Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ARÁUJO | ||
Descritores: | SOCIEDADE POR QUOTAS GERENTE PODERES DE REPRESENTAÇÃO LETRA DE CÂMBIO ACEITE SEM PODERES ABUSO DO DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM | ||
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Data do Acordão: | 05/23/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DAS SOCIEDADES – SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA E FISCALIZAÇÃO / COMPOSIÇÃO DA GERÊNCIA. | ||
Doutrina: | - Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 116; - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª edição, p. 133/134; - Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, Obra Dispersa, Volume I, p. 407; - Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, p. 200; - Paulo Mota Pinto, Aparência de Poderes de Representação e Tutela de Terceiros, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LXIX, 1993, p. 636; - Soveral Martins, Representação Voluntária de sociedade por quotas, RLJ, Ano 142º, n.º 3979, p. 277. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 252.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 28-02-2012, PROCESSO N.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT. | ||
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Sumário : | I - O órgão de representação da sociedade por quotas a quem cabe exteriorizar a vontade da sociedade perante terceiros é a gerência (art. 252.º, n.º 1 do CSC). Isto significa que os dois sócios, ao subscreverem o aceite na letra sacada como se detivessem a qualidade de gerentes (que não tinham), agiram sem estarem municiados de poderes de representação, ou seja, sem a legitimação representativa indispensável à eficácia do acto e à subsequente vinculação da sociedade ao cumprimento das obrigações dele decorrentes. II - Configura uma situação de abuso do direito a invocação da ineficácia do negócio jurídico referido em I, na modalidade de venire contra factum proprium, materializada na situação em que os subscritores do aceite eram sócios da sacada, tendo um deles referido ao sacador que era gerente desta, omitindo, desse modo, as mudanças ocorridas na gerência, o que foi reforçado pela colocação do (suposto) carimbo em uso (reforçando a confiança da contraparte de que a legitimação representativa estava assegurada), tendo o gerente em exercício tomado conhecimento da subscrição da letra, sem que manifestasse qualquer oposição (escrita ou verbal) ao seu pagamento. | ||
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Decisão Texto Integral: |
PROC. N.º 3589/08.2YYLSB-AL2.S1 REL. 80[1]
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ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de execução comum, para pagamento de quantia certa, instaurados por “AA, Lda.”, veio a executada “BB, Lda.”, deduzir oposição à execução com os seguintes fundamentos: - A executada, conforme se alcança da respectiva certidão comercial, obrigava-se dentro e fora da sociedade com a assinatura de um gerente; - Acontece que a exequente veio executar uma letra datada de 22.06.2006, no valor de 1.600.000,00 €, em que figura como sacada a ora oponente e como sacador CC. Tem duas assinaturas apostas no aceite, alegadamente de DD e de EE, bem como um carimbo respeitante à gerência da executada. Finalmente o título tem a menção "transacção comercial"; - À data de emissão da letra, isto é, em 22.06.2006, a executada tinha como sócios DD, EE, FF e GG (sendo que nenhum destes exercia o cargo de gerente), e como gerente o não sócio HH; - A letra executada foi preenchida no sentido de constar que a sacada é a oponente BB, Lda., sendo que tem como aceitantes os sócios DD e EE na qualidade de gerentes da mesma e um carimbo da firma BB; - Porém, à data da emissão da letra, os referidos DD e EE não eram gerentes da sociedade, e como tal não podiam obrigar a oponente, como pretensamente o fizeram. Aliás a EE nunca foi gerente da executada; no entanto o aceite foi assinado pelos mesmos na invocada qualidade de gerentes, ou como pertencendo à gerência; - Resulta desta constatação que a letra em nome da sociedade oponente, na referida qualidade de sacada e aceitante, é nula, por vício de forma, porquanto nenhum dos subscritores do aceite eram à data gerentes da firma, não tendo nessa medida legitimidade para vincular a sociedade; - A letra que serve de base à presente execução, para além de conter duas assinaturas no aceite, supostamente dos executados DD e EE, tem ainda aposto um carimbo da firma. Sucede, porém, que o referido carimbo não é, nem nunca foi, o carimbo da firma BB, Lda., sendo antes um carimbo forjado. Tal facto é facilmente comprovado, mediante o confronto do referido carimbo aposto na letra com o carimbo utilizado pela opoente nas suas relações comerciais; - Pelo que, declarando-se a nulidade do aceite da sociedade, apenas os seus subscritores a título pessoal responderão eventualmente pela mesma. Do mesmo modo, a nulidade do aceite por vício de forma, repercute-se no aval dado à aceitante que, consequentemente, não pode subsistir, por ser nulo; - Em reforço do que já ficou escrito sobre a nulidade da letra, veio a executada em meados do presente ano a ter conhecimento pela primeira vez, da existência da letra dos autos, através da notificação do protesto apresentado pela exequente AA; - Na sequência desse protesto, a executada escreveu aos também executados da letra DD e EE, uma carta datada de 13 de Março de 2008, tendo recebido em 12 de Junho de 2008 uma carta dos DD e EE em resposta; - Do conteúdo dessa carta, os também executados confirmam ter efectivamente subscrito a referida letra, a título de caução, em branco, e a título meramente pessoal e apenas no local do aceite, negando ter assinado o verso da letra, não tendo como tal dado nenhum aval, nem tão pouco terem assinado a letra, seja como aceite, seja como avalista em nome e representação de qualquer uma das duas firmas, a saber, BB, Lda. e II, Lda.; - Acresce que, apesar de constar da letra o termo "transacção comercial", a verdade é que o referido sacador CC não consta da lista de clientes da ora executada, seja a título de fornecedor, prestador de serviços, ou qualquer outra actividade que pudesse ter gerado um crédito comercial, pois o mesmo nunca teve qualquer relação comercial com a executada; - Por outro lado, a exequente “AA, Lda.” não tem legitimidade para a execução, uma vez que não demonstra ser a legítima portadora da letra.
A exequente contestou, pedindo a improcedência da oposição.
A final foi a oposição julgada procedente e, em consequência, absolveu-se a executada/opoente do pedido exequendo, declarando-se extinta a execução, no que respeita à sociedade BB, Lda.
A exequente apelou desta decisão. O Tribunal da Relação de Lisboa revogou a sentença da 1ª instância e mandou prosseguir a execução, com fundamento em abuso de direito da sociedade executada.
Apresentou, agora, a oponente recurso de revista em que formula as seguintes conclusões: Ou seja, parece estar admitido por acordo das partes nos autos que na data da emissão da letra - 22/06/2016 - os referidos DD e EE, que subscreveram a letra no lugar do aceite, não eram gerentes, mas apenas sócios. 0 primeiro teria sido gerente e a segunda nunca teria sido gerente, (sublinhado nosso). A ser assim, julga-se que deve ser reconhecida razão à ora apelada, quando conclui que os referidos DD e EE, não sendo gerentes da sociedade BB, Lda. na data em que subscreveram a letra dos autos, não tinham poderes para vincular esta sociedade. Que, consequentemente, não ficou vinculada através da aposição destas assinaturas, independentemente do maior ou menos dolo com que as mesmas tenham sido apostas. Nos termos do artigo 260o do Código das Sociedades Comerciais, as sociedades por quotas só se vinculam para com terceiros pela assinatura dos seus gerentes, apostas nessa qualidade. A assinatura de quem não for gerente da sociedade ainda que aposta com indicação dessa qualidade, não tem a virtualidade de obrigar a sociedade ratifique o acto sem poderes. Mas aí a vinculação emerge da ratificação e não das assinaturas feitas por quem não tinha poderes (sublinhado nosso). Sendo que nos termos do artigo 8o da Lei Uniforme das Letras e Livranças todo aquele que apuser a sua assinatura numa letra como representante de uma pessoa a qual não tinha de facto poderes, fica obrigado em virtude da letra. Deste modo, a confirmar-se que as pessoas que apuseram assinaturas na letra em causa não eram gerentes da ora apelada, a oposição à execução deve ser julgada procedente, sem mais, não se chegando a questionar a justeza da suspensão do presente instância". 5. Da análise do douto despacho resulta evidente que se conferia razão à BB (ali Apelada e aqui Recorrente), bem assim se trazia a terreiro a aplicabilidade do artigo 3º da LULL. 6. Falando-se, outrossim, da responsabilização pessoal de quem age 7. A matéria relativa ao Acórdão ora recorrido, já havia sido objecto de 8. Releva também referir que o supramencionado processo crime (que, repita- -se, versa sobre condutas penalmente relevantes do casal DD e EE relativamente à letra em questão), se encontra na sua fase terminal, apenas estando pendente a última sessão, para eventuais declarações dos arguidos e alegações finais. 9. Pelo que, no entender da Recorrente, uma eventual decisão definitiva no presente processo, confirmativa do acórdão sob escrutínio, e que precedesse uma eventual decisão de condenação no processo crime, poderia vir a gerar um "imbróglio jurídico", de todo em todo evitável 10. A Recorrente continua a considerar (à imagem da decisão proferida em 1a instância) que estamos em presença de matéria mais que juridicamente idónea, para que o Processo Executivo e seus apensos A e B (resultantes das oposições da Recorrente e da II) seja sustado, já que observam os pressupostos do artigo 272/1/2 do CPC. 11. O douto acórdão recorrido estabelece duas questões fulcrais para decidir, sejam: (i) a apelada está vinculada ao pagamento da letra quando as assinaturas que constam do aceite não são as do gerente?; (ii) ainda que, quando DD aceitou a letra como representante da BB, disse ao sacado que mantinha essa qualidade, omitindo as mudanças da gerência? 12. O percurso percorrido pela decisão vai, em tudo, no sentido contrário ao preconizado e imposto pela lei. 13. Com efeito, quando se refere que o gerente em funções – JJ, que, diga-se, é parte como Autor numa acção de impugnação pauliana instaurada contra os sócios das duas sociedades, a qual foi julgada improcedente em 1ª e 2ª instâncias (Processo 84/07.0TVSLB) – não se opôs a que a empresa se vinculasse ao pagamento, acabamos por estar na presença de uma assunção de uma espécie de ratificação do acto praticado por quem não tinha poderes. 14. Ora, esta inovação interpretativa vai, de forma crassa, contra o que a lei prescreve na matéria. Como resulta do artigo 269º, ex vi do artigo 268º, ambos do Código Civil, “o negócio que uma pessoa sem poderes de representação celebra em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”. 15. Ora, de ratificação, como legalmente imposta, nem uma palavra se divisa na decisão. 16. Na realidade, esse ato ratificativo teria que seguir a forma prescrita no n.º 2 do art. 268º do CC, ou seja, a forma escrita e nunca por nunca ser uma qualquer não oposição verbal, como mal se diz na decisão. Quisesse o legislador permitir que, casos como este fossem validados por forma diversa assim o teria dito e não, como o faz, imposto um formalismo que bem se entende, em ordem à segurança sempre necessária a todos os actos jurídicos, mais a mais quando estamos em presença de uma situação de alguém que age sem poderes. 17. Destarte, a decisão da Relação foi errada e violou a lei aplicável a esta matéria, já que, não havendo ratificação, temos que o negócio deverá ser considerado nulo. 18. Importará, ainda, a benefício da clarificação do que é o quadro relacional fora deste processo, aquilo que escreve Tiago Miguel dos Santos Esteves in Vinculação das Sociedades Anónimas e por Quotas: notas sobre o seu regime em revista das Sociedades Comerciais, ano 11 (2010). “… na colusão mão há simples abuso de representação, não há somente utilização consciente dos poderes de vinculação em sentido contrário ao interesse social, há concertação ou conluio entre administradores e terceiros em prejuízo da sociedade, A sanção deve ser, pois, a nulidade dos respectivos negócios: o fim dos mesmos é ofensivo dos bons costumes e é comum a administradores e terceiros (artigo 281º do CC)”. (…) 20. A decisão respalda-se, MAL, no artigo 260º do CSC, preceito inaplicável à factualidade em apreço. Na verdade, aquela norma tem o seu campo de aplicação aos casos em que são exigíveis, v.g., mais que um gerente para obrigar a sociedade, ou em que são desrespeitadas regras domésticas emanadas do contrato social ou de deliberações dos sócios 21. É, pois, abusivo e contrário à letra e espírito da norma, fazer coincidir uma situação de quem age com absoluta falta de poderes, com outras em que, por hipótese, se vincule a sociedade em actos estranhos ao objecto daquela. Estamos em presença de previsões bem distintas; num caso há irregularidade no uso dos poderes, no outro, esses poderes, pura e simplesmente inexistem. 22. Nesta senda, tem vindo a nossa jurisprudência a manifestar-se, bastando para tanto atentar no Acórdão do STJ de 12/3/2015 - Processo n° 5995/03.0TVPRT9 e, também um outro do STJ de 23/9/2008 – Processo 08A2239, onde se conclui, com clareza, que o artigo 260º do CSC se destina a regular actos praticados por gerentes, articulando-os com a defesa de interesse de terceiros. Ora, como é patente e a própria decisão o assume, não é esta última situação que está em apreciação. 23. Em sede de corroboração desta realidade, atentemos no que A questão de saber se essa circunstância é, ou não, oponível a terceiros, ou por esta invocável, é fortemente controvertida quer na doutrina, quer na jurisprudência" 24. Concluímos, por este excerto, que o âmbito de análise deste estudo tem o seu enfoque nos casos de gerentes em exercício, agindo em contrário sem os demais representantes, ou violando os estatutos. De todo o modo, e o que releva é que estamos em presença de gerentes em exercício e de potenciais irregularidades desse mesmo exercício 25. Nesta conformidade temos que, tanto a lei, como as decisões dos tribunais abordam o tema usando a expressão "irregularidade de representação" o que nos remete para que concluamos que a vontade do legislador não foi o de prever os casos de "gerentes" sem poderes, mas daqueles que, sendo, os excedem. 26. Temos, assim que a pedra de toque da questão reside na figura da Ratificação do Acto, como referem os Autores acima referenciados: "Assim, a sociedade irregularmente representada não ficará vinculada, a não ser que, em momento posterior, o negócio seja devidamente ratificado pelos gerentes ou administradores necessários para garantir a maioria da gerência ou do conselho de administração ou o número de representantes previsto no pacto social"(sublinhado nosso). 37. Daqui resulta patente, da existência dum regime especifico e 38. Tal regime afasta-se do regime geral, incidindo apenas em matéria de direito cartular, pelo que a decisão sob recurso deveria ter (pelo menos) abordado a questão neste ângulo, ao invés de a tratar e decidir contra a lei, enquadrando-a no regime geral e esquecendo as normas que, especificamente, a tratam. 39. Acresce que a má decisão da Relação de Lisboa vem, também, desautorizada por decisões jurisprudenciais, como sejam: - Acórdão da Relação do Porto de 29/9/92 in BMJ 416 " A assinatura aposta no lugar do aceite sob carimbo de uma sociedade por quotas que figura como sacada na letra por alguém que não é gerente dessa sociedade, não vincula a sociedade e torna o aceite nulo". Esta nulidade traduzida num vício de forma é oponível pela sociedade sacada a qualquer portador, quer nas relações imediatas, quer nas mediatas e, neste caso, independentemente da sua boa ou má fé" - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2003. Proc. 04B1522 dgsi.pt "O que releva para efeitos de vinculação da sociedade aceitante é a assinatura do respectivo representante (gerente) ao tempo da emissão da letra" 40. Vale por dizer, e indo ao caso em concreto, que, se efectivamente o sacador e endossante CC agiu com boa fé e, na realidade, não estava conhecedor da ausência de poderes do casal, será considerado terceiro de boa fé. Neste conspecto, nada mais há a fazer que seguir a disciplina da Lei Uniforme e, nessa conformidade fazer impender sobre os agentes que agiram sem poderes, a responsabilidade pela letra. 41. Este o regime da LULL que, sendo o aplicável ao caso em apreço, não mereceu o devido acolhimento pelo Acórdão que, dessa forma, viola a Lei. 42. Finalmente, e no que concerne a um alegado Abuso de Direito, dir-se-á que estamos em presença de decisão perfeitamente descabida e destituída de respaldo legal. 43. Como já se deixou suficientemente evidenciado, a Lei (mesmo se nos ativermos ao universo fora das letras de câmbio) exige que os efeitos dos negócios concretizados com representação sem poderes, só poderão ter efeitos na esfera da entidade irregularmente representada, se ocorrer a ratificação do acto - vd artº 268 CC. 44[2]. 45. Tentar substituir esta imposição legal por um qualquer episódio de não oposição verbal é um assomo de criatividade jurídica que, manifestamente, não pode ser levado em conta. A Lei quis e preconizou a forma de sanação destes vícios e, para tanto estipulou a forma de os concretizar; quisesse o Legislador que outras formas de normalização fossem admissíveis, naturalmente tê-los-ia previsto, ao invés de impor o que vem estatuído no n.º 2 do artigo 268 do CC. 46. Nesta senda, o direito da Recorrente em defender-se do pagamento de uma letra que não foi aceite pelos seus gerentes, é legitimo, pelo que a conduta tida está nos antípodas de um qualquer abuso de direito que, só por deficiente leitura e/ou atenção pouco acurada, se poderia entender. 47. Seja como seja, a decisão volta a violar a Lei, designadamente na desconsideração de estarmos em presença de uma letra e, consequentemente do regime jurídico especifico da LULL, não esquecendo a aplicabilidade indevida do artigo 260 do CSC 48. Aliás, a questão é tanto mais caricata quanto uma sociedade, que é vítima de uma conduta de duas pessoas que estão a ser julgadas pelos crimes de falsificação e burla (RELATIVAMENTE a ESTA LETRA), se veja confrontada com um libelo de conduta de má fé e abuso de direito, por não se conformar com uma conduta ilegal em termos cíveis e, provavelmente, em sede penal ... LAPIDAR!!! 49. Teremos assim que a decisão em apreço errou em toda a linha, violou a Lei em todas as vertentes, pelo que sanção que a mesma é merecedora só pode ser uma.
Contra-alegou a recorrida. Pediu a inadmissibilidade da revista, em função do que dispõem os artigos 639º e 641º, n.º 2, do CPC. Se assim não for entendido, preconiza a improcedência do recurso.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, as questões a decidir, além da questão prévia da inadmissibilidade do recurso, são: a) Deve ser sustada a execução e seus apensos A e B? b) A oposição deve proceder, uma vez que a letra exequenda não foi assinada por quem podia representar a sociedade? BB MM, LDA. A GERÊNCIA AA …, Lda. A Gerência. 15-A. O gerente JJ, quando teve conhecimento da letra, limitou-se a arquivar a documentação, não tendo manifestado qualquer oposição escrita ou verbal ao seu pagamento. Defende a recorrida que o recurso de revista deve ser indeferido, uma vez que, sendo as 49 conclusões mera repetição das alegações, é como se não existissem. Vejamos. a) As primeiras dez conclusões da revista ocupam-se de uma questão que, não tendo sido objecto de apreciação pelo acórdão recorrido, se apresenta como inteiramente nova e, por isso, insusceptível de ser apreciada. Com efeito, nessas conclusões, a recorrente pugna para que se seja sustada a execução, bem como os seus apensos A. e B., com fundamento na existência de causa prejudicial. Como é sabido e tem sido repetidamente referido, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre[5]. A questão da suspensão da execução e dos apensos A. e B. não tendo sido objecto de apreciação no acórdão recorrido não pode, aqui e agora, ser conhecida.
b) Abordaremos, então, a questão fulcral de que cabe conhecer e que vem explanada nas restantes conclusões da revista: deve considerar-se a sociedade vinculada ao pagamento de letra aceite por quem não tinha poderes para a representar? O acórdão recorrido respondeu afirmativamente, traçando um percurso argumentativo com o qual concordamos, genericamente, e que reproduzimos: “(…) a assinatura aposta no aceite não é do gerente, pelo que numa primeira abordagem, devemos concluir pela não vinculação da opoente. Tanto mais que o disposto no artº 252, n.º 6 do CSC nem é aplicável, por não se ter apurado a nomeação de qualquer mandatário ou procurador para o aceite da letra. O que pode questionar-se é se, no caso, a opoente tem legitimidade para invocar a sua não vinculação; isto é, se, como alega a apelante, face à factualidade provada, não haverá abuso do direito por parte da opoente ao pretender valer-se da ineficácia do negócio jurídico, porquanto a executada teve conhecimento da existência da letra em data não apurada, mas no período temporal em que JJ exerceu a gerência da executada, sendo certo que DD quando aceitou a letra como representante da BB MM Lda. disse ao sacador que mantinha essa qualidade, omitindo as mudanças de gerência. Dispõe o art. 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Para ocorrer o abuso do direito exige-se que haja um excesso manifesto no seu exercício, que ele se exerça com ‘clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante’. Trata-se, pois, de casos em que ‘o exercício do direito subjectivo conduz a um resultado clamorosamente divergente do fim para que a lei o concebeu e dos interesses jurídica e socialmente aceitáveis’. Pressupondo a existência do direito, ‘traduz-se na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido’. Voltando à factualidade A executada teve conhecimento da existência da letra, emitida em 22-6-2006, num período temporal em que era gerente JJ. Este não se opõe a que a empresa se vincule ao seu pagamento. Este gerente só foi destituído em 16-10-2006. Por outro lado, DD quando aceitou a letra, como representante da BB Lda. disse ao sacador que mantinha essa qualidade, omitindo as mudanças de gerência. O que concluir? À data da emissão da letra existia uma situação de facto determinante da vinculação da empresa, porquanto o gerente bem sabia daquela emissão e não se opôs a esta última. Significa, em termos substantivos, que se o gerente tivesse assinado a letra, não estaríamos neste momento a discutir este litígio: era consensual a vinculação da empresa. Tanto mais que a apelante não poderia ter dúvidas quanto à vinculação da sociedade, já que tinha sido omissa a mudança de gerência. A inacção e passividade do gerente reflecte, necessariamente, um implícito consentimento e aceitação da vinculação da sociedade. Por isso, neste contexto, se este Tribunal concluísse pela não vinculação da sociedade, estaria a ultrapassar um padrão ético de conduta, dando azo a que, formalmente, neste momento, a empresa não cumprisse o que se obrigou de facto, não sendo legítimo que, com base na aludida violação formal do contrato de sociedade, em que anuiu, a opoente pretenda agora desvincular-se das obrigações que em seu nome foram por este assumidas. O que se traduziria na concordância/sancionamento de uma conduta ao arrepio dos interesses e bens jurídicos protegidos pelo art.º 260º, n.º 1 do CSC. Termos em que julgamos procedente a invocação do abuso de direito atinente à actuação da opoente”. Extrai-se deste excerto que o acórdão recorrido concedeu procedência à apelação da exequente com base no instituto do abuso de direito. Já manifestamos a nossa concordância genérica com este ponto de vista, mas importa aprofundar o tema, até porque a singularidade do caso justifica que assim façamos.
Releva dos factos provados que: - A executada obrigava-se dentro e fora da sociedade com a assinatura de um gerente (ponto 2.); - A exequente é titular de uma letra datada de 22.06.2006, - Tem apostas duas assinaturas no aceite, como sendo de DD e de EE, bem como um carimbo com os seguintes dizeres: BB MM, LDA. A GERÊNCIA (ponto 7.); - Esse carimbo não é, nem nunca foi, o carimbo da executada (ponto 12.) - À data da emissão da letra, em 22.06.2006, a executada tinha como sócios DD, EE, FFe GG, sendo que nenhum exercia o cargo de gerente, e como gerente o não sócio JJ (ponto 8.); - A executada teve conhecimento da existência da letra em data não apurada, mas no período temporal em que JJ exerceu a gerência da executada (ponto 15.); - O gerente JJ, quando teve conhecimento da letra, limitou -se a arquivar a documentação, não tendo manifestado qualquer oposição escrita ou verbal ao seu pagamento (ponto 15-A.); - DD, quando aceitou a letra como representante da BB, Lda., disse ao sacador que mantinha essa qualidade, omitindo as mudanças de gerência (ponto 17.).
Nos termos do artigo 252.º n.º 1 do CSC, o órgão de representação da sociedade por quotas a quem cabe exteriorizar a vontade da sociedade perante terceiros é a gerência. São os gerentes que realizam a representação orgânica[6] da sociedade com o mundo exterior e que a vinculam perante terceiros[7]. Sobre a vinculação da sociedade comercial, diz o n.º 1 do artigo 260º do CSC: “Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios”. Portanto, segundo esta norma, a sociedade fica vinculada perante terceiros, mediante a actuação dos gerentes, se os actos forem praticados em seu nome (da sociedade) e com observância dos poderes que a lei confere aos gerentes. No n.º 4 do mesmo artigo pode ler-se que “os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade”. Sejam os actos sujeitos ou não à forma escrita, o gerente que actua em nome da sociedade deve indicar essa qualidade, de forma a tornar clara a origem dos poderes de representação invocados por quem é gerente. Ao dar a conhecer que age na qualidade de gerente e em nome da sociedade, mostra que não pretende que o acto produza efeitos em relação a si mesmo. Obviamente que nem todos os que actuam em nome da sociedade têm a qualidade de gerente: o representante pode ter poderes de representação por ser procurador ou mandatário da sociedade[8]. Tratar-se-á, aqui, da representação voluntária da sociedade, permitida pelo n.º 6 do artigo 252º do CSC. Como vimos no ponto 2. dos factos provados, o pacto social da executada previa que esta se obrigava mediante a assinatura de um gerente. Ora, na data da aposição do aceite, os sócios que o subscreveram não eram gerentes da sociedade sacada, aqui executada, embora um deles, o DD tivesse dito ao sacador (CC) que detinha essa qualidade, omitindo as mudanças operadas na gerência – cfr. ponto 17. Abre-se aqui um pequeno parêntesis para referir que se consideram incomuns as mudanças sucessivas na gerência da sociedade sacada, em pouco mais de dois anos. Dispensamo-nos de comentar as razões aparentes desse carrossel no órgão de gestão da sociedade: em Janeiro de 2004, era gerente DD; a partir de Janeiro de 2006, passou a ser gerente JJ; a partir de 16.10.2006, o cargo de gerente foi desempenhado por KK, mas apenas por 15 dias, uma vez que, em 02.11.2006, foi nomeada gerente LL. Na ocasião em que foi emitida a letra (22.06.2006), o gerente era JJ (que não era sócio da executada) e o aceite foi subscrito, como dissemos, pelos sócios DD e EE (que não eram gerentes). Isto significa que esses dois sócios, ao subscreverem o aceite na letra sacada como se detivessem a qualidade de gerentes, agiram sem estarem municiados de poderes de representação, ou seja, sem a legitimação representativa indispensável à eficácia do acto e à subsequente vinculação da sociedade sacada ao cumprimento das obrigações dele decorrentes. A consequência jurídica dessa falta de poderes de representação consta do n.º 1 do artigo 268º do Código Civil: “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”. Tal como a própria recorrente admite na conclusão 15., no acórdão recorrido não foi aventada a possibilidade de se considerar ratificado, formal ou tacitamente, o negócio jurídico originariamente inválido, razão pela qual se mostra desprovida de interesse a discussão sobre essa mesma possibilidade, versada em grande parte das conclusões recursórias. Parece-nos igualmente desfocada a alusão ao artigo 8º da LULL[9], que trata da possibilidade de as letras serem assinadas por um procurador ou mandatário. De facto, as assinaturas colocadas no local do aceite foram apostas por dois sócios da executada, que subscreveram a letra em nome desta (como sacada), como se fossem realmente gerentes, usando suposto carimbo da sociedade com os dizeres acima descritos no ponto 7., dos quais ressalta “A GERÊNCIA”. Não foi, portanto, na qualidade de procuradores ou mandatários que agiram, tenho inclusivamente um deles (DD) dito ao sacador que era gerente da sociedade executada[10]. O que, sobremaneira, interessa apurar é se, não obstante a invocação pela sociedade sacada da ineficácia relativa do negócio jurídico consubstanciado na aposição do aceite, a exequente, que viu ser-lhe transmitida a letra por endosso da sacadora, deve ser protegida nos seus interesses por via do instituto do abuso de direito. O problema radica na necessidade de tutelar os interesses daqueles que contrataram com o representante, na legítima suposição de que estavam perante alguém que dispunha de poderes representativos. Esse problema ganha acuidade perante a inexistência no nosso sistema jurídico de normas que disciplinem expressamente a responsabilidade civil do representante sem poderes em face do terceiro, ficando geralmente a solução entregue às regras gerais da responsabilidade civil pré-contratual (artigo 227º do CC), que apenas previnem a compensação pelo interesse contratual negativo, isto é, pelo prejuízo que o terceiro teria sofrido se não tivesse confiado na eficácia do negócio e na representatividade de quem o realizou. Mesmo nesta situação, é indispensável a prova da violação culposa, dolosa ou negligente, dos deveres de informação, pelo que se o representante desconhecer, sem culpa, a falta de poderes representativos, não responderá. Face à insuficiente resposta da lei, a doutrina e a jurisprudência têm trabalhado outras soluções para proteger terceiros em situações de incerteza quanto à vinculação da sociedade em relação a obrigações assumidas com violação das regras de representação. Destacam-se as que recorrem à tutela da aparência e à tutela da confiança. Tudo dependerá, evidentemente, dos contornos da causa e da realidade fáctica apurada, impondo-se sempre uma utilização pautada pela prudência e afinada por padrões de proporcionalidade e equilíbrio. A primeira solução é aqui descartável, pois, como diz Carneiro da Frada[11], a tutela da aparência tende para transcender a particularidade do caso concreto, procurando ponderações mais gerais ligadas às condições de funcionamento e às exigências do comércio jurídico no seu todo, tendo em vista a segurança e a facilidade do tráfico, com exigências de estabilidade e normalização, e não a resolução em termos equitativos de conflitos intersubjectivos localizados. A tutela da confiança, ao contrário, permite uma ponderação mais casuística, mais individualizada, e está mais vocacionada para a concretização do princípio ético-jurídico da boa fé objectiva. É neste ponto que releva o instituto do abuso de direito, consagrado no artigo 334º do CC, na dimensão em que reputa de ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda de forma manifesta os limites impostos pela boa fé. Na modalidade da proibição de venire contra factum proprium, o abuso do direito tem sempre por pressuposto a existência de uma situação de confiança, ou seja, um comportamento que possa ser entendido como posição vinculante em relação à situação futura e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta[12]. Traduz, consequentemente, a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios. Segundo Baptista Machado[13], a proibição do venire contra factum proprium caracteriza-se pela combinação de dois elementos. “Por um lado, ser conforme à ideia de justiça distributiva que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devam ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida de relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente. Por outro lado, ser possível alcançar esse resultado sem sujeitar tal agente a uma obrigação, sem lhe impor a constituição de um vínculo, mas pelo simples desencadear de um efeito inibitório ou inabilitante, o qual carece de fundamento bem mais ténue do que aquele que exigiria a constituição de uma obrigação”. Uma situação passível de encarnar essa modalidade de abuso de direito é quando se cria um cenário de aparência jurídica em termos tais que suscita a confiança das pessoas[14]. Confrontando estas reflexões com uma situação em que o representante actue em nome do representado, sem deter os necessários poderes de representação orgânica (artigo 260º, n.º 1 do CSC) ou voluntária (artigo 252º, n.º 6, do CSC), só poderá configurar-se abuso de direito e, desse modo, impedir (inibir) o representado de invocar a ineficácia, em relação a si, dos actos do representante sem poderes, se: 1) a contraparte do falsus procurator no negócio representativo estiver de boa fé, ou seja, ignore, sem culpa, a falta de legitimidade representativa; 2) a sua situação tiver sido causada pela situação de aparência[15] em que depositou confiança; 3) o representado, apesar de conhecer a actuação do representante, não tiver reagido ou manifestado discordância. Cumpridas estas condições, e sufragando o entendimento de Paulo Mota Pinto[16], “não parece desrazoável” que “o representado fique então ligado ao negócio”, afigurando-se justo que suporte as consequências derivadas dessa situação de aparência, de que teve conhecimento e contra a qual não reagiu, não sendo legítimo que, posteriormente, se coloque em contradição com essa sua actuação. É nítida, no caso dos autos, a verificação cumulativa das citadas condições, o que se deve, em grande medida (no que toca, em particular, à última das apontadas condições), à alteração da matéria de facto produzida no acórdão recorrido – cfr. pontos 15. e 15-A. Com efeito, por um lado, os subscritores do aceite eram sócios da sacada, tendo um deles (o DD) referido ao sacador que era gerente da sociedade sacada, omitindo, desse modo, as mudanças ocorridas na gerência. A colocação do (suposto) carimbo da sociedade sacada, que estava na posse dos subscritores do aceite, ajudou a reforçar a confiança da contraparte de que a legitimação representativa estava assegurada. Por outro lado, a sociedade sacada, através do seu gerente em exercício na ocasião, teve conhecimento da subscrição da letra, mas não manifestou qualquer oposição escrita ou verbal ao seu pagamento. Perante esta factualidade, temos por configurada, no caso dos autos, uma situação de abuso de direito por parte da sociedade executada, na modalidade de proibição de venire contra factum proprium, de que deriva o efeito inibitório de que falava Baptista Machado, mostrando-se ilegítimo o direito de invocação da ineficácia relativa do negócio jurídico, com a consequente vinculação da referida sociedade às obrigações assumidas na letra exequenda. Bem se decidiu, portanto, no acórdão recorrido.
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Henrique Araújo (Relator) Maria Olinda Garcia Raimundo Queirós
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