Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00001447 | ||
Relator: | FERREIRA DIAS | ||
Descritores: | USURPAÇÃO DE FUNÇÕES EXERCICIO ILEGAL DE PROFISSÃO TITULADA TIPICIDADE | ||
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Nº do Documento: | SJ199002070405203 | ||
Data do Acordão: | 02/07/1990 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N394 ANO1990 PAG230 | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 8100/88 | ||
Data: | 06/07/1989 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR CRIM. | ||
Legislação Nacional: | CP82 ARTIGO 400 N2 N1 ARTIGO 72. CP886 ARTIGO 236. CPP29 ARTIGO 447. | ||
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Sumário : | O artigo 400 do Codigo Penal de 1982, relativo ao crime de usurpação de funções, passou a exigir não a pratica de um acto proprio de uma profissão (como era exigido pelo artigo 236 do Codigo Penal de 1886) mas "o exercicio de uma profissão" que supõe o exercicio de um emprego, ocupação ou oficio, que permanece no tempo e no espaço ( e não a pratica esporadica de um ou outro acto de uma profissão). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Acusado pelo Digno Agente do Ministerio Publico respondeu no Tribunal de comarca de Matosinhos, em processo correccional o reu A, divorciado, engenheiro-quimico, de 37 anos, com os demais sinais dos autos, tendo sido condenado pela pratica de um crime previsto e punivel pelo artigo 400, n. 2 do Codigo Penal, na pena de catorze anos de prisão, em sete mil escudos de imposto, em 2500 escudos de procuradoria e em igual quantia de honorarios ao seu defensor oficioso, e em indemnização as ofendidas. Nos termos do artigo 13, n. 1 alinea b) da Lei 16/86, de 11 de Junho, foi-lhe perdoado um ano de prisão. Inconformado com tal decisão, dela agravou o reu para a Relação do Porto, mas este Tribunal negou total provimento ao recurso e elevou para montantes superiores as indemnizações atribuidas pela 1 instancia. De novo irresignado, recorreu para este Alto Tribunal, alegando em substancia e com interesse. - O crime de exercicio ilegal de profissão previsto no n. 2 do artigo 400 do Codigo Penal de 1982 e, como resulta da redacção do preceito, habitual ou de habito, tendo por pressuposto uma multiplicidade de actos praticados com habitualidade, que se integram no exercicio de uma profissão. - No caso vertente, dois actos isolados imputados ao reu chegam para preencher tal crime. - Se assim fosse de entender, haveria de se considerar que o ofendido nesse tipo legal de crime e o Estado, pelo que não poderiam ser considerados como tais as pessoas a quem foram aplicadas as vacinas, nem a favor dela fixadas indemnizações, nos termos do artigo 129 do Codigo Penal. - Dai que ao reu devesse ser aplicado menos de metade do limite maximo da pena previsto no citado n. 2 do artigo 400, ou seja menos de um ano de prisão, sem qualquer indemnização que as pretensas ofendidas; e - Deve, assim, o acordão recorrido ser revogado nos termos referidos. Contra-alegou o Ministerio Publico, afirmando em tal douta peça processual, em resumo: - O tribunal da Relação considerou que a conduta do recorrente preenchia tanto os requisitos do n. 1 como os do n. 2 do artigo 400 do Codigo Penal. - Para nos, a materialidade factica assente prenche os elementos tipicos do n. 1 e não do n. 2 do artigo 400 referido; - Esquece o recorrente que a sua actuação violou tres bens juridicos, em concurso real, - Sucede apenas que os dois crimes de ofensas corporais voluntarias foram abrangidos pela amnistia decretada pela Lei n. 16/86 (despacho de folhas 59 e seguintes). - E ainda que tais crimes tenham sido amnistiados, não quer dizer que tenham desaparecido os ofendidos e que não deve ter lugar a indemnização dos danos a eles causados. - A pena aplicada ao recorrente mostra-se bem doseada; e - Assim, o recurso não deve merecer provimento. Subiram os autos a este Supremo Tribunal e, ouvido o Excelentissimo Representante do Ministerio Publico, deixou ele exarado o seu inedito parecer de folhas 160, no qual opina no sentido da manutenção do decidido. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir: - Deram as instancias como provadas as seguintes realidades facticiais: - Nos ultimos meses de 1985, o reu aparecia com frequencia, na Discoteca-estabelecimento de discos - "La vie en Rose", sita nesta cidade do Porto, propriedade de B e onde trabalhavam as ofendidas, C, D e E, todas identificadas nos autos; - O reu tornou-se um bom cliente do estabelecimento, onde fazia compras de montante elevado, tendo em conta o tipo de artigos, ali, vendidos e, por isso, ganhando a confiança das ofendidas e do dono do estabelecimento, sendo certo que pagava a quasi totalidade dos artigos com cheques, no verso dos quais escrevia o seu numero de telefone, os quais sempre obtinham pagamento. - Em finais de Dezembro de 1985, o reu compareceu no dito estabelecimento para efectuar uma compra, tendo, então, dito ao proprietario do mesmo, que era funcionario da Delegação de Saude do Porto, e que estava integrado numa equipa de funcionarios daquele organismo que estava a efectuar um serviço de rastreio no Concelho de Matosinhos, mostrando-lhe um cartão com a sua fotografia e que o identificava como funcionario daquele organismo; - O proprietario do estabelecimento, dadas as relações de confiança entre ambos, apenas se limitou a ver a fotografia do reu naquele documento e uma lista verde no mesmo, acreditando e aceitando que o reu era, na verdade, funcionario do referido organismo; Informou, então, o reu, no decurso dessa conversa, que as empregadas do dito estabelecimento teriam de ser vacinadas num dos dias imediatos, destinando-se a vacina a prevenção de doenças que decorreriam do contacto com o venil; - O dono do estabelecimento comunicou tal conversa as suas empregadas, as referidas ofendidas, que se convenceram que o reu, era, na verdade, funcionario da Delegação de Saude do Porto; - Em 8 de Janeiro de 1986, a tarde, o reu compareceu no dito estabelecimento, dando conhecimento ao seu proprietario e ditas empregadas que vinha vacina-las. - Estas não ofereceram qualquer resistencia e uma a uma foram "vacinadas" na palma do pe pelo reu que lhes espetou uma agulha, injectando-lhes um liquido, que se supõe ser "Influvac" e que constitui terapeutica para estados gripais, repetindo, de seguida, e por uma segunda vez, a mesma "vacina" no mesmo pe das ofendidas, salvo a C que injectou no outro pe por ela se queixar de fortes dores no, anteriormente, picado; - Todas as ofendidas, em consequencia desta acção do reu, sofreram fortes dores naquele dia e nos dias seguintes; - A C, que e doente do foro cardiologico, viu agravar-se o seu mal em consequencia das picadas e injecções referidas, tendo, por via disso, de consultar diversos medicos e recorrer ao serviço hospitalar com o que dispendeu cerca de 20000 escudos; - O reu e engenheiro-quimico e não tinha qualquer ligação a Delegação de Saude de que não era funcionario; - Foi atraves de exibição do referido cartão e da afirmação de que era funcionario da Delegação de Saude, que as ofendidas acederam a ser, por ele, injectadas nos termos aludidos; e - O reu sabia que não tinha qualquer preparação e competencia para efectuar quaisquer vacinas e que, para a pratica de tal acto, era necessario estar habilitado e superiormente autorizado. Este o complexo factico dado como firmado pelo acordão recorrido e que este Alto Tribunal tem de acatar como insindicavel, dada a sua qualidade de Tribunal de revista. Descritos os factos, passemos agora, e sem mais delongas, a determinação do seu significado juridico-criminal. Mostra-se o reu acusado da pratica de um crime de usurpação de funções previsto e punivel pelo artigo 400, n. 2 do Codigo Penal. Reza assim tal mandamento legal: "1 - Quem, sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos proprios de funcionario ou de comando militar ou de força de segurança publica, invocando essa qualidade, sera punido com prisão ate 2 anos ou multa ate 100 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem exercer profissão, para a qual a lei exige titulo ou preenchimento de certas condições, arrogando-se expressa ou tacitamente, possui-lo ou preenche-las, quando, efectivamente, o não possuir ou as não preencha. 3 - Na mesma pena incorre quem continuar ao exercicio de funções publicas, depois de lhe ter sido oficialmente notificada a demissão ou a suspensão dessas funções". Este comando legal foi inspirado no artigo 236 do Codigo Penal de 1886, no que pertine aos indicados ns. 1 e 2, e nele se protege o interesse do Estado em que as funções publicas ou profissionais que exigem titulo ou o preenchimento de certas condições sejam desempenhadas por pessoas legalmente habilitadas. O n. 3 e uma disposição nova, sem equivalente na legislação anterior. Cumpre-nos, pois, determinar em qual dos ns. - 1 ou 2 - se emoldura a situação consubstanciada nos autos. Tanto o requisitorio do Ministerio Publico como a sentença da 1 instancia entenderam que os factos provados se enquadram no n. 2 da referenciada disposição legal. O Tribunal da Relação do Porto sufragou a posição de que o caso hipotizado no processo tanto se pode subsumir ao preceito do n. 1 como ao do n. 2. Os ilustres Representantes do Ministerio Publico, junto da Relação como junto deste Alto Tribunal, perfilham o ponto de vista de que a situação dos autos se encaixa no n. 1 do artigo 400 do Codigo Penal. "Quid Juris?" Operando a exegese dos ns. 1 e 2 do preceito penal em estudo - e so esses nos interessam para a solução da presente demanda, ja que a situação prevista no n. 3 não tem qualquer cabimento, apercebemo-nos de que eles configuram duas situações diferentes, de modo a abranger as tambem duas hipoteses consagradas no artigo 230 do Codigo Penal de 1886, que lhes serviram de berço. Assim, o objecto da acção nelas assinalado, ou mais precisamente o seu elemento material, concretiza-se em duas situações bem distintas. 1 - Exercer funções ou praticar actos proprios de funcionarios (vide definição do artigo 437), comandantes militares ou de forças militarizadas (n. 1); e 2 - Exercer profissão para que seja necessario titulo ou o preenchimento de certas condições: No que concerne ao elemento subjectivo, torna-se necessario provar-se: a) que o agente invoque a qualidade de funcionario ou de comandante militar ou de forças militarizadas, sabendo que as não possui (n. 1); e b) que o agente se arrogue a posse das condições exigidas para o desempenho da profissão, sabendo que não as possui (confira em igual pendor Maia Gonçalves in Codigo Penal Portugues Anotado - 4 edição - a Pag. 716 e Codigo Penal - Notas de Trabalho a Pag. 399). Postas estas liminares considerações e por elas iluminadas e relembrando o horizonte factual que dos autos emerge, somos de parecer de que a razão se acha do lado do Ministerio Publico junto da Relação e deste Supremo Tribunal, quando brilhantemente pugna no sentido de que o crime cometido pelo reu se quadra na previsão do artigo 400 n. 1 do Codigo Penal. Na verdade, e contrariamente ao que acontecia na vigencia do artigo 236 do Codigo Penal de 1886 - disposição que serviu de fundamento ao artigo 400 do Codigo Penal de 1982, como acima deixamos sublinhado - onde expressamente se falava em "acto proprio de uma profissão" - expressão que o legislador de 1982 certamente não deixaria de nela atentar - passou o actual Codigo Penal de 1982 a utilizar uma expressão diferente "quem exercer profissão", declaração que bem exprime que este ultimo diploma teve em vista substituir a anterior expressão por outra, na qual se passou a exigir não a pratica de um acto proprio de uma profissão, mas antes "o exercicio de uma profissão" que supõe o exercicio de um emprego, ocupação, oficio, e que permanece no tempo no espaço e não que se pratique esporadicamente, como sucede quando se pratica um ou outro acto de uma profissão. Ora, e logico pensar, que pretendendo o legislador de 1982, no normativo legal do artigo 400, abarcar todas as modalidades do crime de usurpação de funções, e, verificando que no seu n. 1 ja se achava incluida a expressão "exercer funções ou praticar actos proprios..., tenha decidido exigir que no n. 2 se falasse em "exercer profissão" e não em "actos proprios", como anteriormente acontecia. Por tudo quanto exposto ficou, temos de concluir que o actuar do reu desenha os elementos configurantes do artigo 400 n. 1 do Codigo Penal, para cuja disposição se convole a douta acusação, ao arrimo do artigo 447 do Codigo de Processo Penal de 1929, alterando-se nesta parte o decidido. Subsumidos os factos a sua dignidade criminal, compete-nos de seguida passar a fase do doseamento da pena a aplicar. A determinação da medida da pena dos limites definidos na lei, far-se-a em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigencias de prevenção de futuros crimes e todas as circunstancias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (artigo 72 do Codigo Penal). Os limites minimo e maximos da pena aplicavel, em abstracto situam-se em 30 dias e 2 anos de prisão ou multa de 10 a 100 dias. Elevado se patenteia o grau de ilicitude dos factos e graves foram, de certo modo, as suas consequencias, no que respeita as ofendidas C, D e E que, em consequencia da acção do reu, todas elas sofreram fortes dores naquele dia e nos dias seguintes, tendo ate a primeira delas - que e doente do foro cardiologico - visto agravar-se o seu mal, e dai a necessidade de consultar diversos medicos e recorrer ao serviço hospitalar com o que dispendeu cerca de 20000 escudos. O reu - que era engenheiro-quimico - procedeu de forma a violar deveres que lhe impunha a sua qualidade profissional e social. Intenso foi o dolo com que actuou (dolo directo). Manifestou sentimentos de pessoa de ma configuração moral. As instancias, atenta a culpa com que o reu agiu e as exigencias de prevenção de futuros crimes, bem como a gravidade das consequencias dos factos perpetrados, decidiram arredar a aplicação do artigo 71 do Codigo Penal, aplicando pena efectiva de prisão, deliberação que se mostra inteiramente correcta, tanto mais quanto e certo que nada se provou com viabilidade bastante para se concluir que a pena de multa seja suficiente para promover a recuperação social do agente e satisfazer as exigencias de reprovação e de prevenção do crime cometido. Ora, perante tais componentes de facto acabadas de alinhar, somos de opinião de que a sanção com que o acordão recorrido estigmatizou o criminoso comportamento do reu - catorze meses de prisão - se mostra perfeitamente doseada, merecendo o nosso inteiro aplauso e confirmação. E nenhuma censura nos oferece fazer aos montantes do imposto, procuradoria e honorarios, bem como aos montantes das indemnizações atribuidas pelo acordão agravado. Apenas um reparo se nos oferece mencionar no que respeita ao aspecto indemnizatorio. Como acima se deixou assinalar, o verdadeiro ofendido, com a violação da norma do artigo 400, n. 1 do Codigo Penal, e o Estado. O acordão recorrido não fixou indemnização ao Estado. Assim nada impede que agora se repare a falta em questão pelo que se condena o reu, alem das indicadas, na indemnização de vinte mil escudos ao Estado. Improcede, assim, toda a argumentação deduzida pelo recorrente para infirmar a decisão recorrida. Dest'arte e pelos expostos fundamentos, decidem os juizes deste Supremo Tribunal de Justiça negar provimento ao recurso, confirmando o acordão recorrido, mas nos termos sobreditos. O recorrente pagara de imposto e de procuradoria, respectivamente, vinte mil escudos e mil e quinhentos escudos. Ferreira Dias Manso Preto Maia Gonçalves Mendes Pinto |