Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
67/21.8JELSB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

I- Decorrendo da leitura da fundamentação da sentença recorrida que o tribunal a quo não só não teve dúvidas algumas como se convenceu claramente e com muita segurança acerca da culpabilidade e autoria dos factos dados como assentes, a arguição de violação do princípio in dubio pro reo é inconsequente e sem fundamento.


II- A razão de ser da agravação por via da al. h) do art. 24.º do DL 15/93, por efeito da conduta integrante haver tido lugar em estabelecimento prisional reside na perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e no grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta. Os estabelecimentos prisionais face aos inevitáveis problemas e questões que a clausura gera, estados de depressão e inactividade dos reclusos, concentração e massificação das pessoas, conflitos pessoais, carências afectivas, sentimentos de frustração, perda de auto-estima, são particularmente propícios ao consumo de estupefacientes e, consequentemente, constituem um dos alvos prioritários dos traficantes.


III- A agravação do crime de tráfico de estupefacientes prevista na alínea h), do art. 24.º, do DL n.º 15/93, de 22/1, por a infração ter sido cometida em estabelecimento prisional, tal como as demais alíneas do mesmo preceito legal, não sendo embora de aplicação automática, implica que seja necessária a análise do caso concreto a fim de se saber se há uma ilicitude acentuada dos factos na sua globalidade e, consequentemente, se justifica tal agravação.


IV- Constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça que na alínea h), do citado art. 24.º, tipificam-se situações de facto que, objetivamente, potenciam a perigosidade da ação desligada do resultado – como é próprio dos crimes de perigo abstrato –, acrescentando dimensão ao ilícito que justifica o agravamento da moldura penal aplicável ao crime base. Tal agravamento do crime de tráfico, acontecido em meio prisional, visa conferir uma proteção reforçada das finalidades da reclusão, ligadas à saúde (física e psíquica) e à reinserção social da população prisional, particularmente fragilizada na sua capacidade de autodeterminação relativamente ao consumo de estupefacientes.


V- Mostra-se adequada e proporcional a pena de prisão por 6 anos aplicada a arguido que , enquanto recluso em EP e com antecedentes criminais por diversos crimes, alguns punidos com prisão e também por tráfico de estupefacientes, usando a via de encomenda postal, conseguiu fazer introduzir no EP acondicionados dissimuladamente em pares de ténis, por corte na zona da sola, quatro pedaços oblongos de canábis em resina, com o peso líquido total de 18,078 g, com um grau de pureza de 26,6%, suficiente para 100 doses e dois pequenos sacos de plástico contendo ambos pós brancos cristalizados que, submetidos a exame pericial, revelaram tratar-se de cocaína (éster met.), com o peso liquido total de 12,492 g, com um grau de pureza de 76,2%, suficiente para 318 doses.

Decisão Texto Integral:




Acordam em Conferência na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I-RELATÓRIO


1.1- Por acórdão de 13.10.2023 do Juízo Central Criminal de ...(J...) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente agravado, previsto e punível pelo artº 21.º, n.º 1 e artº 24.º, al. h) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01 por referência às Tabelas 1-B e 1-C Anexas ao referido diploma na pena de 6 (seis) anos de prisão.


1.2- Desta decisão recorreu agora o arguido diretamente para este Supremo Tribunal de Justiça, peticionando nas conclusões do recurso que deveria ter sido absolvido, por entender não existir qualquer prova para além da interceção do produto estupefaciente, tendo o tribunal, a seu ver, procedido a uma ‘dissertação’ para fundamentar a condenação, alegando, por fim, que só poderia ser condenado, quando muito, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.


1.3 - O Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta, pronunciando-se pela improcedência do recurso e defendendo, além do mais, que a agravação da moldura penal do crime de tráfico de estupefacientes no interior de um estabelecimento se prisional deve à maior vulnerabilidade da população prisional ao consumo de estupefaciente, aos riscos inerentes a esse consumo e ao aproveitamento dessa situação pelo agente do crime, sendo que entende que os produtos estupefacientes apreendidos chegariam a uma pluralidade de reclusos do Estabelecimento Prisional ..., em especial a cocaína que, pelas suas características, permite uma maior plasticidade de doses, aproveitando-se o arguido da situação de carência dos reclusos para obter mais proventos.


1.4 - Neste STJ o MPº defendeu a improcedência do recurso.


1.5 - O arguido não respondeu a este parecer.


Assim, em detalhe:


1.6 – Conclusões da motivação de recurso interposto pelo arguido:

“1. O arguido foi condenado ao cumprimento de uma pena de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente agravado p.p. pelos artº 21º nº1 e 24º, al) h do D.L n9 15/93 de 22 de janeiro, com referência à tabela l-B anexa ao mesmo diploma;

2. Da matéria constante do acórdão não resulta qualquer prova para além da interceção do produto de estupefaciente;

3. À míngua de prova factual, o tribunal a quo elaborou uma dissertação para fundamentar a severa condenação do recorrente;

3- Na fundamentação sugeriam-se cenários e opções mais razoáveis para o destino da droga;

4- A aceitar-se o cenário apresentado pelo tribunal a quo em que dá o recorrente como condenado pela prática de tráfico de estupefacientes no interior da prisão, pergunta-se qual o motivo do recorrente ser condenado por tráfico agravado.

5- A proceder a fundamentação elaborada no acórdão em crise, sem conceder à decisão de absolvição, no limite com recurso ao princípio in dúbio pro reo, o recorrente só poderia ser condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade – artº 25º do D.L nº 15/93 de 22 de janeiro, a designada lei da droga.

Pelo exposto, deve o presente recurso proceder e em consequência:

a) Ser o recorrente absolvido de todos os factos que lhe foram imputados.

Caso Vª Exªs decidam acolher parte da decisão em crise,

b) Ser o arguido condenado pela do artº 25 do D.L nº 15/93 de 22 de janeiro.

1.7 – Conclusões da resposta do MPº na 1ª instância.

1. A agravação da moldura penal do crime de tráfico de estupefacientes no interior de um estabelecimento prisional deve-se à maior vulnerabilidade da população prisional ao consumo de estupefaciente, aos riscos inerentes a esse consumo e ao aproveitamento dessa situação pelo agente do crime.

2. Os produtos estupefacientes apreendidos chegariam a uma pluralidade de reclusos do Estabelecimento Prisional ..., em especial, a cocaína que, pelas suas características, permite uma maior plasticidade de doses.

3. E, sendo a oferta destes produtos estupefacientes limitada no interior de um estabelecimento prisional, o arguido com a sua conduta, aproveitando-se de uma situação de carência dos reclusos, obteria um maior lucro e proventos.

4. Toda a conduta do arguido assume uma ilicitude acrescida, devendo o mesmo ser punido pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado, consagrado no disposto nos artigos 21.º e 24, alínea h) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se dessa forma o acórdão recorrido.

1.8 - Posição do MPº neste STJ

1 - A matéria de facto dada como provada resultou, não de qualquer «dissertação» do coletivo singularmente baseada na apreensão dos estupefacientes, mas sim do conjunto de prova produzida em sede de audiência de julgamento, conjugada entre si e com as regras da experiência comum;

2 - Mostrando-se devidamente fundamentada a convicção resultante de tal prova;

3 - Não se verificando qualquer erro na sua apreciação, nomeadamente o vício previsto no artº 410º, nº 2, al. c), do CPP;

4 - Não se podendo aceitar que o recorrente, sem cumprir minimamente as regras constantes no artº 412º, nºs. 3 e 4, do CPP e em direta violação do artº 434º do mesmo diploma, pretenda no recurso alterar aquela matéria de facto;

5 - Matéria que, de forma evidente, leva a concluir no sentido da qualificação do crime de tráfico de estupefacientes por verificado em estabelecimento prisional;

6 - Pretendendo o arguido lucrar com a venda a outros reclusos das centenas de doses de canábis e de cocaína;

7 - Nem se compreendendo como pretenda, nesta situação, concluir pela aplicação ao caso do crime de tráfico de menor gravidade;

8 - Sendo que nem fundamenta este pedido, donde que por total falta de motivação, sempre nesta parte o recurso deverá ser rejeitado.

9 - Pelo que é parecer do Ministério Público que deverá ser mantida, na totalidade, a decisão recorrida.”

1.9 - Admitido o recurso, por ser legítimo e tempestivo, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo ( ex vi dos artººs 399.º, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, al. a), 408.º, n.º 1, al. a), e 411º, n.º 1, primeira parte, do C.P.P.) foi então remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, onde, por sua vez, como acima se mencionou já, o MºPº emitiu parecer no sentido do seu não provimento.


1.10 - Feito exame preliminar e cumpridos os vistos legais, realizou-se Conferência, cumprindo agora explicitar a deliberação tomada.


II- Delimitação das questões a conhecer no âmbito do presente recurso


2.1- Visando permitir e habilitar este Supremo Tribunal a conhecer as razões de discordância da decisão recorrida e tal como tem sido, aliás, posição pacífica da jurisprudência, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, devidamente congruentes, que o(s) recorrente(s) extrai(am) da respectiva motivação, sem prejuízo da ponderação das questões que sejam de conhecimento oficioso. (1)


2.2- Deste modo, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das que possam existir de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:


a) A discussão nesta fase recursiva sobre a ausência de prova do crime perante os limites previstos no artº 432º do CPP dos poderes de apreciação do STJ nessa matéria e a violação do princípio in dubio pro reo.


b) --A qualificação do crime e a sua eventual convolação pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade – artº 25º do D.L nº 15/93 de 22 de janeiro.


2.3 – O Direito e a apreciação das questões enunciadas no recurso


2.3.1- Começa o recorrente por dizer, na motivação- [onde a transcrição da decisão de facto (matéria de facto provada e não provada) ocupa quase a totalidade de 7 das 9 páginas do texto ] - que só pretendeu recorrer de direito.


E, logo de seguida, enuncia as questões que diz serem de direito, dizendo:


São duas as questões de direito que se levantam:


1. A fundamentação do acórdão em crise;


2. Não preenchimento dos elementos do tipo para o tráfico agravado;”


Adiantando, quanto à primeira questão:

“(…)

O acórdão em crise, à míngua de prova que sustente a condenação do recorrente, elaborou uma construção que só pode ter tido suporte nas regras da experiência comum.

É que, para sustentar a matéria dada como provada, o tribunal a quo considerou o depoimento dos guardas prisionais, uma vez que não encontra sustentabilidade nas duas versões completamente antagónicas apresentadas pelos arguidos.

Acresce ainda que o arguido AA, que nega veemente a prática deste ilícito, nega ter feito qualquer pedido, encomenda ou acordo com o co-arguido BB.

Aliás, o recorrente era visitado pela sua família semanalmente, que lhe traziam, todos os bens necessárias para ter conforto dentro do estabelecimento prisional, sendo conhecido o facto de ter 5 pares de ténis na sua cela.

Ou seja, o que as testemunhas trouxeram ao processo foi apenas o relato de outros reclusos e a realização de uma apreensão sem conseguir apurar o verdadeiro mandante/destinatário do estupefaciente.

Com o devido respeito, parece pouco para condenar um qualquer cidadão, seja ele de que parte fôr.

Ora, sem necessidade de grande dissertação, é matéria pacífica, que o recurso às ditas regras da experiência não podem por si só serem suficientes para condenar o recorrente.

O recorrente negou a prática dos factos, e não há matéria que possa levar à sua condenação.

Bem teria andado o Tribunal a quo, se se tivesse decidido pela absolvição do recorrente, no limite, lançando mão do princípio in dúbio pro reo.

A construção elaborada pelo tribunal a quo, para dar como assente a matéria provada, aponta para um cenário que terá tido por base uma vingança.

Depois disso, sempre num cenário sem sustentação probatória, entendeu o tribunal que o recorrente utilizou um terceiro no exterior, e, no interior, o seu co-arguido, BB, para fazer entrar o produto estupefaciente no Estabelecimento Prisional e que tal produto se destinava a cedência remunerada a terceiros.

Alguns factos, temos como certos:

A droga foi introduzida através de encomenda postal no Estabelecimento Prisional ..., escondida nas solas de uns ténis.

Não se determinou quem é o remetente da encomenda.

Quem é o "cérebro" da operação.

O tribunal, sempre no seu raciocínio baseado nas regras da experiência comum, que na verdade mais não são do que meras possibilidades, sugere o tráfico de estupefacientes no EP....

A cedência renumerada a terceiros, seria visada pelo recorrente ao introduzir a droga no Estabelecimento Prisional (…)”.

Depois, no respeitante à matéria da qualificação dos factos, acrescentou ainda:

“ (…)

Como acima se dizia, se se aceitar este cenário como bom, não se entende como o tribunal a quo, para além de ter condenado o arguido, ainda o condenou pela forma de tráfico agravado, não assegurando convenientemente o equilíbrio, a equidade e a proporcionalidade da pena.

A tomar a dissertação do tribunal como boa não se entende como se chega à conclusão do crime cometido revestir a forma agravada.

Não preenchimento dos elementos para o tráfico agravado;

Depois do tribunal aceitar que a quantidade e qualidade da droga apreendida se encontrava dentro do E.P. ..., e que o arguido tentava colocá-la em meio interior, sugerindo que o recorrente a utilizaria para negócio lucrativo e que o teria planeado de forma sofisticada - numa dissertação cada vez mais elaborada- corria, ainda assim, o risco de ser apanhado.

Agora uma vez que o acórdão em crise é fértil em sugestões e interrogações, pergunta o recorrente, qual o motivo de ter sido condenado pela prática de um crime de estupefaciente na forma agravada p.p. ar9t.21 n? 1 e 249, al) h do D.L n9 15/93 de 22 de janeiro.

Sem conceder quanto à sua absolvição, a ser condenado, justo será que seja aplicado o artº 25.º do D. L. 15/93 de 22 de janeiro, porquanto a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída.”

2.3.2 - A Decisão a quo quanto à matéria de facto e à fundamentação da convicção.


2.3.2.1-

“II – Fundamentação de Facto

1. Factualidade Provada

Da discussão da causa, e com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:

1. Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 02 de Março de 2021, o arguido AA, que se encontra recluso em cumprimento de pena de prisão no Estabelecimento Prisional ..., traçou um plano que visava fazer entrar em tal unidade prisional produto estupefaciente, designadamente canábis e cocaína, para aí ser recebido e depois entregue e vendido a outros reclusos que ali se encontrassem.

2. Na execução de tal plano e porque o arguido AA se encontrava já referenciado pela prática de ilícitos criminais relacionados com o tráfico e consumo de estupefacientes, o arguido AA decidiu que o produto estupefaciente daria entrada no referido Estabelecimento Prisional através de encomenda postal, na qual constasse como remetente o pai do arguido BB, CC, habitualmente residente na localidade de ..., e que contivesse uns ténis e diversas peças de roupa, de molde a não levantar qualquer tipo de suspeitas sobre o conteúdo da mesma.

3. Assim, o arguido AA contactou um terceiro no exterior, cuja identidade não foi possível apurar, dando-lhe as instruções necessárias para que o mesmo procedesse ao envio da encomenda nos moldes supra referidos.

4. No dia 2 de Março de 2021, conforme planeado por AA, foi recepcionada a referida encomenda no Estabelecimento Prisional ..., dirigida ao arguido BB e enviada a partir da estação postal do ..., em ..., tendo este, após sido chamado para a receber, aceite a mesma.

5. Os guardas que se encontravam de serviço procederam à abertura da referida encomenda em frente ao arguido BB e entregaram-lhe as diversas peças de roupa que vinham acondicionadas no seu interior.

6. No entanto, quando se preparavam para lhe entregar os ténis,
verificaram que os mesmos exalavam um forte odor a cola, facto que lhes causou
estranheza e fez levantar suspeitas.

7. Por isso, os mencionados guardas procederam ao corte dos ténis na zona
da sola, verificando que ali se encontravam acondicionados:

- Quatro pedaços oblongos de um produto vegetal prensado e
acondicionado em plástico, vulgo "bolotas" (dois em cada ténis) que, submetidos
a exame pericial, revelaram tratar-se de canábis em resina, com o peso liquido
total de 18,078 g, com um grau de pureza de 26,6%, suficiente para 100 doses; e

- Dois pequenos sacos de plástico (um em cada ténis), contendo ambos pós
brancos cristalizados que, submetidos a exame pericial, revelaram tratar-se de
cocaína (éster met.), com o peso liquido total de 12,492 g, com um grau de pureza
de 76,2%, suficiente para 318 doses.

8. Ao actuar do modo descrito, o arguido AA agiu com o propósito concretizado de ter na sua posse produtos estupefacientes, designadamente
canábis e cocaína, e de os ceder ou vender a terceiros reclusos que o procurasse
para esse efeito, por valor superior ao da sua aquisição, com vista a auferir uma vantagem económica.

9. O arguido AA conhecia as características estupefacientes das substâncias que lhe foram remetidas e chegaram à sua posse, bem sabendo que não tinha autorização para comprar, deter, ceder, transportar, ou, por qualquer forma, manusear produtos estupefacientes.

10. Não obstante, agiu o arguido AA com o propósito concretizado de deter e posteriormente distribuir tais substâncias a outros reclusos dentro do referido Estabelecimento Prisional.

11. O arguido AA actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, na concretização de um plano que previamente traçou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o que não o demoveu de actuar como actuou.

12. Quanto aos antecedentes criminais do arguido BB, o arguido possui a seguinte condenação:

a. Processo Comum Colectivo nº 796/18.3..., do Juiz ... do Juízo Central Criminal ..., por acórdão transitado em julgado em 30-06-2020, foi o arguido condenado pela prática de um crime de violação agravada praticado em 09-09-2018, dois crimes de coação sexual agravada, praticados em 15-09-2018 e um crime de roubo praticado em 09-09-2018, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.

13. Quanto aos antecedentes criminais do arguido AA, o arguido possui as seguintes condenações:

a. Processo Comum nº 908/07.2..., do ... Juízo Criminal de ..., por sentença transitado em julgado em 18-11-2009, foi o arguido condenado pela prática em 08-09-2007 de um crime de furto de uso de veículo, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 3,00€, a qual foi declarada extinta, por pagamento, em 09-06-2010.

b. Processo Comum nº1148/08.9..., da ... Vara Criminal de ..., por acórdão transitado em julgado em 16-12-2010, foi o arguido condenado pela prática em 26-12-2008 de um crime de roubo na forma tentada, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a qual foi declarada extinta, pelo decurso do tempo, em 17-06-2013.

c. Processo Comum nº146/13.5..., do 1.º Juízo Pequena Criminalidade de ..., por sentença transitado em julgado em 12-11-2021, foi o arguido condenado pela prática em 16-02-2016 de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 5 meses de prisão substituída por 150 dias de multa à taxa diária de 6,00€.

d. Processo Comum nº669/13.6..., do Juiz ... do Juízo Central Criminal de ..., por acórdão transitado em julgado em 16-02-2017, foi o arguido condenado pela prática em Fevereiro de 2013 de um crime de extorsão, um crime de roubo e um crime de usurpação de funções, na pena de 3 anos de prisão efetiva, a qual foi declarada extinta pelo cumprimento em 18-10-2022, tendo sido concedida a liberdade definitiva com efeitos a 20-08-2022.

e. Processo Comum nº 7494/15.8..., do Juiz ... do Juízo Central Criminal de ..., por acórdão transitado em julgado em 12-09-2022, foi o arguido condenado pela prática em Setembro de 2015 de dois crimes de extorsão, um crime de sequestro e um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva.

f. Processo Comum nº 6677/21.6..., do Juiz ... do Juízo Central Criminal de ..., por acórdão cumulatório transitado em julgado em 10-11-2022, foi o arguido condenado em cumulo jurídico superveniente, englobando as penas dos processos 93/16, 174/17, 669/13, 1597/18, 1643/15, na pena de 6 anos de prisão efetiva e 150 dias de multa à taxa diária de 5,00€.

g. Processo Comum nº 1159/10.4..., do ... Juízo da Pequena Criminalidade de ..., por sentença transitado em julgado em 07-03-2012, foi o arguido condenado pela prática em 22-08-2010, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5,00€, a qual foi declarada extinta, por prescrição em 07-03-2016.

h. Processo Comum nº 1510/07.4..., do... Juízo Criminal de ..., por sentença transitado em julgado em 30-09-2011, foi o arguido condenado pela prática em 27-07-2007, de um crime de furto na forma tentada na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 4,00€, a qual foi declarada extinta, por pagamento, em 09-07-2012.

i. Processo Comum nº 991/08.3..., do ... Juízo Criminal de ..., por sentença transitado em julgado em 16-05-2011, foi o arguido condenado pela prática em 05-12-2008, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade na pena de 16 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, a qual foi declarada extinta, pelo decurso do tempo, em 30-09-2012.

j. Processo Comum nº 272/09.5..., da ... Vara Criminal de ..., por acórdão transitado em julgado em 31-05-2011, foi o arguido condenado pela prática em 13-03-2009 de um crime de furto simples, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a qual foi declarada extinta, pelo decurso do tempo, em 30-11-2012.

k. Processo Comum nº 65/10.7..., do ... Juízo Criminal de ..., por sentença transitado em julgado em 30-09-2011, foi o arguido condenado pela prática em 08-06-2010, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade na pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, a qual foi declarada extinta, pelo decurso do tempo, em 30-05-2013.

l. Processo Comum nº 10/07.7..., do ... Juízo Criminal de ..., por sentença transitado em julgado em 17-03-2014, foi o arguido condenado pela prática em 04-10-2007, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 5,00€, a qual foi convertida em prisão subsidiária suspensa por um ano, tendo sido declarada extinta, por prescrição, em 17-03-2018.

m. Por acórdão transitado em julgado em 01.10.2020 e proferido no âmbito do processo 1643/15.3..., foi o arguido condenado na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, pela prática, em 14.10.2015, de um crime de detenção de arma proibida, um crime de sequestro e um crime de ofensa à integridade física qualificada.

n. Processo Comum nº 93/16.9..., do Juiz ... do Juízo Central Criminal de ..., por sentença transitado em julgado em 08-10-2020, foi o arguido condenado pela prática em 21-06-2015, de um crime de falsas declarações na pena de 1 ano de prisão efetiva.

o. Por sentença transitada em julgado em 13.01.2020 e proferida no âmbito do processo 2009/16.3..., foi o arguido condenado na pena de 8 meses de prisão suspensa por um ano, com o dever de pagar ao lesado a quantia de 200€, pela prática, em 17.11.2016, de um crime de burla, a qual foi declarada extinta, pelo decurso do tempo, em 13-01-2021.

p. Por acórdão transitado em julgado em 21.02.2020 e proferido no âmbito do processo 174/17.1..., foi o arguido condenado na pena única de 4 anos de prisão, pela prática, em 02.03.2017, de 4 crimes de passagem de moeda falsa e um crime de passagem de moeda falsa na forma tentada

q. Processo Comum nº 1597/18.4..., do ... Juízo Criminal de ... Norte, por sentença transitado em julgado em 21-12-2020, foi o arguido condenado pela prática em 12-07-2018, de um crime de burla simples na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5,00€.

14. Das condições socioeconómicas e pessoais do arguido BB (mormente constantes do relatório social)

(…)

15. Das condições socioeconómicas e pessoais do arguido AA:

O processo de desenvolvimento do arguido AA, decorreu num contexto familiar desestruturado, decorrente da ausência de condições socioeconómicas da sua mãe e desvinculação do pai. Quando aquele tinha cerca de 3 anos, a mãe contraiu matrimónio, do qual nasceram três filhas. O ambiente familiar foi marcado pela problemática de alcoolismo do padrasto e pelos maus tratos que este infligia aos familiares.

O percurso escolar de AA ficou marcado pelo insucesso devido ao absentismo, reprovações e problemas de ajustamento comportamental. O arguido abandonou a escola sem obter o 6.º ano de escolaridade, situação à qual não foi alheia a disfuncionalidade familiar. Tal situação potenciou a integração do arguido em grupo de pares com comportamentos desviantes, iniciando o consumo de haxixe aos 13 anos de idade.

Posteriormente frequentou o 6.º ano de escolaridade através do Ensino e Formação para Adultos (EFA ...) no Agrupamento de Escolas ... em ....

O trajeto laboral do arguido, numa fase inicial caracterizou-se pelo desempenho de atividades indiferenciadas na sua maioria em estabelecimentos de restauração/cafetaria. Após a conclusão de um curso profissional de corte/barbeiro passou a desempenhar esta atividade por conta própria.

O consumo de haxixe e mais tarde o de cocaína, assim como o convívio com amigos e conhecidos com comportamentos pró-criminais, potenciaram o envolvimento de AA nos factos que estiveram na origem das primeiras condenações em penas de prisão, suspensas na sua execução, sujeitas a regime de prova.

AA tem um filho, nascido em ... de 2008, fruto de um relacionamento pontual, com quem não mantém contactos. Posteriormente encetou uma união de facto com DD, tendo o par fixado residência junto dos pais daquela no Concelho .... Este relacionamento terminou no final do ano de 2012 e desta união tem dois descendentes que o visitam no estabelecimento prisional.

Em 2013 AA encetou uma relação afetiva com EE, com quem passou a viver em união de facto numa casa arrendada e a partilhar um salão de cabeleireiro, onde exercia a atividade de barbeiro e a companheira de cabeleireira. Na sequência do encerramento do salão manteve a mesma atividade por conta de outrem, trabalhando à comissão. Contudo, para minimizar as despesas, o casal optou por integrar o agregado de origem de AA.

Desta união, terminada no decurso da reclusão, tem dois filhos, atualmente com 6 e 4 anos de idade.

A análise efetuada ao percurso vivencial do arguido a partir de 2008 remete para história criminal reiterada e diversificada na tipologia, decorrente de um estilo de vida caracterizado pelo consumo de drogas e a manutenção de uma rede de sociabilidade pró-criminal.

AA encontra-se privado de liberdade desde 20-08-2019, tendo iniciado o cumprimento da pena de prisão no Estabelecimento Prisional ....

No Estabelecimento Prisional ... não está integrado em nenhuma atividade de valorização pessoal e ao nível disciplinar averba uma medida disciplinar de 05 dias de permanência obrigatória no alojamento devido à posse de objeto proibido, infração protagonizada em março de 2021.

Depois deste episódio procurou adotar um comportamento mais ajustado e de interesse para rentabilizar o período reclusão através da frequência do EF... para concluir o 6.º ano de escolaridade.

AA apesar de ter mantido o consumo regular de haxixe e de cocaína durante a sua juventude, o nascimento dos filhos mais novos espoletou a necessidade de manter-se abstinente de drogas.

Em meio prisional aderiu a um processo terapêutico através de consultas regulares de psicologia e psiquiatria, situação conjugada com medicação de psicofármacos.

Ao nível pessoal demonstra capacidade para estabelecer relações interpessoais adequadas, num estilo de interação comunicativo e apelativo. No entanto, a análise efetuada ao seu percurso vivencial remete para limitações ao nível do pensamento consequencial e da capacidade de responsabilização, bem como permeabilidade a influências externas desviantes e tendência a agir em função dos seus interesses imediatos, em detrimento do respeito pelos valores sociojurídicos.

Ao nível familiar, o arguido mantém contactos telefónicos com os filhos mais novos e o seu sobrinho FF. No momento, tem beneficiado de visitas regulares por parte das irmãs (irmã GG), do marido desta, dos filhos mais velhos e da sua mãe.

Quanto a perspetivas futuras, o arguido irá reintegrar o agregado da mãe, que tem vindo a prestar-lhe suporte afetivo e logístico através de visitas pontuais em meio prisional e de transferências bancárias para a sua conta de recluso existente no EP.... Também possui um sobrinho com 10 anos, FF, com necessidades especiais (perturbação especifica da linguagem (PEL, perturbação de défice de atenção e hiperatividade (PDAH) e dificuldades académicas em relação com PEL e PDAH), que reside com a sua mãe e com o qual o arguido possui um relacionamento afetivo próximo, desde o nascimento deste.

Quanto a empregabilidade futura, o arguido tenciona efetuar uma procura ativa de emprego como barbeiro junto de conhecidos.

Face a crime de natureza semelhante ao que se encontra acusado nos presentes autos, AA reconhece em abstrato o bem jurídico protegido.

Quanto ao desfecho do presente processo, o arguido denota uma atitude ambivalente que oscila entre a expectativa favorável e o receio de sofrer uma nova condenação, agravando assim a sua situação jurídico-penitenciária. Tal situação tem potenciado no próprio maior instabilidade emocional, o que sugere a necessidade de consultas de psiquiatria com maior regularidade.

A análise efetuada ao percurso prisional do arguido, entre os factos mencionados nos presentes autos e atualidade, indicia ausência de evolução nos diferentes domínios, na medida em que em março de 2022 voltou a ser punido com 8 dias permanência obrigatória no alojamento devido a apreensão de objeto proibido.

Apesar de ter frequentado o EF..., começou por apresentar reduzida assiduidade, até que desistiu de frequentar a escola. Alega que tal decisão esteve relacionada com o receio de sofrer represálias por parte de alguns companheiros de reclusão no espaço escolar, devido a conflitos antigos. Perante estas condicionantes, o arguido já solicitou transferência para outro estabelecimento prisional.

O arguido denota tendência para atenuar a gravidade das condutas criminais empreendidas, pelas quais já foi condenado, assim como o impacto para vítimas e sociedade em geral. Tal posicionamento remete para necessidades de intervenção ao nível pessoal, designadamente na área atitudinal, relacionadas com o modo como justifica o seu comportamento criminal e minimiza a sua responsabilidade.

Ao nível familiar, apesar de beneficiar de suporte logístico por parte da família de origem, a situação jurídico-penitenciária teve impacto económico e emocional sobretudo para a sua mãe e também para a ex-companheira, responsável pela sustentabilidade dos filhos, sozinha, embora aquela reconheça a necessidade de assegurar o relacionamento daqueles com o arguido.

Deste modo, o arguido surge, na atualidade, como um indivíduo com necessidades de intervenção ao nível pessoal, designadamente na área atitudinal, remetendo o seu discurso e o percurso criminal para a tendência para sobrepor interesses pessoais nos processos de tomada de decisão, em determinadas circunstâncias, alheando-se das convenções sociais estabelecidas.

Para além destas características pessoais, a tendência para o envolvimento com pares conotados com comportamentos pró-criminais e o prognóstico reservado quanto à remissão da problemática de toxicodependência constituem-se, atualmente, como fatores que, a manterem-se, poderão comprometer o seu processo de reinserção social futuro.

De modo a minimizar as necessidades de intervenção que apresenta, é imprescindível que AA mantenha um comportamento ajustado ao quadro normativo do meio prisional, assim como a frequência escolar com assiduidade e adira programas desenvolvidos pelos ... que visem a aquisição e consolidação de competências pessoais e sociais conducentes ao "dever-ser" social, processo a carecer de consistência nesta fase de execução da pena de prisão.

2. Factualidade Não Provada

Da discussão da causa e com relevância para a causa não resultaram provados os seguintes factos:

I. O arguido BB actuou em conjunto com o arguido AA, traçando um plano que visava fazer entrar no Estabelecimento Prisional ... produto estupefaciente, designadamente canábis e cocaína, para aí ser por ambos recebido e depois entregue e vendido a outros reclusos que ali se encontrassem.

II. O arguido BB actuou em comunhão de esforços e conforme plano traçado com o arguido AA, levando a cabo os factos descritos em 2. a 7.

III. Ao actuar do modo descrito, o arguido BB agiu, conjuntamente com o arguido AA, com o propósito concretizado de ter na sua posse produtos estupefacientes, designadamente canábis e cocaína, e de os ceder ou vender a terceiros reclusos que os procurassem para esse efeito, por valor superior ao da sua aquisição, com vista a auferirem de uma vantagem económica.

IV. O arguido BB conhecia as características estupefacientes das substâncias que lhe foram remetidas e chegaram à sua posse, bem sabendo que não tinham autorização para comprar, deter, ceder, transportar, ou, por qualquer forma, manusear produtos estupefacientes.

V. Não obstante, agiu o arguido BB conjuntamente com o arguido AA, com o propósito concretizado de deter e posteriormente distribuir tais substâncias a outros reclusos dentro do referido Estabelecimento Prisional.

VI. O arguido BB actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços e intentos com o arguido AA na concretização de um plano que previamente traçaram, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o que não os demoveu de actuar como actuou.

3. Motivação da Matéria de Facto

No apuramento da factualidade julgada como provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica das declarações dos arguidos, da prova testemunhal (cuja referência ao conteúdo das respectivas declarações será feita de forma perfunctória atenta a sua gravação) e da prova documental junta aos autos, apreciada segundo as regras da experiência comum.

O arguido BB em sede de instrução prestou declarações quanto aos factos imputados, sendo que a versão que ali apresentou é igual àquela que apresentou em audiência de julgamento.

O arguido BB negou a prática dos factos, asseverando que recebeu a encomenda no Estabelecimento Prisional ... a pedido do arguido AA e desconhecia o que a mesma continha no seu interior.

Explicou em suma, que em Março de 2021 estava recluso no Estabelecimento Prisional ... juntamente com o arguido AA e que este o abordou dizendo-lhe que já tinha 5 pares de ténis (máximo que se pode possuir no EP) e por isso, pediu-lhe a sua morada e nome do seu pai, para receber a encomenda de mais um par de ténis (como se fosse para o próprio BB) e que em troca lhe oferecia entre 20€ a 30€ em cantina, tendo aceite tal proposta.

Explicou que o arguido AA também lhe disse que na encomenda viria uma roupa (camisola e umas boxers) que podiam ficar para o próprio (BB), sendo que apenas os ténis ficariam para o AA.

Explicou como se processa o pagamento em cantina, descrevendo que o arguido AA faria o pedido na cantina com as coisas que o próprio (BB) quereria e seria debitado na conta corrente do AA (assinando o próprio AA a compra) e depois o AA entregar-lhe-ia os referidos bens.

Referiu que sabia que a encomenda não seria enviada pelo seu pai, de .... Explicou que a encomenda vinha de ..., tendo sido o arguido AA a tratar, desconhecendo quem a enviou.

Referiu ainda que quando chegou a encomenda verificou que os ténis cheiravam muito a cola e os guardas levaram-no para o armazém e que quando os guardas decidiram abrir os ténis, assumiu logo que os mesmos eram para o AA, a pedido deste.

Referiu que ficou estupefacto quando viu que os ténis tinham droga no seu interior, sendo que a droga não era sua nem lhe era destinada, mas sim ao AA e que assumiu isso logo junto dos guardas prisionais.

Explicou que antes de estar preso consumia haxixe, mas que no Estabelecimento Prisional não consome, sendo que foi sujeito a pesquisa de substâncias estupefacientes no EP por 4 vezes e deu sempre negativo.

Referiu que quando os factos aconteceram estava na Ala A do EP conjuntamente com o arguido AA, sendo que depois dos factos, no dia seguinte foi transferido para a Ala B.

Explicou que na altura dos factos dava-se bem com o AA, mencionando que muito tempo antes destes factos (vários meses antes) se tinha chateado com o AA porque o mesmo contou aos outros reclusos a sua condenação (crime pelo qual foi condenado) e durante um tempo sofreu represálias “cachaços” dos outros reclusos.

Mais relatou que o AA depois de ter delatado o seu crime aos outros reclusos, dava-lhe calmantes, para ficar mais calmo e perguntava-lhe se “os ... e os outros reclusos já falam contigo?”. Referiu que passado um tempo, os outros reclusos acalmaram e acabou por desculpar o AA e ficou mais próximo do mesmo e acabou por aceitar a proposta que este lhe fez, relativamente aos ténis.

Por último, referiu que, depois do sucedido, o recluso HH lhe contou que o arguido AA já tinha pedido, a esse recluso de nome HH, uma morada para receber uns ténis e que o HH não aceitou a proposta. Referiu que de pé calçava o número 42-43.

Por fim, explicou que tinha uma amizade mais especial com o BB, companheiro de cela, mas não possuía qualquer relacionamento amoroso com o mesmo.

O arguido AA não prestou declarações em sede de instrução.

Em audiência de julgamento o arguido AA prestou declarações, negando totalmente a prática dos factos, asseverando que nunca fez qualquer encomenda de ténis ao arguido BB e que desconhece a existência de quaisquer ténis enviados para o arguido BB e da existência de qualquer droga.

Explicou que o arguido BB partilhava uma camarata com ouros dois companheiros sendo que um deles chamava-se BB, o qual tinha um caso amoroso com o BB.

Referiu que descobriu através do ex-companheiro do BB que o mesmo tinha sido condenado por violação (roubava dinheiro a senhoras de idade e obrigava-as a sexo oral) e abordou-o e confrontou-o e contou a outros reclusos na prisão, sendo que desde então BB começou a sofrer algumas agressões físicas e verbais dos outros reclusos.

Referiu que nunca fez qualquer encomenda de ténis nem de droga, nem pediu nada ao arguido BB e que o arguido BB quando recebeu a encomenda e viu que estava a ser apanhado, decidiu vingar-se do próprio, incriminando-o.

Explicou que estava no Estabelecimento Prisional ... há 8 meses quando aconteceram os factos (em Março de 2021), sendo que soube pela altura do Natal (Dezembro de 2020) qual o crime pelo qual o arguido BB foi condenado e contou a outros reclusos.

Referiu que costuma calçar o n.º 39 e/ou n.º 40.

Explicou que na cela só pode ter 5 pares de ténis, mas que na altura, em Março de 2021, tinha no armazém do EP uns ténis airforce que são para usar no inverno, sendo que não precisava de mais ténis nem de pedir a encomenda ao BB.

Referiu que foi consumidor de cocaína desde 16 anos até aos 27 anos (quando o seu filho II nasceu) e consumidor de haxixe desde 13 anos e já consumiu no interior do EP. Referiu que consumiu haxixe em 2020 e teve recaída em Março de 2021, depois dos factos e pediu ajuda a psicólogo.

Referiu que fez teste no EP em Dezembro de 2020 e acusou cocaína e haxixe, mas asseverou que só consumia haxixe, não tendo consumido cocaína.

Explicou que no EP, só comprava onças de tabaco e recebia dinheiro por isso, porque não tinha dinheiro, sendo que não traficava produto estupefaciente (não vendia a terceiros).

Explicou que o próprio e o BB estavam no mesmo piso, na ala A e não se relacionava com ele de forma próxima e que nunca lhe deu qualquer medicação para aquele se acalmar. Mais referiu que nunca pediu ao recluso HH a morada para fazer quaisquer encomendas.

Por fim, referiu que só apresenta como explicação para a invenção do arguido BB de que a encomenda era para si, pelo facto do arguido BB querer-se vingar da sua pessoa por ter contado aos outros reclusos do crime que aquele havia sido condenado.

Foram ouvidas as testemunhas JJ e KK, ambos Guardas Principais a exercer funções no Estabelecimento Prisional ....

A testemunha JJ, referiu que conhece ambos os arguidos por serem ambos, à data dos factos, reclusos do EP ....

Referiu que antes dos factos, tiveram informação (através de outros reclusos) que poderia ser recebida uma encomenda em nome do arguido BB, a pedido do arguido AA, que podia estar relacionado com algo ilícito.

Explicou que a encomenda chegou endereçada ao arguido BB, com morada e indicação do pai do arguido BB, de ..., mas vinda de correio de ... e passou no sistema de raio-x (noutra sala que não a sua) e o sistema de raio-x detetou algo de estranho na sola dos ténis e foi-lhe sinalizado. De seguida a encomenda, como todas as outras, foi encaminhada para o gabinete de entregas de encomendas e foi aceite por BB, tendo de seguida sido aberta na presença do mesmo.

Referiu que devido à suspeita do raio-x e das suspeições que tinha ouvido dizer a outros reclusos e face ao cheiro intenso a cola dos ténis, no gabinete do chefe de ala (na presença do Chefe LL) decidiram cortar a sola dos ténis na presença do arguido BB e encontraram no seu interior produto que suspeitou ser estupefaciente.

Referiu que no imediato o arguido BB disse que sabia que vinha “algo ilícito” dentro dos ténis, mas que era para o AA e não para ele, sendo que o AA lhe pediu para receber a encomenda e que aceitou.

Referiu que o arguido BB nunca disse que sabia que dentro dos ténis viria droga.

Referiu que se o arguido BB tivesse recusado receber a encomenda não tinham procedido à abertura da mesma e devolveriam a encomenda.

Explicou que na cantina, recebem as requisições dos reclusos devidamente preenchidas e que os reclusos podem requisitar o que quiserem (e inclusive entregar produtos a outros reclusos), sendo que é debitado na conta corrente do recluso que assina a requisição.

Referiu que se recorda que o arguido AA já teve no EP teste positivo a substância estupefaciente, não se recordando a situação do arguido BB.

A testemunha KK, referiu que conhece ambos os arguidos por serem, à data dos factos, ambos reclusos no EP ....

Começou por explicar que lhes foi dada alerta, de forma anónima, que o recluso BB ia receber algo de ilícito, através da caixa do correio.

Referiu que lhes foi dito, por outros reclusos, que o arguido BB face às características da sua personalidade foi moldado pelo arguido AA para dar o seu nome e morada de familiar inscrito para receber a encomenda que era para o AA.

Explicou o procedimento habitual do recebimento das encomendas, explicando que as encomendas têm sempre que ser registadas em nome de familiares/amigos inscritas como visitantes. Se for uma encomenda vinda de uma pessoa não inscrita como visitante, não é recebida. A encomenda é rececionada na portaria do EP, depois passa pela sala do raio-x e de seguida são entregues ao Chefe de ala, num gabinete, e assim que as encomendas chegam é chamado o destinatário/recluso e é perguntado ao recluso se quer receber a encomenda e é aberta a encomenda na presença do recluso e guarda prisional.

Explicou que procedeu juntamente com o seu colega JJ à abertura (cortaram com uma faca) da sola dos ténis e encontraram na sola de cada par de ténis produto, que suspeitou ser estupefaciente (haxixe e cocaína). Explicou que o arranjo na sola dos ténis estava muito bem feito, e pese embora tivessem muito cheiro a cola, se não tivessem sido alertados pelo sistema de raio x, possivelmente não conseguiriam suspeitar de algo ilícito.

Referiram que o alerta veio da sala do sistema raio-x, os quais referiram para ver com atenção a encomenda dos ténis porque estava algo estranho no interior dos ténis.

Referiu que assim que o arguido BB aceitou a encomenda, que lhe vinha dirigida, e abriram a sola dos ténis, o arguido BB assumiu que tinha cedido o nome e morada do pai, e que sabia que os ténis tinham algo de ilícito (mas não droga), sendo que soubesse que era droga não aceitava que o AA mandasse a encomenda em nome dele.

Explicou ainda o procedimento da conta corrente da cantina, explicando que os reclusos têm uma requisição para solicitar os produtos que querem na cantina e é verificado se os reclusos têm saldo na conta corrente deles (sendo que podem ceder os produtos adquiridos a outras reclusos).

Referiu que é sua convicção que tanto as características da personalidade do arguido BB e a sua situação económica precária, permite a outros reclusos aproveitarem-se da sua fragilidade, a troco de qualquer coisa que lhe dão, para situações que não querem ficar diretamente envolvidos.

Também referiu que não sabe se o BB tinha bem noção (do ilícito droga) do que estava no interior dos ténis. Sendo sua convicção que o BB talvez achasse que o que ía lá dentro podia ser ilícito (talvez um telemóvel/ contra-ordenação) mas não que fosse este tipo de ilícito.

Os guardas prisionais inquiridos apresentaram depoimentos descritivos do que viram, observaram, ouviram e se lembravam. Ambos assumiram que não tinham qualquer relação próxima com qualquer dos arguidos, sendo que objetivamente não possuem qualquer interesse na causa. Apresentaram declarações claras, seguras, descomprometidas e complementares entre si, e nessa medida, mereceram a total credibilidade do Tribunal.

Foi ainda ouvido, oficiosamente ao abrigo do artº 340.º do CPP, a testemunha MM, recluso no Estabelecimento Prisional ..., o qual referiu que nunca o arguido AA lhe pediu para utilizar o seu nome e morada para colocar bens no Estabelecimento Prisional ....

Mais referiu que nunca falou com o arguido BB sobre o AA lhe ter pedido o seu nome para uma encomenda, porque tal não aconteceu.

Referiu que o próprio e o AA estão ambos no EP ..., mas estão em alas diferentes, nunca se cruzando com o AA em espaços livres. Também referiu que nunca ouviu dizer /rumores que o AA fazia encomendas de droga para entrar no EP.

Referiu que não se recorda do relacionamento entre os arguidos AA e BB, mas pensa que tinham um comportamento normal.

Tratou-se de um depoimento vago e evasivo, não entrando em quaisquer pormenores, assumindo sempre que nada sabia e nada conhecia, pelo que em nada relevou para a descoberta da verdade material, conforme infra melhor explanaremos.

Assim, cotejada a prova produzida em julgamento, mormente tendo em conta as declarações dos arguidos, das várias testemunhas, conjugadas com a prova documental, apreciada à luz das regras da experiência comum, o Tribunal, sem margem para dúvidas, dá como provados os factos 1. a 15.

Quanto aos factos provados em 4. a 7., isto é, o recebimento e aceitação da encomenda no Estabelecimento Prisional, por banda do arguido BB, que continha no seu interior diversas peças de roupa e um par de ténis e o que foi encontrado e apreendido no interior dos ténis (em cada par), mormente na sola dos ténis - canábis resina e cocaína – detetado pelos guardas prisionais, foi confirmado pelo arguido BB e pelos guardas prisionais inquiridos JJ e LL e, nessa medida, com total segurança de são dão como provados tais factos.

Quanto aos demais factos, temos duas versões completamente antagónicas entre os 2 arguidos.

Enquanto o arguido BB refere que a encomenda dos ténis era para o arguido AA, desconhecendo o que os mesmos continham no seu interior, tendo apenas acedido dar o seu nome e indicação do nome e morada do seu pai, em troco de dinheiro na cantina que o arguido AA lhe iria dar. Por sua vez, o arguido AA nega ter feito qualquer encomenda e/ou pedido ao arguido BB e nega que aquela droga fosse destinada a si.

A versão do arguido BB de que a encomenda foi planeada pelo arguido AA e se destinava ao arguido AA e não para si, mereceu a credibilidade do Tribunal.

Senão vejamos.

Pese embora a encomenda tivesse o nome (CC) e morada do pai do arguido BB, sita em ..., verifica-se de fls. 51 que a encomenda foi expedida de ..., em ... e não de ..., o que corrobora as declarações do arguido BB que referiu que não foi o seu pai que enviou a encomenda, mas sim um terceiro combinado com o arguido AA.

O arguido AA refere que o arguido BB quis vingar-se do mesmo e decidiu incriminá-lo por o mesmo (arguido AA) o ter delatado a outros reclusos sobre o crime que o arguido BB havia sido condenado.

O arguido BB referiu que esse facto (do arguido AA ter contado aos outros reclusos o crime que cometeu) ocorreu vários meses antes destes factos e que entretanto desculpou o arguido AA e que se dava bem com o mesmo, quando os factos ocorreram.

Este raciocínio de vingança e premeditação na incriminação, que o arguido AA refere que o arguido BB tinha em relação a si, não se coaduna com as características da personalidade do arguido BB, pois conforme foi evidenciado em audiência de julgamento trata-se de uma pessoa com um pensamento rudimentar, simples e com dificuldade em exprimir-se e conforme resulta do relatório social da DGRSP de fls. 301-302 trata-se de uma pessoa “com características de imaturidade, ingenuidade no relacionamento interpessoal, permeável à influência do grupo de pares e algumas limitações cognitivas”.

Ao contrário do que fez crer o arguido AA, o arguido BB não tem uma personalidade sofisticada e premeditada, mas sim uma personalidade simples, com limitações cognitivas e com características de imaturidade e ingenuidade.

Pelo que as características do arguido BB de imaturidade e ingenuidade no relacionamento interpessoal e permeável à influência do grupo e face à forma simples com que relatou os factos, fez-nos acreditar na versão apresentada pelo arguido BB de que a encomenda era para o arguido AA e que todo o plano foi gizado por aquele, tendo-lhe o arguido AA pedido o nome e morada do pai e que recebia em troca crédito na cantina. Cumpre referir que, conforme foi assumido pelo arguido BB, no momento em que foi descoberto o produto estupefaciente nos ténis o mesmo assumiu logo que a encomenda não era para si, mas para o arguido AA. Entendemos que se coaduna com uma pessoa com um pensamento simples, rudimentar e com características de ingenuidade, tendo-se limitado a descrever o que aconteceu no momento em que a situação foi descoberta.

Cremos que uma pessoa premeditada e vingativa que só pretendesse, de forma gratuita, vingar-se do arguido AA, conforme versão trazida pelo arguido AA, não agiria como o arguido BB agiu. Alguém que é vingativo e premeditado levaria a cabo os factos de forma a que ficasse só envolvido o arguido AA na detenção da droga e não também o próprio BB. No caso, quem foi buscar a encomenda e o nome e morada da encomenda estava toda ligada ao arguido BB. Dita-nos as regras da experiência comum, que alguém que é premeditado e vingativo e quer incriminar outra, não deixa tanto rasto na sua pessoa.

Também a testemunha LL que conhece ambos os arguidos, daquele Estabelecimento Prisional ... referiu que é sua convicção que tanto as características da personalidade do arguido BB e a sua situação económica precária, permite a outros reclusos aproveitarem-se da sua fragilidade, a troco de qualquer coisa que lhe dão, para situações que não querem ficar diretamente envolvidos.

Entendemos que foi o caso, ou seja, o arguido BB face às suas características de imaturidade e ingenuidade nas relações interpessoais e permeável à influência de outros, foi influenciado pelo arguido AA e fez o que aquele lhe pediu em troca de algum dinheiro na cantina.

Ao invés o arguido AA já é possuidor de condenações pela prática de crimes de burla e extorsão, consabida que é a capacidade de persuasão necessária para a concretização dos intentos associados a esses crimes. Também importa considerar que o arguido AA já possuía condenações por crime de tráfico de estupefacientes, pelo que dita-nos as regras da experiência comum que os guardas prisionais estariam mais alertas relativamente a encomendas vindas para o arguido AA, pelo que a encomenda vinda para o arguido BB permitia afastar tantas suspeitas, situação que o arguido AA bem sabia.

Impõe-se ainda referir que os guardas prisionais relataram que havia suspeitas que o arguido AA se dedicava a actividade de tráfico dentro do EP e com suspeitas de utilizar o arguido BB.

Assim, face à conjugação de toda a prova existente, apreciada à luz das regras da experiência comum, entendemos que a versão apresentada pelo arguido BB merece a credibilidade do tribunal - ao invés da versão apresentada pelo arguido AA - tendo sido um plano executado pelo arguido AA no sentido de este fazer entrar produto estupefaciente no estabelecimento prisional, utilizando para o efeito o nome e morada do pai do arguido BB, em troca de dar ao arguido BB crédito de cantina.

Quanto à testemunha HH, é verdade que esta testemunha não confirmou a versão apresentada pelo arguido BB, asseverando que o arguido AA nunca lhe pediu nada (receber encomendas). Porém, entendemos que o facto desta testemunha não ter confirmado tal facto, não permite concluir que BB tenha faltado à verdade sobre este facto. É das regras da experiência comum que os reclusos, por regra, não se denunciam. Tanto o HH como o arguido AA estão ambos no mesmo Estabelecimento Prisional, pelo que diz-nos as regras da experiência comum que os reclusos não se delatam uns aos outros, até por receio de represálias. No caso concreto, o recluso HH é completamente alheio a esta situação, pelo que se admite como bastante provável que o mesmo não se queira envolver nem comprometer e não tenha contado tudo o sabia e tinha conhecimento.

Desta feita, entendemos que este depoimento em nada permitiu concluir que o arguido BB faltou à verdade quando referiu que aquele lhe disse que o arguido AA também lhe já havia pedido o seu nome para receber uma encomenda.

Quanto ao conhecimento das características do produto estupefaciente, é obvio que o arguido AA bem sabia das mesmas, pois enquanto consumidor de tais substâncias e dada as condenações por crimes de trafico de estupefaciente, conhece bem as caraterísticas das mesmas.

Trata-se de uma atividade que por sua natureza, é proibida e punida pela lei penal portuguesa, a que acresce estarmos a tratar de introdução de produto estupefaciente num estabelecimento prisional, pelo que bem conhecia o arguido a ilicitude de tal actividade.

Quanto ao facto do produto estupefaciente se destinar a ser cedida ou vendida a terceiros reclusos que o procurassem, dita-nos as regras da experiência comum que tal quantidade de produto estupefaciente se destinava a terceiros e não apenas para consumo do arguido AA. Pois estamos a tratar de quantidades correspondentes a 100 doses de canábis resina e 318 doses de cocaína, pelo que não se afigura plausível e crível outro destino que não a cedência e venda a reclusos terceiros. E num recinto tão fechado como um estabelecimento prisional e os valores envolvidos na aquisição de cocaína e haxixe, dita-nos as regras da lógica e experiência que o arguido AA na venda visava auferir vantagens económicas.

Documentalmente o Tribunal louvou-se, no teor dos documentos juntos aos autos, a saber: Autos de Notícia de fls. 23 e 24 e de fls. 27; Autos de apreensão de fls. 28 e 31; Autos de teste rápido e de pesagem de fls.29 e 30 e as fotografias de fls. 51 e 53, todos examinados em audiência de julgamento.

Quanto às características, quantidade, grau de pureza e número de doses do produto estupefaciente apreendido (canábis resina e cocaína) o Tribunal louvou-se do relatório de exame pericial do Laboratório de Policia Científica de fls. 60/103.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos – factos provados 12 e 13. - o Tribunal louvou-se do certificado de registo criminal do arguido BB de fls. 271 a 272 e do arguido AA de fls. 273 a 288.

No que concerne às condições pessoais, laborais e económicas dos arguidos – factos provados em 14. e 15. - o Tribunal fez fé no relatório social elaborado pelo DGRSP de fls. 300 a 302 (arguido BB) e de fls. 305 a 307 (arguido AA), conjugado com as declarações prestadas pelos mesmos em audiência de julgamento, que se revelaram credíveis. Considerou-se ainda o documento junto a fls. 325 a 327, quanto à situação do sobrinho do arguido AA.

Face a tudo o que se expôs, dá-se com segurança como provados os factos 1. a 15.

Quanto aos factos dados como não provados I a VI, o Tribunal dá os mesmos como não provados por ausência de prova segura acerca dos mesmos.

O Tribunal tem como seguro que o arguido BB actuou com o arguido AA quanto a receber a encomenda com os ténis, dando o nome do seu pai e morada, porém, atenta as características de imaturidade e ingenuidade do arguido BB, o Tribunal tem sérias dúvidas se o arguido BB conhecia e sabia o que vinha no interior dos ténis. Ou seja, o Tribunal ficou com sérias dúvidas que o arguido AA e BB tenham agido em conluio e em comunhão de esforços no sentido de fazer introduzir produto estupefaciente no estabelecimento prisional com vista a cedência e/ou venda de tal produto a terceiros. O arguido BB referiu que desconhecia por completo o que vinha no interior dos ténis, desconhecendo que fosse produto estupefaciente. O próprio guarda prisional LL também referiu que não sabe se o BB tinha bem noção (do ilícito – produto estupefaciente) do que estava no interior dos ténis. Sendo sua convicção que o arguido BB talvez achasse que o que ia dentro dos ténis podia ser ilícito (talvez um telemóvel/ contra-ordenação) mas não que fosse ilícito relacionado com produto estupefaciente.

Temos assim sérias dúvidas que o arguido tivesse conhecimento que o que vinha no interior dos ténis fosse produto estupefaciente e tivesse actuado em conjugação de esforços com o arguido AA com vista a fazer entrar no Estabelecimento Prisional produto estupefacientes para ceder e/ou vender a reclusos.

O princípio in dubio pro reo é um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido. Conforme refere Helena Bolina2, o princípio in dúbio pro reo tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto – “a dúvida que o Julgador está vinculado a resolver favoravelmente ao arguido, é uma dúvida relativamente aos elementos de facto, quer sejam pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer sejam factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão de ilicitude ou da culpa”.

Face às dúvidas suscitadas e inexistência de qualquer prova segura que o arguido BB tivesse actuado em comunhão de esforços com o arguido AA com vista a fazer introduzir produto estupefaciente no EP para cedência e venda a reclusos, e tendo em conta o principio in dubio por reo, o Tribunal dá como não provado a intervenção do arguido BB nessa actividade – factos não provados I. a VI. (…)]

2.3.2.2- A questão em recurso quanto à fundamentação enunciada.


A) Questão prévia


Os poderes do STJ em sede de competência para apreciar recursos interpostos de acórdão da 1ª instância por tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos nos termos do artº 432º alínea c) do nº1, e 434º ambos do CPP.


O presente recurso atém-se a decisão de um tribunal colectivo, de 1ª instância, interposto directamente para o STJ.


A pena aplicada foi superior a 5 anos de prisão.


O recorrente, embora alegue levantar apenas questões de direito, parece querer impugnar a convicção do tribunal que levou à matéria de facto provada, por via da invocação de ausência ou insuficiência de fundamentação. A forma como o faz e escreve apenas aponta a sua discordância do sentido da convicção formada pelo tribunal com base na prova produzida.


O artº 432º nº1 do CPP permite o recurso directo para o STJ:


“(…)


c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;


(…)”


Lida a fundamentação exarada pelo tribunal, o mesmo ali indica as provas, o conteúdo dos depoimentos e declarações, a posição dos arguidos e a fiabilidade das testemunhas. Dessa leitura concluímos a preocupação de detalhe, a exposição das diferentes versões, a reflexão crítica, a lógica e a racionalidade incidente sobre cada uma dessas versões, o apelo às regras da experiência e a indicação do sentido da convicção e das razões que lhe estiveram subjacentes. Daí que é manifesta a falta de razão quando o recorrente parece fazer apelo à omissão ou mesmo à insuficiência de fundamentação.


A omissão de fundamentação é claramente improcedente. Quem lê o texto da decisão, mesmo sendo uma pessoa de formação mínima, compreende com facilidade a razão que levou o tribunal a decidir no sentido em que concluíu e no modo como reflectiu acerca da prova que enunciou.


Por outro lado, a explicação dada pelo tribunal ao longo de toda a análise que faz assenta em elementos lógicos, racionais, coerentes e convincentes, nada tendo de “dissertação” como lhe imputa o recorrente. A motivação assenta em regras da experiência que se revelam coerentes com o modo habitual de agir expectável em contexto de ambiente prisional e o tribunal teve o cuidado de o constatar, recorrendo ao princípio da imediação e da oralidade, em ligação com as expectativas que cada uma das personalidades dos arguidos intervenientes permitiria retirar e entender.


Neste conspecto, a reflexão crítica incidente sobre os elementos da personalidade mais maleável e manipulável do arguido BB em contraste com a forma de agir do arguido AA e o seu histórico de condutas criminosas e, também, algumas delas ligadas ao tráfico e ao consumo de estupefacientes, configura-se perfeitamente compreensível, coerente no desenvolvimento do iter de raciocínio explicitado, por forma a que se aceite sem discussão ou dúvida alguma, como correcta e inatacável a fundamentação plasmada na decisão, sem vislumbre algum de nulidade ou de vício.


Consequentemente, tendo ainda em atenção que o tribunal decidiu sem dúvidas algumas, muito menos ainda seria possível sequer por aí, configurar uma qualquer violação do princípio in dubio pro reo.


A propósito da alegada violação deste princípio do in dubio pro reo, parte da jurisprudência, de que são exemplo os acórdãos de 16-5-2007, de 27-5-2004 e de 21-10-2004, entende que o princípio do in dubio pro reo é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista.3


Em sentido diverso, expressou-se o acórdão deste Supremo Tribunal, de 7-04-2022, ao consignar que “Constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito, ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação (ou não) daquele princípio, portanto no âmbito de competência deste tribunal.”.4


Quer se entenda que estamos perante uma questão de facto ou se considere de forma mais assertiva que a aplicação deste princípio – bem como o da livre apreciação da prova - se situa no âmbito da matéria de direito, é manifesto que ele não foi violado.


Lida a sentença, verifica-se com meridiana clareza que o tribunal respeitou integralmente tal princípio e que o tribunal não se convenceu com dúvidas ou tenha condenado com incertezas ou com base em regras de experiência inusitadas e incompreensíveis, ilógicas e inaceitáveis. Não se confrontou com factos incertos perante os quais, em vez de favorecer o arguido, o tivesse desfavorecido. Por isso, é inaceitável o argumento da violação de tal princípio.


Segundo a concepção do STJ o referido princípio “é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei”5.


O princípio in dubio pro reo [enunciado, com clareza, por Stübel6, no século XIX] constitui um princípio probatório que procura solucionar o problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais. Esta dúvida não é interpretativa, não se refere à aferição do sentido de uma norma, é antes uma dúvida em relação à convicção sobre matéria de facto7.


Este princípio parte, portanto, da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, isto é, não pode abster-se de optar pela condenação ou pela absolvição porque existe uma obrigação de tomar uma decisão. Não pode, por isso, a dúvida do julgador impedir que ele decida atempadamente uma questão que vai a julgamento.


Este princípio traduz, no entender de Figueiredo Dias8 o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, pretendendo garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor9.


O referido autor10 defende também que o princípio em questão é um corolário lógico de um outro princípio mais vasto e constitucionalmente consagrado (art.32º nº2 da Constituição da República Portuguesa), que é o da presunção de inocência do arguido, entendendo que ambos os princípios têm reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto e constituem um critério de decisão em caso de, nessa apreciação, surgir uma dúvida sobre a verificação dos factos11.


Escreve Cristina Líbano Monteiro que o princípio in dubio pro reo se destina “a dar solução a um problema muito preciso - o da falta de convicção suficiente do julgador relativamente à matéria de facto, objecto da prova - o princípio não deve porventura aplicar-se à resolução de outro tipo de questões, como a dúvida na interpretação das normas”12.


Deste modo, a Doutrina restringe a incidência da aplicação do supracitado princípio a questões relacionadas com a prova da matéria de facto em processo penal, não se aplicando já em relação a qualquer dúvida dentro da questão de direito cuja única solução é o entendimento juridicamente mais exacto e adequado13.


Afastada a incidência de uma função interpretativa da norma penal, a Doutrina portuguesa adopta a posição de que o princípio in dubio pro reo deverá ser aplicado quando persiste uma dúvida insanável acerca de um facto sujeito a produção de prova, devendo ele actuar em sentido favorável ao arguido. Deste modo, dever-se-á dar como não provado o facto sobre o qual recai a dúvida se este for desfavorável ao arguido, ou seja, o non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido14.


Ora.


Nada se encontrando que levasse a concluir que o Tribunal recorrido se deparou com um estado de dúvida quanto aos factos provados no acórdão recorrido e, apesar dessa dúvida, tenha decidido em desfavor do ora recorrente, é improcedente aquela invocação de violação.


Em suma, decorrendo da leitura da fundamentação que o tribunal não só não teve dúvidas algumas como se convenceu claramente e com muita segurança acerca da culpabilidade e autoria dos factos dados como assentes, a arguição de violação do princípio in dubio pro reo é inconsequente e sem fundamento.


Improcede assim o recurso neste segmento e, também, quanto à questão quer da falta quer da insuficiência de fundamentação.


2.3.3._ Da qualificação do crime


2.3.3.1- O que de mais relevante na decisão a quo se explicitou:

[“(…)

III - Enquadramento jurídico-penal

Vêm os arguidos BB e AA acusados pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo artº 21.º, n.º 1 e artº 24.º, al. h), ambos do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22-01, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas ao referido diploma.

Nos termos do disposto no artº 21.º, n.º 1 do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artº 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos“.(…)

O legislador distinguiu o tráfico de estupefaciente em casos «graves» (artº 21.º), «muito graves» (artº 24.º) e «pouco graves» (artº 25.º).

(…)

No que concerne à aludida alínea h), do artº 24.º do citado diploma “As penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: h) A infracção tiver sido cometida em instalações de serviços de tratamento de consumidores de droga, de reinserção social, de serviços ou instituições de acção social, em estabelecimento prisional, unidade militar, estabelecimento de educação, ou em outros locais onde os alunos ou estudantes se dediquem à prática de actividades educativas, desportivas ou sociais, ou nas suas imediações;

A circunstância de a infracção ter sido cometida em EP, prevista na al. h) do artº 24.º do DL 15/93, não produz efeito qualificativo automático, importando apreciar a imagem global da conduta.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem sido relevante na análise desta circunstância agravante.

Veja-se, a título de exemplo, Acórdão do STJ de 12-10-2016, Proc. n.º 15/13.9PEBJA.E1.S1- 3.ª secção, Manuel Augusto de Matos (relator) (…)

Realizando a subsunção dos factos provados à norma incriminadora prevista no artº 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22-01 resulta evidente o preenchimento dos elementos objectivos deste tipo de crime por banda do arguido AA.

Tendo-se, assim, provado que o arguido AA decidiu realizar um plano com o propósito concretizado de fazer chegar à sua posse produto estupefaciente, designadamente canábis e cocaína (18,078g de canábis com um grau de pureza de 26,6% suficiente para 100 doses e 12,492g, de cocaína com um grau de pureza de 76,2%, suficiente para 318 doses), o que efetivamente foi recebido no Estabelecimento Prisional, para os ceder ou vender a terceiros reclusos que o procurasse para esse efeito, por valor superior ao da sua aquisição, com vista a auferir uma vantagem económica.

No que concerne ao elemento subjectivo, inexistem dúvidas de que o tipo subjectivo de ilícito se encontra preenchido, posto que ficou provado que o arguido AA conhecia a natureza e características das substâncias que vinham na encomenda por si efectuada e que quis colocá-la no estabelecimento prisional com vista a posterior distribuição e venda do produto estupefaciente a reclusos terceiros, cientes de que tal actividade era ilícita e proibida por lei.

Da factualidade provada, verifica-se que estão preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo de crime base imputado ao arguido AA, quer a título objectivo, quer subjectivo.

Não restam, portanto, quaisquer dúvidas de que a conduta do arguido AA se integra na previsão abrangente do crime de tráfico de estupefacientes constante do referido artº 21.° do D.L. n° 15/93, de 22-01 por referência às Tabela I-B e I-C anexas ao referido Diploma.

Inexiste qualquer diminuição da ilicitude no sentido de se considerar, sequer no sentido de mera hipótese académica, a eventual subsunção da conduta do arguido AA no artº 25º., do aludido diploma. É certo que a quantidade de produto estupefaciente não é muito significativa, porém os meios utilizados já apresentam sofisticação – utilização de um terceiro no exterior e um terceiro recluso no interior do Estabelecimento Prisional para não levantar suspeitas da sua intervenção, sendo que o arguido já possuía condenações pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, afasta a hipótese em abstracto de subsunção da conduta do arguido apenas no artº 25.º, ou mesmo só no artº 21.º, do citado diploma.

Conforme acima fizemos referência, dispõe o artº 24.º, al. h), do citado diploma legal, que “As penas previstas nos arts.21, 22 e 23 são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: (…) a infracção tiver sido cometida (…) em estabelecimento prisional (…) ou nas suas instalações.”

Atenta a factualidade apurada verifica-se que o arguido AA praticou, na forma consumada, não o crime tipo-base previsto no artº 21.º, mas sim o agravado previsto no aludido artº 24.º.

As circunstâncias do facto – nomeadamente encomendando a um terceiro o produto estupefaciente, esse terceiro fez chegar para o Estabelecimento Prisional a referida droga, através de uns ténis colados; utilizando e aproveitando-se de um outro arguido, com o propósito de vender/ceder mediante contrapartida monetária a terceiros – militam no sentido da subsunção da conduta do arguido no mencionado artº 24º do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22-01.

No caso vertente assume especial importância ter-se apurado não apenas a circunstância objectiva do local dos factos, em Estabelecimento Prisional, mas ainda ter-se provado que utilizou um outro recluso para fazer entrar o produto estupefaciente no estabelecimento prisional e que tal produto se destinava a cedência remunerada a terceiros.

Assim, não fazendo uma aplicação automática de tal al. h), mas ponderando que há uma maior censura, um maior perigo e uma pior imagem do facto da apurada actividade, e não fazendo uma ilegítima “compensação” entre circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, cabe dizer que o arguido sabia bem a natureza estupefaciente do aludido produto e que o seu comportamento era proibido por lei, tendo actuado em execução de plano e actividade previamente delineados, servindo-se de um terceiro no exterior do Estabelecimento Prisional, acondicionando o produto estupefaciente nuns ténis e a utilização de um recluso no estabelecimento prisional para receber a encomenda, para afastar da sua pessoa qualquer suspeitas.

O que assume especial censurabilidade dado ter actuado da sobredita forma com vista a fazer chegar ao Estabelecimento Prisional a referida droga, sendo que já havia sido condenado por tráfico de estupefaciente (de menor gravidade).

Ao agir da forma descrita, sabia o arguido AA que estava a levar a cabo uma actividade de detenção e transporte para posterior cedência remunerada de estupefaciente, ciente de que não era titular de autorização para o efeito, o que foi sua livre, directa, voluntária e consciente intenção conseguida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

Inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou causa de não punibilidade.

Pelo exposto, conclui-se pela condenação do arguido AA pela prática do crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado, p. e p. pelo disposto nos arts. 21º., n.º 1 e 24º, al. h), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, de que vinha acusado.

Porém quanto ao arguido BB entendemos que a factualidade dada como provada não permite imputar a prática do crime de tráfico de estupefaciente ao mesmo, em co-autoria com o arguido AA.

Os únicos factos que resultaram provados: é que o arguido BB deu o nome do seu pai e recebeu a encomenda com os ténis que possuíam no seu interior o produto estupefaciente. Mais nenhum facto provado relaciona o arguido BB ao produto estupefaciente e que o mesmo tivesse conhecimento que a encomenda que recebia continha produto estupefaciente.

Assim, inexiste qualquer facto provado relativamente ao arguido BB que seja suscetível de o responsabilizar penalmente, impondo-se consequentemente a sua absolvição pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado que lhe vinha imputado.

Dado que o arguido BB vai absolvido da prática do crime, o arguido AA vai condenado como autor material e na forma consumada da prática do crime de tráfico estupefaciente agravado.

IV - Medida da pena

O artº 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, comina o crime de tráfico de estupefacientes com pena de prisão de 4 a 12 anos.

O crime de tráfico agravado, imputado ao arguido AA e apurado, previsto no artº 24.º, al. h), do citado diploma legal, é punido com “penas (…) aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo”.

De onde resulta uma moldura abstracta de 5 a 15 anos de prisão.

Atento o disposto no artº 40.º do Código Penal, a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A prisão - reacção criminal por excelência - apenas deve ser aplicada quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas face às necessidades de reprovação e prevenção.

Tal como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a pena de prisão deve ser reservada para situações de maior gravidade e que mais alarme social provocam.

Na presente situação, a moldura penal apenas prevê a aplicação de uma pena detentiva.

A moldura penal abstracta resulta da subsunção supra operada do comportamento do arguido AA ao tipo legal mencionado.

Do normativo previsto no artº 71.º do CP se extrai que a determinação da medida concreta da pena será feita em função das categorias da culpa e da prevenção (especial e geral), sendo nomeadamente as circunstâncias enunciadas no citado artº 71.º, n.º 2 relevantes quer para a culpa, quer para a prevenção.

Desde logo, a culpa constitui o factor limitativo máximo superior da pena, ou seja, o limite máximo da pena adequada à culpa não pode, jamais, ser ultrapassado. Semelhante limitação resulta do princípio da culpa que impregna a legislação penal, segundo o qual não há pena sem culpa, nem a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa – cfr. artº 1.º da Constituição da República Portuguesa. É de salientar que a culpa deve referenciar-se ao concreto tipo de ilícito praticado que constitui o seu objecto, quer dizer, a culpa jurídico penal não é uma culpa em si mas antes uma censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa plasmada em certo facto – artº 40.º, n.º 2 do CP.

Por outro lado, a medida da pena há-de ser dada pela necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto, ou seja, o seu limite mínimo decorrerá de considerações ligadas à prevenção geral positiva, de integração, através da qual se pretende alcançar o reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida. Por fim, atenta a moldura penal “concreta” desta forma encontrada, a exacta medida da pena será fruto das exigências de prevenção especial, quer na vertente de socialização, quer na de advertência individual do delinquente.

(…)

Na determinação da medida concreta da pena, há que considerar, as necessidades de prevenção geral. É indiscutível que as exigências de prevenção geral nos ilícitos de tráfico de estupefacientes são bastante fortes, não se podendo ignorar o número crescente de pessoas que se dedicam a actividade desta natureza, bem como as suas consequências nefastas em termos de saúde pública.

Na verdade o tráfico de estupefacientes acarreta consequências graves para a saúde, integridade física e a própria vida dos consumidores e consequências devastadoras a nível familiar e social, sendo causa de toxicodependência e degenerando muitas vezes a jusante na prática de crimes que ofendem a integridade física e património alheios, como forma de obtenção de meios para a sua aquisição.

(…)

Para além do que atrás se referiu, no caso sub judice, cabe ponderar globalmente no que respeita ao arguido AA:

1. O grau de ilicitude mediano. As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, atenta a frequência com que são praticados ilícitos idênticos ao dos autos (tráfico de estupefacientes), fortemente associado ao sentimento de insegurança, porque ligado ao perigo de degradação da pessoa e a outras manifestações delituosas, causador, por isso, de grande alarme social a exigir uma reação enérgica para restabelecer a confiança na validade e vigência da norma violada. Contudo a quantidade de doses de canábis e cocaína não se afiguram significativas. Também se considerou a concreta actuação do arguido que é bastante reprovável ao utilizar um próprio recluso (o nome e morada de um pai de um recluso) de molde a não levantar suspeitas sobre o próprio (AA) - artº 71.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal;

2. A intensidade do dolo, que é elevado, dado que o arguido actuou com dolo directo. - 71.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal;

3. Os sentimentos manifestados pelo arguido no cometimento do crime, que militam contra si, que evidenciaram um total desprendimento pelos valores subjacentes e ao flagelo humano e social, associados à atividade relacionada com o tráfico e o consumo de produto estupefaciente, em ambiente prisional, sendo que visava apenas obter vantagens patrimoniais - artº 71.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal;

- As condições pessoais do arguido - o arguido antes da reclusão encontrava-se social e familiarmente inserido, sendo que atualmente mantém relações próximas com a família, pois possui visitas da sua mãe, irmãs e filhos mais velhos em ambiente prisional e mantém contactos telefónicos com os filhos mais novos e sobrinho. - artº 71.º, n.º 2, alínea d) do Código Penal;

- A conduta anterior ao facto e posterior a este - o arguido possui vários antecedentes criminais, inclusive por crime de tráfico de estupefaciente (de menor gravidade), o que evidencia um total desrespeito pelo bem jurídico protegido e uma insensibilidade total para o flagelo do consumo de droga. Contudo, teve-se em consideração que são condenações mais antigas (factos de 2008 e 2010). Por outro lado, as várias condenações que o arguido possui por crimes de diversa natureza demonstram a pouca ressonância crítica quanto aos valores e regras de vivência em sociedade. Acresce que o arguido está em cumprimento de pena a cumprir vários anos de prisão e mesmo assim volta a delinquir no estabelecimento prisional, evidenciando um desrespeito total pela condenação que está a sofrer e pela sua ressocialização - artº 71.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal;

- A preparação para manter uma conduta lícita - o arguido regista duas sanções disciplinar no estabelecimento prisional o que demonstra um comportamento desafiador das regras de vivência no estabelecimento prisional. E conforme resulta do seu relatório social “denota tendência a atenuar a gravidade das condutas criminais empreendidas, pelas quais já foi condenado, assim como o impacto para vítimas e sociedade em geral- artº 71.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal.

Tendo o arguido as supra aludidas condenações, atentas também as apuradas necessidades de ressocialização do arguido, e atendendo às suas condições pessoais, acima vertidas e que aqui se dão por reproduzidas, punir-se-á o mesmo em pena situada acima do seu ponto mínimo, mas ainda bem abaixo do ponto médio.

Nestes termos, face à moldura abstratamente aplicável ao crime praticado, temos por adequada aplicar ao arguido AA a pena concreta de 6 (seis) anos de prisão.

(…)”


2.3.3.2- A questão em recurso quanto à qualificação do crime como tráfico de estupefacientes agravado ou, ao invés, como tráfico de menor gravidade.


Na perspectiva do recorrente, que transmite em cenário de meras enunciações genéricas, sem qualquer esforço inteligível de dissecação jurídica, pede a qualificação sem a agravação do artº 24º e, antes, como tráfico de menor gravidade ex vi do artº 25.º do D.L. 15/93 de 22 de janeiro, convocando uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída.


Na verdade, o recorrente limita-se a uma espécie de desabafo no sentido de fazer crer que (sic)

“(…) não entendeu como se chegou à conclusão do crime cometido revestir a forma agravada e que, depois do tribunal aceitar que a quantidade e qualidade da droga apreendida se encontrava dentro do E.P. ..., que o arguido tentava colocá-la em meio interior, sugerindo que o recorrente a utilizaria para negócio lucrativo e que o teria planeado de forma sofisticada - numa dissertação cada vez mais elaborada- corria, ainda assim, o risco de ser apanhado. (…) o acórdão em crise é fértil em sugestões e interrogações (…)”

Não faremos aqui qualquer crítica adicional ao fundamento explicativo encontrado pelo tribunal a quo para dar como provada a matéria de facto, já que a análise da fundamentação e da sua coerência foi, antes, amplamente dissecada e exposta.


Partindo então da factualidade assente, retira-se dela a consequente necessidade de subsunção ao direito. O arguido, dentro do estabelecimento prisional em que era recluso, quis introduzir, a seu mando, uma encomenda contendo pares de ténis em cuja sola estava dissimulado estupefaciente (canábis em resina e cocaína:

Quatro pedaços oblongos de um produto vegetal prensado e acondicionado em plástico, vulgo "bolotas" (dois em cada ténis) que, submetidos a exame pericial, revelaram tratar-se de canábis em resina, com o peso liquido total de 18,078 g, com um grau de pureza de 26,6%, suficiente para 100 doses; e - Dois pequenos sacos de plástico (um em cada ténis), contendo ambos pós brancos cristalizados que, submetidos a exame pericial, revelaram tratar-se de cocaína (éster met.), com o peso liquido total de 12,492 g, com um grau de pureza de 76,2%, suficiente para 318 doses.”

O tribunal a quo teve em consideração os meios usados para a introdução do estupefaciente, o contexto do planeamento e a intervenção de conivência de terceiros a partir do exterior, a manipulação do arguido BB, mais influenciável, a quantidade (doses fazíveis em número superior a 400) e o tipo de estupefaciente (sendo a cocaína bem mais lucrativa e de maior danosidade na saúde dos consumidores) e, sobretudo, o contexto espacial (dentro e um estabelecimento prisional)


Sem dúvida que inexiste elemento algum que permita considerar uma menor ilicitude da acção. As doses não são elevadas mas já se situam em espectro de mercado interno no EP que não é irrelevante. O tipo de droga, sobretudo a cocaína, é de mais acentuado impacto na saúde dos consumidores. Concordamos quando se indicou que a especial censurabilidade resulta de uma actuação planeada como descrito na fundamentação do acórdão recorrido com vista a fazer chegar ao Estabelecimento Prisional a referida droga, ainda por cima tendo o arguido condenação anterior por tráfico de estupefaciente (ainda que de menor gravidade).


Como bem o salientou, entre outros, no mesmo sentido, o Ac. STJ de 12-03-2015 “(…) O crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, que se situa entre o crime de tráfico simples e o crime de tráfico agravado, tem lugar sempre que a ilicitude se mostrar consideravelmente diminuída. A ilicitude exigida neste tipo legal tem de ser, não apenas diminuta, mas mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da acção e do resultado, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou a qualidade das plantas ou substâncias estupefacientes, como factos-índice a atender numa valoração global, não isolada, de que a configuração da acção típica não prescinde, em que a quantidade não é o único nem, eventualmente, o mais relevante (…)”


Serve isto para sublinhar que nem sequer a ilicitude encontrada no caso é diminuída e, muito menos, por exclusão, o seria “consideravelmente”.


A acção desenvolvida revela uma atitude mais afoita, de despeito mais acentuado pelas normas, eivada de menor receio sobre as consequências e um mais intenso fluxo de intencionalidade anómica.


Como muito bem salientou o tribunal a quo “(…)as circunstâncias do facto – nomeadamente encomendando a um terceiro o produto estupefaciente, esse terceiro fez chegar para o Estabelecimento Prisional a referida droga, através de uns ténis colados; utilizando e aproveitando-se de um outro arguido, com o propósito de vender/ceder mediante contrapartida monetária a terceiros – militam no sentido da subsunção da conduta do arguido no mencionado artº 24º do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22-01. No caso vertente assume especial importância ter-se apurado não apenas a circunstância objectiva do local dos factos, em Estabelecimento Prisional, mas ainda ter-se provado que utilizou um outro recluso para fazer entrar o produto estupefaciente no estabelecimento prisional e que tal produto se destinava a cedência remunerada a terceiros; (…) ponderando que há uma maior censura, um maior perigo e uma pior imagem do facto da apurada actividade, e não fazendo uma ilegítima “compensação” entre circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, cabe dizer que o arguido sabia bem a natureza estupefaciente do aludido produto e que o seu comportamento era proibido por lei, tendo actuado em execução de plano e actividade previamente delineados, servindo-se de um terceiro no exterior do Estabelecimento Prisional, acondicionando o produto estupefaciente nuns ténis e a utilização de um recluso no estabelecimento prisional para receber a encomenda, para afastar da sua pessoa qualquer suspeitas.


(…)”


Assim, desde o modo de planeamento mais pensado quanto à forma dissimulada da introdução do produto no EP (e que, não tendo sido complexo, também não foi básico nem simples) à intervenção de terceiros para o respectivo conseguimento, carecem de uma apreciação do desvalor dos bens jurídicos atingido, vista em todo o contexto e no modus operandi, com aproximação clara a uma maior censurabilidade, justificativa, por um lado, do afastamento de uma menor ilicitude, e, por outro, permissora incontornável do agravamento subsumível ao artº 24º do DL15/93.


O crime de tráfico de estupefacientes pode qualificar-se como um crime de perigo. O Legislador não exige, para a respectiva consumação, a efectiva lesão dos bens jurídicos tutelados. Crime este de perigo comum, uma vez que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - embora todos eles se reconduzam a um mais geral que é a saúde pública.


Será, por outro lado, um crime de perigo abstracto, que não pressupõe nem dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos.


Nesta concepção típica está subjacente o cariz particularmente perigoso das actividades em questão e a ideia do tráfico como um processo e não tanto como o resultado de um processo.


Também é por demais sabido que o tráfico de droga assume consequências pessoais e sociais devastadoras, justificativas de uma intervenção penal preventiva sobre o processo que conduz a tais consequências, com um espectro de várias actividades relacionadas com a actuação no mercado da droga.


Precisamente porque se trata de condutas que concretizam de modo particularmente intenso o perigo inerente à actividade de fornecimento de produtos estupefacientes, o Legislador antecipa a tutela penal relativamente ao momento da transacção.


Tem considerado a Doutrina e Jurisprudência que o primeiro acto praticado pelo agente no iter criminis já constitui o preenchimento do tipo legal, valendo os passos seguintes apenas para efeitos de estabelecimento da medida concreta da pena a impor.


Por outro lado, a agravação típica não opera automaticamente para o artº 24º aludido pela simples circunstância de os factos se terem passado no interior do EP.


Como muito bem o salientou o Ac deste STJ de 21-06-2023 [procº 222/21.0JELSB.L1.S1- da 3.ª SECÇÃO - PEDRO BRANQUINHO (relator)], e que seguimos, ainda, de bem perto, na reflexão já feita em situação similar ( em que foi aplicada uma pena de 7 anos de prisão) ;

“(…) o tráfico não existe sem tantas actividades que lhe dão corpo quantas o tipo base do artº 21º citado comporte. A mera detenção de canábis (resina) ou cocaína é susceptível de punição, atento o disposto no art. 21º, nº 1, do diploma legal acabado de referir. (…) No nosso direito penal as agravações, ou as que se chamam circunstâncias agravantes típicas, não resultam objectivamente da lei senão nos tipos especiais que a lei nomeia. Nos restantes, a agravação prende-se sempre com a culpa, o que significa que, sendo a culpa subjectiva, dificilmente temos agravação típica sem agravação de culpa, o que significa, também, que as agravações dependem sempre da prova das circunstâncias que as demonstrem.

É pacífico que o tráfico de estupefacientes é um crime formal de perigo comum que atenta contra a saúde pública, ficando preenchido com a simples detenção de produto dessa natureza. O tipo de crime, definido no art. 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, é descrito de forma assumidamente compreensiva e de largo espectro.

Basta-se, para o seu preenchimento, com a aptidão que as modalidades de acção que elenca revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores, em última instância, a saúde, fazendo recuar a tutela dos mesmos a momentos em que esse perigo desde logo se manifesta.

Comporta, porém, várias graduações, em escalas diversas de padrões de ilicitude, uma delas, reportada ao crime agravado do art. 24.º do Dec.Lei n.º 15/93, que, no que aqui interessa, pune de modo mais severo a acção inserida naquele art. 21.º que ocorra em estabelecimento prisional, conforme à sua alínea h), que ao recorrente foi imputada.

Conforme se refere no sumário do acórdão do STJ de 02.05.2007 (…), no proc. n.º 07P1013, rel. Cons. Maia Costa, in www.dgsi.pt, o intuito do legislador, com a agravante da al. h) do art. 24º do DL nº 15/93, de 22-1, é a de preservar de forma reforçada a saúde física e psíquica de sectores específicos da população, por estarem mais expostos aos riscos e perigos de contacto com os estupefacientes, e não a defesa da autoridade do Estado dentro de certos territórios.

Sendo aquela a razão de ser da agravante modificativa, natural é que a agravação só deva funcionar quando se provar que, no caso, a conduta traduz um perigo acrescido para a saúde daquelas populações. Donde, não é simplesmente a ocorrência do tráfico de estupefacientes num dos lugares referidos no preceito, por exemplo o “estabelecimento prisional”, que determina automaticamente a agravação.

Necessário é que o tráfico, para além de ocorrer aí, constitua um ilícito agravado relativamente ao “comum”, por pôr em perigo a saúde daqueles que a lei quer especialmente proteger. Existirá ilícito agravado, em princípio, quando houver disseminação ou perigo de disseminação de estupefacientes pelos reclusos, quando a quantidade for significativa, ou quando a intenção for meramente lucrativa. É a análise do caso que determinará a verificação, ou não, da agravação.

Em sentido idêntico vai o acórdão do STJ de 07.07.2009, no proc. n.º 52/07.2PEPDL.S1, rel. Cons. Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt:

A razão de ser da agravação por via da al. h) do art. 24.º do DL 15/93, por efeito da conduta integrante haver tido lugar em estabelecimento prisional reside na perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e no grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta. Os estabelecimentos prisionais face aos inevitáveis problemas e questões que a clausura gera, estados de depressão e inactividade dos reclusos, concentração e massificação das pessoas, conflitos pessoais, carências afectivas, sentimentos de frustração, perda de auto-estima, são particularmente propícios ao consumo de estupefacientes e, consequentemente, constituem um dos alvos prioritários dos traficantes.

Outros acórdãos podem ser encontrados no STJ com idêntica perspectiva: de 12.09.2007, no proc. n.º 06P2165, rel. Cons. Soreto de Barros; de 21.01.2009, no proc. n.º 08P4029, rel. Cons. Pires da Graça; e de 02.12.2013, no proc. n.º 116/11.8JACBR.S1, rel. Cons. Rodrigues da Costa; todos in www.dgsi.pt.

E, até, segundo o acórdão do STJ de 26.09.2012, no proc. n.º 139/02.8TASPS.S1, rel. Cons. Raul Borges, é uniforme o entendimento de que a circunstância de a infracção ter sido cometida em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador e É preciso que resulte do facto verificado que essa detenção de estupefaciente se traduz numa conduta dolosa do agente com vista a potencial produção do resultado desvalioso que levou o legislador a autonomizar o especial agravamento.

Aceitando, pois, a razão de ser da agravante, afigura-se que só deva funcionar quando se entender estar-se perante conduta que traduza um perigo acrescido, sem deixar de atentar que num estabelecimento prisional a preservação da saúde é, notoriamente, carecida de inestimável tutela. Não se concorda (…) que a agravação seja taxativa com o sentido de funcionar automaticamente, só atendendo ao local onde a infracção é cometida e desprezando a avaliação de outros elementos valorativos, sem os quais, afinal, a avaliação da especial gravidade do tipo e da culpa do agente a tanto inerente, como suportes para agravação da sanção, ficaria restrita a ponderação de factor que, sem mais, pode não reflectir motivo para esse efeito.

Sê-lo-á, sim, taxativa, com o sentido de que, a par de outras circunstâncias modificativas, é prevista na perspectiva legal de uma enumeração não exemplificativa e que se esgota no preceito em análise.

(…)”

Em conclusão, podemos dizer, derradeiramente e de igual modo, que a agravação do crime de tráfico de estupefacientes prevista na alínea h), do art. 24.º, do DL n.º 15/93, de 22/1, por a infração ter sido cometida em estabelecimento prisional, tal como as demais alíneas do mesmo preceito legal, não sendo embora de aplicação automática, implica pois que seja necessária a análise do caso concreto a fim de se saber se há uma ilicitude acentuada dos factos na sua globalidade e, consequentemente, se justifica tal agravação, sendo pois claramente subsumível ao caso concreto.


Também, constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça que na alínea h), do citado art. 24.º, tipificam-se situações de facto que, objetivamente, potenciam a perigosidade da ação desligada do resultado – como é próprio dos crimes de perigo abstrato –, acrescentando dimensão ao ilícito que justifica o agravamento da moldura penal aplicável ao crime base.


Tal agravamento do crime de tráfico, acontecido em meio prisional, visa conferir uma proteção reforçada das finalidades da reclusão, ligadas à saúde (física e psíquica) e à reinserção social da população prisional, particularmente fragilizada na sua capacidade de autodeterminação relativamente ao consumo de estupefacientes.


Consequentemente, está indubitavelmente justificada a formulação jurídico-penal pela qual se encaminhou a decisão recorrida.


Por último, a pena concreta aplicada não se mostra desproporcional, até porque, não obstante o impressivo passado criminal do arguido, até ficou bem perto do mínimo da moldura agravada aplicável. O arguido não se posicionou sequer em garantir que domina uma melhor compreensão do desvalor da conduta e sequer mostrou arrependimento activo capaz de eventualmente convencer que estariam já de alguma forma atenuadas as exigências preventivas, sobretudo as especiais.


Improcede, pois, o recurso em toda a linha.


III- DECISÃO


3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.


3.2 - Taxa de justiça em 6 Uc a cargo do recorrente- artº 513º nº1 do CPP e Tabela III do RCP.

STJ, 21de Março de 2024

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

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Agostinho Torres- (relator)

Jorge Gonçalves (1º adjunto)

Orlando Gonçalves – (2º adjunto)




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1. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.↩︎

2. In “Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção de inocência”, BFD 70 (1994), 433-61).↩︎

3. Cf. Publicados na C.J (STJ), respetivamente, XV, II, pág.182; XII, II, pág. 209; e XII, III, pág. 198.↩︎

4. Cf. proc. n.º 22/18.5PFALM.L1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

5. Cfr. Acórdão do STJ, de 11 de Fevereiro de 1999, in Colectânea de Jurisprudência, VII, Tomo I, 1999, p.211.↩︎

6. Cfr. “Das criminalverfahren in den deustschen Gerichten”, referência colhida em Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol.I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.213.↩︎

7. Para maior desenvolvimento, cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p.9.↩︎

8. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pp.211 a 213.↩︎

9. Neste sentido também Miguel Machado, “O Princípio in dubio pro reo e o novo Código de Processo Penal”, in ROA, ANO 49, 1989, p.596 citando Gomes Canotilho e Vital Moreira. Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, AAFDL, Lisboa, 2000, p.32.↩︎

10. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol..I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.217.↩︎

11. No mesmo sentido, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol.I, Ed. Danúbio, Lisboa, 1986, p.212; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.I, Verbo, Lisboa, 4ª ed., 2000, p.83; Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, Vol.II, AAFDL, Lisboa, 1993, p.149 e Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, AAFDL, Lisboa, 2000, p.31.↩︎

12. Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p.65.↩︎

13. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.215; Eduardo Correia, “ Les preuves en droit pénal portugais”, in RDES, Ano XIV, FDL, 1967, pp.16 e ss; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, Ed. Danúbio, Lisboa, 1986, pp.312 e ss; Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp.59 e 60.↩︎

14. Neste sentido se pronunciaram Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol.I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.213; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol.I, Ed. Danúbio, Lisboa, 1986, p.216; Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp.59 e 60; Eduardo Correia, “Les preuves en droit pénal portugais”, in RDES, Ano XIV, FDL, 1967, pp.1 a 52; Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p.49 e pp.70 e ss. e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “Crime de homicídio privilegiado: tipo de culpa e in dubio pro reo”, in RPCC, 1998, pp.292 e 293.↩︎