Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
| Descritores: | MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO FUNDAMENTOS OMISSÃO DE PRONÚNCIA CUMPRIMENTO DE PENA | ||
| Nº do Documento: | SJ200604270014293 | ||
| Data do Acordão: | 04/27/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | ANULADO O ACORDÃO | ||
| Sumário : | I - Os fundamentos e as finalidades expressamente assumidos ao longo da exposição de motivos da Decisão-Quadro de 13-06-2002 (2002/584/JAI) constituem elementos essenciais de interpretação do próprio instrumento normativo da União, como das pertinentes disposições de diploma interno de transposição, a Lei 65/2003, de 23-08. II - O mandado de detenção europeu constitui, com a sua regulamentação jurídica, o instrumento operativo que, em aplicação do princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal, substitui nas relações entre os Estados membros «todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição». III - É, pois, no círculo de delimitação material das finalidades do novo e específico instrumento de cooperação no espaço da União que há-de ser interpretado o respectivo regime e cada uma das particularidades que apresente. IV - As referências fundamentais do regime, que moldam os conteúdos material e operativo, resumem-se a dois pressupostos base: o afastamento do princípio da dupla incriminação, substituído por um elenco alargado em catálogo de infracções, e a abolição da regra, típica da extradição, da não entrega ou extradição de nacionais. V - Nesta perspectiva complexa, o estabelecimento de causas facultativas de não execução do mandado relevam dos compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual. VI - Tratando-se, no caso, de um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, tudo quanto fosse anteriormente regulado pelo regime da extradição, deve ser integrado no regime do mandado de detenção europeu no que concerne ao respectivo âmbito objectivo e subjectivo de aplicação. VII - É neste enquadramento que têm de ser interpretadas as disposições sobre causas de não execução, e especificamente as causas de recusa facultativa de execução. VIII - As causas de recusa facultativa de execução constantes do art. 12.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23-08, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada. IX - Especificamente, a al. g) do n.º 1 da referida disposição (retomando o art. 4.º, § 6 da Decisão-Quadro) habilita as autoridades nacionais a recusarem a execução do mandado quando «a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa». X - A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução. XI - A norma contém, verdadeiramente, um contraponto facultativo ou um mecanismo para protecção de nacionais, que no contexto pretende reequilibrar o desaparecimento total ou a desvinculação no regime do mandado de detenção europeu do princípio tradicional da não entrega (e da não extradição) de nacionais - princípio, porém, já excepcionalmente atenuado com a revisão constitucional de 1997 e a alteração do art. 33.º, n.º 3, da Constituição, e posteriormente com a alteração de 2001, em que ficou ressalvada a aplicação de normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia. XII - A faculdade de recusa de execução prevista na referida al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/2003, constitui, assim, uma espécie de “válvula de segurança”, que, aliás, constava já materialmente - aí não como faculdade, mas como exigência de garantia e como condição - do regime de extradição do art. 32.º, n.º 3, da Lei 144/99, de 31-08, nos casos em que, em limitadas situações, se admite a extradição de nacionais: a extradição só terá lugar para procedimento «se o Estado requerente der a garantia da devolução da pessoa extraditada a Portugal, para cumprimento da pena ou medida que lhe venha a ser aplicada, após revisão e confirmação nos termos do direito português, salvo se essa pessoa se opuser à devolução por declaração expressa». XIII - Também, na mesma linha de política criminal e de resguardo de alguma margem de soberania e de protecção em relação aos seus nacionais ou às pessoas que relevem da sua jurisdição, Portugal tinha já declarado, a respeito de Convenção Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 40/98, de 28-05, e publicada no DR, I-A, de 05-09-1998), que autorizava a extradição de nacionais nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada e para fins de procedimento criminal, desde que o Estado requerente garantisse a devolução da pessoa extraditada para cumprimento da pena em Portugal, salvo se a pessoa a tal se opusesse. XIV - Vista nesta perspectiva, no fundo de reserva de soberania, a al. g) do n.º 1 do referido art. 12.º concede ao Estado da execução a faculdade de recusar a execução no caso de mandado para cumprimento de uma pena, desde que, face à ligação da pessoa procurada, maxime sendo seu nacional, este Estado se comprometa a executar a pena. XV - A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão. XVI - Na construção da norma, a faculdade é de livre exercício do Estado da execução, não dependendo de qualquer compromisso específico prévio ou de pedido do Estado da emissão; o único compromisso é unilateral e, dir-se-á, potestativo, e consiste na execução da pena aplicada em lugar da entrega da pessoa procurada. XVII - A questão está, pois, não em qualquer quadro de referências e na natureza pura e simples (e não receptícia) do exercício da faculdade, mas apenas na inexistência, no regime do mandado de detenção europeu, de critérios gerais ou específicos para predeterminar as condições de exercício da faculdade de recusa de execução. XVIII - Mas porque a decisão de recusa da execução constitui faculdade do Estado da execução, o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução. XIX - Não estando directamente fixados, tais critérios, internos, hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena. XX - Uma primeira projecção sistemática poderá encontrar-se no art. 40.º, n.º 1, do CP e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspectiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais. XXI - Mas, de modo convergente, também o art. 18.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31-08, ao estabelecer critérios para a denegação facultativa da cooperação internacional, contém indicações com projecção geral de aplicação também aos casos, com dimensão subjectiva e objectiva aproximada, de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu: quando a execução da pena no Estado da emissão relativamente a um nacional do Estado de execução possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal. XXII - Deste modo, o âmbito e a natureza da causa de recusa facultativa de execução prevista no art. 12.º, n.º 1, al. g), da Lei 65/2002, de 23-08, e o momento em que as autoridades nacionais (a autoridade judicial competente para a decisão sobre a execução ou não execução do mandado de detenção europeu) têm de decidir, afastam a questão, imediatamente, quer do plano, quer dos pressupostos de intervenção e aplicação da forma de cooperação internacional (transferência de pessoas condenadas) prevista e regulada nos arts. 114.º a 123.º, designadamente 122.º e 123.º da Lei 144/99, de 31-08. XXIII - No caso, perante a questão que lhe foi deferida para decisão, a autoridade judicial competente - o Tribunal da Relação - deveria verificar se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justificaria a recusa de execução da mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna. XXIV - O “compromisso” de Portugal como Estado da execução está, assim, contido na própria decisão que recuse a execução do mandado com fundamento na al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/2003, de 23-08, e que, consequentemente, determine, como deve determinar, o cumprimento (a “execução”) da pena de acordo com a lei portuguesa. XXV - Não tendo averiguado sobre tais pressupostos, e tendo mesmo dispensado, em contrário do disposto no art. 21.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08, a produção de prova requerida pelo arguido, o tribunal a quo omitiu a prática de actos necessários para a decisão e o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja, a existência de causa de recusa facultativa de execução. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. O Ministério Público no Tribunal da Relação de Guimarães requereu a execução de Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo Tribunal Correccional de Orléans contra: AA, solteiro, nascido em 9 de Janeiro de 1970, natural da Amadora, de nacionalidade portuguesa, filho de BB e de CC, residente no Beco do ........., lugar do Monte ......., Viana do Castelo, portador do Bilhete de Identidade n° ........., emitido em 23-1-2006, em Braga. O mandado tem por finalidade o cumprimento de pena de prisão de 18 meses, em que o arguido foi condenado e da qual tem ainda a cumprir 17 meses de prisão, por crimes de roubo, alteração ou falsificação de cheque, utilização de cheque alterado ou falsificado e de roubo agravado por duas circunstâncias. O arguido invoca a causa de recusa facultativa prevista no art. 12 nº l alínea g) da Lei 65/2003 de 23-8. O Tribunal da Relação, no entanto, em determinar a execução do mandado de detenção europeu e, em consequência, a entrega do requerido AA à entidade judiciária francesa que o emitiu, por entender que no caso falta o requisito indicado no último segmento da norma do artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/03, de 23 de Agosto – o Estado Português ter-se comprometido a executar a pena. 2. Não se conformando com a decisão de execução do mandado, o arguido recorre para o Supremo Tribunal, com os fundamentos na motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões: 1ª. O Recorrente deduziu oposição à sua entrega ao Estado membro de emissão do mandado de detenção europeu para cumprimento da pena já supra citada, com fundamento na existência de causas de recusa desse mesmo mandado, ou seja, alegando a causa considerada na alínea g), do n° l, do art. 12° do Lei n° 65/2003 de 23 de Agosto. 2ª. – Dúvidas não restam que a situação do aqui Recorrente é coincidente com o preceito supra transcrito. 3ª. – O Recorrente está completamente convicto que: sendo um Nacional Português e residindo em território nacional, o Estado Português poderá prontamente comprometer-se a executar a pena a que ele está adstrito, de acordo com a respectiva lei portuguesa. 4ª. – O Recorrente reitera que é seu entender, que in casu, as entidades nacionais estão em condições de garantir o compromisso da execução em Portugal da pena imposta pelo Estado francês ao predito cidadão. 5ª. – Dispõe o art. 236° do C.P.P. que “têm legitimidade para pedir a revisão e confirmação da sentença penal estrangeira, o Ministério Público, o arguido..” 6ª. – Dispõe o art. 115 n° l da Lei 144/99 de 31 de Agosto que: “uma pessoa condenada em pena …..por um tribunal estrangeiro pode ser transferida para Portugal para cumprimento das mesmas”, e ainda o n° 3 do mesmo normativo que tal transferência pode ser pedida por Portugal, a requerimento ou com consentimento da pessoa interessada.” Termina, pedindo o provimento do recurso, revogando-se a decisão de execução do mandado de detenção europeu, e, em consequência, ser recusada a entrega do recorrente à entidade judiciária francesa sendo a restante pena cumprida em território nacional. O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, concluindo que: a) A aplicação da causa facultativa de recusa de execução de mandado de detenção europeu, prevista no artigo 12.°, n.° 1, alínea g), da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto, pressupõe um procedimento especificamente previsto na Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto, que consagra todo um título (IV) dedicado à execução de sentenças penais e um capítulo (I) à execução de sentenças penais estrangeiras. b) Só depois de o Estado da condenação formular um pedido de delegação de execução de uma sentença penal estrangeira, de o Ministro da Justiça português decidir sobre a admissibilidade desse pedido e de a sentença estrangeira se mostrar revista e confirmada é que se pode afirmar que o Estado Português se compromete a executar a pena ou medida de segurança aplicada noutro Estado membro. c) Nada obsta, aliás, a que um cidadão nacional seja extraditado para outro Estado membro da União Europeia com base num mandado de detenção europeu para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, já que o artigo 33.°, n.° 5, da Constituição da República expressamente ressalva a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia, como é, manifestamente, o caso da Decisão-Quadro do Conselho de 13 de Junho de 2002 (2002/584/JAI), transposta para a ordem jurídica portuguesa através da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto. d) Deverá, pois, o recurso do detido AA ser julgado improcedente, mantendo-se e confirmando-se a douta decisão recorrida. 3. Colhidos os vistos, na urgência de procedimento determinada pelo artigo 25º, nº 1 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. 4. O aprofundamento da dimensão da construção europeia no que respeita ao desenvolvimento de um espaço de liberdade, segurança e justiça teve um impulso exigente, com objectivos precisos, através de compromisso de Tampere (Conselho Europeu de 15 e 16 de Outubro de 1999). As decisões de Tampere em matéria de justiça inspiraram-se na noção de “espaço europeu”, ultrapassando as formas tradicionais de cooperação judiciária. A mudança radical consistiu na afirmação do princípio do reconhecimento mútuo, como “pedra angular” da cooperação judiciária em matéria penal. A primeira concretização no domínio penal do princípio do reconhecimento mútuo no âmbito do espaço de segurança e justiça foi a Decisão-Quadro de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “O mandado de detenção europeu – Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13ª, nº 1, Janeiro-Março, 2003, pág. 27 segs; Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 14º, nº 3, Julho-Setembro, 2004, págs. 325 segs.). Nos “considerandos”, a Decisão-Quadro estabelece a finalidade que tem em vista realizar: -Abolição do processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado - “considerando” (1); -O objectivo que a União, fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, sendo que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos […] procedimentos de extradição; as relações de cooperação clássicas que […] prevaleceram entre Estados-Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça – “considerando” (5); -O mandado de detenção europeu previsto na decisão-quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária – “considerando” (6); -O mandado de detenção europeu deverá substituir, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição – “considerando” (11). Os fundamentos e as finalidades, expressamente assumidos ao longo da extensa exposição de motivos da Decisão-Quadro, constituem elementos essenciais de interpretação do próprio instrumento normativo da União, como das pertinentes disposições de diploma interno de transposição, a Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto. O mandado de detenção europeu constitui, pois, com a sua regulamentação jurídica, o instrumento operativo que, em aplicação do princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal, substitui nas relações entre os Estados-Membros «todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição». É, pois, no círculo de delimitação material das finalidades do novo e específico instrumento de cooperação no espaço da União que há-de ser interpretado o respectivo regime e cada uma das particularidades que apresente – e o critério nuclear será o que resulta da intenção assumida de substituição, nesse espaço, do regime de extradição. As referências fundamentais do regime e que moldam os conteúdos material e operativo resumem-se a dois pressupostos base: o afastamento do princípio da dupla incriminação, substituído por um elenco alargado em catálogo de infracções penais e a abolição da regra, típica da extradição, da não entrega ou extradição de nacionais. 5. Moldadas na finalidade do instrumento específico de cooperação e nos pressupostos essenciais que lhe estão subjacentes (mútuo reconhecimento; substituição da extradição), as normas aplicáveis a cada situação têm de ser interpretadas no contexto dos referidos âmbito e finalidades, e na conjugação ainda entre as exigências decorrentes do reconhecimento mútuo e os deveres assumidos e a permanência de alguns espaços de soberania estadual em matéria penal. Nesta perspectiva complexa, o estabelecimento de causas facultativas de não execução do mandado relevam dos compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual. Tratando-se, no caso, de um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, tudo quanto fosse anteriormente regulado pelo regime da extradição, deve ser integrado no regime do mandado de detenção europeu no que respeita ao respectivo âmbito objectivo e subjectivo de aplicação. É neste enquadramento que têm de ser interpretadas as disposições sobre causas de não execução, e especificamente as causas de recusa facultativa de execução. As causas de recusa facultativa de execução constantes do artigo 12º, nº 1 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada. Especificamente, a alínea g) do nº 1 da referida disposição (retomando o artigo 4º, par. 6 da Decisão-Quadro) habilita as autoridades nacionais a recusarem a execução do mandado quando «a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa em residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa». Esta é a disposição chave para a resolução do caso sub judice. A disposição tem de ser interpretada teleologicamente, e específica de um determinado modelo operativo de cooperação, deve ser sistematicamente compreendida nos limites do regime do mandado de detenção europeu. A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução. A norma contém, verdadeiramente, um contraponto facultativo ou um mecanismo para protecção de nacionais, que no contexto pretende reequilibrar o desaparecimento total ou a desvinculação no regime do mandado de detenção europeu do princípio tradicional da não entrega (e da não extradição) de nacionais – princípio, porém, já excepcionalmente atenuado com a revisão constitucional de 1997 e a alteração do artigo 33º, 3 da Constituição, e posteriormente com a alteração de 2001, em que ficou ressalvada a aplicação de normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia. A faculdade de recusa de execução prevista na referida alínea g) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, constitui, assim, uma espécie de “válvula de segurança”, que, aliás, constava já materialmente – aí não como faculdade, mas como exigência de garantia e como condição – do regime de extradição do artigo 32º, nº 3 da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, nos casos em que, em limitadas situações, se admite a extradição de nacionais: a extradição só terá lugar para procedimento «se o Estado requerente der a garantia da devolução da pessoa extraditada a Portugal, para cumprimento da pena ou medida que lhe venha a ser aplicada, após revisão e confirmação nos termos do direito português, salvo se essa pessoa se opuser à devolução por declaração expressa». Também, na mesma linha de política criminal e de resguardo de alguma margem de soberania e de protecção em relação aos seus nacionais ou às pessoas que relevem da sua jurisdição, Portugal tinha já declarado, a respeito de Convenção Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 40/98, se 28 de Maio, e publicada no DR, I-A, de 5 de Setembro de 1998), que autorizava a extradição de nacionais nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada e para fins de procedimento criminal, desde que o Estado requerente garantisse a devolução da pessoa extraditada para cumprimento da pena em Portugal, salvo se a pessoa a tal se opusesse. Vista nesta perspectiva, e no fundo de reserva de soberania, a alínea g) do nº 1 do referido artigo 12º concede ao Estado da execução a faculdade de recusar a execução no caso de mandado para cumprimento de uma pena, desde que, face à ligação da pessoa procurada, maxime sendo seu nacional, este Estado s comprometa a executar a pena. A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão. Na construção da norma, a faculdade é de livre exercício do Estado da execução, não dependendo de qualquer compromisso específico prévio ou de pedido do Estado da emissão; o único compromisso é unilateral e dir-se-á potestativo, e consiste na execução da pena aplicada em lugar da entrega da pessoa procurada. A questão está, pois, não em qualquer quadro de referências e na natureza pura e simples (e não receptícia) do exercício da faculdade, mas apenas na inexistência no regime do mandado de detenção europeu, de critérios gerais ou específicos para predeterminar as condições de exercício da faculdade de recusa de execução. Mas porque a decisão de recusa da execução constitui faculdade de Estado da execução, o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução. Não estando directamente fixados, tais critérios, internos, hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena (o acórdão do Supremo Tribunal de 3/3/05, proc. 773/05, identificou o problema, mas não tomou posição expressa, desnecessária no contexto em que decidiu). Uma primeira projecção sistemática poderá encontrar-se no artigo 40º, nº 1 do Código Penal e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspectiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais. Mas, de modo convergente, também o artigo 18º, nº 2 da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, ao estabelecer critérios para a denegação facultativa da cooperação internacional, contém indicações com projecção geral de aplicação também aos casos, com dimensão subjectiva e objectiva aproximada, de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu: quando a execução da pena no Estado da emissão relativamente a um nacional do Estado de execução possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal. Deste modo, o âmbito e a natureza da causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2002, de 23 de Agosto, e o momento em que as autoridades nacionais (a autoridade judicial competente para a decisão sobre a execução ou não execução do mandado de detenção europeu) têm de decidir, afastam a questão, imediatamente, quer do plano, quer dos pressupostos de intervenção e aplicação da forma de cooperação internacional (transferência de pessoas condenadas) prevista e regulada nos artigos 114º a 123º, designadamente 122º e 123º da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto. 6. A perspectiva em que o acórdão recorrido situou a questão não é, assim, a adequada. Perante a questão que lhe foi deferida para decisão, a autoridade judicial competente – o Tribunal da Relação – deveria verificar se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justificaria a recusa de execução da mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna. O “compromisso” de Portugal como Estado da execução está, assim, contido na própria decisão que recusar a execução do mandado com fundamento na alínea g) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e que, por ter recusado a execução, determine, como deve determinar, o cumprimento (a “execução”) da pena de acordo com a lei portuguesa. Não tendo averiguado sobre tais pressupostos, e tendo mesmo dispensado, em contrário do disposto no artigo 21º, nº 4 da lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, a produção de prova requerida pelo arguido, o tribunal a quo omitiu a prática de actos necessários para a decisão e o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja a existência de causa de recusa facultativa de execução. 7. Nestes termos, anula-se a cordão recorrido – artigo 379º, nº 1,alínea c) do Código de Processo Penal Lisboa, 27 de Abril de 2006 Henriques Gaspar Silva Flor Soreto de Barros |