Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B948
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: SJ200405030009482
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2566/03
Data: 10/21/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A força ou autoridade reflexa do caso julgado pressupõe, tal como a excepção do caso julgado, a tríplice identidade prevista no artigo 498 do Código de Processo Civil;
II - Uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do acidente e da culpa/risco -- faz parte integrante da causa de pedir (complexa) das acções indemnizatórias por acidente viação, não há identidade da causa de pedir (e, consequentemente, do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente, mas em que os prejuízos alegados (e pedidos) não coincidem.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"A" da Quinta dos Lombos, SA pede que B, Automóveis de Aluguer, Ldª seja condenada a pagar-lhe a quantia de 9.080.379$00, com juros vincendos sobre 7.619.899$00, como indemnização pelo danos que sofreu com um acidente de viação, ocorrido, no dia 14/6/1996, ao Km 83, 10 da Estrada Nacional nº10, recta de Pegões, Montijo, entre o veículo ligeiro de passageiros Renault 19, matrícula GB, de serviço de aluguer, propriedade da C-Sociedade de Comércio de Automóveis, SA, conduzido por D e o veículo frigorífico pesado de mercadorias, com a matrícula GS, propriedade da autora e conduzido por E.
Alega ainda que a proprietária do GB tinha transferido a responsabilidade civil para a Companhia de Seguros F, a qual passou a ser representada pela B.
Esta apresentou contestação, articulado que a F -- admitida a intervir sob requerimento daquela - fez seu.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou solidariamente a B e a F a pagarem à autora a quantia de 7.619.899$00, com juros moratórios a partir da citação.
Apelaram ambas as condenadas e a Relação de Lisboa julgou:
-procedente o recurso relativamente à B, revogando a sentença recorrida no que respeita à questão da legitimidade e, em substituição, absolveu aquela R. do pedido;
-improcedente quanto à questão da excepção do caso julgado e, consequentemente, confirmou a sentença recorrida na parte em que condenou a F.
Pede agora a F revista deste acórdão, insistindo na tese do caso julgado formado com o acórdão da Relação de Lisboa, transitado em julgado, proferido em 7/6/2001, na acção ordinária nº299/99 do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, contra si intentada pela Companhia de Seguros G (seguradora do GS, propriedade da autora).
Das 23 conclusões que a recorrente apresenta relevam as seguintes:
1. São manifestamente idênticos os pedidos formulados nas duas acções pois, na presente acção, a ora recorrida formula pedido de indemnização por danos patrimoniais por si sofridos no acidente dos autos enquanto que na acção 299/99, a G formulava pedido de indemnização para reembolso das quantias que pagou à A, sua segurada, em virtude dos danos por esta sofridos no acidente de viação dos autos, ao abrigo do seguro de danos próprios entre ambas celebrado.
2. Considerando o Tribunal que há identidade de sujeitos porque a ora recorrida e a G (sub-rogada no primeiro processo) são a mesma parte, do ponto de vista da sua qualidade, por maioria de razão se deve concluir pela identidade de pedidos pois o pedido é o mesmo, num caso e noutro - indemnização por dano material emergente de acidente de acidente de viação - apenas ocorrendo divergência quanto ao montante, a qual, todavia, resulta, praticamente, na sua totalidade, da circunstância do contrato de seguro celebrado não cobrir os danos em toda a sua extensão.
3. A excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente, mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica.
4. Mesmo que se considerasse a inexistência da tríplice identidade, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no recurso nº5146/91 teria que ser sempre tida em consideração visto que decidiu a questão essencial, que mais não é que condição para a apreciação do objecto processual da presente acção - a imputação da responsabilidade ao condutor do veículo propriedade da recorrida.
5. Nesta perspectiva vigora o caso julgado material como autoridade de caso julgado material, o que impede a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente.
Nas duas últimas conclusões invoca como violados os artigos 494, 495, 496, 497 e 671, todos do Código de Processo Civil, pelo que «a sentença deve ser revogada e substituída por uma outra que absolva a Apelante F da instância.» (sic).

A recorrida não contra-alegou.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
A única questão a resolver é a de saber se a decisão, transitada em julgado, proferida na acção 299/99 do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo (e que correu termos no Tribunal da Relação de Lisboa sob o nº5146/91), intentada contra a ora recorrente F pela Companhia de Seguros G, seguradora do veículo GS, propriedade da autora, ora recorrida A, sobre o mesmo acidente, faz caso julgado material por forma a:
-a obstaculizar a prossecução da presente acção, com a consequente absolvição da instância da ré, ora recorrente, nos termos do artigo 288, nº1, e), com referência ao artigo 494, i), ambos do Código de Processo Civil (excepção do caso julgado);
-ou a impor a sua decisão na presente acção (força ou autoridade reflexa do caso julgado).

Como é sabido a excepção do caso julgado verifica-se quando uma causa se repete depois da anterior já se encontrar decidida por sentença que já não admita recurso ordinário - artigo 497 do Código de Processo Civil.

E, nos termos do artigo 498 do mesmo Código, entende-se que uma causa se repete quando seja idêntica a uma outra, anterior, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, ou seja, quando se verifica a chamada tríplice identidade.

No acórdão sob recurso lê-se o seguinte:
«Assim, em caso de acidente de viação, a identidade da causa de pedir não decorre unicamente da coincidência dos factos referentes à infraestrutura do acidente, mas também, do factualismo pertinente à sua imputação subjectiva ao agente ou à área de risco relevante e aos danos verificados.
...
Ao cotejar os factos alegados pela A., na presente acção, narrados nos artigos 1º a 19º da petição inicial (fls. 2 a 4), e os factos alegados pela G, no processo nº299/99, que correu termos no 3º Juízo do Tribunal judicial de Montijo, vertidos nos artigos 1º a 10º da petição inicial (fls.199 a 201), constatamos que há coincidência entre a descrição do acidente e dos comportamentos imputados aos condutores intervenientes.
Sucede que, no processo nº299/99, só foram alegados os danos...
....
Verifica-se assim que os danos identificados nas alíneas... não foram objecto de apreciação no âmbito do processo nº299/99.
...
No que tange à identidade do pedido, do já referido resulta que os montantes peticionados, nesta acção, relativos aos danos descritos nas alíneas..., são distintos dos montantes pedidos no processo 299/99.
Relativamente aos montantes reportados aos demais danos - indicados nas alíneas... --, verifica-se que:
-quanto às mercadorias transportadas, foi pedida, no processo nº299/99, a indemnização de Esc.1.375.000$00; enquanto que, na presente acção, foi reclamada uma indemnização de Esc.1.375.000$00, que já fora suportada pela seguradora G;
-quanto à caixa isotérmica, no processo nº299/99, foi pedida a indemnização de Esc.4.100.000$00; enquanto que, nesta acção, tal custo foi confinado ao valor de Esc.2.250.000$00.
Do que fica dito resulta que não se verificam os requisitos de identidade da causa de pedir e do pedido em relação à pretensão deduzida na presente acção no que respeita à indemnização dos danos a que se reportam os pontos 1.16, 1.18 e 1.20 a 1.24 da factualidade assente, nem quanto à indemnização relativa às mercadorias transportadas na parte em que excede a importância de Esc.1.375.000$00.
Por sua vez, a identidade do pedido e da causa de pedir quanto ao custo da caixa isotérmica mostra-se irrelevante, já que a própria A deduziu, ao valor peticionado, a importância de Esc.4.100.000$00 que recebera, a esse título, da G.».

Concluiu, assim, o acórdão sob recurso pela não verificação da excepção em apreço por falta de identidade da causa de pedir e do pedido, pois que, na presente acção. são alegadas e pedidas mais parcelas indemnizatórias que na referida acção 299/99.

E concluiu correctamente, porque, conforme também com acerto refere, na sequência, aliás, de entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico (cfr., entre outros, Vaz Serra, RLJ, 103º-311 e acórdão do STJ, de 14/5/1971, BMJ 207º-155), nas acções de indemnização por acidente de viação - como é o caso das duas acções em confronto - a causa de pedir é complexa, integrada não só pelo acidente e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados.

Por conseguinte, constituindo os danos uma vertente integradora da causa de pedir nesta espécie de acções, se não houver coincidência, como efectivamente não há, entre os prejuízos alegados e peticionados numa e noutra acção, falha a referida tríplice identidade, pressuposto legalmente exigido para a procedência da excepção dilatória do caso julgado.

Mas, mesmo assim, ainda que não verificada a tríplice identidade, será que a decisão proferida no processo 299/99 se impõe no presente pleito, conforme defende a recorrente, por força da designada autoridade reflexa do caso julgado, em relação à questão prejudicial e fundamental - já, alegadamente, decidida no processo 299/99 - no sentido de imputar a responsabilidade pelo acidente ao condutor do veículo da recorrida?

A resposta é afoitamente negativa.

A chamada força ou autoridade reflexa do caso julgado também pressupõe, tal como a excepção do caso julgado, a tríplice identidade prevista no artigo 498 do Código de Processo Civil.

Já ensinava o Professor Alberto dos Reis, CPCAnotado, III-92/93, que não é possível criar duas figuras distintas - o caso julgado excepção e a autoridade do caso julgado -, pelo que está errado quem entenda que «o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art.502º» (actual 498).

O que acontece, segundo a lição do eminente civilista, é que «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».

E as coisas não podem deixar de continuar a ser assim entendidas face ao que dispõe o nº1 do artigo 671 do actual Código de Processo Civil : - transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497 e seguintes.

É, portanto, a própria a lei, quando estabelece o valor da sentença transitada em julgado e os seus limites, a remeter expressamente para os normativos definidores da excepção do caso julgado, entre eles o que exige a tríplice identidade (art.498).

Acresce, para finalizar, que as sentenças (e os acórdãos, bem com as demais decisões judiciais de fundo) constituem caso julgado nos precisos limites e termos em que julgam - artigo 673 do Código de Processo Civil.

Ora, não é verdade, como conclui a recorrente, que, na acção 299/99, se tenha decidido no sentido da «imputação da responsabilidade ao condutor do veículo propriedade da recorrida».

Essa acção terminou com o acórdão da Relação a absolver do pedido a aí ré, ora recorrente, com fundamento em que «não ficou demonstrado que D, condutor do veículo de matrícula GB, propriedade da C ou da B e seguro na ré apelante F, conduzisse como comissário da proprietária, isto é, no seu interesse e sob suas ordens e instruções; nem isso fora sequer alegado e menos ficou provado. Pelo que a responsabilidade civil passou a ser exclusivamente do condutor e não da segurada da ré F; ficaria ele a responder sozinho, ou os seus herdeiros, pelo facto danoso do acidente (artº503º, nºs 3 e 1, CC).».

DECISÃO

Pelo exposto nega-se a revista, com custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Maio de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho