Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P2133
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LEAL HENRIQUES
Nº do Documento: SJ200210230021333
Data do Acordão: 10/23/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T JUD MATA
Processo no Tribunal Recurso: 125/00
Data: 01/23/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL
DO
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. No Tribunal Colectivo da Comarca da Maia responderam os arguidos A e B, melhor id. nos autos, tendo ambos e cada um sido condenados, como autores materiais e em concurso real, de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art.º 6º com referência ao art.º 1º, n.ºs 1, al. d) e 2, da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, e, de um crime de roubo, o primeiro nas penas de 10 meses e 5 anos e 7 meses de prisão (cúmulo jurídico: 6 anos de prisão), e o segundo nas penas de 6 meses e 5 anos de prisão (cúmulo jurídico: 5 anos e 3 meses de prisão), e ambos, solidariamente, na indemnização de 75.600.000$00 de indemnização à demandante civil "C".
Inconformados, recorrem ambos e também o M.º P.º para o Tribunal da Relação do Porto, a qual, por acórdão de 02.01.23, decidiu negar provimento aos recursos interpostos por aqueles e conceder parcial provimento à impugnação assinada pelo M.º P., fixando aos arguidos as seguintes censuras penais:
- ao A:
- 8 anos de prisão pelo crime de roubo;
- 1 ano e 6 meses de prisão por crime de dano com violência;
- 10 meses de prisão pelo crime de detenção ilegal de arma de defesa.
cúmulo jurídico: 9 anos e 2 meses de prisão, com perdão de 1 ano e 6 meses de prisão ao abrigo da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
- ao B:
- 7 anos e 6 meses de prisão pelo crime de roubo;
- 1 ano e 2 meses de prisão por crime de dano com violência;
- 6 meses de prisão pelo crime de detenção ilegal de arma de defesa.
cúmulo jurídico: 8 anos e 4 meses de prisão, com perdão de 1 ano e 6 meses de prisão por força do disposto na Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
Ainda em desacordo, recorrem agora ambos os arguidos para este Supremo Tribunal, concluindo desta forma as respectivas motivações:
A) A:
«- Foram valoradas, na decisão condenatória, como meio de prova, diversas transcrições de conversas telefónicas interceptadas, o que terá ocorrido num outro inquérito que não o que deu origem ao presente processo;
- não resulta dos autos que exista decisão judicial que tenha ordenado tais intercepções, já que tal decisão, e respectiva fundamentação, nele se não encontra;
- tendo o recorrente suscitado essa questão na primeira instância, o que foi indeferido, julgou-se no acórdão ora recorrido ter-se formado, sobre tal matéria, caso julgado;
- a utilização de meios de prova proibidos constitui nulidade insuprível e cognoscível a todo o tempo, pelo que não pode existir caso julgado formal que impeça a reapreciação da questão;
- porque assim não decidiu, o acórdão recorrido violou as normas do n.º 3 do artigo 126.º do C.P.P. e do n.º 8 do artigo 32º da C.R.;
- devendo ser revogado, e substituído por outro que, considerando nulo o meio de prova que constituem aquelas intercepções e consequentes transcrições, anule a sentença proferida que as valorou como meio de prova;
- as transcrições dessas intercepções não patenteiam a intervenção de quem a elas presidiu, nem a identidade de quem as fez e redigiu;
- a omissão de tais requisitos formais invalida tais transcrições como meio probatório;
- e não constitui mera irregularidade processual susceptível de ser sanada por falta da respectiva arguição tempestiva;
- dado que tal matéria está excluída do regime do Título V do Livro II do C.P.P.;
- porque assim não decidiu o acórdão recorrido violou a norma do n.º 3 do artigo 118º do C.P.P.;
- devendo ser revogado e substituído por outro que decida serem nulas e processualmente ineficazes as citadas transcrições de intercepções telefónicas;
- mais se decidiu no acórdão ora recorrido, dando provimento ao recurso do M.º P., condenar o recorrente pela prática de um crime de dano com violência;
- da matéria de facto provada resulta que o dano causado o foi com a finalidade de impedir a perseguição, e, portanto, integra-se no crime de roubo pelo qual o recorrente foi condenado;
- porque assim é, os factos que o integrariam não revelam autonomia para que possam constituir a prática de um outro crime;
- ao que acresce que, com a sua prática, não foi cometida violência, nem ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física de quem quer que fosse, nem colocado ninguém na impossibilidade de resistir;
- porque assim é, o acórdão recorrido, ao decidir da forma como o fez, violou as normas dos artigos 212º e 214º, n.º 1, do C.P.Penal;
- devendo ser revogado e substituído por outro que considere não ter o recorrente cometido o crime de dano com violência pelo qual foi, agora, condenado».
B) B:
«- Ao decidir como decidiu o tribunal recorrido interpretou de forma manifestamente errada as normas dos artigos 125.º e 126.º,187.º n.º 1 e 2, 188.º e 189.º, todas do Código de Processo Penal, que assim se mostram violadas, posto que ao admitir como válido meio de prova proibido porque não legalmente autorizado (auto de transcrição de escutas telefónicas) e porque inscritas na previsão do n.º 3 do art.º 126.º ex vi dos artigos 189.º e 190.º, daquele mesmo diploma normativo, nos termos em que o foram tais meios de prova são proibidos, logo ilegais, não podendo ser utilizados pelo tribunal.
- Ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido interpretou de forma notória e manifestamente errada a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, posto que ao formular a sua convicção em meios de prova como se disse e se tem por provado ilegais e contraditórios entre si, foi contra todas as regras do direito e da experiência comum pelo que desta forma se mostra violada aquela norma do direito processual penal.
- Formulando assim e deste modo a sua convicção com absoluto desvio aos princípios emergentes das regras de experiência comum, assim violando como se disse e diz, aquela disposição normativa.
- Ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido interpretou de forma errada a norma do artigo 147.º do Código de Processo Penal, assim a violando, posto que mostrando-se como se mostram violadas as disposições constantes dos n.ºs 2 e 4 daquele normativo, o tribunal não podendo valorar tal meio de prova, dele não se poderia servir para sustentar a sua douta decisão.
- Ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido interpretou de forma errada as normas contidas nos artigos 425.º, n.º 4, com referência aos artigos 379.º n.º 1 alínea a), ex vi do artigo 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, que assim se mostram violadas, posto que atento todo o descrito, o tribunal recorrido deveria desde logo declarar a nulidade do douto acórdão de 1.ª instância, absolvendo o recorrente dos factos que lhe foram imputados, ou se assim se não entendesse, ordenar a repetição do julgamento declarando a nulidade das provas.
- Ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido interpretou de forma manifestamente errada as normas dos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, 71.º, n.ºs 1 e 2 al. d) e 3, que assim foram violadas, posto que ainda que todos os factos dados como provados fossem verdadeiros (e reafirmamos não o são) nunca ao aqui arguido ora recorrente poderia ser aplicada pena de prisão em medida superior a quatro anos, atentos todos os factores atenuantes já referidos.»
No Tribunal da Relação o M.º P.º remeteu para o alegado em anteriores respostas, apenas acrescentando, e em relação ao recorrente B, que a pena «foi sabiamente encontrada e está plenamente justificada na decisão impugnada».
Requeridas alegações escritas pelo recorrente A (cfr. fls. 891), limitou-se a reproduzir, sintetizando, o que subscreveu na motivação.
Por seu turno o M.º P.º junto deste Supremo Tribunal alegou no sentido da confirmação do julgado, louvando-se para tanto na argumentação aduzida pela instituição na 2ª instância, sem prejuízo de, se for caso disso, se alargar a apreciação do caso em sede de alegações orais.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos a audiência oral, havendo agora que proferir decisão.
2. Em 1ª instância deram-se como provados os seguintes factos:
«- Os arguidos, através de fonte que não foi possível apurar, tomaram conhecimento que na manhã do dia 16 de Março de 1999 iria ser transportado um carregamento de ouro, no valor de largas dezenas de milhares de contos, pelo veículo ligeiro de mercadorias da marca "Fiat", modelo "Scudo", de cor branca, com a matrícula n.º LD, no valor de 3.000.000$00, que prestava serviço para a empresa "D-Serviços Urgentes", transporte que havia sido encomendado pela ofendida "C - Sociedad Española de Metales Preciosos, SA", e que se destinava a ser entregue a vários clientes.
- Sabiam também os arguidos que esse carregamento iria ser efectuado de manhã cedo, nas instalações da "D", sitas na Zona Industrial da Maia, Sector VIII, Armazém 211, Gemunde, Maia, e que todos os dias o condutor desse veículo e seu proprietário, E, após efectuar os carregamentos na "D", quase sempre acompanhado do seu irmão F, paravam para tomar café no estabelecimento denominado "Café .......", sito na Rua do ......, Barca, área desta comarca.
- Por sua vez o F era proprietário do veículo da marca "Renault", modelo "Express", de cor branca com a matrícula n.º IL, que prestava igualmente serviço para a "D".
- Os arguidos, acompanhados pelo menos por outro indivíduo, que não foi possível identificar, decidiram então, de comum acordo, em conjugação de esforços e segundo plano elaborado por todos, apropriar-se do carregamento de ouro que fosse transportado em 16/03/1999, no dito veículo LD, quando o respectivo condutor parasse no aludido "Café .....".
- Na prossecução desse objectivo os arguidos muniram-se de um revólver que não foi possível apreender nem examinar, de calibre 38 SPECIAL ou 357 MAGNUM, do tipo expansivo - "soft point" (ambos equivalentes a 9 mm no sistema métrico), com o respectivo carregador e munições apropriadas e fizeram-se transportar num veículo ligeiro de passageiros da marca "Peugeot", modelo "205", de cor vermelha.
- Em 16 de Março de 1999, cerca das 9 horas, como habitualmente, os irmãos E e F, estacionaram os seus veículos com os dizeres "D" bem visíveis, junto ao "Café ....", Rua do ....., Barca, área desta comarca, e entraram nesse estabelecimento. O "Fiat Scudo" com a matrícula LD ficou estacionado imediatamente à frente do "Renault Express" com a matrícula IL.
- E os arguidos, na sequência do aludido plano, acompanhados de um terceiro indivíduo, que não foi possível identificar, transportando-se no mencionado "Peugeot 205" vermelho e munidos do descrito revólver com o respectivo carregador e munições, dirigiram-se nesse mesmo dia 16 de Março de 1999, cerca das 9,15 horas, ao mencionado local, e pararam o veículo, bruscamente, ao lado das carrinhas dos dois irmãos, quando estes tinham saído do café e se preparavam para entrar nos respectivos veículos.
- O "Peugeot 205" vermelho era conduzido pelo arguido B e do interior dele saíram o arguido A e o terceiro indivíduo não identificado, estando o arguido A com o rosto tapado com um capuz de cor escura e empunhando o mencionado revólver em posição de disparo imediato.
- O arguido A apontou essa arma na direcção dos irmãos E e F e disse-lhes "isto é um assalto, passem para cá as chaves, deitem-se no chão!".
- O E receando pela sua vida entregou-lhe de imediato as chaves do seu veículo LD deitou-se no chão.
- Como o F não tivesse obedecido de imediato, o arguido A apontou directamente o revólver na sua direcção e ordenou-lhe "ou passas para cá as chaves ou dou-te um tiro nos joelhos que te fodo!".
- Atemorizado, temendo pela sua integridade física e pela sua vida, o F entregou-lhe as chaves do seu veículo IL e deitou-se também no chão.
- Nessa altura o arguido Caldas, pretendendo impedir os ofendidos de lhes moverem perseguição, desferiu com o referido revólver três tiros na direcção do veículo IL, atingindo-o no pneu e jante da frente ao lado do condutor, e na carroçaria junto ao mesmo pneu.
- Enquanto os dois irmãos se mantinham deitados no solo, impedidos de reagir, temendo pela vida e pela integridade física, o terceiro indivíduo não identificado entrou no "Peugeot 205" vermelho onde se mantinha ao volante o arguido B, e o arguido A entrou no "Fiat Scudo" LD, e pô-lo a funcionar com as chaves que havia retirado ao B, após o que arrancaram ambos os veículos em marcha acelerada.
- Com tal actuação resultaram prejuízos no veículo LD de montante não apurado e apropriaram-se os arguidos do carregamento de ouro com cerca de 50 kg em placas, pertencentes à ofendida "C - Sociedad Espanola de Metales Preciosos, SA", no valor de 93.000.000$00, bem como da carrinha "Fiat Scudo" LD no valor de 3.000.000$00, que efectuava o transporte desse ouro destinado a diversos clientes e ainda das chaves do IL.
- Os arguidos actuaram consciente, voluntária e deliberadamente, em união e conjugação de esforços e mediante plano previamente delineado, recorrendo à força e violência física, com o propósito de fazerem daquele ouro coisa deles, como fizeram, sabendo que lhes não pertencia e que actuavam contra a vontade e sem o consentimento da respectiva dona.
- De igual modo agiram consciente, voluntária e deliberadamente, em união e conjugação de esforços e mediante plano previamente delineado, utilizando a aludida arma para mais facilmente intimidarem os ofendidos e concretizarem os seus objectivos, o que conseguiram, sabendo que não podiam ter tal arma na posse deles.
- Como sabiam que as suas condutas são punidas por lei.
- O veículo LD e todo o seu conteúdo, à excepção das placas de ouro, veio a ser abandonado pelos arguidos e terceiro num pinhal em Vilar, Vila do Conde, e encontrado e recuperado em 21/03/1999, encontrando-se no seu interior as chaves do IL.
- No dia 14 de Maio de 1999, cerca das 4 horas 55 minutos, nas proximidades de Vila Real, foram encontradas na posse do arguido A, que as transportava para Espanha no veículo "Mercedes" de matrícula LG, vinte placas de ouro, com o peso aproximado de 10 kg e a estampagem da "C".
- Tais placas provenientes do assalto acima descrito estavam debaixo do tapete do lugar ao lado do condutor e foram recuperadas na revista efectuada pela PJ, depois de o arguido A se ter despistado na sequência da perseguição policial que lhe foi movida.
- Na mesma ocasião foram apreendidos ao arguido dois telemóveis, um da marca "Ericson" e outro da marca "Panasonic", os quais foram utilizados pelo arguido para delinear os planos deste assalto.
- No mesmo dia 15 de Abril de 1999 foi efectuada uma busca à residência do arguido A, tendo sido apreendidos os objectos discriminados a fls. 72 e 73, entre os quais duas máscaras de borracha, tipo carnaval, para adulto, uma cabeleira postiça e um saco de lona próprio para o transporte de valores, ainda fechado com o respectivo aloquete, mas rasgado pela frente.
- Posteriormente, em busca efectuada em 7 de Maio de 1999, à garagem do arguido A foram encontradas e recuperadas mais duas placas de ouro, com a estampagem da "C", provenientes do mesmo assalto, que se encontravam no banco do motociclo da marca "Viaggio", modelo Vespa 50, com a matrícula 1-VNG. Foi também apreendido um estojo de ourivesaria preto que ali se encontrava.
- As doze placas em ouro recuperadas foram examinadas e avaliadas em 17.835.187$00, ao câmbio do dia 04/09/1999.
- A cotação actual de cerca de 2.016$00, correspondente ao valor da grama de ouro no mercado internacional, as placas de ouro não recuperadas, no total de 37,5 kg de ouro ascendem ao montante de 75.600.000$00.
- O arguido A tem a instrução primária, vive com a mulher e 4 filhos, sendo 2 de menor idade, sempre trabalhou, ultimamente como segurança e na exploração de um café, e estava desempregado desde há 5 meses com referência à data da prática dos factos. Está bem integrado no seu meio social sendo respeitado e bem conceituado.
- O arguido B completou o ensino básico, não tem antecedentes criminais, vive com a mulher, doméstica e uma filha de menor idade, sempre trabalhou como motorista e estava desempregado desde há 4 meses com referência à data da prática dos factos. Está bem integrado no seu meio social sendo respeitado e bem conceituado.»
Sendo jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça que o objecto dos recursos é limitado pelas conclusões das respectivas motivações, delas pode extrair-se que as questões suscitadas pelos recorrentes são as seguintes:
1ª - não serão nulas, como meio de prova, as transcrições feitas no inquérito de intercepção de conversas telefónicas mantidas de e para telefones dos recorrentes e de um terceiro, uma vez que dos autos não consta decisão a determiná-las, nem a identificação de quem a elas presidiu, de quem as fez, de quem as redigiu, nem onde, quando e como se realizaram? (ambos os recorrentes).
2ª - não será incorrecta a condenação do recorrente pela prática de um crime de dano com violência (art.º 214º, n.º 1 do CPP), uma vez que não se verificou o dolo específico (causar dano), mas apenas a intenção de impedir uma perseguição? (recorrente A).
3ª - não será de retirar valor, como meio de prova, ao reconhecimento de pessoas feito nos autos, por inobservância das regras inscritas no n.º 2 do art.º 147º do CPP? (recorrente B);
4ª - admitindo como verdadeiros todos os factos dados como provados, não seria de estabelecer uma censura penal que não ultrapassasse os 4 anos de prisão, atento o leque de circunstâncias atenuantes provadas? (recorrente B).
Estas questões, já colocadas no recurso que antes os recorrentes interpuseram para a Relação, vêm agora ao reexame deste Supremo Tribunal de Justiça.
Há que ver do seu merecimento.
A 1ª questão reporta-se às escutas telefónicas.
Entendem ambos os recorrentes que o tribunal de julgamento, com a cobertura do Tribunal da Relação de cuja decisão se recorre, aceitaram por boas transcrições às escutas telefónicas realizadas em outro processo e de que se desconhece por quem, como, onde, quando e em que circunstâncias foram autorizadas e levadas a efeito.
A este propósito refere a decisão recorrida - a do Tribunal da Relação obviamente - o seguinte:
«Acontece, porém, que o recorrente, pelo seu requerimento de fls. 513, suscitara expressamente a questão da falta de autorização judicial para a realização das escutas transcritas nos autos, determinando, assim, que o M.º Juiz, por despacho de fls. 519, sobre ela, especificamente, se pronunciasse, decidindo que tal autorização existiu, que está junta aos autos certidão comprovativa dessa autorização e que as transcrições juntas aos autos não constituíam meio proibido de prova.
Como o recorrente, notificado desse despacho, com ele se conformou, já que dele não interpôs recurso, aquela decisão transitou em julgado (...)
(...) Quanto à questão do alegado incumprimento, na transcrição das escutas, das formalidades estabelecidas nos art.ºs 94º, n.ºs 1 e 6 e 95º, n.º 1, do CPP, não cominando a lei nulidade para tal omissão, constitui ela mera irregularidade - vd. art.º 118º, n.ºs 1 e 2 e 123º, do CPP -, a qual, por não ter sido tempestivamente arguida, se encontra se encontra sanada».
Como assim, «as provas obtidas através das aludidas escutas telefónicas não padecem de qualquer nulidade, nenhum obstáculo havendo à sua utilização pelo colectivo para formar a sua convicção».
O problema que aqui vem equacionado não constitui própria e directamente matéria de admissibilidade de intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas enquanto tal - uma vez que não foi desenvolvida positivamente qualquer actividade desse tipo nos presentes autos -, mas antes o de saber se será legal, e portanto válido, o aproveitamento, no processo em causa, de escutas telefónicas levadas a cabo em outro processo.
Começa-se por dizer que a utilização por parte de um processo de material probatório recolhido noutro constitui, no geral, um meio de prova lícito, não oferecendo, normalmente, dúvidas sensíveis, sendo até com frequência usado.
Na verdade, nada impede, em teoria, que se transporte para um processo em investigação dados obtidos em outro, se for reconhecido o seu interesse no apuramento dos factos em presença.
Ponto é que a respectiva recolha tenha obedecido, no processo de origem, às regras próprias legalmente estabelecidas e que se haja facultado às pessoas visadas a oportunidade de apreciar esses dados e de os contraditar.
Tal método de investigação insere-se, de resto, nas finalidades e âmbito do inquérito, ao textuar-se no art.º 262º do CPP que este «compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas ...».
Assim, sendo regra a de que «constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes» (art. 124º, n.º 1, do CPP), e não se utilizando na respectiva recolha qualquer dos métodos proibidos inscritos no art.º 126º do mesmo Código, é lícito trazer ao processo investigatório tudo o que possa contribuir para a descoberta da verdade.
Outra coisa é a questão específica de saber que uso se pode fazer em determinado processo de dados informatórios recolhidos noutro processo pela via das escutas telefónicas.
Aí, o problema pode colocar-se doutrinariamente em dois níveis:
- no nível de meros conhecimentos de investigação;
- no nível dos chamados conhecimentos fortuitos.
No primeiro caso estamos ainda no âmbito da própria investigação em curso e em que portanto existe uma maior ou menor proximidade entre situações que estão a ser objecto de apuramento (v.g. «factos que estejam numa relação de concurso ideal e aparente com o crime que motivou e legitimou a investigação por meio da escuta telefónica»; casos de «delitos alternativos que com ele estejam numa relação de comprovação alternativa dos factos»;de «crimes que, no momento em que é decidida a escuta em relação a uma associação criminosa, aparecem como constituindo a sua finalidade ou actividade»; e ainda no caso de «formas de comparticipação - autoria e cumplicidade» e de «formas de favorecimento pessoal, auxílio material ou receptação». (1)
Em situações como estas ou semelhantes, nada repugna e até se justifica que os dados legalmente obtidos através de escutas telefónicas para determinados factos sejam extensíveis à prova dos demais factos que com eles tenham um polo de afinidade, assim se aproveitando os resultados de uma actividade que teve como escopo cobrir uma rede de criminalidade interligada.
Estes são os casos mais frequentes em que o problema se pode colocar.
No segundo caso, que poderemos considerar residual, a situação é mais melindrosa, pois que contende com os chamados conhecimentos fortuitos, isto é com conhecimentos obtidos de forma lateral e sem relacionamento com a investigação em curso.
Aqui, e utilizando palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA, trata-se de saber «qual o valor dos conhecimentos obtidos sobre factos que não se reportam ao crime cuja investigação legitimou a realização da escuta telefónica». (2)
Para situações tais não há disposição alguma na lei que as cubra directamente, pelo que teremos que nos socorrer dos ensinamentos da Doutrina e da Jurisprudência sobre a matéria.
Entre posições extremistas (ampla admissibilidade; inadmissibilidade total), COSTA ANDRADE, partindo do exemplo alemão, admite ser possível conferir-se valor probatório aos conhecimentos fortuitos desde que respeitados dois princípios básicos: o primeiro, que exige, no mínimo, que esses conhecimentos se reportem « a um crime de catálogo ..., a uma das infracções previstas no art.º 187º do CPP»; o segundo, que pressupõe que no processo para o qual se transportam os dados assim recolhidos se considere que estes são absolutamente indispensáveis à concreta actividade investigatória, nos mesmos termos em que se condiciona a recolha directa de prova através das escutas telefónicas, e a que alude a parte final do n.º 1 do art.º 187º citado («houver razões para crer que a diligência se revelará de interesse para a descoberta da verdade ou para a prova»). (3)
Na mesma linha se colocam GERMANO MARQUES DA SILVA (4) e o presente Relator (5).
E, também o entendeu o Ac. Relação do Porto de 11 de Janeiro de 1995, (6) ao decidir:
«A danosidade social indissociavelmente ligada à utilização das escutas telefónicas como meio de prova impõe uma leitura restritiva das normas que fixam os pressupostos da sua admissibilidade.
Nesta ordem de ideias, é de considerar como preceito de observância obrigatória o da proibição, em princípio, da valoração dos conhecimentos fortuitos obtidos através das escutas.
Consequentemente, ao arguido tem de ser concedido o direito de controlar os conhecimentos adquiridos por essa via e o modo como o foram e, se para tal for imprescindível, o acesso directo aos próprios meios técnicos utilizados na escuta».
Seguindo esta doutrina, que temos por suficientemente cautelosa e não afrontadora da lei, o aproveitamento dos conhecimentos fortuitos através de escutas telefónicas será meio de prova válido e admissível se:
- as escutas de que provêm os conhecimentos fortuitos tiverem obedecido aos respectivos requisitos legais contidos no art.º 187º do CPP (prévia autorização judicial, referentes a crimes taxativamente indicados na lei - crimes de catálogo - e seu interesse para a descoberta da verdade ou para a prova);
- o crime ou crimes em investigação e para cujo processo se transportam os conhecimentos fortuitos constituírem também crimes de catálogo;
- o aproveitamento desses conhecimentos tiverem igualmente interesse para a descoberta da verdade ou para a prova no processo para onde são transportados;
- o arguido tiver tido possibilidade de controlar e contraditar os resultados obtidos por essa via.
Assim enquadrado doutrinária e jurisprudencialmente o problema, há que apurar se, no caso concreto, estão verificados os tais requisitos mínimos que conferem legalidade aos conhecimentos por essa via obtidos.
Consta dos autos, e a propósito, o seguinte:
- a sugestão da investigação, o M.º P.º requereu e o Senhor JIC do Porto deferiu a intercepção e gravação das chamadas telefónicas efectuadas de e para os n.ºs 02.9713968 (rede fixa), 0936-5644976 (TMN) e 0931-7480940 (TELECEL), envolvendo o arguido A, e pelo período de 60 dias (fls. 199, 212 a 214, 263 a 272), mais tarde prorrogados por mais 60 dias (fls. 279, 280, 284 a 288);
- tais escutas terminaram em devido prazo, tendo sido gravadas 18 cassetes, que, por não conterem qualquer informação de interesse para os autos, foram desmagnetizadas (fls. 319, 320, 328, 403, 428 e 430);
- por despacho do M.º P.º na comarca da Maia (fls. 327) foi ordenada a junção aos autos de uma certidão extraída do Inq. n.º 2344/99.3 - IDPRT - C, da qual constam transcrições de conversas telefónicas de e para o telemóvel com o n.º 0936-5644976, do operador TMN, pertencente ao arguido A, mas habitualmente utilizado pela mulher, G, escutas judicial e legalmente ordenadas e executadas nesse Inquérito (fls. 329 a 399);
- essas escutas, que não colheram, nada de significativo para o caso em investigação no falado inquérito (dito n.º 2344/99.3 - TDPRT - C), lograram evidenciar que «da intercepção ao telefone 9713968, instalado na residência do suspeito A ... resultou a gravação de 16 cassetes, através das quais se demonstrou claramente o envolvimento do citado indivíduo no roubo ...» (referia-se ao roubo à viatura da firma "D" e a que respeita o presente processo); o mesmo sucedendo em relação ao telemóvel 0936- 5644976, pertencente ao falado arguido, e usualmente utilizado pela mulher, tendo-se gravado 3 cassetes «em cujas conversas se demonstra mais uma vez o envolvimento da pessoa referida»; e ainda relativamente ao telemóvel 0936-5636075, também seu, de que se gravaram 3 cassetes e de cuja leitura «se reforça a ideia da participação no roubo, bem como do suspeito B»; e finalmente foi gravada 1 cassete de conversas estabelecidas através do telemóvel 0933-3372952, pertencente a um tal ........., das quais resultam «referências directas ao roubo, feitas pelo suspeito A, revelando preocupação em justificar a sua actividade durante o dia do roubo, através de utilização de testemunhas falsas» (cfr. fls. 394 e 395).
- como, assim, a P.J., através da respectiva Inspectora, sugeriu a junção aos presentes autos das transcrições de tais gravações (fls. 395 e 396), que o M.º P.º aceitou e promoveu (fls. 397) e que o senhor JIC ordenou («ordeno a junção ao processado dos autos relativos à transcrição das conversas efectuadas através das operações de intercepção em devido tempo autorizadas») - fls. 398;
- deduzida acusação, o arguido A vem arguir a nulidade das transcrições das escutas telefónicas em que diz sustentar-se aquela, por não haver decisão judicial prévia que as autorize e que as considere relevantes para a prova dos autos (fls. 513 3 ss.), arguição que o senhor juiz, por despacho de 00.04.14, indeferiu, decidindo que «as intercepções telefónicas em causa foram devidamente autorizadas e realizadas no âmbito do Inq. NUIPC 2344/94.3 TDPRT-C que correu os seus termos no D.I.A.P. do Porto, tendo sido junta aos presentes autos certidão conforme promoção e posterior despacho judicial ...» (fls. 519);
- a esta decisão o arguente não reagiu;
- e assim o processo seguiu para julgamento, donde os arguidos saíram condenados, tendo os senhores juízes formado a sua convicção com base nas declarações dos arguidos, essencialmente nos depoimentos das testemunhas, e também em documentos (fotografias, autos de busca e apreensão, autos de reconhecimento pessoal, autos de exame e avaliação, autos de transcrição de escutas telefónicas, relatório de exame balístico, etc.);
- interposto recurso da decisão final, primeiro pelo arguido A, vem este levantar, além de outros, o problema da nulidade da transcrição das escutas telefónicas, louvando-se na mesma argumentação que já anteriormente tinha usado e de que não obteve êxito, acrescentando agora que da certidão que foi junta aos presentes autos não consta cópia da decisão judicial que as determinou, nem quais os crimes em investigação nesse inquérito, e ainda que tal não obedeceu às prescrições do art.º 94º, n.º 6 e art.º 95º, n.º 1, ambos do CPP.;
- igualmente recorreu o arguido B, socorrendo-se, quanto ao ponto específico, da mesma argumentação, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de fls. 775 e ss., considerado que, decidido pelo senhor juiz da 1ª instância que as escutas tinham sido judicialmente autorizadas e que constituíam meio legal de prova, se tinha formado sobre a matéria caso julgado formal, pelo que se absteve de reapreciar a questão;
- é esta, pois, a 3ª vez que o arguido A vem colocar a questão e a 2ª que o faz o arguido B.
Eis, pois a situação.
Não havendo notícia nos autos de que o crime ou crimes em investigação no Inq. NUIPC 2344/94.3 TDPRT-C donde saíram as escutas tenha qualquer relacionamento ou afinidade com os que estão em causa no presente processo, nos termos que anteriormente ficaram desenhados - o que a acontecer esvaziaria significativamente a questão -, é-se levado a inferir que a transposição do resultado das escutas telefónicas daquele para este não se enquadra no âmbito dos conhecimentos de investigação, mas antes no dos conhecimentos fortuitos.
Na verdade, o que ocorreu na situação que estes autos retratam foi que naquele Inquérito, por casualidade, se recolheram através das escutas telefónicas nele levadas a cabo, dados informatórios que, não interessando aos mesmos, interessavam contudo a estes e por isso o senhor juiz respectivo ordenou que deles se passasse certidão para apoio do processo aqui em curso.
Ora isto configura indiscutivelmente uma hipótese de conhecimentos fortuitos, os quais, mediante apertadas cautelas, e como se disse antes, podem legalmente ser utilizadas como meio permitido de prova.
E aqui essa permissão não suscita dúvidas, pese embora não constarem dos autos as circunstâncias em que aquelas escutas terão sido autorizadas e recolhidas.
É que temos a garantia dada pelo senhor juiz responsável por aquele processo de que tais escutas foram em devido tempo judicialmente permitidas, o que atesta obviamente, e desde logo, que o foram em relação a crimes que constam do catálogo legal enunciado no art.º 187º, n.º 1, do C.P.Penal (cfr. fls. 398).
Por outro lado está também reconhecido por via judicial que o transporte desses dados para os presentes autos foi tido como de grande relevância e interesse para a prova dos respectivos factos, na medida em que evidenciavam com clareza o envolvimento dos arguidos na sua prática, reforçando assim a possibilidade de se atingir a verdade material.
Não há, assim, pois, que pôr em crise a legalidade das escutas feitas no processo original.
E neste expediente seriam tais escutas legais se nele fossem efectuadas?
Não há dúvida de que sim, pois que até chegaram a ser directamente autorizadas e realizadas, mas sem êxito.
Com efeito, estamos perante transcrições de escutas que na sua origem obedeceram a todas as prescrições legais, já que o crime dos autos é um dos crimes de catálogo, que, houve autorização judicial para as mesmas e que se reconheceu pela via própria o seu interesse para a investigação dos factos do expediente aqui em causa.
O que tudo conduz, pois, à verificação dos pressupostos que conferem legalidade ao apontado meio de prova.
Mas ainda que fosse possível apontar alguma reserva a tal actividade probatória sempre seria de lhe dar cobertura na situação em apreço, na consideração de que, mesmo que se insinuando no rol das nulidades insanáveis - portanto de conhecimento a todo o tempo - já terá sido objecto de avaliação definitiva.
Na verdade, teve o recorrente oportunidade de, ao ser notificado da acusação e conhecer os elementos de prova em que ela se apoiava, contraditar a sua inclusão, arguindo a respectiva nulidade, arguição que foi judicialmente indeferida e à qual não reagiu (cfr. fls. 519 e ss.).
Sendo tal decisão susceptível de recurso, o recorrente não a impugnou no prazo legal, que assim transitou, formando-se caso julgado formal.
Foi exactamente nestes termos que veio a sentenciar o Tribunal da Relação quando, no recurso da decisão final, o recorrente levantou de novo a questão.
Concluindo, pois, por uma via ou por outra sempre a pretensão do impugnante teria que improceder como improcede.
Com esta questão está relacionada uma outra, consistente em saber se, sob o ponto de vista formal, terão sido respeitados, nas transcrições das escutas telefónicas em causa, os requisitos a que se reportam os art.ºs 94º, n.º 6, do CPP (menção da hora, dia, mês e ano da respectiva recolha) e 95º, n.º 1, do mesmo Código (assinatura de quem a ela presidiu).
Tais prescrições, por força do princípio da legalidade referido no n.º 1 do art.º 118º do apontado diploma, e tendo em vista os elencos fechados constantes dos art.ºs 119º e 120º do mesmo texto, uma vez desrespeitadas, caiem necessariamente no âmbito dos vícios menores, que são as meras irregularidades (art.º 118º, n.º 2).
Como tal, o seu regime jurídico será o que flui do art.º 123º seguinte:
- irregularidades em geral - conhecimento mediante arguição, durante o decurso do acto a que se assistiu ou no prazo de 3 dias a partir do conhecimento presumido da prática da irregularidade em acto a que se não assistiu;
- irregularidades que possam afectar o valor do acto praticado (violação de um interesse público ou de um interesse privado indisponível) - conhecimento oficioso, no momento em que a irregularidade for apreendida.
Ora, no caso presente, e como já decidiu antes o Tribunal da Relação, tratando-se aqui de uma irregularidade de carácter geral, os vícios, a existirem, encontram-se sanados por falta de arguição tempestiva.
E avancemos já para a 2ª questão, qual seja a de saber se o dano com violência, pelo qual o arguido A também foi condenado, constitui crime autónomo ou deve ver-se integrado no crime de roubo.
Esse dano, como se deixou dito antes, respeita à acção do arguido A que consistiu em, com o sentido de impedir os ofendidos de moverem perseguição aos arguidos, disparou três tiros de revólver no veículo IL, causando-lhe estragos no pneu e jante da frente ao lado do condutor e na carroçaria junto da mesma roda.
A 1ª instância absolveu os arguidos da prática de tal crime com base na seguinte ordem de razões:
«... não se verificam os elementos que tipificam o crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214º, n.º 1, al. a), com referência ao art.º 212º, n.º 1 do Código Penal, uma vez que os arguidos não dispararam os tiros com o dolo específico de causar dano, mas apenas com a intenção de impedir a perseguição.
No fundo, os argumentos que são válidos para considerar que só existe um roubo, são também válidos para considerar que não há crime de dano autónomo. Aliás, a tipicidade do crime de roubo assenta na utilização da violência com os inerentes prejuízos que ela é susceptível de causar, não nos sendo lícito cindir acções materiais para punir em diversas sedes penais as mesmas condutas.»
Em sentido contrário, e quanto a tal ponto, veio a decidir o Tribunal da Relação, por haver considerado que:
«... com a prática de tais factos, cometeram os dois arguidos, em co-autoria material, e em concurso real com os demais crimes, um crime de dano com violência ..., pois contrariamente ao que se afirma na decisão recorrida o preenchimento do tipo legal de crime de dano basta-se com o dolo genérico, sendo, assim, necessário, tão só e apenas, que o agente, voluntariamente, sabendo que pratica acto ilícito, destrua, no todo ou em parte, danifique, desfigure ou torne não utilizável coisa alheia, sendo irrelevantes os fins ou motivos (dolo específico) da sua conduta. E esse crime não é consumido pelo de roubo, uma vez que não serviu de meio à consumação daquele».
Atentemos na questão.
Expurgada com a versão de 82 do Código Penal a punição do dolo negligente, só o dano intencional ou doloso é hoje censurado no referido Código. (7)
E o dolo realiza-se com a representação, pelo agente, de que a sua conduta provoca sacrifício em coisa alheia - destruição, danificação, desfiguração ou inutilização, como diz a lei (art.º 212º, n.º 1, do C.P.). (8)
O que significa que em termos de elemento subjectivo o crime se consuma com o simples dolo genérico.
É esta, de resto, a jurisprudência consolidada dos nossos Tribunais, que seria ocioso enumerar aqui.
Questão sensível consiste em saber como enquadrar a acção danosa quando a mesma aparece ligada à consumação de outros factos típicos, como por exemplo o furto, o roubo, as ofensas à integridade física, a violação, etc.
Não se irá aqui fazer o percurso de todas ou sequer da maioria das situações em que a concorrência pode eclodir, e à sombra das quais se constroem figuras de concurso aparente, concurso efectivo ideal ou real, etc., e de que o texto do Código nos dá exemplos vários.
Dado o horizonte em que nos colocamos no recurso ora em causa, circunscrever-se-á a análise à concorrência concreta entre o dano (crime contra a propriedade) e o furto (crime contra o património) ou o roubo (crime complexo - crime contra o património e contra outros bens de natureza pessoal).
E esta focalização do problema chama-nos à velha discussão sobre a unidade e pluralidade de infracções e em relação à qual a Doutrina e a Jurisprudência têm canalizado rios de contributos analíticos.
A nossa lei assumiu a responsabilidade de absorver um critério distintivo no art.º 30º, n.º 1, do C.P., ao estatuir que o número de infracções se determina «pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Ou seja: haverá pluralidade de delitos quando o agente, com a sua acção, preencher mais do que um tipo de ilícito ou o mesmo tipo por mais do que uma vez.
E, assim, somos conduzidos ao concurso legal, aparente ou impuro, a que também se chama mero concurso de normas, em que a aplicação de uma exclui a das demais por força dos princípios da especialidade, da consumpção, da subsidiariedade ou da impunibilidade do facto posterior); ou ao concurso efectivo, verdadeiro ou puro (que pode ser meramente ideal, se decorrente de uma só acção violadora de tipos diferentes - concurso ideal heterogéneo - ou do mesmo tipo por mais que uma vez - concurso ideal homogéneo; ou real, se resultante de uma pluralidade de acções).
Ora, como é sabido, o direito penal serve fins da comunidade politicamente organizada, destinando-se assim a acautelar valores que em cada momento histórico são por ela considerados fundamentais.
Daí que a norma jurídico-penal se dirija à protecção de bens jurídicos essenciais e individualizáveis.
A partir de tal se constroem, pois, os tipos legais de crime, que mais não são do que modelos ou padrões de aferimento, para se saber que condutas humanas são susceptíveis de agredir os bens jurídicos que importa tutelar.
É fácil de intuir que ao incriminar-se o roubo e o dano se perseguem protecções jurídico-criminais diferentes, porque diferentes são os bens jurídicos a acautelar: aqui apenas a propriedade, acolá uma pluralidade deles (o património, a vida, a integridade física ou a liberdade individual).
Como tal, o roubo só toma conta do dano, assimilando-o no seu percurso, quando este se dilui no interior daquele, ou porque se destina a levá-lo a cabo (crime meio) ou porque visa dar-lhe cobertura após a sua execução (asseguramento das vantagens obtidas pelo primeiro, v.g. através da danificação ou destruição da própria coisa para apagar os vestígios do ilícito).
No caso concreto, os arguidos consumaram o crime de roubo e, de seguida, de forma violenta contra os ofendidos, produziram danos no veículo que lhes estava distribuído pela firma onde trabalhavam, apenas e tão só com a intenção de impedirem que estes o utilizassem em sua perseguição.
O dano surge, pois como um facto posterior ao roubo, independente deste, violando um diferente bem jurídico, e que os arguidos assumiram bem sabendo que com a sua acção o produziram (dolo genérico).
Por conseguinte, a autonomia da acção danosa é indiscutível e está desligada da acção prévia que conduziu ao roubo, por violar um bem jurídico distinto, perfazendo assim um ilícito novo e independente, que como tal deve ser punido.
Improcede, pois, também esta questão.
E passamos para a 3ª questão, consistente em saber se o Tribunal da Relação julgou ou não mal a antes invocada violação do n.º 2, do art.º 147º do C.P.Penal (inobservância das regras legais sobre reconhecimento de pessoas).
De acordo com os termos de recurso aquele Tribunal terá dado crédito a autos de reconhecimento pessoal que, segundo a perspectiva do impugnante, não respeitaram as regras do art.º 147º do CPP, pelo que «não têm valor como prova (n.º 4 do citado artigo)».
Importa analisar.
Os reconhecimentos em causa tiveram lugar durante o inquérito e ocorreram em 99.04.15 (cfr. auto de fls. 81 e 82), sendo estes que constitui objecto do presente recurso, e não os realizados em audiência, segundo esclarecimento ora prestado pelo arguido na sua motivação para este Supremo Tribunal (vol. fls. 931 e ss.).
Ora a questão já foi posta num prévio recurso para o Tribunal da Relação, que a resolveu do seguinte modo:
«... quanto a tal ponto, nada mais se diz. Fica-se, assim, sem saber em que consistiu, na sua perspectiva, essa invocada violação do disposto no art.º 147º do CPP, e se está a reportar-se ao reconhecimento feito no decurso do inquérito ou ao efectuado em plena audiência de julgamento. É que o colectivo, na fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, faz referência a dois reconhecimentos: ao constante dos autos de reconhecimento de fls. 81 e 82, que teve lugar no decurso do inquérito; ao levado a cabo no decurso da audiência de julgamento pelas testemunhas E e F, o qual, claro está, não foi, nem tinha que ser, reduzido a auto. Ao dizer, pois, o recorrente que reconhecimento de pessoas efectuado sem a observância do disposto no art.º 147º do CPP não tem valor como meio de prova, para concluir que o tribunal "a quo" se serviu de um meio de prova inválido para sustentar a sua condenação, tanto pode estar a referir-se a um, como a outro, desses reconhecimentos: ao que foi reduzido a auto, ou ao que o não foi. É que, repete-se, aos dois se refere o colectivo na fundamentação da sua decisão sobre a matéria de facto. E aos dois se refere também na fundamentação de direito, na parte que passa a transcrever-se: "Contrariamente ao que defendem os arguidos a prova produzida em audiência é inequívoca no sentido de serem eles os autores dos factos, não suscitando quaisquer dúvidas os depoimentos convincentes e esclarecedores dos irmãos E e F que reconheceram o arguido B como o condutor do "Peugeot", primeiro em fotografias que lhes foram exibidas em conjunto com muitas outras de outras pessoas, depois em reconhecimentos pessoais com o cumprimento de todas as formalidades legais e finalmente em audiência".
Para a hipótese de o recorrente se reportar ao reconhecimento efectuado no decurso da audiência de julgamento, o seu reparo não tem qualquer fundamento, visto que, como se nos afigura evidente e resulta até do teor do n.º 3 do citado art.º 147º, tal reconhecimento não está sujeito ao formalismo prescrito naquela norma.
Para a hipótese de o recorrente se querer referir ao reconhecimento efectuado no decurso do inquérito, constante dos "Autos de reconhecimento pessoal" de fls. 81 e 82, então a sua falta de razão ainda é mais evidente, pois nem o recorrente diz em que consistiu a alegada violação do disposto no art.º 147º do CPP, nem se vê que tal reconhecimento tenha sido efectuado com inobservância naquela referida norma.»
Vejamos antes de mais o que consta de tais autos de reconhecimento pessoal.
Consoante se alcança de fls. 81 e 82, a Directoria do Porto da Polícia Judiciária levou a cabo dois actos de reconhecimento do arguido B, neles se indicando a data e o local onde tais actos se realizaram; a identidade de quem presidiu e executou as diligências; dos indivíduos a submeter ao reconhecimento e daqueles que a ele procederam; bem como o modo como os mesmos foram feitos e quais os resultados obtidos.
Todos estes dados estão materializados em autos com itens impressos, devidamente preenchidos e assinados, sem que dúvidas algumas se suscitem à sua volta, sendo certo que, a existirem, o recorrente também não as especifica, limitando-se a dizer que tais reconhecimentos não obedecem às prescrições do art.º 147º do C.P. Penal.
E também não deixa de ser sintomático que, tendo esses reconhecimentos sido feitos em 99.04.15, só mais de um ano depois, mais concretamente em 00.08.02 o recorrente venha argui-los de viciados!
Mas ainda que fosse de os ajuizar desconformes com a lei, nada asseguraria que, inutilizados por efeito da nulidade, se chegasse a resultado diferente do alcançado pela decisão condenatória que o Tribunal da Relação confirmou.
Na verdade, nunca seria de dar relevância ao apontado vício uma vez que, como é de lei, «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiências» (art.º 355º, n.º 1, do CPP).
Assim sendo, é óbvio que nunca o tribunal de julgamento poderia assentar a convicção que conduziu à condenação dos arguidos em provas produzidas em outra fase do processo e que apenas serviram ou poderiam servir para fundamentar a introdução do feito em juízo.
E, no caso concreto, não assentou em dados colhidos fora do julgamento, como claramente se regista nessa decisão, ao mencionar-se que tal convicção teve como suportes os depoimentos «sérios, isentos e conscenciosos das testemunhas» - nada menos de 19! -, as quais, «pelas razões expressas demonstraram conhecimento pessoal, e directo dos factos», aí se explicando qual o alcance e abrangência de tais depoimentos, e ainda as fotografias, autos de busca e apreensão e os autos de transcrição de escutas telefónicas, a que se adicionou o reconhecimento pessoal feito em audiência, que acabou por confirmar a que tinha ocorrido no inquérito, sem que sobre ela se lance qualquer suspeita de ilegalidade.
Por conseguinte, mesmo que fosse de assacar algum vício ao reconhecimento levado a cabo em fase anterior ao julgamento - o que não está demonstrado -, não teria esse vício qualquer incidência na sorte das anteriores decisões que aqui se põem em causa, uma vez que se tratou de diligência de todo de alheia aos mecanismos que determinam o sentido das mesmas decisões.
Donde que não seja de proceder, como não procede, a questão levantada quanto a tal ponto pelo recorrente B.
Finalmente acode a 4ª e última questão, despoletada pelo arguido B, e que tem a ver com a medida concreta da pena.
Preconiza o impugnante uma censura diferente da que ficou estabelecida e que não deve ultrapassar o tecto dos 4 anos de prisão, justificando-o com o peso que, em seu juízo, oferecem as circunstâncias atenuantes provadas.
Desde logo importa referir que o recorrente não menciona nas conclusões da sua motivação quais as atenuantes que militam em seu favor, limitando-se a uma simples menção de que «o tribunal recorrido interpretou de forma manifestamente errada as normas dos art.ºs 40º, n.ºs 1 e 2, 71º, n.ºs 1 e 2, al. d) e 3, ... posto que ainda que todos os factos dados como provados fossem verdadeiros ... nunca ao aqui arguido recorrente poderia ser aplicada pena de prisão em medida superior a 4 anos, atentos todos os factores atenuantes já referidos».
E nem sequer do contexto da motivação no seu todo se extrai qualquer referência às atenuantes de que o recorrente se diz beneficiário.
Tanto bastaria para que se não fizesse qualquer pronunciamento mais alargado sobre a questão.
Todavia sempre se acrescentará que o recorrente nem aí ganha alguma razão.
Na verdade, se tivermos em conta que em seu favor apenas consta que não tem antecedentes criminais e que é bem conceituado no meio, isso de pouco vale para aliciar a responsabilidade de um crime - e falamos apenas no de roubo, por ser o mais grave - que teve os contornos de gravidade que a matéria de facto provada exuberantemente testemunha, e cuja moldura penal se estende de 3 a 15 anos de prisão.
Daí que, se algum "pecado" cometeu o tribunal da condenação, com o beneplácito da Relação, foi o de ter ajuizado benevolamente a conduta do arguido.
E tanto basta para concluir que também aí o recurso não vinga.
3. De harmonia com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos interpostos nos autos pelos arguidos A e B.
Vai cada um deles condenado em 8 UC’s de taxa de Justiça.
Honorários: 5 UR
Lisboa, 23 de Outubro de 2002
Leal Henriques
Virgílio Oliveira
Borges de Pinho
Franco de Sá
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(1) COSTA ANDRADE, "Sobre o Regime Processual Penal das Escutas Telefónicas", Rev. Port. de Ciência Criminal, I, 3, 401 e 402.
(2) "Curso de Processo Penal", II, 177.
(3) op. cit., 407 e ss.
(4) Op. cit., II, 177.
(5) Código de Processo Penal Anotado, I, 930 e 931.
(6) C.J. XX, I, 232.
(7) Há um resquício de punição negligente do dano por exemplo no art.º 2º da Lei n.º 19/86, de 19 de Julho, relativamente aos danos produzidos por fogos florestais.
(8) Cfr., neste sentido, COSTA ANDRADE, Comentário Conimbricence do Código Penal, II, 225.