assalto à sua residência que determinou a necessidade de assistência hospitalar.

5. Em 16 de maio de 2011 KK concedeu autorização a AA para aceder ao uso do seu cofre bancário, sendo ambas as assinaturas reconhecidas notarialmente por colaboradora do Cartório Notarial de ..., a cargo da Notária, Dr." UUU, na mesma data.

6. KK encontrava-se inscrita na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de …, sendo que o último contacto data de …. de agosto de 2011, sem a presença da doente e a última consulta data de ... de novembro de 2008.

7. Nessa sequência, cerca de 2 anos antes de ser internada (2012), o sobrinho neto II passou a cuidar diariamente da falecida.

8. Durante esse tempo, era o sobrinho neto II que ia buscar e levar a falecida a casa, dava-lhe o jantar, recebia-a em sua casa, tratava das compras, etc.

9. KK outorgou instrumento de procuração a favor de AA, conferindo-lhe os poderes necessários para o fim especial, em nome dela mandante a representar na Câmara Municipal de …. referente ao Processo de Legalização de Ampliação e Alterações n.? …/…, referente ao prédio localizado no … ou ...., na Rua…, Freguesia de …, Concelho de ..., o qual foi autenticado perante a colaboradora do Cartório Notarial de ....... a cargo da Notária VVV, sendo lavrado o competente termo de autenticação datado de 1 de fevereiro de 2012.

10. Em … de novembro de 2014, KK foi assistida no Hospital de …, dando-se conta de que vivia sozinha, de modo independente, tendo sido encontrada caída em casa, desorientada e com recusa alimentar.

11. Na nota de alta, em …. de novembro de 2014, pode ler-se a menção a um AVC isquémico, sem sequelas.

12. E ainda que:

"A doente teve uma boa evolução clínica e analítica.

Foi medicada (. .... ). Clinicamente com melhoria evidente, estando orientada na pessoa e no espaço ao D4 de internamento e orientada no tempo ao D5. (. .. )”.

13. Na mesma data, a técnica de serviço social WWW recomendou a institucionalização da KK, "(. .. ) devido à evolução dos problemas de saúde, assim como à impossibilidade de serem os próprios familiares a prestar apoio à cliente”.

14. Nessa sequência, KK foi admitida no Lar da Terceira Idade da Santa Casa da Misericórdia de ...

15. Aquando da sua admissão no Lar da Terceira Idade da Santa Casa da Misericórdia de ..., em novembro de 2014, a falecida foi examinada pelo médico da instituição, Dr. LL, tendo apresentado declaração onde se pode ler que esta, à data da sua entrada na referida instituição, apresentava "desorientação (. ... ) espacial e perturbação das faculdades cognitivas", relatório datado de .. de maio de 2016.

16. Em … de abril de 2015, KK foi assistida no Hospital de …., por traumatismo por traumatismo da cabeça, face e pescoço.

17. KK entregou a GG um cheque com o nº …, datado de … de junho de 2015, de conta bancária a si pertencente, do Banco Espírito Santo, no montante de € 10 000,00 (dez mil euros).

18. Em …. de julho de 2015, KK foi assistida no Hospital de …, por náuseas e vómitos, bronquite aguda e infeção do ... .

19. Através de declaração datada de .. de outubro de 2015 assinada por KK foi vendido veículo automóvel de matrícula ..-..-JI, marca …, facto que foi levado ao registo automóvel.

20. O Dr. MM, médico psiquiatra, veio a emitir o documento intitulado "Perícia Psiquiátrica realizada a KK" onde se pode ler:

" Foi observada a … de Abril de 2016 (. .. ) é possuidora do diagnóstico de Síndrome Demencial em estadio grave a que corresponde o código F. 02 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10) do tipo Doença de Alzheimer a que corresponde o código C.30 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-1 O). (. .. )

Ao exame do estado mental, apresenta completa desorientação no espaço e no tempo.

Apresenta discurso circunstancial e desconexo - refere que "foi passar uns dias de férias ali, mas que o marido está à espera em casa, pelo que tem de se apressar" Apresenta alterações graves da memória imediata e de evocação.

Apresenta alterações graves do cálculo mental e pensamento abstrato.

Cumpre ordens simples, mas tem dificuldade em cumprir ordens de mínima complexidade.

Prova dos pentágonos não conseguida. Prova do relógio não conseguida. MMS de 9. Não tem qualquer noção do valor absoluto e relativo de bens ou serviços. (. .. )

Segundo relatório médico do Dr. LL, à data de entrada no lar da Santa Casa da Misericórdia a examinada já apresentaria alterações cognitivas, pelo que a patologia terá tido início em data não posterior a novembro de 2014 (. .. )

A examinanda apresenta todos os condicionalismos clínicos permanentes e irreversíveis assim como os pressupostos médico-legais para que possa ser decretada a sua interdição”.

21. No relatório de ocorrências relativo à estadia de KK na Santa Casa da Misericórdia no mês de abril de 2016 pode ler-se:

"../4/2016 (. .. ) AD. KK foi muito agitada esta noite. A Sr. a mete a cabeça entre a cabeceira da cama e a grade, esta noite tirei-a 4 vezes e pos-lhe bem na cama, desde a 00h40m até às 7h30 não se acalmou. (. .. )

../4/2016 (. .. ) A D. KK esteve agitada desde 00h40m, até lhe fez a higiene e vestir-lhe a roupa. (. .. )

../4/2016 (. .. ) A D. KK não dormiu nada durante a noite.

../4/2016 (. .. ) A D. KK esteve agitada desde as 1 h30 até às 7h30m (. .. ) Esteve cá o sobrinho da Dona KK às 16h30m com um senhor, conversou com Dona KK sobre muita coisa e sobretudo sobre o preço da sua casa e no final foram para o quarto da Dona …. onde as funcionárias (ilegível) que a avó não se encontrava no momento.

../4/2016 (. .. ) Dr. (ilegível) mandou telefonar informar sobrinha da D. KK  que teve visitas no piso no dia ...04.16, às ….. que teve recado da …. (. .. ). ../4/2016 (. .. ) A Dona KK esteve agitada toda a manhã e tarde toda até ……. A Dona KK hoje não parou de gritar até à noite, hora de deitar estava muito agitada. (. .. )

../4/2016 (. .. ) A Dona KK esteve muito agitada toda a noite.”

22. Em … de maio de 2016, KK foi assistida no Hospital de ….., por náuseas e vómitos.

23. Do relatório de avaliação psicológica elaborado por NN, na qualidade de psicóloga clínica e OO, na qualidade de psicóloga, datado de julho de 2016, resulta que:

"No Mini Mental State Examination (MMSE) apresenta um resultado de 17 pontos que segundo os pontos de corte assinala a presença de défice cognitivo, quando comparado com os resultados obtidos na população com a sua escolaridade. Atualmente a utente encontra-se orientada na pessoa.

Espacialmente sabe identificar o país e a cidade onde vive, mas não sabe dizer onde se contra, embora reconheça que não é a sua casa. (. .. ) Permanece desorientada no tempo (. .. ).

Não revela alterações de pensamento ou personalidade. A capacidade de julgamento e crítica estão comprometidas. Sem consciência da sua situação atual.

Em suma, os resultados apontam para a presença de alterações cognitivas. Verificam-se alterações ao nível da memória e desorientação ao nível temporal. Esquecimentos frequentes e confusão de ideias, sintomas característicos de síndrome demencial em evolução. »

24. Por motivos que não se lograram apurar, em meados de agosto de 2016, KK foi transferida para o Lar da Terceira Idade do Centro Cultura e Social da Paróquia de ... .

25. No referido lar, KK assinou uma declaração, a seu pedido, onde se pode ler

"Declaro, para os devidos efeitos que, até minha ordem em contrário, não desejo receber visitas por parte de GG, meu sobrinho, pelo que proíbo que lhe seja autorizada, por parte de qualquer colaborador da instituição, qualquer aproximação à minha pessoa. Solicito, desde já (../ 08/2016) a retirada da sua impressão digital do sistema de acesso à instituição”.

26. Em 17 de agosto de 2016 outorgou procuração a favor do Dr. XXX.

27. Através de declaração médica datada de ... de agosto de 2016, o Dr. PP declarou:

"Para os devidos declara-se que KK, de 93 anos de idade, após avaliação psíquica, encontra-se bem de saúde mental, responde ao interrogatório de forma coerente, conhece a família e as pessoas, consciente e orientada" - fls. 169

28. No dia … de agosto de 2016, no âmbito do procedimento cautelar que, sob o número 2110j16.3T8FAR, correu termos no Juízo Local Cível de …, em que foram requerentes GG, HH e II, aqui autores e AA e KK, logrou realizar-se a citação pessoal de KK.

29. Antes de outorgar o testamento o Sr. Notário JJ, por várias vezes, deslocou-se ao Lar de … e outros locais, para bem perceber o teor do testamento que iria lavrar, bem como para se aperceber do estado mental e psíquico da testadora.

30. No dia … de setembro de 2016, no Cartório Notarial em …, freguesia de ...., concelho de ..., a cargo do Dr. JJ, KK foi lavrado testamento onde se pode ler:

"KK (. .. )

E pela TESTADORA foi declarado:

Que faz pela forma seguinte o seu testamento:

- LEGA à sua sobrinha AA ( ... ) os seguintes bens:

I - METADE do prédio rústico composto por terra de cultura, com árvores, sito em Quinta do ... ou ..., freguesia de ...., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

II - METADE do prédio rústico composto por terra de cultura, com árvores, sito em Quinta do .... ou ..., freguesia de ...., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

III - Prédio Urbano sito em Quinta do ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

- LEGA à sua sobrinha CC (. .. ) METADE do prédio rústico sito em …, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

- LEGA à sua sobrinha DD (. .. ) os seguintes bens imóveis:

I - Prédio rústico sito em Clareanes, freguesia de …, concelho de ...., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….;

II - fração autónoma designada pela letra "F", correspondente a habitação no primeiro andar esquerdo, do prédio urbano sito na Avenida …, freguesia de ...., concelho de ...., afeto ao regime da propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …., com todo o seu recheio;

- LEGA, aos três filhos de GG, em comum e partes iguais:

II (. .. ); HH (. .. ); e,

GG ( ... ) os seguintes bens:

I - prédio rústico sito em ...., freguesia de ..., concelho de ...., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

II - METADE do prédio urbano sito na Rua de Acesso ao Bairro Municipal, freguesia de …, concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….;

III - METADE do prédio urbano sito na Rua de Acesso ao Bairro Municipal, freguesia de …, concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

IV - METADE do prédio urbano sito na Rua de Acesso ao Bairro Municipal, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;

- LEGA o quinhão hereditário que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua mãe YYY ( ... ), em comum e partes iguais, aos filhos de AA: EE ( ... ); FF ( ... ).

Que revoga por este todos os testamentos feitos por si até hoje, designadamente, o testamento lavrado no Primeiro Cartório Notarial de ..., no dia … de Outubro de mil, novecentos e oitenta e três, exarado de folhas quarenta e nove verso a folhas cinquenta verso, do competente livro número vinte e oito.

Que intervieram neste ato, como peritos médicos, o Dr. PP ( ... ) e o Dr. QQ (. .. ), os quais, sob compromisso de honra, atestaram a sanidade mental da referida testadora ( ... ). Foram testemunhas:

- … ( ... ) e ….  ( ... ).

Foi feita a leitura deste testamento e a explicação do seu conteúdo na presença simultânea de todos os intervenientes. (seguem-se cinco assinaturas) O Notário

Conta registada sob o n° 1/3006. (rubrica ilegível)”.

31. A conta apresentada pelo Sr. Notário, devida pela elaboração do testamento no montante de € 184,99 (cento e oitenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos), foi paga através de cheque datado de … de setembro de 2016, com o n.? …7, referente a conta bancária n. …6, do Millenium BCP de que era titular KK e por esta assinado.

32. Em … de dezembro de 2016, KK assinou declaração onde se pode ler:

"(. ….. ) venho opor este meio declarar que, relativamente à entrega de recibos mensais, na Eletro…., Lda. não dou autorização a que o Sr. GG, entregue quaisquer recibos em meu nome”.

33. Em … de dezembro de 2016, no âmbito dos autos cautelares referidos no ponto 28. foram tomadas declarações à requerida, as quais se encontram gravadas, em CD junto aos autos.

34. Em … de janeiro de 2017, no âmbito do procedimento cautelar de arrolamento instaurado por GG, HH, II e ZZZ contra KK e AA que correu termos sob o n. 2110/16.3…, do Juízo Local Cível de …, foi proferida decisão de improcedência do, por se ter considerado que aqueles não haviam feito prova da titularidade de um direito relativo aos bens cujo arrolamento visavam, mas apenas de uma mera expetativa jurídica.

35. Em .. de fevereiro de 2017, KK  foi assistida no Hospital de .., por infeções na pele.

36. No Lar da Terceira Idade do Centro Cultura e Social da Paróquia de ..., a ré AA ordenou que os autores fossem proibidos de contactar com a falecida, facto que lhes foi comunicado pelo Presidente da Direção do Centro Cultural e Social da Paróquia de …, responsável pelo Lar da Terceira Idade, através de correio eletrónico, datado de … de fevereiro de 2017.

37. Em tal comunicação pode ler-se ainda: "Mais informo que a Senhora sua tia avó, D. KK, foi esta semana ao Hospital, mas já regressou ao Lar e encontra-se bem. Vi-a esta manhã a tomar o pequeno almoço e encontrava-se bem. Não falei com ela, mas estava bem, com seu aspeto habitual. “

38. No dia …. de março de 2017, KK foi assistida no Hospital de …, por infeções na cansaço, prostração e dispneia.

39. No dia… de março de 2017 morreu KK, com 94 (noventa e quatro) de idade e no estado de viúva, sem deixar ascendentes ou descendentes que lhe pudessem suceder.

 15. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:

a - Que, à data do óbito, a falecida vivia na Avenida …, Quinta do ...., em ….;

b - Que, (em novembro 2015), a falecida se encontrava já muito debilitada e passou a ser visitada frequentemente pela ré AA;

c - A ré AA, verificando o estado de fraca representação da realidade pela falecida, logo se aproximou e em poucos meses tomou conta de todo o património da sua tia como se dela se tratasse;

d - Que, à data da outorga do testamento em causa, a falecida não tinha liberdade de querer e entender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, em virtude da doença (Demência e Alzheimer) que lhe havia sido diagnosticada meses antes;

e - Que a ré AA, aproveitando-se da sua situação de fragilidade e de dependência a que a sujeitou, bem como do seu estado mental, determinou a falecida a outorgar um testamento.

  16. O Tribunal da Relação de Évora deu como provado o facto que o Tribunal de 1.ª instância dera como não provado sob a alínea d): — que à data da outorga do testamento em causa, a falecida não tinha liberdade de querer e entender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, em virtude da doença (Demência e Alzheimer.) que lhe havia sido diagnosticada meses antes.

      O DIREITO

  17. A primeira questão suscitada pelos Recorrentes — se os Recorridos tinham legitimidade para requerer a anulação do testamento (conclusões I, II e IV da alegação de recurso) — foi apreciada e decidida no despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância em 8 de Julho de 2019, nos seguintes termos:

“… tendo presente os pedidos formulados pelos autores e a relação material controvertida tal como eles a configuram, não podemos deixar de considerar que lhes assiste interesse em demandar os réus através da presente acção.

… atento o laço familiar existente não podemos deixar de considerar que os autores assumem a qualidade de herdeiros legítimos da falecida, integrando a classe de sucessíveis prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 2133.º, do Código Civil e, como tal, com manifesto interesse em demandar os réus.

Face ao exposto, considero improcedente a excepção arguida”.

  18. O despacho não foi impugnado no recurso da decisão final proferida pelo Tribunal de 1.ª instância (cf. art. 644.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) — e, como não tenha sido impugnada no recurso da decisão final, a decisão transitou em julgado.

   19. A segunda questão — se o acórdão recorrido errou, ao dar como provado o facto que o Tribunal de 1.ª instância dera como não provado sob a alínea d): que à data da outorga do testamento em causa, a falecida não tinha liberdade de querer e entender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, em virtude da doença (Demência e Alzheimer) que lhe havia sido diagnosticada meses antes (conclusões III e V da alegação de recurso) — foi apreciada e decidida no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, nos seguintes termos:

“… mesmo ao nível da esfera de conhecimento de um leigo (onde se inclui o Sr. Funcionário o Sr. Notário e os Juízes) não é verosímil que alguém com noventa e três anos de idade a quem foi diagnosticada, por pessoas especialmente habilitadas para o efeito, a doença de alzheimer com Síndrome demencial em estadio grave e irreversível possa ter um estado lúcido episódico susceptível de fundamentar qualquer dúvida acerca da verificação do invocado vício de vontade no momento de testar..

O mesmo resulta do teor do depoimento de MM, médico psiquiatra, perito do Instituto de Medicina Legal que subscreveu o relatório de perícia psiquiátrica realizado a KK e NN, psicóloga e directora do lar de terceira idade da Santa Casa da Misericórdia.

Os dois médicos de clínica geral que assistiram à outorga do testamento revelaram não estarem familiarizados e até mesmo desconhecerem (afirmaram-no expressamente) os procedimentos de diagnóstico da doença de Alzheimer e do juízo pericial que levou à conclusão de que a testadora apresentava um quadro de Síndrome demencial em estadio grave e irreversível.

Afigura-se-nos, pois, que a matéria de facto não provada e constante do ponto d) dos factos não provados deve ser alterada julgando-se provado que à data da outorga do testamento em causa, a falecida não tinha liberdade de querer e entender o sentido e o alcance das deixas testamentárias, na medida em que se encontrava incapacitada por anomalia psíquica grave, em virtude da doença (Demência e Alzheimer) que lhe havia sido diagnosticada meses antes”.

  20. Os Recorrentes alegam que

III. — Tendo a testadora assinado o seu último testamento, em … de Setembro de 2016, mas antes, tendo a mesma, em ... de Junho de 2016, assinado um cheque de €10.000,00 (dez mil euros), que entregou ao Recorrido GG, tendo a testadora assinado uma procuração constituindo mandatário forense em ... de Agosto de 2016, tendo a testadora, em ... de Agosto de 2016, assinado uma citação pessoal, para contestar em Tribunal uma Providência Cautelar, tendo a testadora assinado o cheque para pagar a conta apresentada pelo Notário, em ... de Setembro de 2016 e tendo a testadora, em ... de Outubro de 2016, assinado uma declaração de venda do seu veículo automóvel, sendo todas estas assinaturas próprias e autênticas, todos os actos e negócios jurídicos praticados pela testadora são considerados válidos e eficazes. […]

V. — Tendo os Recorrentes apresentado prova bastante e suficiente de que a testadora não sofria de incapacidade mental, não é suficiente para aquilatar da saúde mental da testadora, a elaboração a pedido, de um relatório médico, em que o médico, não conhece o historial clínico da testadora, não sabe quais os medicamentos que toma, não tem ao seu dispor nenhum meio auxiliar de diagnóstico e todo o seu relatório se baseia numa conversa de pouco mais de 20 minutos, à noite, quando já lhe havia sido ministrado um comprimido para testadora dormir, factos que o médico perfeitamente sabia, pois não é curial um médico ir observar uma pessoa internada num lar, depois das 20.00 horas e daí concluir, que a testadora era uma paciente totalmente incapacitada, como descreve no seu relatório

  21. Ora o art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

  22. Como se escreve, p. ex., nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018 — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,

“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” [1].

“… está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” [2].

  23. A terceira questão — se o acórdão recorrido errou, ao anular o testamento por incapacidade acidental da testadora (conclusões III e V da alegação de recurso) — relaciona-se com os arts. 258.º e 2199.º do Código Civil.

   24. O art. 257.º do Código Civil determina que “a declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário” [3] e o art. 2199.º, que “ë anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória” [4].

  25. Entre as duas disposições há uma diferença fundamental: — no art. 257.º do Código Civil exige-se que a prova de que incapacidade acidental é notória ou de que, ainda que não seja notória, era conhecida do declaratário; — no art. 2199.º do Código Civil, não. Exige-se, tão-só, a prova de que o testador “se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade”.

  26. Ora a diferença fundamental entre as duas disposições determina que não haja nenhuma contradição entre a eventual validade dos cheques, da procuração ou da compra e venda, que são negócios sujeitos ao regime geral do art. 257.º do Código Civil, e a invalidade do testamento, sujeito ao regime especial do art. 2199.º do Código Civil.

III. — DECISÃO

  Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

      Custas pelos Recorrentes AA, BB, CC, DD, EE e FF.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2020

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

      Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.


_________

[1] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

[2] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018  — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.

[3] Sobre o art. 257.º do Código Civil, vide por todos Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 538; António Menezes Cordeiro (com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro), Tratado de direito civil, vol. II — Parte geral. Negócio jurídico. — Formação. Conteúdo e interpretação. Vícios da vontade. Ineficácia e invalidades, 4.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2014, págs. 798-808; Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria geral do direito civil, 9.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2019, pág. 676.

[4] Sobre o art. 2199.º do Código Civil, vide por todos Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela, anotação ao art. 2199.º, in: Código Civil anotado, vol. VI — Artigos 2204.º a 2334.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, págs. 322-324; Cristina Pimentel Coelho, anotação ao art. 2199.º, in. Ana Prata (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Artigos 1251.º a 2334.º, 2.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2019, págs. 1114-1115.