Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A485
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: CONTRATO DE CONTA CORRENTE
Nº do Documento: SJ2008030404851
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Não se pode confundir duas coisas distintas: contrato de conta corrente, tal como está definido no artigo 344º do Código Comercial (“dá-se contrato de conta corrente todas as vezes que duas pessoas, tendo de entregar valores uma à outra, se obrigam a transformar os seus créditos em artigos de «deve» e «há-de haver», de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível”) e processo de escrituração ou forma contabilística designada por conta-corrente.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório
MR & Irmão Lda. intentou, no Tribunal Judicial da comarca de Matosinhos, acção ordinária contra AA e mulher, BB, pedindo a sua condenação no pagamento de 63.025,06 € e juros até integral pagamento.
Em suma, alegou que, no âmbito da sua actividade forneceu aos RR. diversos produtos cujo preço não foi por eles pago.

Na contestação, os RR. pugnaram pela improcedência da acção com o argumento de que a dívida reclamada já estava paga.

A acção seguiu depois a sua tramitação normal até julgamento e, findo este, foi proferida sentença a julgá-la parcialmente procedente e, consequentemente, a condenar os RR. no pagamento à A. de € 63.025,06 € e juros de mora à taxa comercial.

Sem êxito, apelaram os RR. para o Tribunal da Relação do Porto.
Ao cabo e ao resto a sua pretensão dirigia-se à ampliação da matéria de facto, malgrado se terem conformado com a elaboração tanto dos factos assentes como dos controvertidos.

Continuaram irresignados e, por isso, pedem revista do aresto proferido a coberto do seguinte quadro conclusivo:
A – O Tribunal da Relação, no uso dos seus poderes, não está confinado, no julgamento de facto que lhe cumpre efectuar (art. 659°, nºs 2 e 3 ex vi 713º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), ao perímetro factual seleccionado no questionário elaborado em 1ª instância.
B – De resto apenas existe nesse âmbito a limitação imposta pelo princípio dispositivo do Tribunal da Relação se mover dentro dos factos que foram alegados pelas partes nos seus articulados.
C – Na contestação os RR alegaram factos com interesse para a decisão da causa, que por estarem em manifesta contradição com os factos alegados pela A. na p.i., deveriam ter sido levados à Base Instrutória.
D – Não tendo os RR apresentado reclamação quanto à matéria de facto após a emissão do despacho saneador, o Tribunal da Relação deveria ter ampliado a matéria de facto da Base Instrutória no sentido de lhe acrescentar os factos supra referidos e atrás devidamente enumerados.
E – Na perspectiva dos RR. o acórdão ora recorrido viola o disposto no artigo 712° do Código de Processo Civil.

A recorrida, em contra-alegações, defendeu a manutenção do aresto impugnado.

2 – As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1) A A. dedica-se, com escopo lucrativo, ao comércio e distribuição de produtos agro-pecuários.
2) Os RR. dedicam-se à actividade agro-pecuária, com fim lucrativo.
3) Os RR. compraram à A. vários produtos - rações para animais, sementes agrícolas, adubos e agro-químicos que utilizaram para a produção e cultivo de produtos agrícolas forrageiros para alimentação animal - descritos nas facturas constantes de fls. 14 a 94 dos autos de providência cautelar, pelos preços nelas referidos, que ascendem ao montante total de 63.025,06 €.
4) Os produtos acima referidos foram recebidos pelos RR..
5) As facturas referidas em 3) eram pagas no prazo de 30 dias após a sua emissão.

3 Quid iuris?
A única questão que verdadeiramente nos colocam os recorrentes reside em saber se, não obstante não terem reclamado da elaboração da base instrutória, não deveriam ser ainda instruídos determinados factos alegados em sede de contestação.
A resposta a dar a esta questão, na formulação de tese geral, não pode deixar de ser positiva.
Com efeito, o julgamento da chamada “questão-de-facto” não transita em julgado até sua apreciação pelo Supremo. Prova evidente disto é, desde logo, o facto de o art. 729º, nº 3 do CPC dar a possibilidade de ordenar às instâncias a instrução de determinados factos alegados e controvertidos e tidos como interessantes para a decisão da causa (na nossa perspectiva, o Supremo só está impedido de fazer juízos probatórios sobre factos sujeitos a instrução: este o seu verdadeiro limite cognitivo na decisão da aludida “questão-de-facto” – cfr. declaração de voto expressa no acórdão proferido no passado dia 07 de Fevereiro do corrente ano nesta Secção sob o nº 4578/07, Relator Conselheiro Alves Velho).
De igual modo, o art. 659º, nº 2, do mesmo diploma (que tem aplicação não só para as decisões singulares, tomadas em 1ª instância, ou colectivas, proferidas nos tribunais superiores), ao obrigar o juiz a considerar na decisão todos os factos provados, independentemente de estarem elencados na “especificação” ou resultarem de instrução, evidencia a bondade da asserção contida na 1ª conclusão.
Com isto queremos dizer que não podíamos estar mais de acordo com os recorrentes quando eles defendem que a Relação não está confinada nos seus poderes de cognição da chamada “questão-de-facto” ao apurado na 1ª instância. Na verdade, se o próprio Supremo não está limitado nos seus poderes de cognição – só pode aplicar o direito depois de ter reconhecido que a “questão-de-facto” está bem decidida – não vemos como isso poderia acontecer a um tribunal que funciona como instância. De resto, o nº 4 do art. 712º do CPC é bem expresso a respeito da possibilidade da Relação ordenar a anulação do julgado em 1ª instância com vista à ampliação da matéria de facto.

E de acordo com os recorrentes continuamos a estar quando estes defendem como limite daquele poder cognitivo o respeito pelo princípio dispositivo.
Com efeito, só às partes cabe alegar os factos principais da causa, ou seja, os que integram a causa de pedir ou as excepções.
Dentro destas balizas é que aquele poder cognitivo, seja das instâncias, seja até do Supremo, se há-de, se pode, mover.

Mas a nossa concordância com os recorrentes termina precisamente neste ponto, isto é, na transição da tese geral para a apreciação do caso-foro.
Não é despiciendo trazer à colação o que preceitua o art. 511º do CPC, concretamente referente à selecção dos factos, de acordo com as várias soluções plausíveis do ponto de vista do direito.
Ora, a este respeito cumpre dizer que os RR. se limitaram à defesa por excepção com a invocação do pagamento da dívida reclamada.
Perante tal defesa, a eles cumpria o ónus de prova do pagamento e, não tendo sido feita em relação à importância apurada, outra solução não podia ter a causa que não fosse a condenação pura e simples dos RR., tal como determinaram as instâncias.
Vale por dizer que, tendo em devida conta tudo o que foi alegado pelas partes – a A. configurando o incumprimento de um contrato de compra e venda comercial, os RR. invocando o pagamento do respectivo preço – nada mais havia a apurar.
É importante fazer notar que os RR. deixaram bem claro na sua contestação que pagaram as dívidas reclamadas pela A., facto por demais evidenciado nos artigos 7º a 13º.
E não menos decisivo para a verdadeira compreensão da posição assumida pelos RR. é dizer que, tanto quanto nos parece, há da sua parte uma grande confusão entre o que é um contrato de conta corrente, tal como se encontra tipificado no art. 344º do Código Comercial (“dá-se contrato de conta corrente todas as vezes que duas pessoas, tendo de entregar valores uma à outra, se obrigam a transformar os seus créditos em artigos de «deve» e «há-de haver», de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível”) e o processo de escrituração ou forma contabilística também designada de conta corrente.
Ao contrário do que parece fazerem crer, os RR. não alegam terem celebrado com a A. um contrato de conta corrente, antes e só dizem que existia uma conta corrente pela qual se podia concluir pelo pagamento da dívida reclamada.
A matéria ora reclamada para instrução não tem a mínima importância para a decisão atenta a causa de pedir invocada, o pedido formulado e a defesa apresentada: as instâncias encarregaram-se de pôr em evidência que em causa está apenas o incumprimento de um contrato de compra e venda mercantil.
Competindo aos RR. a prova do pagamento da dívida e não tendo cumprido tal ónus, seria supérfluo ordenar a baixa dos autos para a formulação dos quesitos pretendidos.
Ao recusar ampliar a matéria de facto, a Relação cumpriu a lei, recusando a prática de actos inúteis.
A única solução plausível neste caso era saber se se tinha verificado ou não o incumprimento do contrato de compra e venda mercantil entre as partes firmado. A selecção dos factos feita foi a bastante para encontrar a resposta.
Por conseguinte, não foi violado o art. 712º do CPC.

4 – Decisão
Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se negar provimento ao recurso, condenando os recorrentes nas custas respectivas.


Lisboa, aos 04 de Março de 2008

Urbano Dias
Paulo Sá
Mário Cruz