Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4233
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Nº do Documento: SJ200301210042331
Data do Acordão: 01/21/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 11172/00
Data: 05/22/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", S.A., propôs contra B e mulher C e filhos, por aqueles representados, D e E, e F e mulher G acção a fim de ser declarada nula, por simulada, a venda feita em 88.04.14 do prédio identificado no art. 2º da petição inicial pelos réus F e mulher aos co-réus B e mulher, em representação dos réus seus filhos, cancelando-se o registo da referida transmissão, e válida a venda dissimulada aos 1º réus.
Contestando, por terem a acção como de impugnação pauliana, excepcionaram os réus B/C/D/E a caducidade e, impugnando, alegaram ter sido o prédio adquirido pela avó materna dos menores para estes, o que o autor conhecia, concluindo pela improcedência da acção e condenação daquele como litigante de má fé em multa e indemnização a liquidar em execução de sentença.
Após réplica, improcedeu, no saneador, a excepção de caducidade e, elaborados a especificação e questionário, prosseguiu o processo até final tendo procedido a acção por sentença (quer com base em simulação fraudulenta e relativa quer em abuso de direito quer em negócio em fraude à lei) que a Relação confirmou (apenas se pronunciou sobre o primeiro fundamento).
De novo inconformados, pediram revista os 4 primeiros réus, concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- provado que os 2 primeiros réus compraram o imóvel para os filhos e em seu nome destes e que essa foi realmente a sua vontade, independentemente dos motivos subjacentes, sendo que
- o objectivo de o imóvel não responder por dívidas decorrentes da actividade do 1º réu implica necessariamente uma correspondência entre a vontade declarada e a vontade real;
- os 5º e 6º réus sabiam que os primeiros compravam o prédio para os filhos e não para eles, nenhuma testemunha tendo afirmado o contrário como se reconhece na fundamentação da resposta ao quesito nem tal se infere do facto de o dinheiro ser deles proveniente;
- apenas se provou a intenção de prejudicar o autor não sendo legítimo dela inferir a de enganar terceiros, aqui, o autor enquanto credor;
- não há negócio dissimulado;
- a assim se não entender, deve anular-se a sentença por vício de ultra petita ao decidir com fundamento em facto jurídico essencialmente diverso daquele que as partes puseram na base das suas conclusões;
- provou-se que o negócio jamais teria sido celebrado se o não tivesse sido nos moldes em que o foi, pelo que nunca seria passível de redução;
- o autor, apesar de há muito saber da existência do imóvel e de inclusivamente ter falado com o vendedor, e de ter abordado tal questão nas reuniões para renegociação da dívida, jamais actuou no sentido de pretender impugnar a compra do imóvel, tendo criado nos 1º e 2º réus, a legítima convicção de que aceitava a situação, pelo que age com abuso de direito;
- violado o disposto nos arts. 240º, 241º, 292º, 293º, 236º e 238º CC e arts. 659º, 660º-2, 661º--1, 664º e 668º-1 a) CPC.
Contra-alegando, defendeu o autor a confirmação do acórdão.
Colhidos os vistos.
Matéria de facto que a Relação considerou provada:
a)- em 88.04.14, o réu F celebrou com os 1º e 2º réus, na qualidade de legais representantes dos 3º e 4º réus, o acordo cuja cópia consta de fls. 28 e ss., nos termos do qual o réu F, declarou «vender aos menores representados pelos segundos outorgantes, pelo preço de vinte milhões de escudos, o prédio urbano situado na R. ..., nº 219, freguesia e concelho de Cascais, descrito na 1ª Secção da Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº 21.201», tendo os 1º e 2º réus declarado «aceitar a venda para os menores seus representados»;
b)- naquela data, D e E não possuíam bens próprios com os quais pudessem suportar os custos do acordo antes referido;
c)- o imóvel tem uma área de 2.444 m², onde está implantada uma residência com a área coberta de 400 m², logradouro com 2.044 m², no qual existe piscina, jardim, balneários e garagem;
d)- em 93.05.11, foi registada na Conservatória do Registo Predial de Cascais a aquisição antes referida, a favor dos 3º e 4º réus;
e)- através do ofício de fls. 78, datado de 88.09.23, a Repartição de Finanças de Cascais, notificou o 1º réu, para, no prazo de 10 dias, dar cumprimento ao disposto no art. 60º do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, «referente à doação em numerário para aquisição, em nome dos seus referidos filhos menores, do prédio urbano..»;
f)- em 88.03.14, teve lugar o pagamento da sisa correspondente à mencionada compra, conforme conhecimento de fls. 79, pagamento efectuado por H, que aí se apresentou na qualidade de gestora de negócios do 1º réu, indicando este como representante legal dos filhos menores;
g)- na Repartição de Finanças de Cascais foi instaurado processo de imposto sucessório, «por doação de I e J por escritura de 14 de Abril de 1988» (doc. de fls. 81);
h)- em 88.03.14, foram entregues na Repartição de Finanças de Cascais, as fichas de inscrição fiscal de fls. 82 e 83, em nome dos 3º e 4º réus;
i)- em 93.04.12, foi celebrado o contrato de arrendamento a que se refere o doc. de fls. 84, referente ao imóvel;
j)- os 1º e 2º réus compraram e pagaram o imóvel sem agirem na qualidade de representantes dos 3º e 4º réus, tendo celebrado a escritura em nome dos filhos a pensar no futuro destes e para que o imóvel não constasse no património do casal, para não responder por dívidas decorrentes da actividade do 1º réu;
k)- os 5º e 6º réus não conheciam bens aos 3º e 4º réus, negociaram a venda do prédio com os dois primeiros réus e sabiam que eram estes que compravam o prédio, para os filhos;
l)- o valor real do prédio era superior a 20.000.000$00;
m)- na ocasião do acordo referido na al. a), o 1º réu tinha perante o autor um passivo superior a um milhão de contos;
n)- na mesma ocasião, o autor pediu aos 1º e 2º réus uma lista dos seus bens, como condição para renegociar o seu débito;
o)- em Dezembro de 1987, a conta do 1º réu no banco autor apresentava um débito superior a um milhão de contos;
p)- por esse motivo, decorreram negociações entre o banco autor e o 1º réu, a partir do primeiro trimestre do ano de 1988, as quais conduziram, em 89.07.12, à celebração do acordo que consta de fls. 120 a 131, posteriormente rescindido pelo autor, com celebração, em 92.03.12, do novo acordo que consta de fls. 146 a 156;
q)- nessa altura, o 1º réu indicou como garantia todos os bens que o mesmo afirmava serem do casal;
r)- nessa altura, o autor tinha feito uma indagação sobre todos os bens dos 1º e 2º réus, chegando a falar com o 5º réu;
s)- nas reuniões que levaram aos acordos, foi abordada a questão do prédio acima referido;
t)- por acordo com o 5º réu, os 1 º e 2º réus, bem como os filhos (3º e 4º réus), já se encontravam a viver no prédio à data da escritura;
u)- os 3º e 4º réus nasceram, respectivamente, em 81.07.27 e 78.04.24, filhos dos 1º e 2º réus;
v)- o processo acima referido sob a al. g), iniciou-se com o «Termo de Declaração» apresentado em 88.11.21, pelo 1º réu, na qualidade de representante legal dos seus filhos menores, no qual declarou «que no dia 14.4.1988, sua sogra I e seu marido J, casados entre si no regime de comunhão geral de bens, fizeram doação pura e simples a favor dos netos menores».
Decidindo: -
1.- Enquanto as instâncias concluíram ter havido simulação relativa, sendo o negócio simulado nulo e o dissimulado válido, os recorrentes afirmam que apenas se provou que os 1º e 2º réus «esquematizaram a operação - aquisição em nome dos filhos - para que aquele fim (fazer com que o bem não respondesse por dívidas) se concretizasse (fls. 431, 529 e 633) não existindo «pura e simplesmente qualquer negócio dissimulado» (fls. 432, 530 e 635).
Tal como para a Relação, os recorrentes alegam abuso de direito por parte da autora, e negando o seu, no exercício do direito de peticionar a declaração de nulidade da transacção.
2.- Recorre-se de um acórdão da Relação, não da sentença de que aquela conheceu em apelação.
Por isso, não faz sentido algum em continuar a esgrimir com a nulidade da sentença e nem de tal poderia acusar o acórdão quando este não se pronunciou sobre os outros dois fundamentos relevantemente invocados naquela.
A propósito, note-se a incongruência quando não tem como legítimo oficiosamente conhecer do abuso de direito (um dos fundamentos de que ex officio conheceu a 1ª instância) e dele se pretende (fls. 479, 545 e 649) valer, sem na contestação ter invocado essa figura jurídica, para ilegitimar o exercício do direito de acção pelo autor.
3.- Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora (CC- 601º).
Medidas que a lei dispõe com a finalidade da «conservação da garantia patrimonial» - a declaração de nulidade (CC- 605º), a sub-rogação do credor ao devedor (CC- 606º a 609º), a impugnação pauliana (CC- 610º a 618º) e o arresto (CC- 619º a 622º).
O autor, alegando ter interesse na declaração da nulidade, recorreu à primeira e, como causa da mesma, invocou a simulação.
Defende ter havido simulação relativa e, como tal, nulo o negócio simulado e válido o dissimulado (CC- 241º).
Não é necessário que a compra produza ou agrave a insolvência do devedor, o 1º réu (CC- 605º,1), mas, como requisitos, exige-se a divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o pactum simulationis entre o declarante e o declaratário e a intenção de enganar terceiros, e, in casu, face ao pedido do autor, a validade do negócio dissimulado (CC- 241º,1 e 2).
4.- Enquanto credor, aproveita ao autor a declaração de nulidade (CC- 605º,2).
Respeitando a delimitação entre facto e direito, cabendo a fixação daquele, em última instância, à Relação - o apuramento da vontade real é matéria de facto mas já não a fixação do sentido juridicamente decisivo da declaração -, não pode o STJ enveredar pelo trilho defendido pelos recorrentes.
A compra e venda é de 88.04.14.
Em Dezembro de 1987, o 1º réu devia ao autor mais de um milhão de contos e, por esse motivo, no primeiro trimestre de 1988 iniciaram negociações.
À data do negócio jurídico em questão, a dívida do 1º réu ao autor era superior a um milhão de contos, pedindo este àquele e sua mulher uma lista dos bens que possuíam como condição para renegociar o débito. Nessa altura, o 1º réu indicou como garantia todos os bens que o mesmo afirmava serem do casal. Dessa lista não constava o imóvel em causa.
Quando, após tudo isto, declaram aceitar a venda para os menores seus representados produzem uma declaração negocial divergente da sua real vontade (fixada esta pelas instâncias) - esta foi a de comprar o imóvel para si, não agindo na qualidade de representantes de seus filhos menores (que aí declaravam ser os compradores), com o fim de o subtrair como garantia dos credores ('para não responder por dívidas decorrentes da actividade do 1º réu'), nomeadamente do autor com quem negociava o seu débito e que como condição da renegociação exigia uma lista dos bens do casal para os dar de garantia ('para que não constasse no património do casal').
A declaração manifestada não correspondeu à vontade real e ficou demonstrada qual a causa dessa divergência.
5.- Os réus vendedores não conheciam os menores e negociaram a venda do prédio com os 2 primeiros réus, sabendo que eram estes quem o comprava, para os filhos.
Os vendedores sabiam que estavam a vender aos 1º réus e concordaram em que estes realizassem a escritura em nome dos filhos, o que não correspondia à vontade real que eles conheciam.
Sabiam ainda que os 1º réus compravam o prédio para sua residência, tendo autorizado já antes a respectiva ocupação.
Significativa a redacção e a pontuação da resposta ao quesito 3º (consta da al. j)) cuja redacção era - «os 5º e 6º réus sabiam que os menores não possuíam bens e que era aos 1º e 2º réus que faziam a venda declarada, nisso aquiescendo?».
Suficiente o acordo incidindo sobre a pessoa de um dos outorgantes, os compradores aqui.
Irreleva a circunstância de os compradores invocarem que quiseram proteger os filhos (não só ...) e de na escritura constar que a compra era em nome deles - a vontade real dos compradores era conhecida dos vendedores, os quais anuíram em que dele ficasse a constar uma declaração divergente e o ora autor é interessado de boa fé.
Verificado o acordo simulatório
6.- Retomemos os factos.
A compra e venda é de 88.04.14.
Em Dezembro de 1987, o 1º réu devia ao autor mais de um milhão de contos e, por esse motivo, no primeiro trimestre de 1988 iniciaram negociações.
À data do negócio jurídico em questão, a dívida do 1º réu ao autor era superior a um milhão de contos, pedindo este àquele e sua mulher uma lista dos bens que possuíam como condição para renegociar o débito. Nessa altura, o 1º réu indicou como garantia todos os bens que o mesmo afirmava serem do casal. Dessa lista não constava o imóvel em causa.
Os 1º e 2º réus celebraram a escritura em nome dos filhos a pensar no futuro destes e para que o imóvel não constasse no património do casal, para não responder por dívidas decorrentes da actividade do 1º réu.
Embora o intuito de enganar (animus decipiendi) não se confunda com a intenção de prejudicar (animus nocendi) nem esta implique necessariamente aquele, não devem os recorrentes deixar de ter presente que o autor, com quem os 1º e 2º réus estavam a renegociar o seu débito, lhes exigia que dessem como garantia todos os bens de que queriam uma lista e nela não incluíram este imóvel (observe-se que, contestando, nem sequer criaram a dúvida sobre a inclusão) apesar de o terem adquirido para si.
Criaram os compradores - 1º e 2º réus - uma situação de aparência, perante terceiros (os credores, nomeadamente, aqui, o autor), em que faziam parecer real um facto - ser a compra efectuada pelos filhos menores daqueles, sem que, na realidade, o fosse.
Esta convicção numa realidade que o não era transmitiam-na também os vendedores, pois que conheciam a aparência em cuja criação conscientemente colaboraram.
Presente o intuito de enganar, este o animus decipiendi e não o animus nocendi é que constitui elemento da simulação.
7.- A simulação relativa supõe que sob o negócio simulado «exista um outro que as partes quiseram realizar» (CC- 241º,1).
Os 1º e 2º réus adquiriram para si aos 5º e 6º réus o imóvel. Foi este o querido.
Este o negócio dissimulado.
A compra e venda foi realizada por escritura pública.
Nulo o negócio simulado e válido o dissimulado (CC- 241º,1 e 2).
8.- Pese embora a incongruência apontada e não terem os recorrentes excepcionado o abuso de direito, este, por ser de conhecimento oficioso, deve ser apreciado (CC- 334º).
Tendo naufragado, com trânsito, a excepção de caducidade (CC- 618º) que opuseram, pretendem agora um efeito equivalente sabendo, contudo, que não alegaram nem existem nos autos factos que o apoiem.
Certo que sobre a compra e venda já tinham decorrido mais de 5 anos quando o autor propôs esta acção. Porém, a nulidade é invocável a todo o tempo (CC- 286º).
Nas reuniões que levaram aos acordos de 89.07.12 e de 92.03.12 a questão do prédio foi abordada e o autor fez uma indagação sobre todos os bens dos 1º e 2º réus, chegando a falar com o 5º réu.
Provado ainda que, nessa altura, o 1º réu indicou como garantia todos os bens que ele afirmava serem do casal e da lista, que lhe fora pedida pelo autor, não constava o imóvel em causa.
Já com as negociações começadas entre o autor e o 1º réu, este fez sisar (em 88.03.14) em nome dos filhos menores a compra e dá começo, em 88.11.21, ao processo de imposto sucessório com um termo em que declara que foram esses seus filhos quem adquiriu.
Já após essas negociações faz registar, em 93.05.11, predialmente a aquisição em favor dos mesmos filhos.
A lista apresentada àquele dando como garantia os bens do casal não incluía o imóvel em causa, repita-se o facto.
Estes factos não permitiriam inferir, se ao STJ lícita fosse extrair a inferência, que o autor conhecesse já da nulidade da venda e que tivesse actuado de modo a criar nos réus a confiança de que ela não viria a ser requerida.
As instâncias não retiraram dos factos uma tal inferência e, como facto que era, cabia às mesmas fazê-lo se a tanto os factos provados conduzissem.
Ao STJ apenas seria lícito ver se o processo de desenvolvimento lógico permitindo a inferência fora respeitado.
Inexistem elementos de facto que permitam concluir ter havido, pelo autor, ao exercer o seu direito de acção, abuso de direito.
A ser de qualificar de fraudulenta a simulação faleceria legitimidade ao simulador para invocar, contra o autor, o abuso de direito (CC- 243º,1).

Termos em que se nega a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2003
Lopes Pinto
Ribeiro Coelho
Garcia Marques