Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2649
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO
PERDA DE MERCADORIA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ2007091826491
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I. A partir do DL n.º 37.748, de 1 de Fevereiro de 1950, o Estado Português passou a impor como fonte de direito a Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924 a todos os transportes marítimos cujos conhecimentos de carga tivessem sido emitidos em território português, qualquer que fosse a nacionalidade dos contratantes.
II. De acordo com a referida Convenção, a acção para ressarcimento de danos por perda de mercadoria tem de ser proposta no prazo de um ano, sob pena de caducidade.
III. Não constitui abuso de direito a invocação da caducidade por parte da entidade demandada quando se comprove que não foi ela quem alegadamente entreteve a A. com promessas de solução do problema sem necessidade de recurso judicial.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

AA LDA, intentou
contra
BB SA,
e CC SA, acção sob a forma ordinária,
pedindo:
a condenação da l.ª R. a pagar à A., a quantia de € 24.644,64 a título de indemnização por danos sofridos;
caso se decida Rec. Revista n.º 2649/07-1.ª secção
pela legitimidade passiva da 2.ª R., deve a mesma ser condenada no exacto montante e extensão em que foi peticionado em relação à l.ª R.;
a isso deverão ser acrescidos juros à taxa legal, desce a citação.

Como fundamento da sua pretensão, alegou o cumprimento defeituoso, por parte da 1.ª Ré, do contrato de transporte marítimo de carnes para a Madeira, - e que esta se obrigara a executar em moldes de as mesmas carnes lá chegarem no mesmo estado sanitário perfeito em que se encontravam no momento do embarque.
O pedido de condenação dirigido à 2.ª Ré deve-se ao facto de lhe ter sido comunicado que a 2.ª Ré havia entretanto incorporado a 1.ª, por fusão, situação que a A não pudera ainda confirmar se é ou não verdadeira.

Na contestação (fls. 29), depois de ter sido confirmada a fusão por incorporação da 1.ª Ré na 2.ª, foi deduzida a excepção peremptória da caducidade da acção e impugnada parte substancial da matéria de facto.

Replicou a autora, onde respondeu à excepção da caducidade da acção, alegando factos que supostamente impedem esse exercício, por abuso de direito (fls. 52).

Foi proferida sentença (fls. 166), em que, com fundamento na proibição do “venire contra factum proprium” se julgou não poder a Ré invocar a caducidade, e se condenou a R. “CC - Navegação SA” a pagar à A. o montante peticionado.

Inconformada recorreu a R. (fol. 185), sustentando no seu recurso que não se verificava in casu os pressupostos para aplicação do instituto do abuso de direito no tocante à alegada caducidade do direito de acção, pelo que deveria esta operar, e assim ser a acção julgada improcedente, por haver já sido ultrapassado o prazo de um ano que a Convenção de Bruxelas estipula para a propositura da acção a contar da prestação de serviços e por não haver da sua parte comportamento contraditório.
A Relação, no entanto, confirmou a Sentença, entendendo que esta havia sido lavrada de forma irrepreensível, referindo que a 1.ª instância havia interpretado e aplicado correctamente o Direito.

A R. CC interpôs então recurso para este Tribunal e apresentou alegações.
A A. contra-alegou.

II. Âmbito do recurso

Lendo as alegações de recurso da Ré CC, incluindo designadamente as suas conclusões, verificamos que começa por colocar como questão prévia o facto de a Relação de Lisboa haver decidido o recurso de apelação “(...)sem sequer se ter pronunciado sobre os fundamentos do recurso (...) limitando-se a transcrever umas quantas noções de boa fé e a decidir o caso com base num duplo equívoco, incompreensível para quem opera no comércio marítimo, a saber:
1) por um lado, que a solicitação de documentos pela recorrente à recorrida possa significar a assunção de qualquer tipo de responsabilidade por aquela;
2) por outro lado, que a seguradora (que na realidade é uma Protection & Indemnity Club), - um terceiro entre Recorrente e Recorrida e que nem sequer é parte na acção - , estivesse a agir em representação da Recorrente, quando não foi isso que ficou provado na 1.ª instância (v. ponto 26) da douta Sentença) (...)”- sic.
Suscita depois a questão da inaplicabilidade do instituto do abuso de direito, por inexistência dos indispensáveis pressupostos na utilização deste instituto.

III. Fundamentação

III-A) Os factos

Foram considerados provados nas instâncias os factos seguintes:

1 - A AA, LDA. é uma empresa que se dedica à comercialização de produtos alimentares, nomeadamente carnes (A).
2 - A R. CC - NAVEGAÇÃO, SA. é armadora do navio "........." (B)
3 - Em 11 de Dezembro de 2002, por referência a determinadas carnes vendidas pela A. a um seu cliente sediado na Madeira, a sociedade BB, S.A. acordou com a A. que lhe prestaria os serviços cuja discriminação e condições constam da proposta que se encontra titulada pelo fax cuja cópia simples consta a fls. 12 dos autos e cujo conteúdo se considera aqui ntegralmente reproduzido 1 (C) (1).
4 - As mercadorias discriminadas na factura n° 23/011225 - cuja cópia simples consta a fls. 14 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (2)". foram consolidadas pela A. no interior do contentor frigorífico CRXU, 57288/0 fornecido para o efeito pela sociedade BB (E)
5 - O contentor encontrava-se em óptimas condições e regulado para a temperatura de 0° C quando foi entregue à A. para nele ser estivada a carne (Q10).
6 - O contentor foi fechado e selado pela própria A. (F).
7 - O contentor foi assim transportado, por via rodoviária, entre as instalações da A. e o terminal de contentores do porto de Lisboa (G).
8 - O contentor foi assim embarcado no navio "............" no dia 13 de Dezembro de 2002 (H).
9 - As mercadorias (carnes) foram embarcadas em perfeito estado (Q 1).
10 - O contentor foi assim transportado a bordo do navio ".............." entre os portos de Lisboa e Funchal (I).
11 - As mercadorias (carnes) foram transportadas pela R. CC entre os
portos de Lisboa e Funchal (Q 9).
12 - A viagem desenrolou-se entre os dias 13 e 16 de Dezembro de 2002 (J).
13 - A propósito do transporte marítimo dos autos, foi emitido o conhecimento de embarque cuja cópia simples consta a fls. 15 dos autos e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (3).(...)". (D).
14 - As mercadorias (carnes) chegaram ao porto do Funchal apresentando alterações de cheiro e cor que as tornavam totalmente impróprias para consumo (Q 3).
15 - Esta avaria foi causada pelas variações de temperatura registadas no interior do contentor durante o transporte marítimo, em especial pela exposição das carnes a uma temperatura muito superior à acordada e recomendada para o transporte em questão (Q 4).
16 - A mercadoria avariada foi destruída, em 18 de Dezembro de 2002, na Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos da Meia Serra, por determinação da Direcção de Serviços de Protecção Veterinária (Q 6).
17 - O valor global das mercadorias avariadas ascende a € 24.644,64 (Q 7).
18 - Em virtude da referida avaria, a A. emitiu uma nota de crédito no valor de € 24.644,64 destinada ao cliente a quem tinha vendido a mercadoria (Q 8).
19 - No dia 27 de Março de 2003, foi outorgada escritura pública no 1.º Cartório
Notarial de Competência Especializada de Matosinhos mediante a qual a sociedade BB; S.A. foi incorporada, por fusão, na R. CC - NAVEGAÇÃO, S.A. (S).
20 - A A. remeteu à sociedade BB a carta datada de 6 de Maio de 2003 cuja cópia consta a fls. 19 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido BB é a (4). (...)". (K).
21 - Por referência à referida carta, a R. CC remeteu à A. a carta datada de 16 de Maio de 2003 cuja cópia consta a fls. 65 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzidos (5)". (L).
22 - A A. remeteu à sociedade BB a carta datada de 22 de Maio de 2003 cuja
cópia consta a fls. 67 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (6). (M).
23 - Em 26 de Agosto de 2003, a A recebeu o fax enviado pela R. CC, cuja cópia consta a fls. 68 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (7)"..(N).
24 - Em 24 de Setembro de 2003, a A recebeu o fax enviado pela R. CC cuja cópia consta a fls. 66 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (8)". (O).
25 - A A. remeteu à R. CC a carta datada de 25 de Setembro de 2003 cuja cópia consta a fls. 20 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (9). (P).
26 - Em 10 de Outubro de 2003, a A. recebeu o fax enviado pela STEAMSHIP INSURANCE MANAGEMENT SERVICES LIMITED cuja cópia consta a fls. 21 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (10). (Q)
27 - Em 23 de Dezembro de 2003, a A. recebeu o fax enviado pela STEAMSHIP INSURANCE MANAGEMENT SERVICES LIMITED cuja cópia consta a fIs. 69 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (11)” (R)
28 - A presente acção foi proposta no dia 22 de Abril de 2004 (T).

III-B) O Direito.

Está fora de questão que tendo Portugal aderido em 1932 à Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924 relativa ao transporte de mercadorias por mar ao abrigo de conhecimento de carga, e uma vez que com a entrada em vigor do DL n.º 37.748, de 1 de Fevereiro de 1950 o disposto nos arts. 1.º a 8.º passou a ser aplicável a todos os conhecimentos de carga emitidos em território português qualquer que seja a nacionalidade dos contratantes, a relação jurídica configurada na lide terá de reger-se em primeiro lugar pelos normativos constantes da dita Convenção, e só depois, subsidiariamente, pela Lei nacional (12)
De acordo com o art. 3.º, n.º 6 da citada Convenção, a acção judicial deve ser proposta no prazo de um ano a contar da entrega da mercadoria, sob pena de caducidade do direito de acção.

Analisando a matéria de facto vemos que as mercadorias foram entregues no Funchal em 2002.12.16 e que a acção só foi proposta em 2004.04.13, portanto mais de quatro meses após o decurso do referido prazo de um ano após a recepção da mercadoria, e, assim sendo, poderia efectivamente a Ré invocar, em condições normais, a caducidade do direito da A. em peticionar judicialmente a indemnização pelo cumprimento defeituoso da prestação.
Entende no entanto a A. que a invocação da caducidade por parte da Ré constitui abuso de direito, na medida em que, face à actuação que esta assumiu entre a ocorrência dos factos e a invocação da caducidade do direito, esta actuação constitui um “venire contra factum propriam”, uma das formas pelas quais o abuso de direito se manifesta.
Explicita a A. que a Ré, com a sua actuação no decurso do prazo da caducidade, a levara a acreditar que lhe pagaria os danos, sem necessidade de recurso aos tribunais, entretendo-a habilidosamente com promessas de resolução amigável, e pedindo-lhe um pouco mais de paciência para o pagamento da indemnização, promessas em que a A. sempre acreditou, esgotando-se entretanto, por via disso, esse prazo de um ano, sem que no entanto algo tivesse recebido, e assumindo depois desse prazo um comportamento contraditório ao que tivera, procurando desta feita eximir-se ao pagamento, invocando a extinção do direito de accionar, por não ter sido exercido atempadamente.

Pois bem:

Um dos estudos mais bem conseguidos na doutrina a respeito do abuso de direito é-nos dado por Menezes Cordeiro na obra "Da boa fé no Direito Civil", de que não resistimos a fazer aqui uma breve síntese, e que esse Ilustre Professor nos perdoará, pois nunca dispensará o seu estudo completo:
Refere-nos este Il. Professor, na obra em causa "(13), que a boa fé exprime os valores basilares da ordem jurídica, vocacionados para intervir em cada caso concreto considerado. E, a respeito dos comportamentos abusivos, enuncia um universo informe de comportamentos inadmissíveis e que se podem referenciar em seis grupos distintos (14)":
Um primeiro tipo de atitudes abusivas estaria genericamente incluído na fórmula denominada de " exceptio doli", que foi entendida aquando do seu aparecimento como expressão da proibição de atentar contra os bons costumes, mas cedo foi conectada com a boa fé. A sua justificação assentaria no facto de repugnar à consciência jurídica que se permita que, de modo fraudulento ou ardiloso, alguém se aproveitasse desses artifícios assentes em deliberados actos de vontade, para conseguir obter e manter intocável a titularidade do direito contra aquele que foi vítima desse artifício.
Um segundo tipo de actos abusivos é dado pela proibição de "venire contra factum proprium" que é sem dúvida impressivo pelos juizos de desvalor que, de imediato, concita. A este respeito, refere que a doutrina tem chamado a atenção para a necessidade de não generalizar a proibição de comportamentos contraditórios (pelo perigo que arrastaria, de imediato, à impossibilidade de serem revistas as atitudes que primeiro se assumissem), pelo que só devem enquadrar-se nestes parâmetros aqueles casos que atinjam proporções juridicamente intoleráveis, por contrárias à boa fé (ob.cit. 2.°, 742 e ss.)
Fala-nos depois de uma terceira categoria de actos inadmissíveis por abuso, que que consistiriam nas chamadas "inalegabilidades formais", ou seja, o de que, em determinadas condições, seria contrário à boa fé e, como tal abusivo, alegar vícios de forma nos negócios jurídicos. Refere-nos este insigne Mestre, que a inalegabilidade de nulidades formais, por imposição da boa fé tem, à partida, um ambiente bastante favorável. Desde o antigo Direito romano, todo o progresso jurídico tem operado contra o formalismo na busca da materialidade das soluções, e é hoje reconhecido que as normas que prescrevem certas formas para os negócios jurídicos não correspondem já às necessidades efectivas, exemplificando que um negócio sobre móveis de valor incalculável, seria válido numa base consensual, enquanto um contrato sobre um imóvel, ainda que de valor insignificante, requereria forma autêntica.
A este respeito, ensina Menezes Cordeiro que "é de repugnância o sentimento ético-jurídico que sempre inspira a atitude da pessoa que, tendo assumido voluntariamente certa adstrição se venha depois a furtar a ela, alegando meros aspectos de forma." (ob.cit.,2º vol., 772 e ss.)
Como quarta categoria de actos abusivos aponta a dupla formada pela "supressio" e pela "surrectio" .
- Há "supressio" quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais possa sê-lo por, de outra forma, se atentar contra a boa fé; ocorreria uma supressão de certas faculdades jurídicas, pela conjugação do tempo com a boa fé.
- Há "surrectio", quando uma pessoa, por força da boa fé alheia, vê surgir na sua esfera uma possibilidade que, de outro modo não lhe assistiria.
A justificação explicativa destes fenómenos radica-se nos seguintes comportamentos:
Num deles, tudo estaria na doutrina da confiança: a não actuação de certas posições jurídicas levaria a crer na sua inexistência; uma actuação conveniente seria a contrária à boa fé. No outro, residiria na necessidade de complementar as regras relativas à repercussão do tempo nas situações jurídicas.
Como quinta categoria dos actos abusivos aponta os casos que se podem considerar abrangidos pela dimensão da expressão "tu quoque", em que a ideia básica radica no brocardo latino "turpitudinem suam allegans non auditur", ou seja no princípio de que aquele que viole uma norma jurídica não pode exigir a outrem o acatamento do mesmo preceito ou as consequências que dele derivem, citando o caso contemplado no Ac da Relação do Porto de 81.02.03, C.J., 1, 146, segundo o qual haveria abuso de direito quando o senhorio, não fazendo obras no arrendado, faz com que o inquilino dele se retire, e, depois, venha com base no encerramento do locado, pedir a cessação do contrato e respectivo despejo por o inquilino nele não habitar.
Por último aponta uma sexta categoria de comportamentos abusivos, constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, distinguindo aí três sub-categorias:
- O exercício danoso inútil, que é contrário à boa fé, e, como tal, abusivo, servindo de exemplificação o caso já clássico da chaminé falsa de Colmar, Tribunal de Apelação de Colmar, de 2 de Maio de 1855, construída expressamente por um proprietário para vedar a luz a uma janela de um vizinho (acto puramente emulativo);
- a actuação de quem exige um comportamento ou prestação para imediatamente considerar inválida/anulada/ a prestação, ou o de exigir uma prestação que depois se deva restituir "dolo agit qui petit quod statim redditurus est";
- a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem. É que, tal desproporcionalidade, ultrapassados certos limites, torna-se repugnantemente abusiva, defrontando a boa fé.

Pois bem:
O que o A. imputa à Ré para inviabilizar a operatividade da caducidade é ter esta assumido por si e/ou sua representada um comportamento contraditório àquele que lhe levara a fazer crer que lhe pagaria a indemnização sem recurso ao meio judicial.
Estaríamos assim, supostamente, perante a hipótese contemplada no segundo grupo apontado pelo Prof. Menezes Cordeiro, ou seja entre aqueles que se inserem no “venire contra factum proprium”, mas a que não seria alheia uma certa expressividade de “surrectio”.

Mas terá havido mesmo abuso de direito em invocar a Ré a caducidade do direito de accionar?

É isso que iremos analisar, trazendo á colação os comportamentos assumidos pela Ré no decurso do tempo que mediou entre a recepção da mercadoria no Funchal e o momento em que a presente acção foi instaurada e as expectativas criadas à A. a respeito da assumpção da obrigação de pagamento dos danos sem recurso aos Tribunais:
a) Em primeiro lugar convém reter que a mercadoria chegou ao Funchal em 2002.12.16.
b) Por carta de 2003.05.06 a A. exigiu à BB o pagamento da indemnização decorrente da perda da mercadoria, por factos imputáveis a esta, conforme veio a ficar provado.
c) Nesta altura já a BB estava integrada na CC
d) Por carta de 2003.05.16 informava a CC que o seu departamento de seguros e avarias estava a proceder a diligências juntamente com outras partes envolvidas no sentido de analisar a ocorrência e apurar responsabilidades, pretendendo-se saber, designadamente, se a A havia efectuado seguro de transporte de mercadoria, conforme recomendação da sua proposta de serviços, e em caso afirmativo, qual a decisão da seguradora.
e) Por carta de 2003.05.22 a A. enviou à BB uma carta onde referia ter sido informada pela sua seguradora de que os riscos atinentes à diferença de temperatura no contentor estavam excluídos das garantias do seguro por ela efectuado, cabendo por isso à Ré a responsabilidade de responder directamente pela mercadoria transportada.
f) Em 2003.08.26 a A. recebeu um fax enviado pela CC dando conta que o seu departamento de seguros e avarias tem estado em contacto com a sua seguradora quanto à forma de se encontrar uma solução para a reclamação, dizendo que se esperava essa resposta para breve e, uma vez obtida seria comunicada à A.
g) Em 2003.09.24 a A. recebeu um novo fax da CC em que esta alegava que a sua seguradora pretendia um documento comprovativo em como o destinatário da mercadoria não havia pago à A. a mercadoria avariada, transportada no contentor em causa.
h) Em 2003.10.10 a A. recebeu um fax enviado pela STEAMSHIP INSURANCE MANAGEMENT SERVICES LIMITED dizendo ser representantes de Managers of the P & I Club ... e que desejavam resolver de forma amigável a reclamação, fora da barra dos Tribunais.
i) Em 2003.12.23, (já após um ano sobre a descarga do contentor no Funchal) a STEAMSHIP rejeita qualquer responsabilidade pelo pagamento, alegando que as Carnes .......r não têm legitimidade para demandar judicialmente a armadora, devendo antes fazê-lo contra a BB, entidade com quem contratou o Serviço.

Do contexto enunciado vem a resultar que a Ré CC interveio directamente em três momentos, e que indirectamente provocou dois outros momentos interventivos por parte de uma terceira entidade seguradora :
Num primeiro momento (2003.05.16), disse que iria analisar a ocorrência e apurar se a A. havia efectuado o seguro, conforme recomendara na proposta de serviços, e, em caso afirmativo, qual a seguradora em causa;
Num segundo momento (2003.08.26), ( três meses após de ter sido informada pela A. que havia sido feito seguro mas que a seguradora excluíra do âmbito do seguro as avarias de mercadoria imputáveis às variações de temperatura durante o transporte), veio a comunicar á A. que estava em contacto com a sua seguradora em ordem a encontrar uma solução para o caso;
Num terceiro momento (2003.09.24) referiu que a sua seguradora lhe exigiu uma certificação de que não havia a A. obtido pagamento da mercadoria avariada por parte do cliente que a encomendara.

Estes procedimentos, salvo o devido respeito, não são suficientes para, só por si, poderem considerar-se como anormais, tanto mais que no caso de transportes marítimos – como é o caso - nos encontramos perante factos que exigem investigações complexas, como é o do apuramento de responsabilidades, e onde estão ou podem estar envolvidos vários agentes (transitários, transportadores, seguradoras, entidades portuárias, locais de depósito e as próprias partes interessadas ).
Assim, a primeira observação a fazer é a de que a Ré, embora não assumindo a sua desresponsabilização, e manifestando implicitamente que pretendia ver o assunto amigavelmente resolvido com o concurso das seguradoras, não deu qualquer garantia à A. de que, viesse a pagar voluntariamente a indemnização se não houvesse acordo, nem alguma vez referiu ou deu a entender que abdicaria do direito de invocar a caducidade da acção caso houvesse recurso à via contenciosa e essa circunstância se viesse a verificar.
A segunda observação leva-nos a considerar como juízo temerário a conclusão de que esse seu procedimento tivesse objectivos dilatórios, demonstrativos da sua má fé:
Na verdade, não há factos concretos em que possamos alicerçar essa conclusão.
Poder-se-á dizer que a comunicação da STEAMSHIP INSURANCE MANAGEMENT SERVICES LIMITED, ao primeiro referir que estava interessada em resolver o assunto fora da barra dos Tribunais para depois rejeitar qualquer responsabilidade, criou na A. a convicção de que o assunto iria ser resolvido amigavelmemte e que por isso seria desnecessário recorrer a Tribunal..
No entanto, a STEAMSHIP INSURANCE MANAGEMENT SERVICES LIMITED não é parte na acção, e também não ficou provado que representasse a Ré ou actuasse em nome dela, pelo que não pode imputar-se à Ré a actuação daquela, em ordem à criação do convencimento sério da não invocação da caducidade.
E também não pode dizer-se, por falta de provas, que a intervenção da STEAMSHIP tivesse sido ardilosamente provocada pela Ré para, em seu benefício, colher as vantagens de o tempo funcionar em seu favor, e assim poder vir a invocar a caducidade, eximindo-se ao pagamento de eventual indemnização.
Assim, mesmo estando envolvida a actuação da STEAMSHIP como elemento determinante para o convencimento da A. de que o problema se resolveria sem recurso aos Tribunais, não pode concluir-se que a intervenção e actuação daquela tivesse sido provocado pela Ré com um propósito perverso de inviabilizar à A. a actuação tempestiva por via judicial , ou, mesmo sem esse propósito, para se aproveitar agora da intervenção desse terceiro, pois não está provado que alguma vez a Ré tivesse referido que a via judicial se mostrava excluída para a resolução do problema.
Assim, não há elementos suficientes que possam conduzir à integração dos comportamentos nas categorias do “venire contra factum proprium” ou até numa forma limite da “surrectio”, únicas hipoteticamente susceptíveis de aplicação ao caso em presença.
Entendemos por isso que não estão verificados os indispensáveis pressupostos para poder dar-se como provado o abuso de direito. (15).


Em face do exposto, terá de ser concedida a revista.

................................
IV. Deliberação

Na concessão da revista, revoga-se o não obstante douto Acórdão recorrido confirmativo da sentença, julgando-se improcedente a acção e assim se decretando a absolvição da actual Ré no pedido.
Custas pela A., na acção e nos recursos.
Lisboa, 18 de Setembro de 2007
Relator: Mário Cruz
Adjuntos: Faria Antunes
Moreira Alves

__________________

(1)- Com o seguinte teor: "(...) A) TIPO DE SERVIÇO ­Coordenação do embarque e transporte marítimo na modalidade de contentor completo de 20' RF (0°) com carne pendurada ou carne embalada em vácuo desde as instalações da Campican em Porto Salvo até Funchal (cais), utilizando como armador a BOX LINES, c/saída de Lisboa à 3a feira e chegada prevista ao Funchal à 5.ª Feira. Entrega a combinar com o recebedor. B) VALOR DO SERVIÇO: Frete (€ 1.156,00); Camionagem (€ 146,15+IVA); Despesas portuárias no Funchal (€ 147,60); N/intervenção 10,97+NA) (...) E) RESTANTES CONDIÇÕES As das condições gerais de prestação de serviços pelas empresas transitárias (...)".
(2)- Com o seguinte teor: "(...) QUANTIDADE - UN - ­DESCRIÇÃO - 1999,500 kg perna York; 2579,000 kg entremeada de barriga; 861,850 kg pá c/osso s/couro; 597,000 kg pá c/osso s/couro; 2359,600 vaos (...)".
(3)- com o seguinte teor: "(...) Carregador: STAR ­TRANSPORTES INTERNACIONAIS, SA.; Recebedor: STAR - TRANSPORTES INTERNACIONAIS MADEIRA, SA.; Endereço a notificar: ESTEVÃO NEVES - HIPERMERCADOS MADEIRA, S.A.; Navio: ILHA DA MADEIRA; Porto de carga: LISBOA; Porto de descarga: FUNCHAL (...)"
(4)- Com o seguinte teor: "(...) a Star é a entidade responsável pelos serviços de transporte negociados, os quais, como se verifica, não foram prestados nas condições previstas no mesmo, vimos solicitar a V. Exas. a correspondente indemnização, que no caso é de € 24.644,64 (...)".
(5)- Com o seguinte teor: "(...) O n/ departamento de seguros e avarias está a proceder a diligências juntamente c/ outras partes envolvidas no sentido de analisar a ocorrência e apurar responsabilidades. Nesse âmbito pretende-se saber se as Carnes Primor efectuaram seguro de transporte da mercadoria - conforme recomendação da n/ proposta de serviços, e, em caso afirmativo, qual a decisão da seguradora (...)".
(6)- Com o seguinte teor: "(...) Posta a questão à n/seguradora sobre os riscos garantidos nos referidos seguros, formos informados que os danos sofridos pela mercadoria, no que concerne especificamente a diferenças de temperatura no contentor, estão excluídas das referidas garantias, pelo que essa responsabilidade não é transferível para a Seguradora (...) cabendo a V. Exas. a responsabilidade de responder directamente pela mercadoria transportada (...)".
(7)- Com o seguinte teor: "(...) O n/ departamento de seguros e avarias tem estao em contacto c/ a n/­companhia de seguros de forma a encontrar-se uma solução para a reclamação por V. apresentada que logo que seja encontrada (que esperamos seja em breve) vos será comunicada(...)".
(8)-Com o seguinte teor: "(...) solicita-nos a n/ seguradora um documento comprovativo em como a empresa Est. Neves Hipermercados da Madeira não vos pagou a mercadoria transportada no contentor acima indicado(...)".
(9)- Com o seguinte teor: "(...) vimos pela presente enviar cópia da n/ nota de crédito enviada ao n/ cliente para anulação da totalidade do valor da factura correspondente à mercadoria avariada por deficiência do v/ contentor, a qual comprova a não recepção integral do valor em causa (...)".
(10)-Com o seguinte teor: "(...) we are the London representatives of the Managers of the P & I Club of the Owners of the captioned vessel, m/s Box Lines Navegação. Owners have informed us of your claim for alleged loss of the cargo shipped under the above captioned B/L and your recent demand for the matter to be settled otherwise the matter wilI be referred to the Courts. Please note that we wish to deaI with the matter on an amicable basis and in this request ask for your patience a little while longer while we presently examine the available documentation. We shalI revert to you in the very near future (...)".
(11)- Com o seguinte teor: "(...) Carnes Primor are not a party to the Contract of Carriage and therefore not entitled to sue the Carríer. Instead any claim you have wilI lie against Star Transportes who were acting as forwarding agents and are your contractual partner according to the relevant Service Contract. As such, any dispute you have with Star Transportes is to be determined according to the terms and conditions of the said Service Contract and wilI be subject to any applicable time limit (...) we regret to advise that any claim brought against the Carrier under the B/L is now legalIy time barred (...)”
(12)- foi autorizado a aderir pelo DL n.º 19857, de 1931.05.18, estando publicada no Diário do Governo, de 1932.06.02, a respectiva carta de adesão "
(13)- Da boa fé no Direito Civil ", 2.º volume, pgs. 719 e ss.
(14)- Este Il. Professor adverte contudo que pode suceder que um mesmo acto integre em simultâneo dois ou mais dos diversos grupos acima indicados. E refere expressamente: "Quando isso suceda, restará apenas concluir que, no caso considerado, as consequências do abuso mais ficam reforçadas"
(15)- Os nossos Tribunais têm vindo a aplicar o instituto do abuso de direito às próprias faculdades, seguindo os ensinamentos de Ilustres Professores, como Vaz Serra, RLJ, 1110 - 296, que sustentam que a palavra "direito" no art. 334.º do CC. é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar, mas sem excluir o exercício de meras faculdades.
Essa aplicação deve no entanto fazer-se com grande exigência como ensina Heirich Hörster, in Teoria Geral do Direito Civil, pag.287.
E sempre com parcimónia, apenas a admitindo nos casos em que está demonstrado, sem equívocos, um comportamento anti-ético, manifestamente clamoroso ou repulsivo.
Manuel de Andrade refere-se aos direitos "exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (..)"
Pires de Lima e Antunes Varela no CC. Anotado e Comentado, voI. 1, 2.ª edição, pag. 277, em anotação ao art. 334.°, sublinham ser de exigir que o excesso cometido seja “manifesto”.
E acrescentam: “Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações.”
“ Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se fundamentalmente os juizos de valor positivamente consagrados na lei”, como refere A.Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., v.I, pag.423, citado no CC Anotado e Comentado, já acima referido.