Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1/09.3FAHRT.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
ACUSAÇÃO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
REJEIÇÃO
DIREITOS DE DEFESA
CONSTITUCIONALIDADE
NULIDADE
IRREGULARIDADE
INTÉRPRETE
TRADUÇÃO
BUSCA
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
PROVA INDICIÁRIA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
ESTUPEFACIENTE
TRANSPORTE
CRIME DE PERIGO
CRIME EXAURIDO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ANTECEDENTES CRIMINAIS
IDADE AVANÇADA
ARGUIDO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :

I - O arguido A foi condenado em 1.ª instância como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.° n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, em 8 anos de prisão, pena que foi confirmada em recurso pela Relação. O art. 400.°, n.º 1, al. f), do CPP, na sua versão actual, introduzida pela Lei 48/97, de 29-08, veio vedar o recurso para o STJ das decisões condenatórias da Relação, que confirmando o decidido em 1.ª instância, apliquem pena não superior a 8 anos de prisão.
II - A dupla conforme mostra-se válido instrumento de realização de celeridade processual sobretudo na zona de pequena e média criminalidade além de exprimir a crença de que a coincidência do decidido pelo acerto decisório ostentado não justifica mais do que um grau de jurisdição, ou seja um terceiro e um segundo, em sede de recurso, sendo suficiente um.
III - A dupla conforme é tanto a total como a parcial, in mellius, ou seja nos casos em que o tribunal de recurso reduz a pena, dizendo o STJ, quase una voce, que não deixa de haver confirmação nos casos em que, in mellius, a Relação reduz a pena: até ao ponto em que a condenação posterior elimina o excesso resulta a confirmação da anterior.
IV - Recebidos os autos, usando a expressa terminologia do art. 311.°, n.º 1, do CPP, o presidente do Tribunal, se não tiver havido lugar a instrução, pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais passíveis de afectar o conhecimento do mérito, desde que possa delas conhecer, seguindo-se, não tendo havido lugar a instrução, a faculdade de rejeição da acusação, mas num condicionalismo muito especial, ou seja se a considerar manifestamente infundada, podendo, ainda, não aceitar acusação do MP ou do assistente se ela representar uma alteração substancial dos factos, nos termos dos n.ºs 2, als. a) e b), e 3 als. a) a d).
V - O juiz, ao receber os autos para designação de dia para o julgamento, não emite qualquer préjuizo de culpa, influenciando-se com ele, não controla os indícios trazidos ao processo, e daí que lhe não assista o poder de devolver o inquérito ao MP para acusar por outros crimes ou para completar os indícios, em face da respectiva insuficiência que denote, sendo que o n.º 3, na redacção introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, revogou tacitamente a jurisprudência em tal sentido, que caducou, do Ac. do STJ n.º 4/93, de 17-02, in DR, I Série-A, de 26-03-93, ao esclarecer, clarificando, os casos em que a acusação se mostra manifestamente infundada, entre os quais não figura aquela deficiência.
VI - Os casos de acusação manifestamente infundada, de que o julgador pode e deve oficiosamente conhecer, sobrepondo-se às nulidades, são excepcionais e repercutem vícios estruturais graves da acusação, agindo aquele em nome e no interesse do arguido sempre que constate a sua falta de identificação, de factos na acusação, indicação dos dispositivos legais aplicáveis, das provas ou a constatação objectiva, sem exame aprofundado, meramente perfunctório, de inexistência de crime – als. a), b), c) e d), do n.º 3, do predito art. 311.º, do CPP.
VII - E esta limitação do poder do juiz não atenta contra a CRP pois não há direito constitucional a não se ser submetido a julgamento quando se não verifiquem indícios bastantes para constituírem convicção suficiente da prática de um crime (Acs. do TC n.ºs 691/98 e 101/2001). O TEDH tem interpretado o art. 6.º da CEDH, no sentido de que o direito a um processo justo importa um triplo sentido: o de igualdade de armas, ou seja de o arguido não ser colocado em posição de substancial desvantagem face ao seu oponente, bem como conhecer as provas e observações oferecidas pela parte contrária ou mesmo por intervenientes imparciais, de direito ao silêncio e à fundamentação da sentença – cf. Paulo Pinto de Albuquerque.
VIII - A postura do julgador, de controle essencialmente mais formal que substantivo, e neste caso mesmo assim excepcional e objectivo não envolvendo um préjuízo de culpa, orientando-o para o julgamento num dado sentido, antes eximindo-o a ele, em condições excepcionais, não prejudica o arguido; pelo contrário, conforma o julgamento num sentido da justiça e do respeito pelos direitos de defesa que a CRP lhe assegura no seu art. 32.º, n.º 1.
IX - E o que se diz não tendo havido instrução, afirma-se tendo sido emitida pronúncia, em que o formalismo legal a observar é de âmbito mais simplista, limitando-se ao saneamento do processo, como se extrai do n.º 2, do art. 311.°, mas sem que se possa afirmar aquele juízo de convicção prévia, funcionando em desfavor do arguido, ou seja com o significado de que o julgador se antecipa à valoração de provas, só em audiência podendo ser produzidas e aí examinadas, nos termos do art. 355.° do CPP.
X - O arguido invoca a nulidade de nomeação da intérprete por falta de idoneidade reconhecida de intérprete, por não ser licenciada em tradução, por ofensa ao art. 15.° da CRP, que, de resto, não cobra qualquer razão para aplicação ao caso, ao referir, além do mais, que os estrangeiros e apátridas a residirem em Portugal usufruem dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais. Já o art. 92.° n.º 2, do CPP, em consonância com o art. 6.°, n.º 3, al. e), da CEDH, prescreve que à pessoa que tendo de intervir no processo e não conheça ou não domine a língua nacional, é nomeado intérprete idóneo, em caso algum exige que possua uma licenciatura, não sendo esta conditio sine qua, para a idoneidade pressuposta na lei para o desempenho do cargo.
XI - A sua falta, obrigatória para o arguido, de nacionalidade americana, implica nulidade sanável, nos termos do art. 120.°, n.º 1, al. c), do CPP, devendo ser arguida no acto a que o interessado assista e antes que o julgamento estivesse concluído. Ao arguido B foi nomeada intérprete para tradução da língua portuguesa em inglesa, em interrogatório e no início do julgamento, nenhuma objecção opondo ao seu desempenho, para o qual foi ajuramentada, recusando-a nos termos do art. 153.°, n.º 2, do CPP, o que não fez. Se, pois, por hipótese, quer a tradução em audiência quer antes da acusação em língua inglesa, apresentassem defeitos, o vício, com menor dignidade do que a falta de nomeação de intérprete ou de tradução documental, configurando, por isso, mera irregularidade, estaria sanado, nos precisos termos do art. 123.°, n.º 1, do CPP, pela sua não arguição no momento da prática do acto.
XII - A busca deve ser autorizada por despacho da autoridade judiciária competente formalidade dispensada no caso, desde logo, de criminalidade altamente organizada, em que se insere o tráfico de estupefacientes à data indiciado – art. 1.º, al. m), do CPP –, devendo, posteriormente ser validada pelo juiz de instrução, ou desde que o visado consinta na realização de tal meio de obtenção de prova, ficando documentada a autorização – art. 174.º, n.ºs 3 e 5, als. a) e b), do CPP.
XIII - A entrega de cópia do despacho judicial autorizando a busca, e previamente à diligência, é dispensada, por força do art. 176.°, n.º 1, do CPP, em caso de cometimento de algum dos crimes enunciados na al. a), do n.º 5, do précitado art. 174.°, do CPP, ou consentindo o visado naquela, desde que fique documentada a autorização – al. b) do n.º 5 do art. 174.º do CPP. Visado com a diligência é aquele que ocupa o lugar e o utiliza para um fim reputado ilícito pela autoridade judiciária.
XIV - A crescente “complexidade e opacidade” – nas palavras de Euclides Simões, in “Prova Indiciária, Contributos para o seu Estudo e Desenvolvimento”, publicado na Revista Julgar, 2007, n.º 2, 205 – de certo tipo de comportamento criminal, particularmente no ligado ao tráfico de droga e branqueamento de capitais, exige cada vez mais a ultrapassagem, segundo aquele autor, “dos rígidos cânones de apreciação da prova, que leve descomplexadamente à assunção de critérios de prova indirecta, indiciária ou por presunções (circunstancial, preferem outros), como factores válidos de superação do princípio da presunção de inocência”.
XV - Em Espanha (como nos EUA) onde se faz largo uso de tal meio de prova, exige a jurisprudência para validade do indício os seguintes pressupostos:
- De carácter formal: a sua expressão na sentença em factos-base, plenamente comprovados, que vão servir de apoio à dedução ou inferência, a afirmação do raciocínio através do qual se chegou à convicção da verificação do facto punível e da participação do acusado nele; no plano substancial não se dispensa a plena comprovação dos factos indiciários por prova directa, de inequívoca natureza acusatória, devendo aqueles ser plurais ou únicos, mas, então, de especial força probatória, contemporâneos do facto, sendo vários devem estar interligados de modo a que se reforcem mutuamente;
- Quanto ao juízo de inferência é imperioso que seja razoável, que não seja arbitrário, absurdo, infundado, respondendo às leis da lógica e da experiência e que os factos provados surjam como conclusão natural, existindo entre os factos provados um nexo directo, preciso e conciso segundo as regras do critério humano.
XVI - A dificuldade de obtenção de prova directa foi acentuada e sentida pelo tribunal de 1.ª instância que, ante a alegação de desconhecimento de transporte de heroína na embarcação, comandada pelo arguido R e de que era tripulante o arguido J, fez claro uso da prova por indícios, para, a final, lhes imputar a co-autoria material do crime, para tanto se socorrendo de um avultado elenco de fatos provados, descrevendo-os e ordenando-os assim:
- a grande experiência que os arguidos possuem em matéria de barcos e navegação;
- o facto de terem feito a viagem numa época do ano em que não são usuais tais travessias transatlânticas, face às condições atmosféricas adversas que ocorrem no percurso e que exigem muito dos barcos e dos tripulantes;
- o facto de a embarcação estar munida com três botes, quando necessitava apenas de um, quanto muito, dois;
- o facto de os botes em causa não serem possuidores da respectiva palamenta, sendo certo que o terceiro bote – tipo zebro – que se encontrava na embarcação possuía toda a sua palamenta e estava apto a exercer as suas funções de apoio à embarcação;
- o facto de os arguidos aquando da fiscalização não terem apresentado a palamenta (motor e remos, adiantamos) dos botes, afirmando desconhecimento quanto a esta matéria, sem qualquer explicação plausível para a presença dos mesmos no convés da embarcação;
- o facto destas embarcações, manifestamente, para qualquer pessoa, ainda que não familiarizada com o transporte nas mesmas e ainda que desconhecedora da sua configuração, apresentarem um aspecto interior que não era minimamente compatível com qualquer embarcação que se destine a transportar pessoas (o que os arguidos não podiam deixar de constatar);
- o facto de os botes estarem acondicionados de forma adaptada, sobre as escotilhas, não permitindo a sua abertura, situação a todos os títulos anómala;
- o facto de os botes conterem lonas e cintas novas, e estas particularmente fortes, que não se justificariam em situação de suporte de um bote com o seu peso normal;
- o facto de ambos os arguidos terem falseado a verdade quanto ao transporte de botes desta natureza, noutras ocasiões em que a embarcação aportou em território nacional e em que eram tripulantes dessa embarcação, situação que foi confirmada por prova documental;
- o facto de ambos os arguidos serem homens experientes, nomeadamente nas rotas, que são bem conhecidas dos Tribunais, de tráfico de estupefacientes provenientes da América com destino à Europa, tendo, aliás, o arguido M uma experiência de prisão devido a uma situação de tráfico.
XVII - No âmbito dos poderes de sindicância do STJ enquanto tribunal de revista não cabe o de censurar os factos materiais e históricos, facta probanda, a que a utilização dos meios de prova e sua obtenção, pelos órgãos aplicadores da lei, conduz, em sua livre convicção e valoração, apenas neles se incluindo o de controlar a sua conformidade à lei, se cabem no elenco da prova ou meio de prova por ela consentidos e a correcta aplicação, vista a disciplina a que a lei os sujeita (arts. 128.° e ss. do CPP), que deles se faz, por respeitarem a regras de direito. Está vinculado, assim, o STJ a acatar os factos materiais em que se traduzem os indícios e as conclusões factuais a que, integradamente com outros, são conducentes.
XVIII - O princípio da presunção da inocência, numa primeira evidência, situa-se em sede de matéria de facto. O tribunal recorrido fundou a condenação do recorrente não em presunção de culpa, mas num abundante elenco de provas directas e indirectas entre as quais avultam a prova por declarações, a testemunhal e a documental e meios de obtenção de prova, como o exame, a busca e a apreensão, valorando-as segundo as regras da experiência e a livre convicção probatória, nos termos do art. 127.° do CPP.
XIX - Certamente que não exigiu um grau de absoluta certeza em cada inferência que faz do facto indiciante como ligação ao facto indiciado. Mas, e como corroborado pela totalidade dos autores que se debruçaram sobe esta matéria, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza. Daí não deriva, porém, que o tenha feito e fixado os factos comprovados de uma maneira arbitrária, puramente subjectiva e emocional, logo imotivável, só uma apreciação dessa dimensão apontando para uma interpretação do art. 127.° do CPP, afrontando o art. 32.°, n.º 1, da CRP.
XX - E também não se colhe do teor do acórdão de 1.ª instância que, valorando, indevidamente os factos, devendo ter concluído, como corolário lógico da presunção inocência de que o recorrente goza, pela verificação de um estado de dúvida, razoavelmente fundada e insuperável, haja decidido contra o arguido, em inconsideração com o princípio in dubio pro reo, que é, essencialmente, um princípio relacionado com a matéria da prova, em princípio estranho à censura do STJ, enquanto tribunal de revista.
XXI - O STJ apenas pode sindicar o uso desse princípio quando da sentença resultar que o tribunal chegou a um estado de dúvida e não a declarou in malam partem ou quando esse estado de dúvida não foi declarado por via de manifesto erro notório na apreciação da prova, visível a partir do texto da decisão recorrida, nos termos do art. 410.º, n.º, 2, al. c), do CPP.
XXII - O Tribunal é o verdadeiro árbitro sobre a necessidade de efectivação e produção dos meios de prova cujo conhecimento se afigure necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, nos termos do art. 340.º, n.º 1, do CPP, sejam elas de sua iniciativa sejam a requerimento dos sujeitos processuais.
XXIII - A sentença, segundo o modelo paradigmático do art. 374.º, n.º 2, do CPP, leva a cabo a narrativa, condensada na fundamentação, de facto e de direito, especificando os factos provados e não provados, com o propósito de assegurar que todos os factos resultantes da acusação e da defesa e emergentes da decisão da causa foram objecto de apreciação, bem como de uma exposição, tanto possível completa, ainda que concisa, das razões de facto e de direito que fundamentam a decisão, seguindo um exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção.
XXIV - O exame crítico das provas é, em resultado de um juízo apriorístico sobre o seu valor, o pressuposto de formulação de uma relação de igualdade entre elas ou hierárquica, a fundamentar o porquê de umas merecerem o mesmo valor ou valor superior a outras, conducente ao seu detrimento, na formação da convicção probatória, levando, ainda ao conhecimento das provas que foram apreciadas, para, a final, se conhecer o processo lógico-racional, em globo, seguido pelo juiz.
XXV - É errónea, e, por isso irrelevante, a consideração de que a não valoração das declarações dos arguidos com “um sentido e alcance que não mereceu atendibilidade ao colectivo, decidindo em sentido oposto”, integra erro notório na apreciação da prova, vício inerente à confecção da matéria de facto apurada, visível pela simples leitura da decisão recorrida, mas cujo conhecimento se esgota no Tribunal da Relação, estando vedado ao recorrente erigi-lo em fundamento de recurso, sem embargo de o STJ para bem decidir de direito, como tribunal de revista que é, o poder afirmar oficiosamente, mas, ainda assim, mantendo-se dentro da sua reserva de tribunal de revista, porque a decisão de direito repousa numa boa decisão de facto.
XXVI - O mero transporte, ainda que o estupefaciente haja sido impedido de chegar ao seu destino, não deixa de ser já integrante do tipo de crime de tráfico de estupefacientes e um seu elemento constitutivo, independentemente de o resultado final se não ter consumado, porque estamos em presença de um crime de perigo abstracto em que, vista a grandeza dos bens jurídicos em perigo, o legislador sentiu a necessidade de antecipar a incriminação, a tutela jurídica, a momentos anteriores ao resultado final, estabelecendo uma malha legal suficiente alargada no descritivo típico, no art. 21.° do DL 15/93, de 22-01, para que não fiquem sem punição um vasto leque de comportamentos.
XXVII - O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se naquilo a que a dogmática alemã apelida de crime exaurido, ou de empreendimento, em que a incriminação da conduta do agente se esgota logo nos primeiros actos de execução, independentemente de consistirem numa execução completa, em que a repetição dos actos é ou pode ser imputada à acção inicial. Nele o resultado típico é obtido pela realização da conduta inicial da acção, ilícita típica, de modo que a continuação da mesma, cada actuação do agente no crime exaurido importa comissão do tipo legal; o conjunto de acções típicas reconduz-se à comissão do mesmo tipo, integrando-se tais actos, ainda que isolados, numa realidade única, em obediência a uma mesma resolução criminosa.
XXVIII - O arguido, com outro, cometeu um crime de tráfico de estupefacientes reportado a um transporte de cocaína, por via marítima, a partir da Venezuela, dissimulado em dois botes acondicionados numa embarcação, que tripulavam, com o peso de 548,227 kg, estupefaciente que sabia(m) destinar-se a ser colocado no respectivo mercado para venda e a ser distribuído por grande número de consumidores, não se demonstrando que fosse(m) ele(s) a auferir os lucros da venda, por isso, desqualificando-o, se subsumiu a sua conduta ao tipo matriz, de tráfico simples, p. e. p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01.
XXIX - O arguido recorrente, incorreu na prática de crime ligado ao tráfico de marijuana nos EUA, o que lhe valeu a detenção em 22-11-91 e a condenação, em 11-05-92, a 97 meses de prisão e multa, mas esse facto, ao invés de servir de meio dissuasório à prática dessa ou de outras infracções, estimulando-o a conformar-se ao direito e a seguir vida sem reparo, não o inibiu, como contramotivo, de se dedicar, de novo, ao tráfico de estupefacientes. O arguido não manifestou, ainda, qualquer arrependimento.
XXX - Merece, no entanto, algum espaço de reflexão a circunstância de o arguido ter completado, recentemente, 70 anos, peticionando o arguido, por esse facto, atenuação da pena, significando a sua condenação uma pena de morte. O CP actual é omisso quanto a esse ponto, diversamente do que sucede com os jovens de idade compreendida entre 16 e 20 anos, em que a idade funciona como atenuante em nome de uma desejável e expectável ressocialização e prevenção da reincidência.
XXXI - Não será em nome da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, que é de reduzir a pena; não se trata de rotular o idoso como um subcidadão, de segunda classe diminuído, necessariamente, física psicológica e psiquiatricamente, a quem tudo é consentido só por o ser, passando ao limbo do esquecimento o seu crime, o que poderia ser grave, pondo em risco a ordem jurídica, a segurança e a protecção jurídica dos cidadãos pela quase justificação do delito.
XXXII - E esse é manifestamente o caso do arguido, que cruzando, ao comando de uma embarcação, o Atlântico, em época de risco, exigindo mais redobrado esforço físico e psíquico aquele transporte, se mantém em perfeitas condições físicas e mentais para suportar o cumprimento da pena a aplicar-lhe, não obstante ter completado os 70 anos escassos meses atrás, não se podendo, de resto, fazer corresponder a essa idade a decrepitude de outros escalões etários mais avançados de velhice. Não se descortina válida razão em face disso para atenuação da pena.
XXXIII - Vistas as muito sentidas necessidades de prevenção geral e, não menos, especial, de concluir é que a pena aplicada, de 9 anos e 6 meses de prisão, satisfaz as exigências de culpa e prevenção e os demais factores influentes na determinação concreta da pena, não merecendo reparo.


Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 1/09.3FAHRT, do Tribunal Judicial da Horta, procedeu-se ao julgamento dos arguidos AA e BB,vindo , a final , a ser condenados :   

O arguido AA pela prática, como co-autor, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo art. 21.º n.º 1 do Dec-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão;

 O  arguido BB pela prática, como co-autor, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo art.º 21.º n.º 1 do Dec-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 9 (nove) anos de prisão.

Igualmente  se determinou a perda  a favor do Estado, da embarcação Ocean Fregatta, e todos os seus elementos componentes, bem como do dinheiro apreendido aos arguidos na data da detenção.

I. Inconformados, ambos os arguidos interpuseram  recurso para a Relação  que decidiu , em, provimento parcial do recurso , reduzindo as penas , condenar AA e BB, como co-autores de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo art. 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sendo  o arguido AA na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão; o arguido BB na pena de 8 (oito) anos de prisão.

II Inconformados, os arguidos recorreram do referido acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes CONCLUSÕES:

1-         As questões e inconstitucionalidades nas conclusões indicadas sob n°s 3 até 16, 21, 23 e 26 não foram devidamente julgadas pelo Tribunal da Relação Lisboa, o que traduz   nulidade do processado.

2-         A ausência de prova directa ou indirecta e a convicção não fundamentada sobre as questões da conclusão 26 representa nulidade  do acórdão  e  impõe-se a absolvição   ou  o reenvio para novo julgamento

3-Partindo da presunção de culpa e condenação ab initio  operada pelo Tribunal Colectivo da Horta, o Tribunal da Relação Lisboa expende, entre outras considerações que: "- o Juiz não procede a qualquer avaliação indiciária quando recebe os autos....não implica, por conseguinte qualquer pré-juizo sobre aprova do inquérito.... fls 34 do Acórdão   pelo que  improcede a violação do art. 6º -1 da Convenção Europeia.

4-         O cerne da questão está em que o Juiz   "recebe a Acusação"   e toma contacto com o   "caso da Acusação"  previamente  à   defesa o que    viola  o    "processo equitativo": arts. 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

5-         A nulidade  na nomeação –Falta de idoneidade reconhecida  da intérprete que deve ser licenciada em tradução viola os art. 92º 2 CPP, 15° CRP. e 6º 3-e) da Convenção Europeia, que determina a nulidade do    processado    e actos subsequentes, Julgamento e Condenação     cfr Novíssimo Digesto Italiano:"...// tradutore é anch' egli un auxiliare deigiudice..."(« =....o tradutor é, também ele, um auxiliar do Juiz..."- in Vol VII- pag 891 e .cfr. Acórdão Luebrick Belckacen e    Hoç.,   A 29 -. Pag 20, 8 - Acórdão  Broziceck, Ozturk A 3, pag    22,58

6-         Partindo de dados errados sobre a condenação do arguido AA, esteve preso em 1995 o que não é relevante para a Justiça Portuguesa, o Tribunal  da Horta e a Relação Lisboa ficaram influenciados por  antecedentes não confirmados.

7-         A condenação foi em 3 anos e 4 meses ( 40 meses) o que não deveria influenciar o Tribunal a quo e o TRL: os factos ocorreram em 1992, há 20 anos,o arguido   tem   70 anos de idade   e não deveria ser assim penalizado!

8-0 Tribunal partiu da Presunção de culpa quando ab initio o que conta é a presunção de inocência: inexiste algo mais que a existência de 3 embarcações a bordo que aí acondicionavam cocaína; presumiu a culpa e ostracizou a declaração de inocência  dos arguidos contra   o art. 32 da CRP.

9-         O Tribunal condenou os arguidos sem sopesar a possibilidade de desconhecimento dúvida , o que traduz erro notório  - art. 410- 2-C) CPP e violou o Principio in dúbio pro reo - art. 32 da CRP: violou o art° 127° do C.P.P.,, sendo que a interpretação dada ao estabelecido no art° 127° é inconstitucional; existiu apreciação arbitraria da prova que afrontou/violou, o princípio da presunção de inocência , consagrado no art0 32° n° 2 da C.R.P.

10-       O arguido AA disse em julgamento que: "...entrego embarcações há cerca de 30 anos; levo-as de um lado para o outro do globo. A Ocean Fregatta não é minha; não sei da dissolição da empresa Ocean Fregatta...ia ganhar 2.000 Dólares por semana para transportar a embarcação, "....não vi nada de anormal nas embarcações nas embarcações em causa..."-in CD junto aos autos

11- Por   sua vez o arguido BB   disse que: "...quando cheguei à Venezuela os botes já tá estavam colocados            olhei para o interior dos botes ...pareceram  normais..."in   CD junto   aos   autos   com   a transcrição  julgamento     O Tribunal    a   quo    e   o TRL ostracizaram in totum este segmento das declarações das declarações que geram inocência –violação pelo que  violou os   arts 32° da C.R.P.-2 e 5.

12-       O Juiz Julgador não pode remeter-se a um papel passivo, devendo exercitar o poder-dever de investigação oficiosa- art°s 340° C.P.P. e 32o- 5 C.R.P. pelo que não o tendo feito violou o modelo acusatório, integrado no Princípio da investigação - art°s 323° a) e 340- 1 C.P.P. com consagração constitucional - 32° -5 C.R.P e art0 6o da C.E.D.H..

13-       O in dubio pro reo pode ser sindicado se da Decisão resulta que o tribunal ficou na dúvida, relativamente a qualquer facto e nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos OU quando, não tendo o Tribunal reconhecido essa dúvida, a mesma resultar do texto do Acórdão recorrido, isto é, naqueles casos em que se possa constatar que a dúvida só não foi reconhecida, em virtude do erro na apreciação da prova - art° 410° n° 2, ai. c) do C.P.P.; resulta violado  o “ in dubio  pro  reo no Ac do TRL .

14-0 TRL secundou o Tribunal da Horta e partiu do principio de que era impossível a 2 homens pegar num só bote. Cada bote pesa 192 KG !!!-Doc 1. 192 Kg a dividir por 2 homens traduz-se em 96 Kg para cada um!!!! Mais lógico seria distribuir o peso de 192 por 5 ou 6 homens....O construtor do bote - BOSTOM WHALER - atribui as seguintes especificações ao bote:

15-       Este peso é de conhecimento oficioso, deveria ( deve) ser investigado pelo Juiz Julgador,    em    Ia Instância    ou    em    sede    de julgamento,    é consultável    em http//es.boats.com/boat-details/bóston-Whaler            Doe 2; a   altura do    Banco   é   de 38 cm (trinta e oito centímetros)....COMO PODIAM OS ARGUIDOS SABER QUE NOS BOTES IA A COCAÍNA ? COMO PODE O TRIBUNAL DA RELAÇÃO ALEGAR QUE MENTIRAM FACE ÀS ESPECIFICAÇÕES DOS   BOTES ?????

16-       O Tribunal Colectivo e o TRL partiram da presunção de culpa, violaram o princípio da presunção de inocência: o 127° CPP é inconstitucional - art°s 4ºs  e 127° do C.P.P. e 32° n° 1 da C.R.P. na forma como apreciaram as declarações da GNR e dos   arguidos, valorizando aquelas- que são parte interessada na condenação.

17-       A Decisão sobre a matéria de facto-art.412- 3 e 4, CPP, quanto aos pontos tidos como provados em 11,12,13, 14., e 15, não contêm fundamento fáctico algum que justifique o juízo condenatório, pois da prova conduzida em julgamento o Tribunal deu relevância para o dito juízo condenatório aos depoimentos da GNR sem mais apoio e contra as declarações de  inocência dos arguidos!

18-       O TRIBUNAL DA RELAÇÃO PARTE DA PROVA INDIRECTA - pags 53 - PARA CONCLUIR: "....Pois bem: os recorrentes declararam em sede de julgamento desconhecerem em absoluto que os  dois botes  existentes no convés continham cocaína,  como se infere da gravação da prova..." fls 54  Contrariamente, as testemunhas de acusação constituídas por agentes da GNR que participaram na busca ao Ocean Fregatta, segundo o juízo do tribunal recorrido depuseram de forma isenta e imparcial..." Ouvida a gravação dos seus depoimentos, inexistem quaisquer razões para colocar em crise o juizo de credibilidade que o tribunal recorrido, na base da imediação, entendeu formular     .fls 54

19-       A partir de fls 54 e até final fls 60, o TRL não explica na sua convicção como, a partir do total desconhecimento dos arguidos relativamente à cocaína a bordo dos botes, sabiam da existência da mesma!!!! O TRL não só ostraciza a PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA dos arguidos como se mostra "favorável" a quem é "parte interessada" na acusação, precisamente os agentes da GNR que têm interesse da condenação dos arguidos e são a "prova" da Acusação          

20-       A partir de 3 embarcações de apoio e sem mais nada que as declarações dos elementos da GNR o Tribunal a quo concluiu pela culpa!!!! Inexiste algo mais que a existência de 3 botes que aí acondicionavam cocaína!!! Presumiu-se a culpa ab initio   e ostracizou-se as declarações de inocência contra o art 32 CRP.

21-       Não foi produzida prova que permita concluir que os Recorrentes tenham praticado o crime, uma vez que não foram relatados factos pelas testemunhas que permitissem concluir a com a certeza que é exigível, que os Recorrentes tenham colocado a droga a bordo das 3 embarcações e, ou soubessem da mesma e, ou, tivessem intervenção na introdução in loco: foi violado o art. 374- 2 do CPP. cfr. Ac. 07P024 do STJ. Março 21, 2007; Ac. STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01-3% SASTJ, n° 57,69,

22-Na motivação da decisão é deficiente a justificação, o que constitui falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do art. 374 n°2 do CPF, que constitui falta de análise critica da prova e gera nulidade da sentença: art. 379 n°l ai. a) do CPP 

23- O Tribunal partiu para a Presunção de Culpa, quando deveria ter presumido inocentes os arguidos, violou o Princípio da Presunção de Inocência, sendo que a interpretação do 127° CPP,, naquilo que às declarações dos arguidos e conjugadas com os depoimentos dos elementos da GNR  é inconstitucional - art°s 4o e 127° do C.P.P. e 32° n° 1 da C.R.P.

24-0 Tribunal, errou notoriamente na apreciação que fez da prova, incorrendo no vício -art° 410° n° 2 ai. c) C.P.P., que não pode ser dissociado da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, já que o tribunal ao incorrer no erro na apreciação das provas acima referidas, esgotou, as suas provas, inexistindo, assim, matéria de facto dada como provada para condenar os Recorrentes.

25- O Acórdão não contêm exame crítico e inexiste fundamentação concreta, limitando¬se o Tribunal a quo a meras suposições sem assentimento em provas inequívocas tais como a resposta concreta às questões vertidas na Conclusão 26a.: - de quem é a cocaína ? quem a adquiriu eonde ?a quem ? quando ? por que preço ? -quem colocou a cocaína nas embarcações ? como ? quando ? - em que medida é que AA teve comparticipação nesses actos ? como poderia saber ? quando ? em que momento ? de que forma ? - qual o destino da cocaína ? a quem se destinava a Ocean Fregatta ? e as 3 embarcações ? -por que forma o arguido AA teve ou não conhecimento que nessas embarcações seguia cocaína ? Acresce que perante a declaração de INOCÊNCIA do arguido e inexistindo resposta concreta às questões supra suscitadas,  como pode o Tribunal achar a CULPA sem mais elementos  ?????

26- O caso de transporte abortado pela GNR traduz crime não consumado, quiçá tentativa ou crime ou uma conduta de um mero transportador de um transporte sem se ter provado que os arguidos eram "donos" ou agiam a "mando" de outrem, o que traduz culpa exígua ou diminuta, ausência de  dolo

27- A busca a bordo da Ocean Fregatta é nula; o arguido é AA é Americano, não foi informado dos direitos e deveres nem lhe foi entregue por escrito despacho prévio a consentir / ordenar a busca, pelo que foi violado o dispostos nos arts. 174, 175 e   176 do CPP e nulos são todos os actos daí decorrentes.

28- O arguido AA tem 70 anos de idade; 9 anos e 6 meses de prisão traduz sentença de morte, considerando a idade média de vida do Homem - 73- 75 anos- o que significa que o arguido permaneceria até morrer numa jaula fria e húmida de 5 m2.... O   arguido BB tem  39 anos, é um   mísero marinheiro e nunca   respondeu.

29-       Face à AUSÊNCIA de CULPA os arguidos devem ser absolvidos mas se as ;im não se entender e dado que é AUSENTE QUALQUER PROVA NO SENTIDO DE TEREM CONHECIMENTO QUE AS EMBARCAÇÕES TRANSPORTAVAM DROGA, só por manifesto erro poderiam ( poderão) ser condenados; porém, não se entendendo assim, uma pena de 4 anos e 6 meses satisfaz  o desideratum  da Comunidade!

30- Á aplicação da regra de proporcionalidade em qualquer uma dimensão que assuma o processo penal é uma imposição lógica, e uma consequência do direito a um processo justo, que se situa nos antípodas da sujeição a critérios meramente formais em que sob pretextos minimalistas se aniquilam actos e fases processuais que não estão minimamente contaminados por qualquer patologia processual.

31- Todo o desenrolar do processo penal, e a sequência de decisões procedimentais que nele está inscrita, implica uma ponderação da idoneidade, necessidade e da proporcionalidade na decisão do caso concreto.

32-       Pela aplicação do Princípio da Necessidade a entidade vocacionada para aplicar a medida conformada pelo mesmo Princípio deve eleger, entre aquelas medidas que são igualmente aptas para o objectivo pretendido que aquela é mais menos prejudicial para os direitos dos cidadãos, o que in casu não ocorreu e urge reparar neste Alto Tribunal!!!!

Deve ser considerada nula a decisão condenatória em relação aos recorrentes pois a questão da culpa e da convicção íntima do TRL e do Tribunal da Horta não está fundamentada.

Em suma: as penas aplicadas violam o principio do art. 40 do Código Penal.

Qualquer pena face à "prova produzida" é desajustada mas, mesmo que se considere que há culpa a pena nunca poderia exceder os 4 anos e 6 meses atenta as circunstancias pessoais dos arguidos!

Os arguidos devem ser ABSOLVIDOS ou, em última instância, proceder-se ao reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto ou a questões, concretamente identificadas na decisão de reenvio – artº  426° do C.P.P

Foram violados: Artigos 4°, 127, 151, 323, 340, 374, 410, n°s 2 al.s c) e a), 410-2 c) do C.P.P.- Artigos 32°, n°s 1,2 e 5 e 205 da C.R.P.   Art0 6o da C.E.D.H.

Inexiste prova que os arguidos tenham colocada a droga nos botes transportadas pelo Ocean Fregatta!! Esta ausência de prova   impunha   a absolvição do arguido !

Foi violado o art. 127 CPP pois o Tribunal a quo interpretou-o partindo da Presunção de Culpa ao invés de presumir a inocência dos arguidos; o art. 21 DL 15/93, 374 e 379 CPP e art 32 da CRP pois o Tribunal interpretou no sentido de que os arguidos sabiam do transporte da cocaina nos 3 botes , quando na verdade, resulta tão somente das provas produzidas em julgamento que nunca se apurou quem introduziu a draga nos 3 botes e quem era o dono e destinatário e que intervenção tiveram os  arguidos em concreto.

Foi ainda violado o art. 21 DL 15/93 pois as penas são de uma severidade extrema, a roçar o máximo quando o arguido AA está no limite da vida, com 70 anos e o arguido BB é primário e tem quase 40 anos, o que viola o art 40 C.Penal. O Tribunal deveria ter partido da Presunção de Inocência  e ABSOLVER os arguidos.

            III . Os factos julgados provados pelo tribunal colectivo são os seguintes :

            1. No dia 24 de Outubro de 2009, pelas 10.20 horas, a embarcação denominada Ocean Fregatta, deu entrada na marina da cidade da Horta, Faial, onde acostou ao pontão J n.º3, tripulada pelos arguidos AA e BB, o primeiro na qualidade de comandante.

            2. Após a acostagem, durante a manhã desse dia foi efectuada uma inspecção aduaneira pelos Serviços Alfandegários da Horta em colaboração com elementos da Guarda Nacional Republicana, inspecção essa que incidiu sobre toda a documentação dos dois tripulantes e da referida embarcação, bem como sobre os diversos compartimentos interiores, e que terminou sem que fosse detectada qualquer anomalia pelo respectivo responsável aduaneiro.

            3. Após a realização daquela inspecção aduaneira, os agentes da Guarda Nacional Republicana desconfiaram da presença no convés da embarcação Ocean Fregatta, de duas embarcações que ali se encontravam, uma a bombordo e outra a estibordo, que levantaram suspeitas uma vez que as mesmas não tinham a respectiva palamenta e motores.

            4. Tratava-se de duas pequenas embarcações em fibra de vidro com cerca de 2,50 a 3,00 metros, devidamente fixadas a um berço apropriado, ambas cobertas com uma lona e com aspecto de fabrico muito recente, o que fez avolumar as suspeitas.

            5. Através de busca efectuada pelos serviços informáticos da GNR, foi recolhida informação que apontava ambos os arguidos como referenciados por «suspeição de prática de actividades ilícitas e fraudulentas», o que reforçou ainda mais as suspeitas.

            6. Perante tais suspeições, cerca das 15.30 horas, os agentes da Guarda Nacional Republicana da Horta deram início a uma busca ao convés da embarcação Ocean Fregatta, mais precisamente às duas referidas pequenas embarcações em fibra de vidro.

            7. Tal busca, consentida pelo arguido AA, começou com os agentes da GNR a constatarem que cada uma das referidas pequenas embarcações que, em regra, duas pessoas levantariam com facilidade, seis agentes tentaram levantar cada uma delas do respectivo suporte, o que só com grande dificuldade conseguiram.

            8. Foram então, primeiro uma, e depois a outra embarcação, sujeitas a perfuração para determinar o que lhes conferia tanto peso, logo se verificando a existência de uma substância, de cor branca agarrada à broca usada para as perfurar. Essa substância era cocaína.

            9. Face a esta abordagem, foram então desmanteladas ambas as embarcações tendo sido encontrados quinhentos e dez pacotes com forma rectangular, contendo cocaína, com o peso total bruto de 548.227,800 gramas.

            10. O peso líquido total do produto apreendido encontrava-se acondicionado dentro de:

            - 30 embalagens com o peso bruto de 17.650,400 gramas;

            - 480 embalagens com o peso bruto de 530.577,400 gramas.

            11. Os arguidos tinham plena consciência que as duas embarcações de fibra de vidro existentes no convés da embarcação Ocean Fregatta, que ambos tripulavam, acondicionavam e eram usadas para dissimular a cocaína supra referida, da qual eram possuidores a título que não foi possível apurar concretamente.

            12. Os arguidos AA e BB conheciam as características e natureza da substância que lhes foi apreendida.

            13. Os arguidos AA e BB tinham o objectivo de transportar aquela quantidade de estupefaciente, cientes de que a mesma seria posteriormente distribuída por um grande número de consumidores.

            14. Agiram de modo deliberado livre e consciente, conjugando entre si esforços e vontades, na concretização de um plano de transporte marítimo de produto estupefaciente, que sabiam destinar-se à posterior colocação no respectivo «mercado» para venda.

            15. Sabiam que a detenção e o transporte do produto estupefaciente, bem como a sua entrega, a qualquer título, a outra pessoa, não lhes era legalmente permitida.

            16. O arguido AA é reformado da Força Aérea Americana e tem residência em Castelldefels, Barcelona, Espanha.

            17. Este arguido possui diversas contas bancárias, de natureza «poupança» onde efectuou diversos depósitos em numerário.

            18. O arguido AA possuiu pelo menos 09 contas bancárias abertas nos anos de 2003, 2004 e 2005, algumas delas entretanto encerradas, para além de uma conta poupança em divisas (dólares).

            19. Esta abertura de contas bancárias e depósitos em numerário coincidiu com o período em que o arguido realizou viagens transatlânticas entre portos situados no continente Americano e a Europa, com paragem na marina da cidade da Horta.

            20. Das diversas contas que este arguido possui activas, foram feitos múltiplos depósitos em numerário.

            Assim,

            - na caderneta poupança a que corresponde o contrato n.º... (aberta em 07-10-2004 e cancelada em 09-12-2009), o arguido AA efectuou os seguintes depósitos em numerário com o saldo total de 371,440,00 €, assim descriminados:

            - no ano de 2005 - 58.950,00 €;

            - no ano 2006 - 47.400,00 €;

            - no ano de 2007 - 100.590,00 €;

            - no ano de 2008 - 152.000,00 €;

            - no ano de 2009 - €12.500,00 €;

            - na caderneta poupança a que corresponde o contrato n. °... (aberta em 02-02-2005) o arguido AA efectuou os seguintes depósitos em numerário, com o saldo total de 364.510,00 €, assim descriminados:

            - no ano de 2005 - 25.522,00 €;

            - no ano 2006 - 47.200,00 €;

            - no ano de 2007 - 206.466,00 €;

            - no ano de 2008 - 59.850:00 €;

            - no ano de 2009 - 25.472,00 €.

            21. No ano da detenção (ocorrida em 24-10-2009) ocorreu uma queda dos valores depositados em numerário relativamente aos anos anteriores ou seja:

             - em 2005 - depositou 84.472,00 €;

            - em 2006 - depositou 94.600,00 €;

            - em 2007 - depositou 307.056,00 €;

            - em 2008 - depositou 211,850,00 €;

            - em 2009 - depositou 37.972,00 €.

            22. Nos meses de Julho e Agosto do ano de 2007, o arguido AA procedeu a diversas transferências internacionais, no valor total de 65.441,00 €, favor da instituição denominada «BOI BANK CORPORATION (banca on line) e em 08-11-2007, a favor da mesma instituição, agora no valor de 6.928,57 €, e, em 15-11-2007, ainda para a mesma instituição, no valor de 6.952,17 €.

            23. O arguido AA possui ainda um Crédito aberto sob o contrato n.º... (em data que não foi possível apurar) e relativamente a este crédito hipotecário, efectuou as seguintes amortizações, sem contar com o valor das prestações creditícias mensalmente pagas:

            - nos meses de Janeiro e Março de 2005 amortizou de forma antecipada de capital 4.100,00 €;

            - no ano de 2008, amortizou de capital 46.000,00 €.

            24. O arguido AA é proprietário de 95% de três imóveis (um prédio urbano de construção recente (habitação duplex), um estacionamento e uma arrecadação, na localidade de Manresa.

            25. Este arguido possui ainda em seu nome uma viatura marca Audi, modelo A4, de matrícula 6693DGW, de 28- 02-2005.

            26 - O arguido BB, não exercia qualquer actividade remunerada, encontrando-se, à data dos factos, desempregado.

            27. Este arguido é titular das seguintes contas bancárias:

            - Fundo de Investimento "FC 136 Garantido IBEX", com o n.º de contrato ..., relacionado com a conta n.º ..., com um saldo que, no dia 26-04-2010, era de 184.802,14€;

            - Caderneta Poupança a Prazo nº ..., aberta no dia 14-04-2010, relacionada com a conta supra referida, com o saldo actual de 45.000,oo€, que teve vencimento no mês de Maio de 2010.

            28. Nas diversas passagens pela marina da cidade da Horta, a embarcação Ocean Fregata tinha as seguintes proveniências:

            - de Puerto de La Cruz, Venezuela, nos anos de 2002, 2003 e 2005;

            - de Antigua, no ano de 2004;

            - de Panamá, Cólon, no ano de 2007;

            - de St Vincent e Geraldines (e antes desta paragem, do Panamá e Venezuela), no ano de 2009.

            Todas estas viagens tinham como locais de destino a Europa, sendo:

             - Ibiza, Espanha, em 2002;

            - Barcelona, Espanha, em 2004;

            - França, em 2003, 2005 e 2007;

            - Gibraltar, em 2009.

            Em todas estas viagens, encontramos a marina da Horta como porto de passagem      29. Quando aportou na Horta, nos anos de 2002 (Julho), 2003 (Maio), 2004 (Maio), a Ocean Fregatta tinha como tripulante o arguido AA, e em 2005 (Abril) e 2007 (Maio), tinha como tripulantes ambos os arguidos, sendo o arguido AA o comandante.

            30. O arguido AA, desde Setembro de 2007, é proprietário de um lugar de amarração com o n.º 5331 no porto desportivo de Port Ginesta de Barcelona e tem autorizado sucessivamente o arrendamento desse lugar de amarração pela administração do referido porto desportivo a terceiros que pedem para atracar naquele porto.

            31. A embarcação Ocean Fregatta, pertencia à sociedade denominada Ocean Fregata Limited, no entanto, esta sociedade foi declarada dissolvida em 15 de Outubro de 2008, pela Financial Supervision Commission, of Isle of Man Governement.

            32. Desde o ano de 2000 que o arguido AA foi membro regular da tripulação do Ocean Fregatta.

            33. O arguido AA foi detido em 22-11-1991, nos Estados Unidos da América, sendo-lhe imputada a prática de importação de marijuana e foi condenado em 11-05-1992, sendo essa condenação na pena de 97 meses de prisão (08 anos e 01 mês) e em multa de $50 TX ESP, tendo cumprido, pelo menos, 3 anos e 6 meses de prisão.

            34. No dia em que prestou declarações na qualidade processual de arguido, AA, quando questionado sobre os seus antecedentes criminais, e já depois da solene advertência que lhe foi feita pela Mma Juíza de instrução criminal, no sentido de que incorria em responsabilidade criminal por falsidade de depoimento caso faltasse à verdade na resposta a essa pergunta, afirmou que respondeu «há uns 20 anos no Estado da Virgínia porque ajudou a descarregar marijuana tendo sido detido e condenado a 03 anos de prisão».

            O dinheiro encontrado aos arguidos na data da sua detenção era proveniente da actividade que estavam a desenvolver de transporte de cocaína.

            Mais se provou que

            35. O arguido BB não tem antecedentes criminais.

            36. Os arguidos não revelaram arrependimento.

            37. O arguido BB obedecia às ordens do arguido AA, ocorrendo uma situação de ascendente deste em relação àquele.

            38. O arguido AA é licenciado em Economia.

            Ingressou na carreira militar com 21 anos, no ramo da Força Aérea, trabalhando 20 anos nessa área.

            Enquanto militar foi agraciado com vários galardões, não tendo sido possível apurar a sua natureza.

            Após a reforma estabeleceu-se como empresário.

            Em Setembro de 2007, o arguido AA estabeleceu um "contrato de associação" para exploração comercial de desenvolvimento de projectos relacionados com a aplicação de impermeabilizantes, comercialização de equipamentos de perfuração petrolífera, representação de empresas dentro do território da Venezuela, exploração de tecnologias de recuperação petroleiras, sendo a sua participação de 200.000 dólares americanos, pagos em dinheiro.

            Em Maio de 2010, o arguido recebeu 31.933,02 dólares americanos da herança de sua mãe.

            39. Ao nível pessoal estabeleceu três relações maritais, a última das quais com uma cidadã Venezuelana.

            40. Teve três filhos, confrontando-se aos 55 anos com o falecimento do filho mais velho. A mais nova tem 20 anos.

            41. Vem viajando, nomeadamente por mar, por vários países da América e da Europa, nomeadamente tripulando ou comandando embarcações.

            42. Reside em Barcelona com a actual companheira, a qual já o visitou em contexto prisional pelo menos por quatro vezes.

            43. O arguido BB tem habilitações na área da formação de empresas, quando tinha 26 anos, na formação desportiva, quando tinha 28 anos e na actividade náutica, quando tinha 31 anos.

            Ao longo da sua vida experimentou vários trabalhos - desde a restauração, agricultura, comércio, construção civil e tripulante de navios - com mobilidade geográfica - países europeus, africanos, americanos e Austrália - sem que se tivesse integrado em qualquer sistema de segurança social.

            44. Mantém uma relação afectiva próxima e gratificante com a família de origem, tendo sido visitado em contexto prisional pela irmã e a cunhada, que se deslocaram para o efeito à cidade da Horta.

           

IV. Não ficou provado que  :

            1. O valor de mercado do quilograma de cocaína ascende a 30.000,00 €, (€30/grama), pelo que o valor de mercado da totalidade da cocaína apreendida ascende a 16.446.822 e.

            2. Os arguidos tinham o objectivo de vender a cocaína a que se refere a matéria de facto provada, retirando daí enormíssimos proventos, o que concretizaram.

            3. Os arguidos adquiriram a cocaína a que se referem os autos.

            4. O arguido AA nunca exerceu qualquer actividade profissional.

            5. Nenhum dos arguidos exerceu, nos anos de 2002 a 2009, qualquer actividade remunerada.

            6. Todos os bens referidos nos pontos 18, 20, 22, 23, 24, 25 e 27 foram adquiridos pelos arguidos com as vantagens que obtinham do tráfico de estupefacientes que fizeram.

            7. Desde 15 de Outubro de: 2008 que o arguido AA tem usado a embarcação Ocean Fragatta como verdadeiro proprietário e o espaço de amarração que adquiriu foi para ela.

            8. O arguido AA, na data da apreensão ocorrida em 24-10-2009, era o proprietário da embarcação Ocean Fregatta.

            9. Desde 2002 que o arguido AA era o único comandante da Ocean Fregatta.

            10. A condenação do arguido AA a que se refere o ponto 33 da matéria de facto provada ocorreu em 04-11-1992.

            11. O arguido AA esteve efectivamente preso 8 anos, na sequência da condenação a que se refere o ponto 33 da matéria de facto provada.

            12. O arguido AA quis com a sua conduta descrita no ponto 34 da matéria de facto provada, esconder a verdade sobre o seu grave passado criminal, querendo enganar o tribunal e beneficiar do estatuto de alguém que nunca cometera nem fora condenado por crime tão grave, o que bem sabia não ser verdade,

            13. O arguido AA agiu com o propósito de iludir a autoridade sobre a sua história criminal.

            Relativamente à matéria plasmada nos pontos 7, 2º parte, 12, 13, 14, 19 - § 2, 9, 11, 15 (2º parte), 21, § 1, 23 e 25, o Tribunal não respondeu por se tratar, ou de matéria conclusiva ou de Direito ou de repetição de factos.  

V.Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

O arguido BB foi condenado em 1.ª instância como autor material de um crime de tr+afico de estupefacientes , p . e p . pelo art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º -Lei n.º 15/93 , de 22/1 , em 8 anos de prisão , pena que foi confirmada em recurso pela Relação.

Em sede de questão prévia , obstando ao conhecimento do mérito da causa , é de ter presente , como bem sublinhou o M.º P.º , que o art.º 400.º n.º 1 f) , do CPP , na sua versão actual , introduzida pela Lei n.º 48/97 , de 29/8 , com origem na Proposta de Lei n.º 109/X, veio vedar o recurso para o STJ das decisões condenatórias  da Relação , que confirmando o decidido em 1.ª  instância , apliquem pena não superior a 8 anos de prisão .

A dupla conforme mostra-se válido instrumento de realização de celeridade processual sobretudo na zona de pequena e média criminalidade além de exprimir a crença de que a coincidência do decidido  pelo acerto decisório ostentado não justifica mais do que um grau de jurisdição , ou seja um terceiro e um segundo, em sede de recurso , sendo suficiente um .

O direito ao recurso enquanto meio de defesa do arguido não justifica , sequer postula , face ao estatuído no art.º 32.º n.º 1 , da CRP , como objectivo  fundamental do CPP , mais do que o recurso em um grau –cfr. Acs . do TC n.ºs 198 /2011  e 377/03 , de 3.5.2011 e 16.7.2003 , respectivamente .

O TC , em constância jurisprudencial , tem vindo a afirmar que o recurso em mais um  grau para o STJ , deve ser reservado aos casos de maior merecimento penal ( cfr.o AC. n.º 640/2004 , do TC ) não sendo irrazoável , desproporcionado ou arbitrário restringir o recurso a um único grau ; o acesso à Relação constitui já garantia constitucional de defesa ( cfr. Acs . do TC n.ºs 32/2006 , 20/2007 , 424/2009 , 49/2003 , 255/2005 , 487/2006  e 682 /2006 ) .

A dupla conforme é tanto a total como a parcial , “ in mellius “ , ou seja nos casos em que o tribunal de recurso reduz a pena , dizendo este STJ , quase “ una voce “ , que não deixa de haver confirmação nos casos em que, “ in mellius”, a Relação reduz a pena: até ao ponto em que a condenação posterior elimina o excesso resulta a confirmação da anterior –cfr. Acs. de  12-03-2008 , Proc. n.º 130/08 - 3.ª Secção, 23-04-2008 , Proc. n.º 810/08 - 3.ª Secção ,  10-09-2008 , Proc. n.º 1666/08 - 3.ª Secção , 11.3.2004 , CJ , STJ , I , 2004 , 224 , na esteira do de 16.1.2003 , P.º n.º 41908 /03 , da 5.ª Secção , de 3.11.2004 , in CJ , STJ , Ano XII , TIII , pág. 222, de 25.10.2007 , P.º 3283/07 , 10.1.08, P.º n.º 3180/07, de 8.5.2008 , P.º n.º 1515/08 , 25.3.2009 , in CJ , 20009 , STJ , Ano XVII,  II , 236 e os proferido em data recente nos Rec.ºs   nºs  1015/07.3PULSB.L1 e 1081/09.7IAPRT.S1, desta 3 .ª Secção .

O TC  , por decisão sumária sua , muito recente , n.º 600/2011 , de 9.11.2011 , P.º 800/2011 , declarou  e fez questão de sublinhar , expressamente , ser jurisprudência uniforme sua que não é inconstitucional a interpretação da norma do art.º 400.º n.º 1 f) , do CPP , no sentido de não admitir  recurso para o STJ da decisão da Relação , que aplicando pena de prisão não superior a 8 anos, reduz a pena aplicada em 1.ª instância , precisamente porque o direito de defesa do arguido se mostra salvaguardado .

Neste mesmo sentido , cfr. , ainda , o AC. do TC n.º 385/2011 , P.º n.º 470/2011 , de 27.7.2011 .

VI . Por todo o exposto se conclui que,  tendo sido o arguido condenado na Relação em pena de 8 anos prisão , reduzindo-a a aplicada em 1.ª instância ,  mas ainda confirmativa daquela,  visto o disposto no art.º 400.º n.º 1 f) , do CPP , estava vedado ao arguido interpõr recurso .

Nestes temos por ser legalmente irrecorrível o AC . da Relação , nessa parte , se não admite o recurso interposto pelo arguido BB , para este STJ , rejeitando-se .

VII . Conhecendo , agora , do recurso interposto pelo arguido AA, dedicando espaço de análise à invocada violação do art.º 6.º , da CEDH , com o fundamento de que o juiz ao receber os autos , após acusação ou pronúncia , e , na sequência , designar dia para julgamento viola o direito do arguido a um processo justo e equitativo .

Recebidos os autos , usando a expressa terminologia do art.º 311.º n.º 1 , do CPP , o presidente do Tribunal , se não tiver havido lugar a instrução , pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais passíveis de afectar o conhecimento do mérito , desde que possa delas conhecer , seguindo –se, não tendo havido lugar a instrução ,  a faculdade de rejeição da acusação ,mas  num condicionalismo muito especial ,ou seja se a considerar manifestamente infundada , podendo,  ainda, não aceitar acusação do M.º P.º ou do assistente se ela representar uma alteração substancial dos factos , nos termos dos n.ºs 2 a) b e 3 a) a d), do CPP .

O juiz,  ao receber os autos para designação de dia para o julgamento, não emite qualquer préjuizo de culpa , influenciando-se com ele , não controla os indícios trazidos ao processo , e daí que lhe não assista o poder de devolver o inquérito ao M.º P.º para acusar por outros crimes ou para  completar os indícios, em face da respectiva  insuficiência que denote  , sendo que o n.º 3 ,  na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98 , de 25/8 , revogou tacitamente a jurisprudência em tal sentido , que caducou , do Ac. deste STJ , n.º 4/93 , de 17.2.93 , in DR , I Série –A , de 26.3.93 , ao esclarecer, clarificando ,  os casos em que a acusação se mostra manifestamente infundada , entre os quais não figura aquela deficiência .

O princípio da acusação , escreve  Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo de Penal , pág. 816 , “ …impõe a inibição deste controle substantivo da acusação pelo juiz do julgamento  “ para evitar a formulação daquele préjuizo de culpa .

Os casos de acusação manifestamente infundada , de que o julgador pode e deve oficiosamente conhecer, sobrepondo-se às nulidades , são excepcionais e repercutem vícios estruturais graves da acusação , agindo aquele em nome e no interesse do arguido sempre que constate a sua  falta de identificação ,  de factos na acusação , indicação dos dispositivos legais aplicáveis, das provas ou a constatação objectiva , sem exame aprofundado , meramente perfunctório ,  de inexistência de crime –als.a) , b) , c) e d) , do n.º 3 , do predito art.º 311.º , do CPP .

E esta limitação do poder do juiz não atenta contra a Constituição pois não há direito constitucional a não ser-se  submetido a julgamento quando se não verifiquem indícios bastantes para constituírem convicção suficiente da prática de um crime ( Acs. do TC n.º 691/98 e 101/2001 )

O TEDH tem interpretado o art.º 6 da CEDH , no sentido de que o direito a um processo justo importa um  triplo sentido : o de igualdade de armas , ou seja de o arguido não ser colocado em posição de substancial desvantagem face ao seu oponente , bem como conhecer as provas e observações oferecidas pela parte contrária ou mesmo por intervenientes imparciais, de direito ao silêncio e à fundamentação da sentença –Cfr. , ainda , Paulo Pinto de Albuquerque , op. cit , págs 811 e 816 .

A postura  do julgador , de controle essencialmente mais formal que substantivo,  e neste caso mesmo assim excepcional e objectivo não envolvendo um préjuízo de culpa , orientando –o para o julgamento num dado sentido, antes eximindo-o a ele,  em condições excepcionais, não prejudica o arguido ; pelo contrário conforma o julgamento num sentido da justiça e do respeito pelos direitos de defesa que a CRP lhe assegura no seu art.º 32.º n.º 1 .

E o que se diz não tendo havido instrução , afirma-se tendo sido emitida pronúncia , em que o formalismo legal a observar é de âmbito  mais simplista , limitando-se ao saneamento do processo , como se extrai do n.º 2 , do art.º 311.º , mas sem que se possa afirmar aquele juízo de convicção prévia ,  funcionando em desfavor do arguido , ou seja com o significado de que o julgador se antecipa à valoração  de provas , só em audiência podendo ser produzidas e aí examinadas  , nos termos do art.º 355.º , do CPP .

Sem razão , pois ,o arguido .

VIII . O arguido AA  defende , agora , que as questões e inconstitucionalidades nas conclusões indicadas sob n°s 3 até 16, 21, 23 e 26  do seu recurso não foram devidamente julgadas pelo Tribunal da Relação Lisboa, o que traduz nulidade do processado.

Uma correcção se impõe desde já : as conclusões estruturantes do  recurso para a  Relação n.ºs 6 , 7, 8 , 9 , 14 , 15, 16 e 21  não fazem apelo a qualquer norma da CRP , que tenha sido desrespeitada , logo não faz sentido o arguido referir-se, quanto a elas, a questões de constitucionalidade

E o  julgamento deficitário apontado traduz omissão de pronúncia , com a consequência da nulidade da sentença, não do processo –art.º 379.º n.º 1 c) , do CPP – a merecer ou não , dir-se-à oportunamente, declaração , por via dos poderes cognitivos deste STJ , que se cingem à matéria de direito , por força do art.º 434.º , do CPP .

IX .O arguido invoca a nulidade de nomeação da intérprete por falta de idoneidade reconhecida de intérprete , por não ser licenciada em tradução , por ofensa ao art.º 15.º , da CRP , que , de resto , não cobra qualquer razão para aplicação ao caso,  ao referir, além do mais ,  que os estrangeiros e apátridas a residirem  em Portugal usufruem dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais .

Já o art.º 92.º n.º 2 , do CPP , em consonância com o art.º 6.º n.º 3 e) , da CEDH , prescreve que à pessoa que tendo de intervir no processo e não conheça ou não domine a língua nacional , é nomeado intérprete idóneo , em caso algum exige que possua uma licenciatura , não sendo esta “ conditio sine qua “ , para a idoneidade pressuposta na lei para o desempenho do cargo .

A sua falta , obrigatória para o arguido , de nacionalidade americana, implica nulidade sanável , nos termos do art.º 120.º n.º 1 c) , do CPP , devendo ser arguida no acto a que o interessado assista e antes que o julgamento estivesse concluído .

Ao arguido AA foi nomeada intérprete para tradução da língua portuguesa em inglesa, em interrogatório e no início do julgamento, nenhuma objecção opondo ao seu desempenho, para o qual foi ajuramentada , recusando-a nos termos do art.º 153 .º n.º2 , do CPP , o que não fez .

Se , pois , por hipótese , quer a tradução em audiência quer antes da acusação em língua inglesa , apresentassem defeitos , o vício,  com menor dignidade do que a falta de nomeação de intérprete ou de tradução documental , configurando , por isso , mera irregularidade , estaria sanado , nos precisos termos do art.º 123.º n.º 1 , do CPP , pela sua não arguição no momento da prática do acto , o que o arguido não fez , pelo que se desatende à arguição indevida da nulidade .

Mas a sem razão do arguido chega a ser chocante , há que significar-lho, pois se trata de uma cidadã com dupla nacionalidade , luso-canadiana , residente no Canadá 27 anos , portadora , além do mais , de uma licenciatura em Línguas Modernas ( inglês e português ) e de um currículo pessoal e profissional notável como docente de inglês e não só –fls 2744 a 2747-,merecendo , até , o seu desempenho rasgado elogio pelo  tribunal, contrariando de forma frontal a alegação .

XI.O arguido invoca , ainda , a nulidade da busca a bordo da  embarcação Ocean Fregatta , pois que o arguido AA é americano, não foi informado dos direitos e deveres nem lhe foi entregue por escrito despacho prévio a consentir / ordenar a busca, pelo que foi violado o disposto nos arts. 174, 175 e   176 do CPP e nulos são todos os actos daí decorrentes.

A busca deve ser autorizada por despacho da autoridade judiciária competente  formalidade dispensada  no caso , desde logo , de criminalidade altamente organizada , em que se insere o tráfico de estupefacientes à data indiciado- art.º 1 m ) , do CPP , devendo , posteriormente ser validada pelo juiz de instrução , ou desde que o visado consinta na realização de tal meio de obtenção de prova , ficando documentada a autorização  –art.º 174.º n.ºs 3 , 5 a)  e b) , do CPP .

A entrega de cópia do despacho judicial autorizando a busca , e previamente à diligência , é dispensada , por força do art.º 176.º n.º 1 , do CPP , em caso de cometimento de algum dos crimes enunciados na al.a ) do n.º 5 , do  précitado art.º 174.º , do CPP , ou consentindo o visado naquela , desde que fique documentada a autorização –al.b) do n.º 5 , do art.º 174.º , do CPP .

Visado com a diligência é aquele que ocupa o lugar e o utiliza para um fim reputado  ilícito pela autoridade judiciária , in casu o arguido AA , comandante da embarcação , que prestou consentimento, assinando ,  exarado em documento redigido , simultaneamente ,  em língua portuguesa e inglesa , em 24.10.2009 , na busca aos botes  acondicionados na embarcação –cfr . fls . 8

Já quanto realizada no interior da embarcação, a mesma foi ordenada pelo M.mo Juiz, conforme mandados a fls. 144, datados de 29 de Outubro de 2009, tendo sido cumpridos na presença do arguido AA  consignando-se no auto de busca e apreensão  lavrado , que , como dele consta , foi lido e traduzido em língua inglesa ao arguido , que o assinou , consentindo , tendo sido validadas, posteriormente,  todas as apreensões efectuadas pelas  autoridades policiais intervenientes , como figura no despacho de fls . 152.

A tradução em língua inglesa dos autos , na língua da nacionalidade do arguido AA , assegura a compreensão do alcance das buscas  e salvaguarda os direitos a preservar quanto ao  arguido , que , de resto ,consentindo  nelas, torna incompreensível a invocação da nulidade por inobservância da lei , acatada com rigor .

XII.O acórdão , aponta o arguido , não contêm exame crítico e inexiste fundamentação concreta,  limitando-se o Tribunal “ a quo “ a meras suposições sem assentimento em provas inequívocas  , directas , tais como a resposta concreta às questões vertidas na conclusão 26.ª   do recurso para a Relação .

A crescente “ complexidade e opacidade “ -nas palavras de Euclides Simões , in “ Prova Indiciária , Contributos para o seu Estudo e Desenvolvimento publicado na Revista Julgar , 2007 , n.º 2 , 205 – de certo tipo de comportamento criminal , particularmente no ligado ao tráfico de droga e branqueamento de capitais , exige cada vez mais a ultrapassagem , segundo aquele autor , “ dos rígidos cânones de apreciação da prova , que leve descomplexadamente à assunção de critérios de prova indirecta , indiciária ou por presunções ( circunstancial , preferem outros ) , como factores válidos de superação do princípio da presunção de inocência “

Essa prova é tão válida como qualquer outra , quando partindo de facto provado , circunstância indiciante , se alcança , através de máximas da experiência ou científica , a existência de um facto histórico a provar ; a regra da experiência exprime o que ocorre na maior parte dos casos ( id quod plerumque accidit ) ; nos casos semelhantes é semelhante o comportamento humano ( cfr. Paolo Tonini , La Prova Penale , CEDAM , pág. 15 . Milão , 1999 )

O indício apresenta grande importância , já que nem sempre se tem acesso , à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então ante a realidade do facto criminoso , é forçoso usar indícios , com o esforço jurídico intelectual necessário antes que se gere a impunidade , isto na esteira de Carlos Climent Durán , in La Prueba Penal , 1999 , págs 575 a 696, citando Preto Castro Y Fernandiz e Gutierrez de Cabiedes .

Quem comete um crime tem tendência a ocultar intencionalmente o segredo da sua actuação , pelo que é frequente a ausência de prova . Exigir a todo o transe que provas directas , por apreensão sensorial dos factos , implicaria um fracasso do processo penal , ou , para obstar a tal facto e consequência , o recurso à confissão e ao que constitui o núcleo central e notório da prova taxada e o seu máximo expoente : a tortura –JM Asencio Mellado , in Presunción de Inocência y Prueba Indiciário , 1992 582 , apud Carlos Climent Durán.

O indício é , pois , um facto que , embora não demonstrando , per se , isoladamente , a existência histórica do facto a provar , evidencia , demonstra factos que  , de acordo com a lógica das coisas e as regras da experiência da vida , proporcionam extrair ilações quanto ao facto que se visa demonstrar; o indício é um facto oculto ( cfr. Paulo Saragoça da Matta, in A Livre Apreciação da Prova , Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais , FDUL , Almedina , Ano 2004 , 227),  que será tanto mais seguro quanto menores ilações alternativas permita , logrando vencer o vazio probatório e arredar a presunção de inocência que , com ele se articula

Em Espanha ( como nos EUA)  onde se faz largo uso de tal meio de prova , exige a jurisprudência para validade do indício os seguintes  pressupostos :

De carácter formal : a sua expressão na sentença em factos –base , plenamente comprovados , que vão servir de apoio à dedução ou inferência , a afirmação do raciocínio através do qual se chegou à convicção da verificação do facto punível e da participação do acusado nele ; no plano substancial não se dispensa a plena comprovação dos factos indiciários por prova directa , de inequívoca natureza acusatória , devendo aqueles ser plurais ou únicos , mas , então  , de especial força probatória , contemporâneos do facto , sendo vários devem estar interligados de modo a que se reforcem mutuamente .

Quanto ao juízo de inferência é imperioso que seja razoável , que não seja arbitrário , absurdo , infundado , respondendo às leis da lógica e da experiência  e que os factos provados surjam como conclusão natural , existindo entre os factos provados um nexo directo , preciso e conciso segundo as regras do critério humano .

A prova directa dos factos praticados pelas redes clandestinas de traficantes de droga e de branqueamento de capitais é , devido ao hermetismo com que actuam , viabilizada pela enorme capacidade de camuflagem de que se revestem , praticamente inviável , por isso a prova indiciária ou indirecta desempenha capital valor e não é proibida pela Convenção de Viena contra  Droga de 1988 , escreveu-se na decisão do Supremo Tribunal de Espanha , n.º 560/2005 , de 19.5.2006 .

E esta dificuldade de obtenção de prova directa foi acentuada e sentida pelo tribunal de 1.ª instância que , ante a alegação de desconhecimento de transporte de heroína na embarcação , comandada pelo arguido AA e de que era tripulante o arguido EE , fez claro uso da prova por indícios , para , a final , lhes imputar a co-autoria material do crime, para tanto socorrendo –se de um avultado elenco de fatos provados , descrevendo-os e ordenando-os assim :

-a grande experiência que os arguidos possuem em matéria de barcos e navegação;

            - o facto de terem feito a viagem numa época do ano em que não são usuais tais travessias transatlânticas, face às condições atmosféricas adversas que ocorrem no percurso e que exigem muito dos barcos e dos tripulantes;

            - o facto de a embarcação Ocean Fregatta estar munida com três botes, quando necessitava apenas de um, quanto muito, dois;

            - o facto de os botes em causa não serem possuidores da respectiva palamenta, sendo certo que o terceiro bote - tipo Zebro - que se encontrava na Ocean Fragatta possuía toda a sua palamenta e estava apto a exercer as suas funções de apoio à embarcação;

            - o facto de os arguidos aquando da fiscalização não terem apresentado a palamenta ( motor e remos , adiantamos ) dos botes, afirmando desconhecimento quanto a esta matéria, sem qualquer explicação plausível para a presença dos mesmos no convés do Ocean Fragatta;

            - o facto destas embarcações, manifestamente, para qualquer pessoa, ainda que não familiarizada com o transporte nas mesmas e ainda que desconhecedora da sua configuração, apresentarem um aspecto interior que não era minimamente compatível com qualquer embarcação que se destine a transportar pessoas (o que os arguidos não podiam deixar de constatar);

            - o facto de os botes estarem acondicionados, de forma adaptada, sobre as escotilhas, não permitindo a sua abertura, situação a todos os títulos anómala;

            - o facto de os botes conterem lonas e cintas novas, e estas particularmente fortes, que não se justificariam em situação de suporte de um bote com o seu peso normal;

            - o facto de ambos os arguidos terem falseado a verdade  quando ao transporte de botes desta natureza, noutras ocasiões em que o Ocean Fragatta aportou na Horta e em que eram tripulantes dessa embarcação, situação que foi confirmada por prova documental;

            - o facto de ambos os arguidos serem homens experientes, nomeadamente nas rotas, que são bem conhecidas dos Tribunais, de tráfico de estupefacientes, provenientes da América com destino à Europa, tendo, aliás, o arguido AA uma experiência de prisão devido a uma situação de tráfico.

Assim, ilacionou o Colectivo, transcreve-se , “  à luz das regras da experiência, que nos dizem, por um lado, que perante a detecção de produto estupefaciente em circunstâncias similares às dos autos, os agentes negam o conhecimento dessa situação e, por outro lado, que não é verosímil que alguém coloque 500 Kg de cocaína no convés de um barco, no interior de dois botes, sem o dizer aos dois tripulantes da embarcação, correndo o risco de os botes, por alguma razão, serem lançados ao mar e perder-se a carga, ou de os tripulantes descobrirem o seu conteúdo e apoderarem-se dessa carga valiosa, não pode o Tribunal deixar de concluir, com um elevadíssimo grau de probabilidade, a raiar a certeza, o que justifica a condenação, que os arguidos eram perfeitamente conhecedores da cocaína que transportavam e que queriam transportar . “

 Esses indícios apresentam-se graves , com o significado de resistentes a objecções , precisos, por insusceptíveis de outra interpretação , concordes por convergentes na mesma conclusão, para , no uso do poder de livre de apreciação da prova pelo colectivo , conjuntamente com os demais elementos objectivos obtidos através de prova directa , firmarem uma convicção oposta à que os arguidos pretendiam fazer prevalecer, declarando que os dois botes a bordo da embarcação eram transportados , pura e simplesmente , a fim de serem apetrechados com motores e remos ( palamenta ) .

XIII . No âmbito dos poderes de sindicância deste STJ enquanto tribunal de revista não cabe o de censurar os factos materiais e históricos , facta probanda ,  a que a utilização dos meios de prova e sua obtenção , pelos órgãos aplicadores da lei,  conduz , em sua livre convicção e valoração, apenas neles se incluindo o de controlar a sua conformidade à lei , se cabem no elenco da prova ou meio de prova por ela consentidos e a correcta aplicação , vista a disciplina a que a lei os sujeita ( art.ºs 128.º e segs. do CPP) , que deles se faz, por respeitarem a regras de direito .

Está vinculado , assim , esse STJ a acatar os factos materiais em que se traduzem os indícios e as conclusões factuais a que , integradamente com outros , são conducentes .

XIV. O arguido , reiteradamente faz o reparo de que o tribunal presumiu a sua culpa e afastou a presunção de inocência de que goza , nos termos do art.º 32.º n.º 5 , do CPP .

Esta regra de tratamento penal significa que o acusado não deva ser assimilado ao culpado se não a partir do momento da condenação definitiva , até ao qual se presume inocente , não tendo essa presunção o sentido técnico-jurídico enunciado nos termos do art.º 349.º , do CC..

A presunção de inocência incorpora um comando dirigido ao julgador no sentido de impor que as normas penais não consagrem presunções de culpa relativamente ao arguido e nem  um  ónus de prova a seu cargo para ser absolvido , beneficiando  de um estado de dúvida razoável instalado no processo, além de dever ser tratado como autêntico sujeito processual e não como mero objecto , um simples contraditor , em igualdade de armas .

Mas desse estatuto  não deixa de decorrer que o arguido tenha todo o interesse em contradizer a acusação , em ordem a evitar que a presunção de inocência  seja ilidida ,ou que , num sistema processual inquisitório mitigado como o nosso , o tribunal deixe de elevar, oficiosamente , a cabo  as diligências que julgue imprescindíveis à descoberta da verdade – art.º 340.º n.º1 . do CPP -e nem que o M.º P.º , enquanto sujeito a um estatuto de objectividade , deixe de suportar as consequências da incapacidade de prova .

A alegação de que se presumiu a culpa do arguido é manifestamente infundada , infundada , desde logo , porque não basta o tribunal não acatar a versão do arguido , para  desde logo o arguido estar legitimado a poder afirmar , como este faz , que se violou a presunção de inocência e presumiu a culpa , porque a culpa não se presume legalmente em processo penal , sendoas presunções legais de culpa proibidas , o que não obsta a que o tribunal a partir da comprovação de certos factos possa fazer inferir e comprovar outros seu derivado lógico,  em consonância  com as regras da experiência e da vida , mas essas são simples presunções naturais , que não são incompatíveis, suposto que rodeadas das cautelas na análise dos indícios em que fundam ,  como tivemos oportunidade de explanar , nem com a presunção de inocência e nem com o princípio in dubio pro reo , que com aquele se articula .

O princípio da presunção da inocência , numa primeira evidência , situa-se em sede de matéria de facto

O tribunal fundou a condenação do recorrente não em presunção de culpa , mas num abundante  elenco de provas directas e indirectas entre as quais avultam a prova por declarações , a testemunhal e a documental e meios de obtenção prova , como o exame , a busca e a apreensão , valorando–as segundo as regras da experiência e a livre convicção probatória , nos termos do art.º 127.º, do CPP . 

Certamente que não exigiu  um  grau de absoluta certeza em cada inferência que faz do facto indiciante como ligação ao facto indiciado. Mas e como corroborado pela totalidade dos Autores que se debruçaram sobe esta matéria, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza

Daí não deriva, porém , que o tenha feito e fixado os factos comprovados de uma maneira arbitrária , puramente subjectiva e emocional , logo imotivável, só uma apreciação dessa dimensão apontando para uma interpretação do art.º 127.º , do CPP, afrontando o art.º 32.º n.º 1,  da CRP.

Como afirma Marieta, corroborado pela totalidade dos Autores que se debruçaram sobre esta matéria, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza. –cfr. Santos Cabral , in A Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade ,  estudo ainda inédito, pág. 13 .

Todavia, a transposição da soma de probabilidades que dá a convergência dos factos indiciados para a certeza sobre o facto, ou factos probandos, que consubstanciam a responsabilidade criminal do agente , é uma operação em que a lógica se interliga com o domínio da livre convicção do juiz.

XV . A livre apreciação da prova há-de traduzir-se numa apreciação racional e crítica , de acordo com as regras comuns da lógica , da razão , das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos , que sirvam  ao julgador de fundamento, de motivação ,  à decisão , capazes de explicitar,  de maneira lógico –racional, o percurso decisório , só assim convencendo os destinatários directos da decisão e prestando contas à comunidade mais vasta de cidadãos, interessados como estão na bondade da decisão , não tolerando decisões arbitrárias ou caprichosas , nessa medida se afirmando que  o princípio da livre convicção probatória é inteiramente conforme à Constituição ( cfr. Acs . do TC n.ºs 1195/96 e 248/2009 ; é direito constitucional materialmente concretizado –Cfr.Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo Penal , pág. 345.

E também não se colhe do teor do acórdão de 1.ª instância que , valorando , indevidamente os factos , devendo ter concluido , como corolário lógico da presunção inocência de que o recorrente goza , pela verificação de um estado de dúvida , razoavelmente fundada e insuperável,  haja decidido contra o arguido , em inconsideração com o princípio in dubio pro reo , que é , essencialmente , um princípio relacionado com a matéria da prova , em princípio estranho à censura do STJ , enquanto tribunal de revista .

O STJ apenas pode sindicar o uso desse  princípio quando da sentença resultar que o tribunal chegou a um estado de dúvida e não a declarou “ in malam partem “  ou quando esse estado de dúvida não foi declarado por via de manifesto erro notório na apreciação da prova, visível a partir do texto da decisão recorrida , nos termos do art.º 410.º n.º 2 c) , do CPP.

Numa concepção mais ampla da cognoscibilidade do princípio , mas minoritária , este é situado como princípio geral de direito processual penal , cujo controle deve processar-se no STJ , enquanto aplicação de uma regra de decisão , servindo de  controle não às dúvidas que o recorrente teve sobre a matéria de facto mas do procedimento que o Tribunal teve sobre a matéria de facto –cfr. Prof. Figueiredo  Dias , Direito Processual Penal , I ; 1974 , 217 e Paulo Pinto de Albuquerque , Comentário ao Código de Processo Penal , pág. 357 e Ac. do STJ , de 16.5.2007 , CJ , STJ , Ano XV, TII , 182 .

XVI. O arguido observa , ainda , que , com preterição do  seu direito de defesa  e do princípio do dever de indagação oficiosa  dos factos , o julgador não efectuou oficiosamente  diligências tendentes à descoberta da verdade sobre a propriedade da embarcação , que o arguido negou ser sua , além de que afirmou que os botes já estavam lá colocados quando chegou à Venezuela, nada de anormal aí denotando .

O Tribunal é o verdadeiro árbitro sobre a necessidade de efectivação e produção dos meios de prova cujo conhecimento se afigure necessária à descoberta da verdade e à boa  decisão da causa , nos termos do art.º 340.º n.º 1 , do CPP , sejam elas de sua iniciativa sejam a requerimento dos sujeitos processuais .

O tribunal concluiu que a embarcação não era propriedade do arguido , não estando demonstrado quem era a sua proprietária e que nos dois botes estava acondicionados 548,227800 Kgs de cocaína  . mas isso não autoriza a concluir que o tribunal não tivesse levado a cabo diligências noutro sentido , que se não apurou , porque as provas se não produziram ante este STJ que não teve imediação , uma relação proximal , de contacto imediato , com elas   , ignorando o modo como se procedeu ao julgamento , além de que se o recorrente entendia que o tribunal devia ter efectuado mais diligências , que não especifica , restava  tê-las requerido e se visse indeferido o requerido , interpõr recurso no momento , só a si sendo de lhe imputar a , aliás ,  indemonstrada posição acomodatícia do julgador

XVII. O arguido sustenta a nulidade do acórdão de 1.ª instância , homologado pela Relação , por falta de fundamentação dos pontos de facto provados n.ºs 11, 12 , 13, 14 e 15, onde figura que os arguidos tinham plena consciência e eram conhecedores de que as duas embarcações de fibra localizados no convés do Ocean Fragatta, acondicionavam e eram usadas para dissimular a cocaína supra referida, da qual eram possuidores a título que não foi possível apurar concretamente , estupefaciente que se propunham , voluntária e livremente transportar , bem cientes de que a mesma seria posteriormente distribuída por um grande número de consumidores , sendo contrário à lei esse procedimento .

O juiz que decide a matéria de facto é o último , definitivo e mais importante , na expressiva linguagem de Michele Taruffo , in Narrativas Processuais ,  R e v . Julgar ,  Ano 2011 , Janeiro –Abril , 131/132 , narrador no âmbito do processo .

A sua principal função é a de estabelecer qual das narrativas é a relativamente “ melhor “, escolhendo uma das histórias já narradas ou construindo uma outra original , se não estiver convencido da apresentada pelas partes .

Ela , enquanto vertida na sentença , é um acto locutório assertivo , neutral e por fim verdadeira , porque as provas demonstram ao julgador que é verdadeira .

A sentença , segundo o modelo paradigmático do art.º 374.º n.º 2 , do CPP, consta  dessa narrativa , condensada na fundamentação , de facto e de direito ,  especificando  os factos provados e não provados , com o propósito de assegurar que todos os factos resultantes da acusação e da defesa e emergentes da decisão da causa foram objecto de apreciação,  bem como de uma exposição , tanto possível completa , ainda que concisa das razões de facto e de direito que fundamentam a decisão , seguindo um exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção.

Essa motivação é o resultado da livre apreciação da prova , que sem limitar o juiz o corresponsabiliza , levando a um “ salutar autocontrole “ ( cfr.  Sérgio Poças , Da Sentença Penal , Fundamentação de Facto , Rev. Julgar , Setembro –Dezembro de 2007 , T3 , pág. 35 ) , da legalidade e justiça das provas , explicitando às partes e ao Tribunal de recurso as suas razões decisórias , concorrendo para a celeridade processual, bem como à comunidade as razões da decisão .

O exame crítico das provas é , em resultado de um juízo apriorístico sobre o seu valor ,

o pressuposto de formulação de uma relação de igualdade entre elas  ou hierárquica, a fundamentar o porquê de umas merecerem o mesmo valor ou valor  superior  a outras , conducente ao seu detrimento,  na formação da convicção probatória , levando , ainda ao conhecimento das provas que foram apreciadas , para , a final , se conhecer o processo lógico-racional , em globo , seguido pelo juiz

Sobre o segmento factual que o arguido tem por infundamentado , acima referenciado,  o Colectivo de 1.ª instância  isolou o seu tratamento no acórdão , subordinando-o -cfr. fls . 1946 e segs . –à seguinte epígrafe “” Quanto à existência de cocaína a bordo do Ocean Fragatta , transportada pelos arguidos de modo voluntário e consciente “ , dedicando –lhe um espaço alongado na descrição das provas , examinando-as e criticando-as .

Essas provas  são , desde logo , as declarações dos arguidos , negando a autoria dos factos incriminatórios , limitando-se a exarar  que procederam ao transporte intercontinental , a partir da Venezuela , da embarcação com destino a Gibraltar onde seria entregue , com inteiro desconhecimento do transporte do produto estupefaciente , nos dois botes , devidamente amarrados , que , segundo eles eram trazidos para palamenta , ou seja aposição de motores e remos , na Europa

Do conjunto das restantes , em sentido contrário , avultam ( e não só )  os depoimentos de agentes de autoridade –GNR-, particularmente os cabos N...P... e C...A... , muito experientes na fiscalização de embarcações , fazendo parte de uma equipe especializada nesse domínio  tornando-se suspeitos os botes , sem palamenta , ou seja remos e motores , como suspeitos de tráfico eram os dois arguidos e que já noutra altura haviam acostado ao porto da Horta

A partir daqueles depoimentos que foram havidos como globalmente muito  credíveis , descredenciaram-se as declarações dos arguidos , e possibilitando os factos provados  a prova de outros factos , por inferência lógica , teve-se por contrária , no exame crítico optando pela versão daqueles , a versão dos arguidos , em contrário das regras da lógica e da experiência comum .

As cobertas e as cintas dos dois botes apresentavam-se como novas , não possibilitavam que ninguém se sentasse nelas em segurança , , os seus apoios que lhes servem de berço  tinham sido executados sobre as escotilhas , impossíveis de abrir , a droga surtiu à sua perfuração com uma broca , sem que os arguidos denotassem qualquer “ espanto , nem indignação “ no transporte detectado , aliás  efectuado em condições fora de época normal em viagens transatlânticas , e que é entre Maio e o fim de Junho , frisando a Relação a adaptação dos botes a esse tipo de transporte e o conhecimento pleno dessas condições por parte dos arguidos , a fls . 2828/2829

A Relação que , encontrando deficiência na conformação da específica impugnação da prova , à luz do art.º 412.º n.ºs 3 e 4 , do CPP , acabou  , ainda assim , por ouvir a prova gravada  em julgamento , ou seja as declarações e inquirições , acabando  por frisar que o colectivo não teve dúvidas em decidir como decidiu, sancionando a absoluta desnecessidade de em 1.ª instância  , ex officio , se proceder a uma indagação de novos factos , como se proclama na 13.ª conclusão , tão suficiente se lhe deparou o universo factual recolhido em moldes de fundar responsabilidade penal de ambos os arguidos

Sublinhe-se que não sendo órgão de polícia criminal,  H...S... , mas a viver na Horta , num iate da marina , relatou que “ …qualquer comandante de uma embarcação  antes de sair para o mar verifica se tudo dentro dessa embarcação está em perfeitas condições , nomeadamente de segurança e esta inspecção abrange as embarcações de apoio ou outras que se encontram dentro do barco que vai tripular , verificando nomeadamente se não estão peças soltas que se possam tornar perigosas ou perder “, reforçando a tese acolhida pelo colectivo.

É erróneo declarar-se , como o faz o arguido , que o Colectivo não fundamentou e procedeu ao exame crítico das provas no sentido,  acolhido , de resto,  no art.º 646.º , do CPP italiano , que serviu de fonte ao art.º 374.º nº 2 , do nosso CPP ,  e que se reconduz à afirmação das razões porque certas provas são elegíveis aos olhos de julgador e outras não

Errónea, e , por isso irrelevante , a consideração de que a não valoração das declarações dos arguidos com um sentido e alcance que não mereceu atendibilidade ao colectivo , decidindo em sentido oposto , integra erro notório na apreciação da prova, vício inerente à confecção da matéria de facto apurada , visível pela simples leitura da decisão recorrida , mas  cujo conhecimento se esgota no Tribunal da Relação , estando vedado ao recorrente erigi-lo em fundamento de recurso , sem embargo de o STJ para bem decidir de direito , como tribunal de revista que é , o poder afirmar oficiosamente , mas , ainda assim , mantendo-se dentro da sua reserva de tribunal de revista , porque a decisão de direito repousa numa boa decisão de facto .

A diferente valoração dos factos não traduz , só porque o recorrente assim o entende e qualifica , erro notório na apreciação da prova , nos termos do art.º 410.º n.º 2 c) , do CPP , vício decisório grave , no plano factual , impeditivo de bem se decidir , que há-de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou em conjugação com as regras da experiência e da vida ,  arranca , diferentemente , de uma valoração arbitrária, ilógica ou irracionalmente declarada  ou negligentemente expressa da prova , facilmente apreensível ao cidadão comum ( ou segundo Sousa e Brito ao juiz normal,  minimamente preparado para julgar , em termos de cultura  e experiência , desde que segura a sua existência e verificação –Cfr. Ac. deste STJ , de 30.1.202 , P.º n.º 3264/01 -3.ª Sec)  por isso que , como corpúsculo estranho , não pode manter-se , por abalar, viciando , grosseiramente , a validade e a coerência das premissas decisórias .

O tribunal colectivo foi preciso e conciso  na sua falta de dúvidas em termos decisão e rumo condenatório imprimido , apoiando-se em factos , dentro dos limites  e suporte nas provas , que lhe permitiram superar quaisquer dúvidas e afirmar a culpa real e efectiva do arguido ,  sem a presumir,  apoiando-a em suporte factual real .

Por seu turno o Tribunal da Relação conheceu , ampla e acertadamente , de todas as questões suscitadas pelo recorrente , inclusive as conformidade constitucional , vertidas nas conclusões n.ºs 3 e 4 , dedicadas à idoneidade da tradutora –intérprete , 5  alegando violação da presunção de inocência dos arguidos , em ofensa ao art.º 32.º , da CRP , 10. , consignando que houve erro notório e violação do princípio in dubio por inconsideração do estado de dúvida em ofensa ao art.º citado 32.º , da CRP , 11, afirmando apreciação arbitrária da prova em lesão do princípio da presunção , 12., frisando desatenção às declarações dos arguidos , negando o crime , violando o art.º 32.º n.ºs 1 e 5 , da CRP , 13 , chamando a atenção para o dever de indagação oficiosa de factos atinentes à colocação dos botes na embarcação , 23, onde sustenta que a interpretação dos depoimentos e das declarações dos arguido, conduz à declaração de inconstitucionalidade do art.º 127.º , do CPP com referência ao art.º 32.º n.º 1 , da CRP e 26. por falta de exame crítico da provas , limitando-se o tribunal a condenar com base em simples suspeições .

XVIII. O arguido controverte a qualificação jurídica dos factos em termos de não ser uma tentativa abortada de transporte que o faz incorrer em crime de tráfico de estupefacientes , à luz do art.º 21.º , do Dec.º Lei n.º 15/93 , de 22/1

Mas o mero transporte , ainda que o estupefaciente haja sido impedido de chegar ao seu destino, não deixa de ser já integrante do tipo de crime de tráfico de estupefacientes e um seu elemento constitutivo , independentememte  de o resultado final se não ter consumado, porque estamos em presença de um crime de perigo abstracto  em que , vista a grandeza dos bens jurídicos em perigo , o legislador sentiu a necessidade de antecipar a incriminação , a tutela jurídica , a momentos anteriores ao resultado final , estabelecendo uma malha legal suficiente alargada no descritivo típico , no art.º 21.º citado , para que fiquem sem punição um vasto leque de comportamentos .

Os crimes de perigo consumam-se com a exposição ao risco de lesão ; essa exposição é já aos olhos do legislador razão para protecção penal .

O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se naquilo a que a dogmática alemã apelida de crime exaurido , ou de empreendimento , em que a incriminação da conduta do agente se esgota logo nos primeiros actos de execução , independentemente de consistirem numa execução completa , em que a repetição dos actos é ou pode ser imputada à acção inicial

Nele o resultado típico é obtido pela realização da conduta inicial da acção , ilícita típica , de modo que a continuação da mesma , cada actuação do agente no crime exaurido  importa comissão do tipo legal ; o conjunto de acções típicas reconduz-se à comissão do mesmo tipo , integrando-se tais actos , ainda que isolados, numa realidade única , em obediência a uma mesma resolução criminosa

O crime considera-se já consumado então , porque o bem jurídico já foi violado ; in casu uma espiral humana , sem rosto , corre o risco  de ser lesada .

Daí a a sem razão da crítica à incriminação adoptada pelas instâncias

XIX. Resta , agora , a medida concreta da pena :

A medida concreta da pena é função da culpa e prevenção –art.º 71.º do CP ; a pena , na sua formulação em abstracto , propõe-se a tutela dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade –art.º 40.º n.º 1 , do CP .

O processo de medida da pena concreta da pena é um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico penal em matéria de sentido , limites e finalidades da aplicação das penas

A prevenção , enquanto princípio regulativo da medida judicial ( cfr. Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 216 ) , , significa prevenção geral , por um lado , e especial , por outro , reportadas ao preciso momento do julgamento , enquanto a culpa ao momento do facto .

A culpa funciona como limite inultrapassável da pena quais quer que sejam as razões de prevenção geral ou especial , actuando aquela como moldura de topo e as demais como submolduras .

A prevenção geral está ligada ao fim público da pena , de instrumento de contenção de crimes em geral , de exemplo para os demais cidadãos; a pena na sua função pública  afirmar a força da lei junto de  quem se proponha delinquir   e cujos impulsos importa neutralizar  na defesa do interesse comunitário , a prevenção especial contende e tem a ver como o condenado , encarado não como mero objecto , mas como pessoa, não votado ao abandono simplesmente porque delinquiu, havendo que instilar-se-lhe um quadro valorativo de aceitação e exigência comunitária .

Num passado remoto a pena era a medida , por vezes ilimitada , da vingança ante o mal causado , variando , por vezes , em função dos costumes , natureza do crime e do “ status “ do condenado , só na Idade Média , por influência do catolicismo , surge como verdadeira sanção , a fim de proporcionar tempo de interiorização , reflexão ao condenado e modo de reparação do dano .

Em Becaria a pena justa precisa , apenas , de ter o rigor bastante para afastar os homens da senda do crime , desempenhando a função de reprovação e de prevenção do crime .

O nosso CP consagra no art.º 41 .º ,n.º 1 ,  uma concepção utilitarista da pena , propondo-se a protecção dos bens jurídicos e a reinserção social do agente , já o dissemos .

Esta pura concepção utilitarista é minoritária , predominando,  na penologia moderna , entre a teleologia das penas uma concepção mista que combina um fim de retribuição com a da prevenção , cabendo à pena naquela concepção um fim de castigo , estabelecendo o equilíbrio desfeito pela prática da infracção penal e à prevenção , nas concepções utilitaristas ou relativas –onde se distingue uma função de reparação e outra  de prevenção geral -  uma missão de defesa social , resultando a sua eficácia da medida como leva em conta os seus efeitos político-sociais utilitários .

À  reinserção social pede-se , para alguns , por ex.º Mir Puig ,  uma função social de  “ criar possibilidades de participação nos sistemas sociais “ ao arguido , a criação de mecanismos e condições para que o indivíduo retome o convívio  social e uma vida normais.

O objectivo da reinserção -e esta é a concepção dominante – é  proporcionar ao condenado condições sociais para a sua reintegração efectiva na sociedade , evitando-se a sucumbência na reincidência , promovendo a  neutralização dos seus efeitos , segundo Pablos Molina , não se tratando de converter o agente do crime num homem completamente novo , como que numa metamorfose que nele se opera , mas como um processo direccionado à escolha , livre e consciente dos seus caminhos no retorno ao tecido social que antes ostracizou , escreve Vítor Gonçalves Machado , in A Reintegração Social do Preso , acessível in http: // jus.vol.br./revista /texto 181 .

O arguido, com outro ,  cometeu um crime de tráfico de estupefacientes reportado a um transporte de cocaína , por via marítima , a partir da Venezuela , dissimulado em dois botes acondicionados na embarcação Oceann Fragatta , que tripulavam , com o peso de 548, 227800 Kgs , estupefaciente que sabia(m )  destinar-se a ser colocado no respectivo mercado para venda e a ser distribuído por grande número de consumidores , não se demonstrando que fosse(m)  ele( s ) a auferir os lucros da venda , por isso , desqualificando-o , se subsumiu a sua conduta ao tipo matriz , de tráfico simples , p . e . p. pelo art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º -Lei n.º 15/93 , de 22/1 .

A forma de comissão do crime , a coberto de um transporte  marítimo transatlântico , denunciando arrojo e audácia , e o seu acondicionamento, evidenciando  uma firme resolução  criminosa , um dolo intenso e uma conduta contrária à lei , logo ilícita, a inferir da  muito elevada quantidade de produto , modo dissimulado de execução , grave danosidade individual do produto , pela dependência física e psíquica a que conduz , motivando um elevado grau de reprovação  social, moral e ética .

O tráfico de estupefacientes , o mais lucrativo depois do de armamento , depois do homicídio, é dos mais graves do nosso ordenamento jurídico ( englobado na criminalidade altamente organizada , no art.º 1.º  m) , do CPP ) , com efeitos criminógenos , dispersos pelos crimes de furto , roubo , posse de armas , de índole sexual , desobediência à autoridade , etc ,  sem esquecer a degradação individual a que leva , a instabilidade familiar , a perda de coesão social que produz e que fazem do traficante um ser temível , socialmente perigoso .

Acresce , ainda , que o arguido recorrente , incorreu na prática de crime ligado ao tráfico de marijuana nos EUA ( conluio , assinala-se no doc . de fls . 1221 , ) o que lhe valeu a detenção em 22.11.1991 e a condenação , em 11.5.92 , a 97 ( noventa e sete  ) meses de prisão e multa de $50TEsp, mas esse facto , ao invés de servir de meio dissuasório à prática dessa ou de outras infracções , estimulando –o a conformar-se ao direito e a seguir vida sem reparo , não o inibiu , como contramotivo , de se dedicar, de novo ,  ao tráfico de estupefacientes.

E este seu passado criminal releva, pela negativa , ou seja em seu desfavor , desde logo pela personalidade absolutamente insensível  que revela para com a miséria alheia a que a distribuição , atingindo milhares de consumidores da cocaína , dava lugar , agravando a pena pela via da culpa e da prevenção , depois,  e ainda porque denotando o crime agora praticado uma desatenção , uma inconsideração ao aviso de conformação jurídica contido na condenação anterior , pese embora o lapso de tempo decorrido , indicia culpa mais grave e denota exigência acrescida de prevenção especial , nos termos do art.º 71.º n.º 2 als. c) , e) e f) , do CP , e até dificuldade em manter conduta lícita .

Aquele sentimento de indiferença funda , assim , uma atitude do arguido perante a ordem jurídica , que sem caber no dolo nem nos fins ou motivos , é agravante da pena –neste sentido cfr. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 253 .

O arguido não manifestou, ainda ,  qualquer arrependimento .

XX . Merece ,  no entanto , algum espaço de reflexão  a circunstância de o arguido ter completado , recentemente ,  70 anos  ( nasceu em 20.9.1941) , peticionando o arguido , por esse facto , atenuação da pena , significando a sua condenação uma pena de morte

As legislações de pretérito  dedicaram um peso atenuativo à avançada idade , que se não justifica a  acção , pode , contudo , explicar o impulso criminoso , ajudando ao alimentar de suposições erradas , por vezes , e a um menor discernimento .

Não é por acaso que no CP de 1886 , no art.º 39.º , n.º 3 , a idade de mais de 70 anos funcionava como atenuante ; diplomas de amnistia consagravam , igualmente , uma visão atenuativa da pena , particularmente o art.º 10.º, da Lei n.º 15/94 , de 11/5, substituindo a pena de prisão até 3 anos por multa na parte não perdoada .

Compreende-se que uma idade avançada fazendo “ voltar a uma segunda infância produza sobre a imputabilidade consequências importantes “ , havendo , ainda , também que respeitar os velhos , consigna o Prof. Eduardo Correia , Direito Criminal , II , pág , 382/383 .

Dos 21 aos 70 anos vigorava no CP de 1886 , uma plena imputabilidade , comentava Luís Osório , in Notas ao Código Penal , I ,  pág. 161 .

O CP actual é omisso quanto a esse ponto , diversamente do que sucede com os jovens de idade compreendida entre 16 e 21 anos , em que a idade funciona como atenuante  em nome de uma desejável e expectável ressocialização e prevenção da reincidência

A consideração de que o idoso só por isso , só por o ser ,  beneficia automaticamente de uma redução da pena , é forçada , sem embargo  de  ter de atender-se a certas particularidades do caso , como propôs Gordon Ashton ,  in Elderly , People and Law , pág.53 ; é uma circunstância a ponderar em cada caso . pois a pena a aplicar pode traduzir-se uma reacção sem pragmatismo à vista , do ponto de vista da prevenção especial ,  mas sem que se possa abdicar do fim público da pena , no aspecto da afirmação da validade e eficácia  da norma violada , do reforço do sistema punitivo –cfr. o AC.  de  7.10.99 , BMJ 490 , pág. 48 , deste STJ

Não será em nome , pois , da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída , que é de  reduzir a pena ; não se trata de rotular o idoso como um subcidadão , de segunda classe ,  diminuído necessariamente física ,  psicológica e psiquiatricamente , a quem tudo é consentido só por o ser , passando ao limbo do esquecimento o seu crime , o que poderia ser grave  , pondo em risco a ordem jurídica , a segurança e a protecção jurídica dos cidadãos pela quase  justificação do delito 

E esse é manifestamente o caso do arguido , que cruzando , ao comando de uma embarcação , o Atlântico , em época de risco , exigindo mais redobrado o esforço físico e psíquico aquele  transporte ,  se mantém em perfeitas condições físicas e mentais para suportar o cumprimento da pena a aplicar-lhe, não obstante ter completado os 70 anos escassos meses atrás , não se podendo, de resto ,  fazer corresponder a essa idade a decrepitude de outros escalões etários  mais avançados de velhice .

Não se descortina válida razão em face disso  para atenuação da pena .

O tráfico de droga não mostra sinais de abrandar nem entre nós e nem à escala planetária e o flagelo humano a que conduz , que faz doente a humanidade , no dizer da Assembleia Geral das Nações Unidas , por isso que em nome da dissuasão de potenciais delinquentes se perfilam inescapáveis razões para corajosa intervenção dos tribunais , a quem cabe assegurar a confiança comunitária nos órgãos aplicadores da lei e a defesa dos seus interesses .

XXI . O arguido carece de , pela via da pena , interiorizar os péssimos  efeitos do seu procedimento , de muito forte emenda cívica , de alcançar respeito pela dignidade da pessoa humana , que avilta , por isso que até se tem enquadrado o crime de tráfico de estupefacientes , que no caso vertente se assume em larga escala , como um atentado contra a Humanidade .

XXII Vistas as muito sentidas necessidades de prevenção geral e, não menos ,  especial , de concluir é que a pena aplicada , satisfaz às exigências de culpa e prevenção e aos demais factores influentes na determinação concreta , não merecendo reparo a pena em que foi condenado na Relação .

XXIII . Termos em que se decide :

1.Julgar legalmente inadmissível o recurso interposto pelo arguido BB , rejeitando-se –art.º 420.º nº 1 b) , do CPP .

2 Negar provimento ao recurso interposto pelo AA , confirmando-se o acórdão da Relação .

3 Condenar ao pagamento da taxa de justiça a cargo de BB em 6 Uc,s acrescidos da soma de 4 Uc,s nos temos do art.º 420.º n.º 4 , do CP e fixando-se a taxa de justiça a cargo do arguido AA em 10 Uc,s .


Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral