Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1572/21.1T8CVL-C.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: BALDIOS
ASSOCIAÇÃO
LEGITIMIDADE ADJETIVA
LEGITIMIDADE ATIVA
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
BEM IMÓVEL
DIREITO DE PROPRIEDADE
AÇÃO POPULAR
INTERESSES DIFUSOS
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. — As associações para o desenvolvimento local não têm legitimidade para a defesa dos baldios.

II. — Em consequência, não têm legitimidade propor uma acção de simples apreciação negativa, pedindo que se declare que um determinado imóvel não é propriedade de uma determinada freguesia, por ser baldio.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. — RELATÓRIO


1. A Associação Sobral de S. Miguel Patrimónios de Xisto, ADL (Sobral Paxis, ADL) intentou contra a Freguesia de Sobral de S. Miguel e Altice Portugal, S.A., a presente acção, pedindo:

I. — que seja declarado que a Ré Junta de Freguesia não é proprietária do imóvel que identifica;

II. — que seja declarada nula a escritura notarial lavrada a 24.03.2021 no Cartório Notarial ..., exarada a fls. 123 a 1254 verso do Livro 130 e referente à aquisição por usucapião do prédio rústico identificado;

III. — que sejam declaradas nulas e sem qualquer valor todas e quaisquer descrições e inscrições prediais efetuadas com base na referida escritura, designadamente as existentes a favor da Ré na Conservatória do Registo Predial ..., Ap. 2402, de 2021/06/11;

IV — que seja declarado nulo o contrato de arrendamento celebrado entre a Ré Junta de Freguesia e a Ré “Altice”;

V. — que sejam as Rés condenadas a repor o campo de futebol nas mesmas condições em que se encontrava antes da edificação da antena da “Altice”, procedendo-se à remoção desta do campo de jogos e à reposição do terreno do campo de jogos na situação em que se encontrava antes.


2. A Ré Freguesia de Sobral de S. Miguel contestou e deduziu reconvenção, pedindo:

I. — que seja declarado que a Freguesia de Sobral de S. Miguel é dona e legítima possuidora do prédio urbano, com a área de 8377m2, composto por terreno destinado a campo de futebol, que confronta a norte com caminho público, a sul com AA, a nascente com BB e a poente com caminho e CC, sito na Rua ..., na Freguesia ..., concelho ..., descrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 2336/52540611 e inscrito na sua titularidade na matriz predial urbana da Freguesia ... sob o artigo 854;

II. — que a Autora seja condenada a reconhecer que a Freguesia de Sobral de S. Miguel é dona e legítima possuidora de tal prédio.


3. O Tribunal Judicial da Comarca ... absolveu as Rés da instãncia, julgando procedentes a excepção dilatória nominada de ilegitimidade e a excepção dilatória inominada de falta de requisitos para o exercício do direito de acção popular.


4. O dispositivo do despacho-saneador sentença recorrido é do seguinte teor:

Ante o exposto, deverá ser julgada procedente a exceção dilatória inominada de falta de requisito do direito de ação popular e, consequentemente, serem as Rés absolvidas da instância quanto aos pedidos formulados na petição inicial.

Em face do supra determinado, considera-se prejudicada a análise das demais questões invocadas e relacionadas com os pedidos formulados pela Autora na petição inicial, mormente da intervenção acessória do Ministério Público.

Oportunamente, o Tribunal se pronunciará quanto à responsabilidade tributária.

Registe e notifique.

Após trânsito do presente despacho e atento o determinado no mesmo, notifique-se a Autora e a Ré Junta de Freguesia para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 (dez) dias, quanto à eventual admissibilidade e prosseguimento dos presentes autos quanto aos pedidos reconvencionais.”


5. Inconformada, a Autora Associação Sobral de S. Miguel Patrimónios de Xisto, ADL (Sobral Paxis, ADL) interpôs recurso per saltum.


6. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(Da confusão entre a causa de pedir e factos complementares à decisão)

a) Na presente acção, o pedido principal, do qual todos dependem, é o de que seja declarado que a Ré Junta de Freguesia não é proprietária do imóvel supra identificados.

b) O complexo de factos susceptíveis de preencher a previsão da norma que estatui o efeito jurídico pretendido (declaração de que a ré não é titular do direito) é, assim, (i) a inexistência (simples apreciação negativa) de factos que permitam à Junta invocar um direito de propriedade sobre o terreno; (ii) a existência de uma declaração formal (escritura notarial), falsa, da existência de tal direito – aquisição de um terreno por usucapião.

c) O que a autora se arroga é ter um interesse em proteger um património comunitário que é atacado pela conduta da Ré – declaração formal falsa -, não o de ser titular de um baldio que é um mero facto acessório de enquadramento da pretensão.

d) De facto, a autora poderia não ter feito qualquer menção à qualidade do terreno, invocando apenas a inexistência de um direito sobre o mesmo pela ré e a declaração formal falsa, a sua pretensão não poderia deixar de ser apreciada!

e) Por outro lado, como é óbvio, nem a invocação da existência de um baldio pode, só por si, ser considerada a causa de pedir na presente acção, nem a continuidade temática entre a descrição de um terreno como baldio e o facto de um pedido de apreciação negativa de um direito de outrem sobre esse terreno permitem concluir que «apenas está em causa discutir uma relação jurídica de direito de baldio».

f) Atento o exposto, invalidada a premissa (errada) em que o silogismo judiciário se sustentou, soçobra a sua conclusão jurídica – a de que «a pretensão da Autora não se mostra inserida no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, pelo que nunca uma acção popular poderia ter como objecto os pedidos formulados pela Autora, tendo por base a causa de pedir que os sustenta».

(Da errónea interpretação do fundamento da invocação da lei da acção popular e razões em que esta se sustenta)

g) Por outro lado, como é referido na petição inicial, o terreno (por acaso, também baldio) em causa é um património cultural da aldeia – v., por todos, arts 65 («a obra foi executada sobre um património histórico e comunitário da Aldeia de Sobral de São Miguel, lesando irremediavelmente o espaço em causa e inviabilizando os fins para que foi construído e a que sempre esteve afecto»), 79 («o campo da bola é e sempre foi um terreno comunitário, como imóveis existentes na aldeia, nomeadamente os fornos, a eira, o tronco de ferrar, património que a Junta deve zelar e cuidar à falta de entidade específica para tal»), 8 (« que é património cultural da aldeia») da petição inicial.

h) Apenas uma leitura absolutamente anacrónica e desligada da prática contemporânea permite concluir que uma realidade jurídica só apresenta um sentido possível, unívoco e de direcção inexorável.

i) Do facto de um terreno assumir a qualidade de baldio não se extrai, enquanto conclusão lógica ou válida, que este não apresente também uma dimensão que o extravasa e que o aproxima da noção de interesse difuso, designadamente, e como alegado pela autora, que este é um património comunitário, monumento terreno de uma memória comum, partilhada pela comunidade de todos os sobralenses.

j) Como se julga evidente, um bem pode ser apropriado individual ou colectivamente e pode também ser um valor a proteger, numa dimensão da realidade que ultrapassa o mero conceito de «direito subjectivo».

k) E, neste caso, estamos precisamente perante um exemplo paradigmático de um interesse difuso, expressamente previsto no art. 1.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (património cultural).

l) Por outro lado, e uma vez que na decisão se confunde a dimensão da admissibilidade objectiva da acção popular (preenchimento, pelo objecto da acção, dos requisitos desse regime), com a legitimidade processual da autora para o litígio em causa, cumprirá ainda referir que foi precisamente para justificar a legitimidade da autora, por estar em causa um património cultural, que a lei da acção popular foi convocada.

m) A autora, ora recorrente, sustentou o exercício do seu direito na lei da acção popular por, através da mesma, visar proteger um interesse comunitário da aldeia, o que não significa estar a exercer um direito de baldio.

n) De resto, poderia perguntar-se, com legitimidade: Como reagir perante uma apropriação ilegítima de um património cultural da aldeia? Conseguirá a Mm.ª Juiz a quo discernir algum titular desse direito?

o) Mais, nesse caso, para que serviria constituir uma associação de desenvolvimento local e de protecção de património se lhe é negado, à partida, o meio por excelência de exercer essa defesa, direito esse com assento constitucional (cf. art. 20.º da CRP)?

p) Quanto à jurisprudência citada pela Mm.ª Juiz a quo, dir-se-á que, sem prejuízo da razão que a sustenta, constitui uma transposição acrítica de conclusões apostas nos sumários publicados, uma vez que as premissas dos casos não coincidem com as do presente.

q) Mas ainda que restassem dúvidas sobre a admissibilidade da presente acção, tanto assim é que, num caso em tudo semelhante foi reconhecido o direito ao recurso da acção popular, cf. Ac. do TRC de 27-04-2021, proc. 711/17.1T8CTB.C1.

r) E no mesmo sentido, pugnando para o que deve ser o objectivo subjacente a ter em consideração pelo julgador, a presença ou não de “fumus boni iuris”, cf. Acórdão do STJ de 08-09-2016, proc. 7617/15.7T8PRT.S1.

(Da inconstitucionalidade da interpretação plasmada na sentença a quo)

s) Dando por reproduzida a argumentação já expendida, dir-se-á, a final que ao concluir pela inadmissibilidade de exercício da acção popular na defesa de um património cultural, a Meritíssima Juiz violou a norma constitucional do art.º 52, n.º 3 da CRP e a referida lei da acção popular - Lei 83/95, de 31 de Agosto, nomeadamente os seus artigos 2.ºe 3.º e 13.º.

A recorrente requer ainda, ao abrigo do art. 678.º, n.º 1 do CPC, que o recurso suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que, uma vez que (i) o valor da causa e da sucumbência é superior à alçada da Relação; (ii) apenas se suscita matéria de Direito; (iii) não são impugnadas quaisquer decisões interlocutórias.

Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências não deixarão de doutamente suprir, deve ser dado provimento ao presente Recurso, devendo ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, mandando-se seguir a acção popular os seus ulteriores termos, como é de Direito e Sã Justiça.


7. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

I. — se a Autora Associação Sobral de S. Miguel Patrimónios de Xisto, ADL (Sobral Paxis, ADL) tem legitimidade processual activa para a propositura da presente acção;

caso afirmativo,

Ii. — se estão preenchidos os requisitos para o exercício do direito de acção popular.


II. — FUNDAMENTAÇÃO


   OS FACTOS


8. Os factos relevantes para a decisão constam do precedente relatório.


   O DIREITO


9. A primeira questão suscitada consiste em averiguar se a Autora, agora Recorrente, tem legitimidade processual activa para a propositura da presente acção.


10. O conceito de legitimidade processual compreende a legitimidade directa e a legitimidade indirecta: a primeira — legitimidade directa — é reconhecida ao (alegado) titular da situação subjectiva [1]; como as situações subjectivas mais importantes são o direito subjectivo em sentido amplo, o dever jurídico e a sujeição, pode dizer-se que, em regra, a legitimidade directa é reconhecida ao (alegado) titular do direito subjectivo em sentido amplo, do dever jurídico ou da sujeição; a segunda — legitimidade indirecta — é aquela que é reconhecida a alguém que se substitui ao alegado titular da situação subjectiva (do direito subjectivo em sentido amplo, do dever jurídico ou da sujeição) [2].


11. Em concreto, a Autora Associação Sobral de S. Miguel Patrimónios de Xisto, ADL (Sobral Paxis, ADL), deduziu como pedido principal, “do qual todos dependem” [3], a declaração de que a Freguesia de Sobral de S. Miguel não é proprietária de um determinado imóvel — sem ter deduzido, como pedido principal, p. ex., o de que a Associação Sobral de S. Miguel fosse proprietária do imóvel designado.


12. O problema da legitimidade processual activa da Autora, agora Recorrente, é, por consequência, um problema de legitimidade processual indirecta: a Autora, agora Recorrente, propõe a presente acção para sem alegar sequer que seja titular da situação subjectiva — sem alegar, p. ex., que seja titular de um direito sobre o imóvel designado.


13. Ora a legitimidade indirecta “assenta necessariamente numa regra que impõe ou permite a substituição do titular do direito” [4] — e, em concreto, a regra em causa poderia encontrar-se no regime da acção popular ou no regime dos baldios.


14. O art. 52.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe Direito de petição e direito de acção popular, determina:

1. — Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respetiva apreciação.

2. — A lei fixa as condições em que as petições apresentadas coletivamente à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas são apreciadas em reunião plenária.

3. — É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;

b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.


15. Os termos em que deve ser actuado ou exercido o direito de acção popular encontram-se definidos na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, entretanto alterada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro.


16. Os arts. 1.º a 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, dispõem:

Artigo 1.º — Âmbito da presente lei

1. — A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.

2. — Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.


Artigo 2.º — Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular

1. — São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.

2. — São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.


Artigo 3.º — Legitimidade activa das associações e fundações

Constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações:

a) A personalidade jurídica;

b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate;

c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais [5].


17. Enquanto o Tribunal de 1.ª instância considerou que a acção proposta pela Autora, agora Recorrente, se destinava à defesa do direito de baldio [6] e que, destinando-se à defesa do direito de baldio, não se destinaria à defesa de nenhum dos interesses designados no art. 52.º, n.º 3, da Constituição e no art. 1.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, a Autora, agora Recorrente, alega que a acção se destina à defesa do património cultural — através da declaração de que a Freguesia de Sobral de S. Miguel não é proprietária do imóvel designado, pretender-se-ia proteger um “património comunitário”, relevante para uma certa “memória comum”.


18. Entrando na apreciação dos argumentos deduzidos, dir-se-á o seguinte:


19. A acção popular pode ser proposta para a defesa de interesses difusos, de interesses colectivos e de interesses individuais homogéneos [7]: os interesses difusos são insusceptíveis de individualização, como, p. ex., os interesses na preservação do ambiente e do património cultural [8], os interesses colectivos são titulados por um grupo de pessoas determinadas ou determináveis, como, p. ex., os clientes [9] ou os trabalhadores de uma determinada empresa [10]; os interesses individuais homogéneos, esses, são a expressão individualizada dos interesses colectivos ou dos interesses difusos [11].


20. Em concreto, a Autora, agora Recorrente, alega que a acção foi proposta para a prossecução de um interesse difuso na preservação do património cultural.


21. O problema está em que os factos deduzidos pela Autora, agora Recorrente, como causa de pedir são completamente irrelevantes para a alegação de que há uma ameaça ao património cultural, de que a ameaça se consumou em alguma lesão do património cultural ou de que a lesão do património cultural cesse ou seja evitada pela declaração de que a Ré Freguesia de Sobral de S. Miguel não é proprietária de um determinado imóvel [12].


22. Em lugar de exprimirem uma ameaça ou de uma lesão do património cultural, os factos deduzidos pela Autora, como causa de pedir, exprimem uma ameaça ou uma lesão do direito das comunidades locais sobre bens comunitários; sugerem que está em causa a afetação dos bens comunitários às necessidades colectivas [13] ou, em todo o caso, a exploração dos bens comunitários “em proveito directo da colectividade” [14].


24. Ora a Associação Sobral de S. Miguel Patrimónios de Xisto, ADL não tem legitimidade processual activa para propor uma acção de simples apreciação negativa, pedindo que se declare que um determinado imóvel não é propriedade de uma determinada freguesia — e que não é propriedade de uma determinada freguesia por ser baldio.


25. Estando em causa, tão-só, uma ameaça ou uma lesão do direito de baldio, deve concordar-se com a jurisprudência dos Tribunais da Relação no sentido de que uma associação, designadamente uma associação para o desenvolvimento local, não tem legitimidade para a defesa dos baldios [15] —  p. ex., “não tem legitimidade para embargar obras realizadas em terrenos baldios” [16].


26. O resultado só pode ser reforçado pelo regime dos baldios.


27. O primeiro e o quinto pedidos [17] correspondem à acção de defesa de direitos e interesses da comunidade local relativos aos correspondentes imóveis comunitários prevista no art. 24, n.º 1, alínea q), e no 29.º, n.º 1, alíneas a) e h), da  Lei n.º 75/2017, de 17 de Agosto.


28. Ora a legitimidade processual activa para as acções de defesa de direitos e interesses da comunidade local relativos aos correspondentes imóveis comunitários está reservada para os órgãos da comunidade local — assembleia de compartes e consellho directivo.


29. O segundo, o terceiro e o quarto pedidos [18] correspondem sensivelmente à acção de declaração de nulidade prevista no art. 6.º da  Lei n.º 75/2017, de 17 de Agosto [19].


30. Ora a legitimidade processual activa para as acções de declaração de nulidade está reservada para os órgãos da comunidade local e para as pessoas referidas no n.º 9 do art. 6.º.

9. — A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes;

b) Pelo Ministério Público;

c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele;

d) Pelos cessionários do baldio.

10. — As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore. […]


31. Em suma — a Autora, agora Recorrente, não tem legitimidade para propor uma acção popular, por não estar em causa a defesa de nenhum dos interesses difusos designados no art. 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e no art. 1.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, e não tem legitimidade para propor uma acção de defesa do baldio, por estar em causa a defesa de direitos e interesses da comunidade local relativos aos correspondentes imóveis comunitários, reservada aos órgãos do baldio.


32. Face à resposta dada à primeira questão, fica prejudicada a segunda.


III. — DECISÃO


Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.

Sem custas — art. 4.º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais.




Lisboa, 30 de Março de 2023



Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Tibério Nunes da Silva

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[1] João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 335.

[2] João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. I, cit., pág. 335.

[3] Expressão da conclusão a) das alegações de recurso de revista.

[4] João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 335.

[5] Sobre o direito de acção popular na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, vide por todos Paulo Otero, “A acção popular: configuração e valor actual no direito português”, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano 59 (1999), págs. 871-893.

[6] Sobre o direito de baldio, vide, na doutrina, Maria Raquel Rei, “Do carácter não usucapível do direito de baldio (Anotação a uma escritura de justificação)”, in: Revista de direito civil, ano 2 (2017), págs. 819-836, e, na jurisprudência, por todos, os acórdãos do STJ de 24 de Outubro de 2019 — processo n.º 850/13.8T8LSA.C1.S2 — em cujo sumário se diz que “[o] direito de baldio é um direito real que, embora esteja previsto em legislação avulsa (não no CC), não deixa de respeitar, como os demais direitos com essa natureza, o princípio da tipicidade e que tem um regime jurídico muito especifico, particularmente quanto ao respectivo conteúdo: (i) não abarca o gozo, de modo pleno e exclusivo, do direito de disposição do bem (área de terreno) sobre que incide, nem em vida nem por morte; (ii) caracteriza-se por proporcionar a cada elemento de um conjunto de pessoas (uma “comunidade local”), de acordo com as deliberações das assembleias de compartes e os usos e costumes (arts. 1.º e 5.º da Lei 68/93 ao caso aplicável), a posse correspondente (apenas) às faculdades de uso e fruição das utilidades propiciadas pelo baldio; (iii) o baldio, estando “fora do comércio jurídico”, é insusceptível de apropriação privada, quer pelos compartes individualmente considerados, quer pela estrutura da sua administração” — e de de 10 de Janeiro de 2023 — processo n.º 668/20.1T8PBL.C1.S1 —, em cujo sumário se escreve que “[o] direito dos compartes relativamente a terrenos baldios é um direito real, ainda que não seja um direito de propriedade, que tem tutela jurisdicional através de ação confessória”.
[7] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 11 de Fevereiro de 2002 — processo n.º 03A1243 —; de 20 de Outubro de 2005 — processo n.º 05B2578 —; de 8 de Setembro de 2016 — processo n.º 7617/15.7T8PRT.S1 —; de 29 de Novembro de 2016 — processo n.º 135/14.2T8MDL.G1.S1 —; ou de 12 de Novembro de 2020 — processo n.º 7617/15.7T8PRT.S2.
[8] Como se diz, p. ex., no acórdão do STJ de 23 de Setembro de 1998 — processo n.º 98A200 —, “[o]s interesses difusos correspondem a interesses juridicamente reconhecidos e tutelados, cuja titularidade pertence a todos e cada um dos membros de uma comunidade ou de um grupo mas não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer um desses membros — são simultaneamente interesses não públicos, não colectivos e não individuais”.
[9] Cf. designadamente o acórdão do STJ de 8 de Setembro de 2016 — processo n.º 7617/15.7T8PRT.S1.
[10] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 3 de Março de 2016 — processo n.º 3704/12.1TTLSB.L1.S1—, em que se diz que “[s]ão interesses colectivos os pertencentes a um grupo, classe ou categoria indeterminada, mas determinável de indivíduos, ligados entre si pela mesma relação jurídica básica, e válida e legalmente associados” — ou de 15 de Janeiro de 2019 — processo n.º 9055/15.2T8LSB.L1.S1 —, em que se diz que “[s]ão interesses coletivos os interesses organizados de modo a adquirirem uma estabilidade unitária e organizada, de tal forma que se agregam a um determinado grupo ou categoria de indivíduos relacionados com um determinado bem jurídico”.
[11] Cf. designadamente o acórdão do STJ de 12 de Novembro de 2020 — processo n.º 7617/15.7T8PRT.S2.

[12] Como admite a Autora, agora Recorrente: “b) O complexo de factos susceptíveis de preencher a previsão da norma que estatui o efeito jurídico pretendido (declaração de que a ré não é titular do direito) é, assim, (i) a inexistência (simples apreciação negativa) de factos que permitam à Junta invocar um direito de propriedade sobre o terreno; (ii) a existência de uma declaração formal (escritura notarial), falsa, da existência de tal direito – aquisição de um terreno por usucapião”.

[13] Expressão do acórdão do STj de 23 de Março de 2021 — processo n.º 129/10.7TBVNC.G1.S2.

[14] Expressão do acórdão do STJ de 12 de Maio de 2016 — processo n.º 123/10.8TBMDB.G1.S1.

[15] Cf. acórdão do TRL de 27 de Junho de 2019 — processo n.º 211/16.7T8MFR.L1-2.

[16] Cf. acórdão do TRC de 8 de Março de 2022 — processo n.º 996/21.9T8CVL.C1.

[17] I.e., o pedido de que seja declarado que a Ré Freguesia de Sobral de S. Miguel não é proprietária do imóvel e o pedido de que as Rés sejam condenadas a repor o campo de futebol nas mesmas condições em que se encontrava antes da edificação da antena da Altice.

[18] I.e., os pedidos de que seja declarada nula a escritura notarial lavrada a 24 de Março de 2021, referente à aquisição por usucapião do prédio rústico identificado; de que sejam declaradas nulas e sem qualquer valor todas e quaisquer descrições e inscrições prediais efectuadas com base na referida escritura; e de que seja declarado nulo o contrato de arrendamento celebrado entre a Ré Freguesia de Sobral de S. Miguel e a Ré Altice.

[19] Em cujos n.ºs 1 a 4 se determina: “1. — As comunidades locais podem adquirir coisas imóveis por qualquer modo legalmente admitido, que passam a integrar o subsetor dos bens comunitários. 2. — Os terrenos baldios não são suscetíveis de penhora, nem podem ser objeto de penhor, hipoteca ou outros ónus, sem prejuízo da constituição de servidões, nos termos gerais de direito, bem como do disposto nos números seguintes. 3. — Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião. 4. — Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei. […]”