Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
00B429
Nº Convencional: JSTJ00040535
Relator: MIRANDA GUSMÃO
Descritores: ASSENTO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
INTERPRETAÇÃO
CAMINHO PÚBLICO
ATRAVESSADOURO
Nº do Documento: SJ200006150004292
Data do Acordão: 06/15/2000
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N498 ANO2000 PAG226
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 1383 ARTIGO 1384.
CCIV867 ARTIGO 380.
Jurisprudência Nacional: ASSENTO DE 1989/04/19 IN BMJ N386 PAG121.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/11/10 IN BMJ N431 PAG300.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/12/02 IN BMJ N422 PAG355.
ACÓRDÃO STJ DE 1998/02/19 IN BMJ N474 PAG481.
Sumário : I - A aquisição da dominialidade pública depende, em regra, de 2 requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública; esta pode resultar de um acto administrativo ou de uma prática consentida pela administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público; a utilidade pública consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas, traduz o verdadeiro fundamento da sua publicidade.
II - O Assento de 19 de Abril de 1989, hoje como o simples acórdão uniformizador de jurisprudência, deve ser interpretado restritivamente - no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública (o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância) e de forma extensiva quando afirma que deixou subsistir, em alternativa o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afecto à utilidade pública.
III - Assim, um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública e atravessadouro se lhe faltar esta afectação e, em especial, quando se destine a fazer a ligação entre dois caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento de distâncias.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. A instaurou acção declarativa ordinária contra a JUNTA de FREGUESIA de B, pedindo que esta fosse condenada:
a) A reconhecer que o Autor tem direito de colocar marcos delimitativos na sua propriedade, onde entender, e muito designadamente no local exacto onde se encontravam os que foram criminosamente destruídos.
b) A reconhecer que o Autor tem o direito de vedar ou tapar o prédio, e, muito designadamente, a entrada do atalho para a Rua Nova na parte alargada pela Junta de Freguesia.
c) A reconhecer que o Autor tem o direito de plantar vides ou árvores onde entender no seu prédio e, muito designadamente na bordadura de todos os caminhos que construiu ou venha a construir no seu prédio.
d) a reconhecer que o Autor tem o direito de impedir a entrada no seu prédio dos elementos que integram a Junta de Freguesia, ou de outras a seu mando, bem como máquinas da Junta de Freguesia ou a elas cedidas.
Para tal invocou a violação do direito de propriedade, praticada pela Ré, que, segundo diz, lhe entrou num terreno que lhe pertence, destruiu e arrancou esteios que suportam uma ramada de vides, destruiu marcos do terreno, arrancou vinha e levantou os esteios, deles retirando a rede de arames, e levou acções sobre uma parte do terreno, metendo nele uma máquina escavadora que lhe foi cedida pela Câmara Municipal de Lousada, abrindo, alargando e destruindo um caminho no seio da propriedade, aterrou-lhe uma vala que o Autor ali tinha construído, sendo tudo feito sem o consentimento e contra a vontade do Autor.

2. Contestou a Ré, alegando que a sua actuação se limitou a arranjar um caminho público que corria atravessando uma propriedade do Autor e a desobstrui-lo de terras ou obstáculos colocados pelo mesmo Autor, os quais impediam o trânsito das pessoas pelo enunciado caminho.
- Deduziu reconvenção, onde pediu que fosse reconhecida a publicidade do caminho existente na parte em que se processa junto à Mata do Vassoural e que o Autor-reconvindo fosse condenado a abster-se da prática de quaisquer actos que ponham em causa a sua plena utilização pelo público.

3. Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção e procedente a reconvenção.
- Na parte relativa à procedência parcial da acção, foram reconhecidos ao Autor os seguintes direitos:
- O de colocar marcos delimitativos na sua propriedade.
- O de, respeitando os limites da sua propriedade, vedar ou tapar o prédio "Mata do Vassoural".
- O de plantar vides ou árvores, onde entender, no seu prédio, nomeadamente na bordadura de todos os caminhos que construiu ou venha a construir no seu prédio.
- O de impedir a entrada dentro dos limites do seu prédio dos elementos que integram a Junta de Freguesia, ou de outros a seu mando, bem como as máquinas da Junta de Freguesia ou a elas cedidas.

4. O Autor apelou. A Relação do Porto, por acórdão de 17 de Dezembro de 1999, revogou a sentença recorrida na parte em que vinha vencido o Autor, substituindo-a por outra em que condenou a Ré:
a) a reconhecer que o Autor tem direito de colocar marcos delimitativos da sua propriedade onde entender, e muito designadamente no local exacto donde foram retirados;
b) a reconhecer que o Autor tem direito de vedar ou tapar o prédio, e muito designadamente, a entrada do atalho para a Rua Nova na parte alargada pela Junta de Freguesia;
c) a reconhecer que o Autor tem direito de plantar vides ou árvores onde entender no seu prédio, e muito designadamente na bordadura de todos os caminhos que construiu ou venha a construir no seu prédio;
d) a reconhecer que o Autor de impedir a entrada no seu prédio dos elementos que integram a Junta de Freguesia, ou de outras a seu mando, bem como máquinas da Junta de Freguesia ou a elas cedidas;
e) se absolva o Autor do pedido reconvencional.

5. A Ré/Junta de Freguesia de B pede revista, formulando as seguintes conclusões:
1. Atentos os critérios legais e Jurisprudenciais aplicáveis, o caminho em discussão nos presentes autos deve classificar-se como caminho público, quer por se encontrar no uso directo e imediato do público em geral desde tempos imemoriais, sendo público, quer face à matéria dada como provada na 1. instância, quer porque
2. Mesmo que assim se não entenda, ou seja, mesmo a considerar-se tal caminho como simples atravessadouro, nem por isso deve considerar-se abolido.
3.Com efeito, dado o lapso de tempo decorrido desde a data da abolição dos atravessadouros, afigura-se necessário proceder à interpretação actualizante da norma, que exclui da abolição os atravessadouros que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade pública.
4. Atendendo à época, fazia sentido tal distinção, tendo em consideração a importância que assumiam as pontes no estabelecimento de ligação entre as populações e as fontes em matéria de abastecimento de água.
5. Todavia, hoje as fontes públicas mostram-se destituídas de utilidade relevante, porquanto o abastecimento de água se processa através de redes públicas de distribuição e canalização.
6. Do mesmo modo, face à evolução das vias de comunicação, e ao seu elevado número, também nos dias que correm uma ponte não terá tanta utilidade como teria certamente há mais de dois séculos atrás.
7. Pelo contrário, hoje a educação, o desporto, a ocupação de tempos livres, a própria segurança revelam-se como interesses prioritários, das sociedades modernas e desenvolvidas, como é o caso de Portugal.
8. Assim sendo, verifica-se in casu, que o caminho em questão facilita grandemente o acesso de crianças com idades de seis e poucos mais anos, para a escola, quer por que vêm o percurso habitualmente feito a pé encurtado, quer porque se furtam aos perigos do trânsito que se processam nos caminhos alternativos, nomeadamente ao percurso numa estrada nacional.
9. Mutatis mutandis, o mesmo acontece com o acesso à igreja paroquial e ao campo de futebol, bem como em todas as suas finalidades, tendo o referido caminho uma utilidade geral, no sentido de beneficiar toda a população local, bem como todos aqueles que o utilizam como acesso às freguesias vizinhas.
10. Conclui-se assim, no sentido de que, pese embora este não se dirigir literalmente a ponte ou fonte de manifesta utilidade pública, o caminho em questão, mesmo a considerar-se como atravessadouro, não deixa de permitir e facilitar o acesso a lugares cuja frequência ocorre no âmbito da prossecução de interesses colectivos relevantes, pelo que, deve considerar-se excluído da abolição prevista nos termos que acolheu o Código Civil, efectuada a devida e necessária interpretação e actualização de tal norma.

6. O Autor/recorrido apresentou contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta:

1. O Autor é dono e legítimo possuidor do prédio rústico denominado "Mata do Vassoural", sito no lugar da Deveza, da freguesia de B.
2. A norte tem o prédio duas entradas, confinando uma delas com a E.N. n. 207 e a outra com um "atalho" que dá acesso à Rua Nova.
3. Este "atalho", com poucos metros de cumprimento, corria, até Setembro de 1992, encostado a uma casa, enquanto do outro lado confinava com um prédio rústico vedado com rede de arame assente em esteios que suportava uma ramada com vinha.
4. Este "atalho" tinha uma largura de 3 metros até Outubro de 1992, e os dois prédios entre os quais corria eram pertença de um tal C.
5. A entrada do "atalho" na parte mais próxima do prédio do Autor estava delimitada em altura, a três metros do solo, por videiras, propriedade desse tal C.
6. Este "atalho", que tinha 3 metros de largura, passou para 6 metros.
7. Alargado o "atalho", o tal C ou a Ré, com autorização deste, arrancou as videiras aquele pertencentes, confinantes com o prédio do Autor, na extensão do caminho agora alargado.
8. Passados alguns dias, a Ré retirou a vedação em rede de arame e arrancou os esteios que a suportavam.
9. Posteriormente, a Ré procedeu ao calcetamento do "atalho" na extensão confinante com o prédio do referido C.
10. A entrada do "atalho" para o prédio do Autor estava, na extrema deste prédio, delimitada por dois marcos, colocados um de cada lado da entrada, a três metros de distância.
11. Existiam dois esteios a suportar uma ramada, e que foram arrancados.
12. No dia 22 de Abril de 1994, uma máquina da Câmara Municipal, sob as ordens da Ré, invade, sem conhecimento ou autorização do Autor, o prédio deste e aterra uma vala, numa extensão de 60 metros, que se encontrava aberta desde fins de 1993.
13. Antes do arroteamento do prédio do Autor, existia um caminho que se processava, em parte, por esse prédio, no sentido Norte-Sul, o qual faz a ligação do lugar do Souto à Rua Nova e E.N. 207.
14. O leito do referido caminho, que inicialmente atravessava, mais ou menos a meio, o prédio do Autor, foi a seu pedido, e com o consentimento da Ré e da Câmara Municipal deslocado para Nascente do prédio.
15. Desde tempos que ultrapassam a memória dos vivos que sempre por ali (mais ou menos a meio do prédio do Autor) se processou um caminho, com uma extensão de cerca de 400 metros.
16. E uma largura de 2,5 metros.
17. Que atravessa, a Sul, onde nasce, junto ao Campo de Futebol, um prédio pertencente a um tal Engenheiro, depois um pertencente à D e, finalmente, o prédio do Autor.
18. Caminho que sempre estabeleceu a ligação dos lugares do Souto, onde se localiza o Campo de Futebol e a Escola Primária, ao lugar da Rua Nova e E.N. 207.
19. E que igualmente desde tempos imemoriais esteve no uso do público, por ali passando pessoas a pé e tractores.
20. Sendo muito utilizado pelas crianças para se dirigirem à Escola Primária.
21. E demais público para acesso à Igreja e Campo de Futebol de.
22. O referido caminho, com leito de terra, era mantido e conservado pela Ré, que várias vezes procede ao tapamento dos buracos naquele existentes, por si e também com a ajuda dos utentes, especialmente durante o Inverno, devido aos estragos provocados pelas chuvas.
23. Tudo na convicção de que se tratava de um caminho público.
24. Sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente do Autor.
25. Este "caminho" encurtava a distância da Rua Nova, a Nascente, e a Igreja, em relação ao percurso por caminhos municipais, em cerca de 300 metros.
26. E era usado pelo público, por um ou outro tractor, designadamente pelos caseiros / agricultores da "Casa da Bouça", que foi da avó do Autor.
27. Esses caseiros cultivavam, a Sul da "Mata do Vassoural", as Quintas da Vila da Carreira, a Norte as Quintas do Campo e da Eira.
28. Enquanto o Autor explorava directamente a Nascente, a Quinta da Bouça e a Sul a vinha do Loureiro.
29. Numa fotocópia da carta geográfico-cadastral da zona onde se situa a "Mata do Vassoural" são visíveis a localização dos locais e dos acessos à referida "Mata do Vassoural", assim como as estradas ou caminhos envolventes da mesma propriedade, onde se vêm perfeitamente definidos a "Igreja", o "Campo da Bola", a "Escola", a Rua Nova e a E.N. 207, ligados entre si, pelo lado Nascente da referida Mata por uma Estrada ou Rua, e se visualiza, perfeitamente, que, se traçarmos uma linha recta entre o local onde se situa a "Cassa da Bouça" com a "Quinta da Vila", a "Quinta da Carreira" e a "Vinha do Loureiro", essa recta atravessa exactamente ao meio a "Mata do Vassoural".
III
Questões a apreciar no presente recurso.

A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa, fundamentalmente, pela análise de duas questões: a primeira, a qualificação jurídica do "atalho em causa": caminho público ou atravessadouro; a segunda, se "o atalho em causa", qualificado como atravessadouro, se deve considerar excluído da abolição do artigo 1384, do Código Civil.
A segunda questão apresenta-se como nova - com manifesta violação do princípio da estabilidade da instância, no que concerne à reconvenção, artigo 268 do Código de Processo Civil - de sorte que este Supremo Tribunal de Justiça não pode "reapreciar" o que não chegou a ser "apreciado" pelas instâncias.
Daqui só a apreciação da primeira questão.
IV
A qualificação jurídica do "atalho em causa": caminho público ou atravessadouro.

1. Posição da Relação e das partes.

1a) A Relação do Porto decidiu não ser de aceitar o entendimento da sentença recorrida (o caminho em causa ser um caminho público, alicerçando a sua fundamentação no assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Abril de 1989 - B.M.J. n. 386, páginas 121 ...), apoiado no Parecer do Professor Henrique Mesquita e no Acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Novembro de 1993 que interpretaram restritivamente o assento pois, de outro modo, tem de se considerar todos os atravessadouros com posse imemorial como caminhos públicos, quando o próprio Código Civil os considera abolidos quando não transformados em servidões - artigo 1383.
Daqui concluir que o "caminho em causa" dever ser qualificado como atravessadouro e dado não se encontrar provado um dos requisitos da aquisição da dominialidade: a afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos.

A Ré/recorrente Junta de Freguesia de B sustenta dever qualificar-se o caminho em causa como caminho público, porquanto nunca se colocou em crise a afectação deste caminho à utilidade pública, de sorte que se coloca em questão o conceito de coisas públicas: o artigo 380 do Código Civil de 1867 continua ainda em vigor, de sorte que basta o uso directo e imediato pelo público, para se considerar uma coisa pública, estando afecto a um fim de utilidade pública inerente, derivado do facto de ela ser desde tempos imemoriais, destinada ao uso de todas as pessoas, independentemente da apropriação ou produção por pessoa colectiva de direito público.

1c) O Autor/recorrido sustenta que o caminho em causa deve ser qualificado como atravessadouro por, por um lado, não haver nos autos qualquer prova de que a via em causa estivesse inserida no domínio público por actos de apropriação da recorrente, sendo certo que para haver inversão do título de posse seria necessário que o recorrente tivesse agido contra a vontade do recorrido o que manifestamente não foi provado - cfr. artigos 1263 e seguintes do Código Civil.
Por outro lado, traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa é evidente que o simples uso pelo público, ainda que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem de ser qualificados como dominais em manifesta violação dos artigos 1383 e 1384, do Código Civil.

Que dizer?

O assento de 19 de Abril de 1989 (são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público - B.M.j. n. 386, página 121) veio pôr cobro (aparentemente) com a divergência que, desde há muito, se verificava na Jurisprudência.
Segundo uma corrente, para que um caminho pudesse ser considerado público, seria necessário verificar-se não só a utilização directa e imediata pelo público, mas, ainda, a respectiva "construção e manutenção pelo Estado ou autarquia local ou, segundo fórmula mais simples, que ele fosse produzido ou apropriado por pessoa colectiva do direito público - cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 1962 B.M.J. n. 122, página 173; e de 10 de Abril de 1969 - B.M.J. n. 169, página 203.
Segundo outra corrente, para que certo caminho fosse qualificado como público bastaria o facto de ele estar a ser usado directa e imediatamente pelo público, desde tempo imemorial, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 1977 - B.M.J. n. 252, página 156; de 26 de Março de 1985 - B.M.J. n. 345, página 366; de 2 de Dezembro de 1992 - B.M.J. n. 422, página 355; e de 19 de Fevereiro de 1998 - B.M.J. n. 474 página 481.

O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de Jurisprudência, artigo 732-A, Código de Processo Civil - só aparentemente pôs cobro à referida divergência jurisprudencial, pois interpretado e seguido à letra conduziria, conforme sublinha HENRIQUE MESQUITA, ao seguinte resultado:
"todos os atravessadouros com posse imemorial teriam de ser qualificados como caminhos públicos, e o artigo 1383 do actual Código Civil, onde expressamente se declara, no seguimento do que estabelecera já, no século XVIII, o Alvará de 9 de Julho de 1773, que se consideram "abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões", ficaria sem qualquer campo de aplicação e tornar-se-ia letra morta" - cfr. Parecer junto com as alegações do Autor, no recurso de apelação, a fls. 322/344.
No mesmo sentido a declaração de voto do Conselheiro Baltazar Coelho quando escreve: "o assento acabado de tirar manterá, qualificando-os como caminhos públicos, inúmeros atravessadouros, com manifesto desrespeito do preceituado do artigo 1383 do Código Civil que, por razões ponderosas e conhecidas, acabou com aquela forma arcaica e economicamente injustificável de limitação ao direito de propriedade, cfr. Boletim Ministério da Justiça n. 386, página 125.

PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, a propósito da corrente jurisprudencial que fez vencimento no Assento de 19 de Abril de 1989, escreveram:
"Traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem se ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artigos 1383 e 1384, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade.
E acrescentam:
"Sempre que ... o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem no domínio público, através de algum dos títulos por que pode ser adquirida a dominialidade", cfr. CÓDIGO CIVIL ANOTADO, volume III, 2. edição, páginas 281/282.

Segundo a doutrina, a aquisição da dominialidade pública depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública, podendo esta resultar de um acto administrativo ou de uma "prática consentida pela administração, em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público" ..., e aquela utilidade pública, que "consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas", traduz o "verdadeiros fundamento" da sua publicidade, cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume II, 10. edição, páginas 886/888.

Ora, se um dos requisitos essenciais da dominialidade é a afectação do caminho à utilidade pública, ou seja, à satisfação de relevantes interesses colectivos, estamos de inteira sintonia com a doutrina do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Novembro de 1993: o assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda, de forma extensiva quando afirma que deixou subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente a entidade pública e estar afecto à utilidade pública - cfr. Boletim Ministério da Justiça n. 431, página 300, e Colectânea - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - ano I, tomo III, página 135.
Daqui continuar a ser admissível a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros nos seguintes termos: um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular será público se estiver afectado à utilidade pública (ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância); de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros.

Perante o resultado interpretativo dado ao Assento de 19 de Abril de 1989 quer pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Novembro, quer por Henrique Mesquita, a merecer o nosso inteiro acolhimento, conforme o exposto, não pode oferecer dúvidas que o caminho em causa reveste a natureza de simples atravessadouro ou atalho.
Basta atentar na matéria fáctica fixada, nomeadamente:
- o acesso ao caminho, pelo lado norte, bem como a saída do caminho para fora do prédio rústico do Autor, denominado "Mata do Vassoural", faziam-se através de um atalho que corria entre dois prédios pertencentes a um tal C: ora um caminho público tem de ter acesso e saída através de outra via dominial.
- Esse caminho sempre estabeleceu ligação dos lugares do Souto, onde se localiza o campo de futebol e a escola primária ao lugar da Rua Nova e Estrada Nacional n. 207: ora, estes locais tinham e continuam a ter acesso fácil através de uma estrada camarária que passa ao lado do prédio rústico do Autor, denominado "Mata do Vassoural"
- O caminho em causa era muito utilizado pelas crianças para se dirigirem à escola primária e demais público para acesso à igreja e campo de futebol: ora o que não satisfazia (nem satisfaz) interesses colectivos de certo grau ou relevância.
V
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de Jurisprudência - deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda de forma extensiva quando afirma que deixou subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afecta à utilidade pública.
2) O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de jurisprudência - permite, face à interpretação dada, a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros nos seguintes termos:
- um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública, ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância;
- de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros.

Face a tais conclusões, em conjugação com a matéria fáctica fixada, poderá precisar-se que:
1) O caminho em causa reveste a natureza de simples atravessadouro ou atalho.
2) O acórdão recorrido não merece censura dado ter observado o afirmado em 1.

Termos em que se nega a revista.
Sem custas dada a recorrente estar isenta das mesmas, nos termos do artigo 2 n. 1 alínea e), do Código das Custas Judiciais.

Lisboa, 15 de Junho de 2000.

Miranda Gusmão,
Sousa Inês,
Nascimento Costa.

2. Juízo do Tribunal Judicial de Lousada - Processo n. 211/99;
Tribunal da Relação do Porto - Processo n. 1374/99 - 2. Secção.