Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B1501
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
REVISTA
NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
VENDA DE COISA ALHEIA
Nº do Documento: SJ200605110015017
Data do Acordão: 05/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. As normas do nº 2 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil são de direito probatório adjectivo, pelo que se aplicam no caso de a apresentação das provas pelas partes ou a sua ordenação oficiosa terem ocorrido a partir de 1 de Janeiro de 2001, não obstante a citação para a acção ter operado antes dessa data.
2. O erro da Relação relativo ao resultado de provas de livre apreciação judicial, porque excede o âmbito do recurso de revista, não pode sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3. O negócio fiduciário, atípico, é aquele pelo qual as partes, mediante a inserção de uma cláusula obrigacional - pactum fiduciae - adequam o conteúdo de um negócio típico à consecução de uma finalidade diversa, por exemplo a de garantia.
4. Não constando da escritura do contrato de compra e venda do prédio alguma declaração fiduciária, não pode o referido contrato ser considerado como negócio fiduciário de garantia, nem releva a prova testemunhal produzida sobre o pactum fiduciae.
5. O conceito de terceiro a que se refere o artigo 291º do Código Civil, motivado pela ideia de estabilidade das situações jurídicas, pressupõe a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, e é diverso do conceito de terceiro para efeito de registo a que se reporta o artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial.
6. Não tendo o primitivo adquirente do direito de propriedade sobre o prédio inscrito a sua aquisição no registo predial, e tendo o segundo adquirente, ao mesmo vendedor, do referido prédio, inscrito no registo a sua aquisição, não pode o primeiro opor-lhe a nulidade do segundo contrato de compra e venda com fundamento na venda e coisa alheia.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
Empresa-A intentou, no dia 2 de Dezembro de 1999, contra AA e BB, e Empresa-B acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração da validade e eficácia da transmissão para si da nua propriedade de identificado prédio, o cancelamento no registo predial do usufruto registado em nome de AA, a conversão do registo provisório de transmissão desse prédio, a nulidade dos actos praticados pelos réus atinentes a incluírem o prédio na herança deixada por CC, o cancelamento da inscrição de transmissão do prédio para o primeiro réu, a anulação da descrição do prédio 00541, a nulidade da venda deste prédio à segunda ré, a ordem de cancelamento da inscrição no registo da transmissão e a condenação daquela a proceder às obras neces­sárias para reconduzir o prédio ao estado anterior ou, em alternativa, a condenação solidária de todos os réus em indemnização de todos os prejuízos sofridos a liquidar em execução de sentença.
Fundamentou a sua pretensão, em síntese, na aquisição da nua propriedade do prédio por compra em 30 de Outubro de 1995, na extinção do usufruto em 8 de Novembro de 1998, na simulada compra do prédio pela ré Empresa-B no dia 8 de Janeiro de 1999, na destruição por esta, em Junho de 1999, do muro de vedação do prédio e na sua transformação em pinhal.
Em contestação, a ré Empresa-B impugnou a versão da autora quanto à aquisição da propriedade, afirmando que os dois primeiros réus foram enganados e defraudados na venda que àquela fizeram e que nunca quiseram e que ela é a verdadeira dona do prédio em causa.
Os dois primeiros réus afirmaram, por um lado, que no âmbito de uma relação pessoal e perante a necessidade de financiamento de terceiros, ponderaram passar o prédio para o nome da autora, como garantia, para beneficiar de isenção se sisa e não corresponder a escritura em causa à realidade.
E, por outro, que o prédio foi vendido e entregue à ré Empresa-B em Janeiro de 1999 com conhecimento da autora, e que o réu AA jamais pretendeu entregar-lhe o prédio e que parte do preço a pagar pela ré estava dependente da rescisão do contrato de arrendamento existente.
Na réplica a autora negou os factos de impugnação e de excepção invocados pelos autores.
Realizou-se o julgamento, foi proferida sentença no dia 11 de Janeiro de 2005, por via da qual foi declarada reconhecida a validade da transmissão da raiz da propriedade sobre o prédio e a extinção do usufruto, ordenada a conversão do registo provisório de transmissão em registo definitivo a favor da autora, declarada a inexactidão da inscrição de transmissão do prédio para o réu AA e a nulidade do contrato de compra e venda celebrado no dia 8 de Fevereiro de 1999 e do consequente registo e ordenado o seu cancelamento e condenada Empresa-B a proceder ás obras neces­sárias à recondução do prédio ao seu estado anterior.
Apelou a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 22 de Novembro de 2005, dando provimento ao recurso, revogou a sentença do tribunal da 1ª instância e absolveu os réus do pedido.

Interpôs a apelada recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- como a apelante não transcreveu as passagens da gravação em que fundou o recurso, devia a Relação tê-lo rejeitado na parte relativa à impugnação da matéria de facto com base nos depoimentos gravados, pelo que, porque assim não procedeu, cometeu nulidade com influência na decisão da causa;
- deve anular-se todo o processado, incluindo o acórdão, e ordenada a baixa do processo à Relação para que, rejeitando o recurso na parte relativa a impugnação da matéria de facto, profira nova decisão com base nos factos provados apurados na 1ª instância;
- a alteração da resposta ao quesito 7º contradiz a prova documental e a realidade da vida porque os actos materiais de posse são do usufrutuário e não do proprietário de raiz, e a alteração da resposta ao quesito 8º contradiz a experiência da vida;
- ao alterar a resposta ao quesito 24º o acórdão contradiz a prova documental e a confissão do réu AA, das quais resulta Empresa-B saber ser o prédio omisso;
- a alteração da resposta ao quesito 38 deve ser anulada por contradizer a confissão do réu AA e a prova documental;
- a alteração da matéria de facto violou normas reguladoras da força probatória da confissão e dos documentos particulares, o que o afecta de erro na apreciação das provas, devendo manter-se a resposta do tribunal da 1ª instância aos referidos quesitos 7º, 8º, 24º e 38º;
- não resulta dos factos provados que a recorrente, AA a BB não quiseram celebrar um contrato de compra e venda, nem que não houve pagamento do preço, nem que quiseram celebrar uma espécie de hipoteca voluntária;
- o contrato de compra que celebrou é válido e eficaz, devendo o litígio deve ser resolvido com base no instituto de venda de bens alheios previsto nos artigos 892º e seguintes do Código Civil;
- é nulo o segundo contrato de compra e venda nas relações entre os vendedores e a compradora e ineficaz em relação à recorrente;
- como a acção de declaração de nulidade foi registada antes do triénio subsequente à conclusão do negócio, a sua compra pela recorrente é oponível à recorrida Empresa-B, não relevando, nos termos do artigo 291º, nº 2, do Código Civil, o registo anterior da sua aquisição do prédio;
- o acórdão infringiu, por errada interpretação e aplicação, os artigos 7º, nº 3, do Decreto-Lei nº 183/2000, de 17 de Agosto, 690º-A, nº 2 - redacção do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro - 201º, 202º e 712º do Código de Processo Civil, e 291, nº 2, 352º, 358º, 362º, 371º, 376º e 892º do Código Civil;
- deve declarar-se a nulidade do processado, incluindo o acórdão recorrido e ordenar-se a baixa do processo à Relação para que, rejeitando o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto com base nos depoimentos gravados, profira nova decisão, tendo em conta os factos dados como provados na 1ª instância; ou
- deve revogar-se o acórdão recorrido na parte em que alterou as respostas aos quesitos 7º, 8º, 24º e 38º ou substituído o acórdão por outro que julgue a acção procedente, e declare válida e eficaz a sua compra do prédio e inválida e ineficaz a compra feita por Empresa-B.

Respondeu Empresa-B, em síntese útil de alegação:
- não há nulidade processual nem pode ser invocada em recurso de revista, porque a violação da lei de processo só é invocável quando dela for admissível recurso nos termos do artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil, e não o é;
- por força do nº 8 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, requerida que foi a produção da prova depois da sua entrada em vigor, não tinha a prova gravada que ser transcrita;
- não pode ser sindicado no recurso de revista o erro na apreciação da prova por não se verificar qualquer das situações previstas no artigo 722º, nº 2, do Código de Processo Civil, pelo que deve manter-se a alteração dos factos pela Relação;
- a escritura de 30 de Outubro de 1995 não titulou um verdadeiro contrato de compra e venda, porque se tratou de passagem do prédio para o nome da recorrente enquanto se mantivessem os financiamentos, pelo que não provou ser proprietária do prédio em causa;
- a situação não é de venda de bens alheios, mas de transmissão de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa pela mesma pessoa.

II
A)
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. No dia 11 de Março de 1976, em escritura pública lavrada no dia 11 de Março de 1976, no 1º Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, DD e CC, por um lado, e EE, então casado com FF, declararam os primeiros doar e o último aceitar a doação e aqueles reservarem o usufruto até à morte do último, do prédio consubstanciado em casa torre e térrea, com duas dependências, com a área coberta de 131 metros quadrados e com quintal junto, medindo 4 484 m2, situada no lugar de Regadas, Vilar ou Ponte de Vilar, limites das freguesias de Antas e Gavião, comarca de Vila Nova de Famalicão, confinando do Norte com HH, do Sul com II e a Estrada Nacional n.° 206, do Poente com a Estrada Nacional n.° 206, de Famalicão-Guimarães e do Nascente com JJ, que é parte do prédio descrito em n.° 23 813 da Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão e inscrito na matriz predial urbana de Antas no artigo 629º,anteriormente no artigo 60º.
2. "EE" e FF divorciaram-se e, na partilha subsequente, o prédio mencionado sob 1 foi adjudicado a FF, a quem por morte sucederam, na titularidade da raiz, o seu filho AA, casado com BB.
3. Desde antes de 1990 que Empresa-C estava em permanente e crescente crise financeira, o que, além do mais, determinou que estivesse inibida do uso de cheques e carecesse de permanente obtenção de financiamentos e crédito, que se tornaram impossíveis de obter na banca dada a sua incapacidade de solvência e de não dispor de crédito junto dela.
4. Por tal facto, do qual o referido sócio gerente da autora perfeito era esclarecido conhecedor, teve AA, que não dispunha de crédito na praça, de se socorrer de empréstimos e financiamentos particulares, que o seu contabilista GG - se prontificou e propôs obter, e obteve em parte.
5. GG, gerente da autora, pelo menos inicialmente, propôs ao réu AA que o prédio descrito em 3 passasse para o seu nome enquanto se mantivessem alguns financiamentos que o gerente da autora se propôs obter, e, posteriormente, propôs que o prédio em vez de ficar em seu nome, ficasse em nome da autora já que esta gozava de isenção de sisa e, também por esse motivo, tinha interesse na outorga da escritura, já que dessa forma garantia a manutenção da referida isenção.
6. Toda a documentação necessária à outorga da escritura referida sob 7 foi exclusivamente tratada pelo gerente da autora, sem qualquer intervenção ou conhecimento efectivo por parte de qualquer dos réus AA e BB.
7. "AA" e BB, por um lado, e representantes da autora, por outro, declararam, na escritura pública de 30 de Outubro de 1995, lavrada no 2° Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, os primeiros vender e última comprar, por 32 500 000$, a raiz ou nua propriedade do prédio mencionado sob 1.
8. No dia 8 de Novembro de 1998, no estado de viúvo de CC, faleceu DD, usufrutuário do referido prédio.
9. Foi requerida e logo obtida uma certidão na Conservatória do Registo Predial, dizendo que um prédio urbano, constituído por casa de habitação, torre e térrea, com duas dependências e quintal, sito no lugar de Vitar ou Regadas, na freguesia de Antas, deste concelho, estava omisso, não descrito na Conservatória do Registo Predial, e inscrito no artigo 629 "da matriz predial urbana de Antas".
10. "AA" e BB, por um lado, e o representante de Empresa-B, por outro, declararam, em escritura pública lavrada no dia 8 de Janeiro de 1999, no 2° Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, os primeiros vender e a segunda comprar o prédio urbano, composto por casa de habitação, torre e térrea, com duas dependências e quintal, sito no lugar de Vilar ou Regadas, freguesia de Antas, do concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n° 00541 e inscrito na matriz sob o artigo 629º.
11. A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio referido sob 1, mencionada sob 10, está inscrita naquela Conservatória a favor de Empresa-B pela inscrição G-2, de 11 de Novembro de 1999.
12. No dia 5 de Junho de 1999, à tarde, num sábado, Empresa-B, por intermédio de trabalhadores recrutados pelo seu gerente, destruiu o muro de granito que vedava aquele prédio ao Sul-Poente, ao longo da Estrada Nacional n.° 206, desde a casa torre e térrea que faceia com essa estrada, até ao limite Nascente-Sul de tal prédio, na extensão de cerca de 12 metros.
13. E logo, no quintal da casa, uma carreira contínua de camionetas de carga, ali depositou montes de terra, cascalho e brita, iniciando a transformação da área do quintal daquela casa, e outras máquinas iniciaram a compactação do terreno, coberto a cascalho e a brita, tendo os referidos trabalhos prosseguido até que se iniciaram os serviços de asfaltagem daquele recinto, tendo sido cortadas árvores, vides e derrubadas ramadas e os marcos ao nascente.
14. "AA" declarou publicamente que bem sabia que não podia vender duas vezes, a pessoas diferentes, o mesmo prédio.
15. "AA" requereu ao chefe da 1ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Famalicão que a sisa n.° 27 de 8 de Janeiro de 1999, não devia referir o artigo 629º da matriz urbana de Antas mas sim aludir a prédio omisso na Fazenda, por tal lapso ser tão evidente que o requerente não podia vender o mesmo prédio a duas entidades diferentes", lapso que aconteceu por engano do advogado, acrescentando que já fora pedida a rectificação na Conservatória do Registo Predial. E juntou certidão de requerimento dirigido à Conservatória do Registo Predial em que alude à venda que fez à autora em 30 de Outubro de 1995, ter a última requerido o registo de transmissão do prédio que em 24 de Novembro de 1998 AA fez registar no seu próprio nome o prédio dito omisso, juntando apenas uma habilitação de herdeiros, a certidão fiscal e a matricial. E esclareceu que esse prédio estava inscrito no artigo 629º de Antas - tal como constava da escritura de venda à autora de 30 de Outubro de 1995, e que em 8 de Janeiro de 1999 "vendeu" esse prédio a Empresa-B , mas que houve lapso de identificação do prédio - que não estava inscrito no artigo 629° mas em outro ainda omisso. E voltou a declarar e a subscrever que "não podia vender o mesmo prédio a duas entidades diferentes, logo se via que houve lapso, pois o prédio agora descrito sob o n.° 541 /Antas é o mesmo do descrito sob o n.° 23 813", e que o vendedor tinha em seu poder escrituras que identificam o prédio objecto da segunda venda como n.° 23 813 e 629 da matriz urbana de Antas e não como prédio n.° 541. E mais pediu que fosse declarado nulo e de nenhum efeito o registo de transmissão do prédio n.° 00541 a seu favor - AA - e bem assim nulo e de nenhum efeito o registo desse prédio a favor de Empresa-B .
16. O referido prédio foi registado em nome dos réus AA e BB, prédio descrito sob o nº 541, no Livro G-1, como se até então fosse omisso
17. A autora, por intermédio de GG, foi a entidade que, desde há mais de quinze anos, elaborou a contabilidade pessoal dos réus AA e BB - e, sobretudo, de Empresa-C, de cujo capital estes são totais detentores.
18. Até meados do ano de 1999, o réu AA tinha total confiança em GG, fruto de uma relação pessoal mantida ao longo de dezenas de anos.
19. O director financeiro da ré Empresa-B é simultaneamente sócio da autora e, à data da escritura referida sob 7., o imóvel encontrava-se arrendado a inquilino a quem nunca foi dado conhecimento de qualquer venda e, muito menos, das suas condições.

B)
É a seguinte a factualidade eliminada pelo acórdão recorrido:
1. A autora, por si e pelos antepossuidores - supra referidos e mesmo outros anteriores - há mais de 20 anos, desde data anterior a 1976, tem colhido todos os frutos e rendimentos do prédio descrito sob 1, e pelos anteriores donos - da raiz e usufruto e, depois, pelo usufrutuário - tem dado o prédio em arrendamento, colhido as rendas e pago as contribuições, sempre sem intervalo ou interrupção alguma, sem suspensão, sem qualquer oposição ou embaraço seja de quem for, à vista de toda a gente, de modo ostensivo, bem conhecido e patente, na convicção de não prejudicar seja quem for.
2. Pelo menos a ré Empresa-B sabia que tal prédio não era omisso e foi o gerente desta quem congeminou tal estratégia, encomendou a escritura aludida em A) II 7) reunindo igualmente os documentos para esta.


III
A questões essenciais decidendas são as de saber se deve ou não declarar-se a nulidade do contrato mencionado sob II 10 e condenar-se Empresa-B a proceder às obras neces­sárias à recondução do prédio ao seu estado anterior.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pela recorrida Empresa-B, a resposta às referidas questões essenciais pressupõe a análise da seguinte problemática:
- podia ou não a Relação considerar a impugnação da matéria de facto formulada pela recorrida?
- pode ou não este Tribunal sindicar a decisão da matéria de facto da Relação?
- consequência jurídica da alteração da matéria de facto pela Relação;
- natureza jurídica e efeitos do contrato mencionado sob II 7;
- síntese do regime de venda de bens alheios, de excepção ao regime geral da nulidade e do efeito do registo predial em relação a terceiros;
- consequência do referido regime em relação à problemática em litígio;
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise da questão de saber se a Relação podia ou não considerar a impugnação da matéria de facto formulada pela recorrida.
A recorrente alegou no sentido negativo com o argumento de a apelante e ora recorrida não haver procedido à transcrição por via de escrito dactilografado dos depoimentos e que, tendo a Relação entendido no sentido contrário, cometeu uma nulidade.
No caso vertente, a acção foi intentada no dia 2 de Dezembro de 1999, os réus foram citados no dia 21 de Dezembro de 1999 e as provas foram apresentadas por ambas as partes no dia 26 de Março de 2001.
Quanto ao encargo do recorrente que impugne a decisão de facto, a regra era e é no sentido de ele dever especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considerasse incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impusessem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (artigo 690º-A, nº 1, do Código de Processo Civil).
O nº 2 do referido artigo, na sua versão originária, estabelecia que no caso da alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tivessem sido gravados, incumbia ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se fundasse.
O referido normativo foi alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, passando a prescrever que no caso da alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522-C.
O nº 2 do artigo 522º-C do Código de Processo Civil prescreve que quando houver lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento.
Empresa-B, apelante, apesar de a acção ter sido instaurada e a citação dos réus operada antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, considerou aplicável o novo texto do nº 2 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil e não transcreveu os depoimentos em que se fundava, limitando-se a indicá-los e a mencionar o início e o termo da gravação de cada um deles.
Com excepção do disposto no artigo 6º, o Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2001, não se aplica, em regra, aos processos (artigo 8º).
Mas há que ter em conta o que se prescreve especialmente no artigo 7º daquele diploma, ou seja, as suas normas de direito transitório.
Em primeiro lugar, em tanto quanto releva no caso em análise, o regime resultante da alteração da versão anterior do Código de Processo Civil é imediatamente aplicável aos processos pendentes em que a citação do réu ou de terceiros ainda não tenha sido efectuada ou ordenada (artigo 7º, nº 3).
Decorre, pois, do mencionado normativo, que nos processos instaurados antes de 1 de Janeiro de 2001 em que as citações ainda não tenham recorrido aplica-se o Código de Processo Civil na sua nova versão.
Todavia, ainda que as citações tenham ocorrido antes de 1 de Janeiro de 2001, o novo regime probatório é aplicável às provas requeridas ou oficiosamente ordenadas após a data da sua entrada em vigor (artigo 7º, nº 8).
Tem sido considerado que este último normativo não é aplicável ao ponto do litígio em causa, por ser uma questão relativa ao recurso da decisão da matéria de facto e não ao direito probatório.
Na verdade, uma coisa é o direito probatório adjectivo, constante do Capítulo III, que vai do artigo 513º a 645º, e outra a matéria constante do capítulo VI, secção I, relativa às disposições gerais aos recursos, que vai do artigo 676º ao artigo 690º-A, todos do Código de Processo Civil.
Todavia, o nº 2 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil, resultante da alteração pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, remete para o disposto no nº 2 do artigo 522º-C do Código de Processo Civil, inserido por este último diploma.
Este normativo, relativo à forma de gravação, enquadra-se no conceito de direito probatório adjectivo, onde está sistematicamente inserido, e configura-se como necessariamente instrumental do disposto no artigo 690º-A, nº 2 do Código de Processo Civil segundo a sua nova redacção.
Em consequência, ao contrário do alegado pela recorrente, por força do disposto no nº 8 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, o ónus da apelante, ora recorrida, ao impugnar a decisão de facto, era no sentido de indicar os depoimentos em que se fundava por referência ao assinalado na acta.
Por conseguinte, a Relação, ao não rejeitar o recurso de apelação interposto por Empresa-B na parte relativa à impugnação da matéria de facto, não infringiu o disposto no nº 2 artigo 690º-A do Código de Processo Civil, certo que se limitou a cumpri-lo.

2.
Atentemos agora na sub-questão de saber se este Tribunal pode ou não sindicar a decisão da matéria de facto da Relação.
A recorrente impugna no recurso de revista a decisão da Relação de alterar a resposta aos quesitos 7º,8º, 24º e 38º de provado para não provado.
O primeiro dos referidos quesitos inseria a problemática de saber se a autora, por si e pelos antepossuidores supra referidos e outros anteriores, há mais de 20 anos, desde data anterior a 1976, tem colhido todos os frutos e rendimentos do prédio descrito em 1, e se pelos anteriores donos - da raiz e usufruto - e, depois pelo usufrutuário tem dado o prédio de arrendamento, pago as contribuições e colhido as rendas que o mesmo produz.
O segundo, conexo com o primeiro, inseria a questão de saber se sempre, sem intervalo ou interrupção alguma, sem suspensão, sem qualquer oposição ou embaraço seja de quem for, à vista de toda a gente, de modo ostensivo, bem conhecido e patente, na convicção de não prejudicar seja quem for.
O terceiro inseria a questão de saber se todos os réus sabiam que tal prédio era omisso; e o quarto a questão de saber se foi o gerente da Empresa-B quem congeminou tal estratégia, e praticou todos os actos de declaração de herdeiro da falecida FF, encomendando a escritura aludida em II 10 e reuniu os documentos para a mesma.
A resposta aos referidos quesitos no tribunal da 1ª instância foi positiva quanto aos quesitos 7º, 8º e 38º e restritiva quanto ao quesito 24º, ou seja, no sentido de que pelo menos Empresa-B sabia ser o prédio omisso.
A Relação, reapreciando os meios de prova, com base em dezasseis depoimentos de testemunhas e no do réu AA, e na análise dos documentos insertos a folhas 56 a 60, alterou a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância, respondendo negativamente a todos os referidos quesitos.
Os aludidos documentos consubstanciam: um requerimento dirigido por AA, no dia 31 de Outubro de 1997, ao chefe da 1ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Famalicão, para correcção dos averbamentos que constassem do artigo 629º de Antas, de forma a ficar averbado a favor da sua proprietária Empresa-A; a cópia de um requerimento dirigido ao Conservador do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão para considerar nulo e sem efeito o registo a seu favor quanto ao prédio aí descrito sob nº 00541/Antas, bem como o registo a favor de Empresa-B por só então se ter apercebido do erro cometido e também pelo facto de se tratar de prédio descrito sob o nº 23 813; um documento emitido pela Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão relativo à aquisição favor de AA relativo ao prédio omisso Antas, apresentação de 24 de Novembro de 1998, com base em escritura de habilitação, caderneta predial, e certidão fiscal; e uma carta de AA ao gerente da autora, datada de 31 de Outubro de 1997, referindo que o prédio que lhe vendera não era o mesmo que vendera a Empresa-B.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Em consequência, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Os referidos documentos, cujo conteúdo consta de II 16, são particulares e, pela sua estrutura e fim, são insusceptíveis de implicar a produção de prova plena (artigos 363º, nºs 1 e 2, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
A confissão do réu AA cinge-se à assinatura do contrato de folhas cento e oitenta e dois e dos documentos acima referidos e à sua declaração que bem sabia não poder vender duas vezes o mesmo prédio a duas pessoas.
Como a referida confissão não se reporta aos factos que a Relação desconsiderou, não é em relação a eles susceptível de produção de prova plena (artigos 352º e 358º, nº 1, do Código Civil).
Em consequência do exposto, a Relação alterou a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância com base em prova de livre apreciação judicial, nos termos do artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Por conseguinte não pode este Tribunal sindicar a referida decisão da matéria de facto proferida pela Relação.

3.
Vejamos agora a consequência da alteração da decisão da matéria de facto pela Relação.
O tribunal da 1ª instância julgou a acção procedente com base na aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa por usucapião, no forjar pelos réus do registo relativo à aquisição por Empresa-B do direito de propriedade sobre o mesmo prédio e na congeminação pelos seus representantes da estratégia que a essa falsificação conduziu, com a consequência da neutralização da publicidade registal.
Todavia, considerando a alteração da matéria de facto operada pela Relação, constante de II B), deixaram de relevar os factos relativos à aquisição pela recorrente do direito de propriedade sobre o prédio em causa por usucapião bem com como à má fé dos representantes da recorrida Empresa-B no que concerne ao registo da sua aquisição do direito de propriedade sobre o mesmo prédio.
Daí que, tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação das partes, a solução do objecto do litígio esteja circunscrita à natureza do contrato mencionado sob II 7 face aos factos referidos sob II A) 3 a 5, ao regime da venda
de bens alheios, da inoponibilidade da declaração de nulidade e dos efeitos do registo predial em relação a terceiros.

4.
Atentemos agora na natureza jurídica e nos efeitos do contrato mencionado sob II 7.
Tendo em conta apenas os factos mencionados sob II 7, estamos perante um contrato de compra e venda do direito de propriedade de raiz sobre o prédio em causa celebrado entre AA e BB, como vendedores, por um lado, e a recorrente, por outro, na posição de compradora (artigo 874º do Código Civil).
Decorre do referido contrato, face às declarações negociais que o envolvem, a transmissão do direito de nua propriedade da titularidade dos primeiros para a titularidade da última e desde logo a obrigação desta de pagar àqueles o respectivo preço (artigo 879º do Código Civil).
As referidas declarações negociais, tal como estão consubstanciadas na escritura pública, não revelam sequer minimamente a vontade das partes no sentido de celebração de contrato de compra e venda a retro, tal como é caracterizado no artigo 927º do Código Civil.
Está, porém, assente sob II 3 a 5, que a sociedade de que AA era sócio estava em crise financeira e sem crédito e que teve de recorrer a empréstimos particulares, alguns obtidos pelo gerente da recorrente e que este propôs ao primeiro, enquanto os financiamentos se mantivessem, que o prédio passasse para o nome da recorrente, que beneficiava de isenção de sisa.
Resulta assim do referido núcleo fáctico que AA e o gerente da recorrente configuraram em determinado momento que por via de contrato de compra e venda do referido prédio estabelecessem a garantia de cumprimento, por parte do primeiro ou da sociedade de que era sócio, de obrigações decorrentes de contratos de mútuo no confronto com o segundo.
É uma situação que lembra o velho instituto criado pelo direito romano designado fiducia cum creditore, à luz do qual o credor recebia do devedor a propriedade e a posse de um bem fungível, a fim de garantir o cumprimento de uma obrigação principal, com a consequência de a dever restituir logo que realizado o pagamento.
Tratava-se, assim, da transmissão de uma coisa ou de um direito a alguém, assumindo o transmissário a obrigação de a restituir logo que realizado fosse o fim previsto, envolvendo o elemento real da transmissão e o elemento obrigacional da restituição.
Ora, sem a verificação cumulativa dos referidos elementos não é legalmente permitido considerar a existência do negócio fiduciário propriamente dito.
Ainda que se admita, à luz do disposto no artigo 405º do Código Civil, que o nosso ordenamento admite a figura do negócio fiduciário, atípico, pelo qual as partes, mediante a inserção de uma cláusula obrigacional - pactum fiduciae - adequam o conteúdo de um negócio típico à consecução de uma finalidade diversa, certo é que não estamos no caso vertente perante essa figura.
O que nos revela a factualidade mencionada sob II 7 é que as partes celebraram um contrato de compra e venda cujo objecto mediato se traduziu do direito de propriedade sobre a raiz do prédio em causa, com os seus efeitos típicos previstos nos artigos 874º e 879º do Código Civil.
Os factos mencionados sob II A) 3 a 5 só revelam a intenção, em determinado momento, das pessoas ali referidas de celebrarem um negócio de tipo fiduciário, mas não que o tenham celebrado, conforme, aliás, resulta do texto da escritura pública mencionada sob II 7.
Se os referidos factos devessem ser consideradas estipulações das partes com vista ao estabelecimento de uma função de garantia que foi configurada por AA e GG, seriam nulas por falta de forma e mesmo insusceptíveis de prova testemunhal (artigos 221º, nº 1, 393º, nº 1, 394º, nº 1 e 875º do Código Civil).
Mas ao invés do que foi entendido no acórdão recorrido, os factos provados não revelam minimamente algum vício de simulação ou de reserva mental, além do mais porque não revelam a intenção de alguma das partes de enganar alguém (artigos 240º, nº 1 e 244º, nº 1, do Código Civil).
Em consequência, o que releva neste ponto é o contrato de compra e venda mencionado sob II 7, com os seus efeitos jurídicos típicos, a que acima se fez referência, isto é, não assume qualquer relevo jurídico o que consta de II 3 a 5.

5.
Vejamos agora, em tanto quanto releva no caso vertente, o regime da venda de bens alheios, a excepção ao regime geral da nulidade e o conceito de terceiros para efeitos de registo.
Suscita-se esta problemática porque AA e BB, na posição de vendedores, celebraram dois contratos de compra e venda relativamente ao mesmo prédio, o primeiro com a recorrente, tendo por objecto mediato a nua propriedade com a recorrente, e o segundo com a recorrida Empresa-B, tendo por objecto mediato o direito de propriedade plena.
Enquanto a recorrente entende que ao caso é aplicável o regime da venda de bens alheios, a recorrida Empresa-B entende o contrário, tal como foi considerado no acórdão recorrido.
Expressa a lei ser nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la o vendedor de boa fé o comprador doloso (artigo 892º do Código Civil).
Assim, o comprador de má fé pode opor a nulidade ao vendedor de má-fé, tal como o vendedor de má fé a pode opor ao comprador de má fé. Mas o vendedor não pode invocar o vício de nulidade no confronto do comprador de boa fé, ou seja, daquele que ignorava ser alheia a coisa vendida, tal como o comprador doloso o não pode opor ao vendedor de boa fé.
O dolo é, nesta sede, a sugestão ou artifício que alguém empregue com intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação,
pelo declaratário ou o terceiro, do erro do declarante (artigo 253º, nº 1, do Código Civil).
Assim, age com dolo o comprador que tenha induzido o vendedor em erro ou que, apercebendo-se do erro daquele, o tenha dissimulado com vista a que continuasse envolvido da sua falsa convicção da realidade.
Apesar de o contrato de compra e venda de coisa alheia ser ineficaz em relação ao respectivo proprietário, este pode pedir a declaração da sua nulidade no confronto do vendedor e do comprador (artigo 286º do Código Civil).
A declaração de nulidade tem efeito retroactivo e implica, em regra, a restituição do que tiver sido prestado (artigo 289º, nº 1, do Código Civil).
Assim, declarada a nulidade de um contrato de compra e venda de imóvel, por exemplo, em simultâneo, deve o comprador restituí-lo ao vendedor e este entregar àquele o respectivo preço (artigos 290º, 874º e 879º do Código Civil).
Todavia, excepcionalmente, por um lado, a declaração de nulidade do negócio jurídico respeitante a bens imóveis não prejudica os direitos adquiridos sobre eles a título oneroso por terceiro de boa fé - desconhecedor do vício sem culpa no momento da aquisição - no caso de o registo da aquisição ser anterior ao registo da acção (artigo 291º, nºs 1 e 3, do Código Civil).
E, por outro, em quadro de limitação daquela excepção, os direitos de terceiro não são reconhecidos se a acção for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio (artigo 291º, nº 2, do Código Civil).
Este último artigo reporta-se, por exemplo, aos casos em que uma pessoa, por contrato afectado de nulidade, vendeu a outra um prédio, e a última o haver vendido invalidamente a outrem.
Visa, o referido normativo, verificados os pressupostos a que alude, proteger, por exemplo, o referido comprador do efeito da declaração da nulidade do primeiro contrato de compra e venda.
O terceiro a que este artigo se reporta é, pois, o sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade por ilegitimidade substantiva, portanto no quadro de aquisição a non domino.
É protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda, se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, tiver inscrito no registo predial a sua aquisição e tenha decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
O conceito de terceiro a que se refere este artigo, sob motivação de estabilidade de situações jurídicas, pressupõe, pois, a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, pelo que é diverso do conceito de terceiros para efeito de registo predial.
A regra é no sentido de que a transferência de direitos reais sobre coisa determinada se dá por mero efeito do contrato, sem prejuízo do regime relativo ao registo predial no que concerne a imóveis e a móveis sujeitos a registo (artigos 408º, nº 1 e 879º, alínea a), do Código Civil).
O registo predial tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis (artigo 1º do Código do Registo Predial).
Tem, pois, essencialmente, uma função declarativa e não constitutiva, conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.
A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo (artigo 2º, nº 1, alínea a), do Código do Registo Predial).
Prevalece o direito primeiramente inscrito, dessa inscrição emerge a tutela da fé pública por via das presunções - ilidíveis por via de prova do contrário - que consagra, designadamente a de que o direito existe tal como o registo o revela e que pertence a quem estiver inscrito como seu titular (artigos 6º e 7º do Código do Registo Predial e 350º do Código Civil).
Acresce, com particular relevância no que concerne ao princípio da transferência dos direitos sobre coisas determinadas por mero efeito do contrato, a que se reporta o artigo 408º, nº 1, do Código Civil, que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois de registados (artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial).
O conceito de terceiro para efeito de registo predial tem sido objecto de controvérsia jurisprudencial, até que o legislador o consignou no nº 4 do artigo 5º do Código do Registo Predial.
Numa primeira análise desta problemática, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça expressou serem terceiros para efeito de registo predial todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vissem esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente (Ac. nº 15/97, de 20 de Maio, Diário da República, I Série, de 4 de Julho de 1997).
Em segunda análise da mesma problemática, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça interpretou a lei no sentido de que terceiros para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa (Ac. nº 3/99, de 18 de Maio, Diário da República, I Série, de 10 de Julho de 1999).
Mais tarde, por via do Decreto-Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, estabeleceu-se que terceiros para aquele efeito são os adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo transmitente comum de (artigo 5º, nº 4, do Código do Registo Predial).
Trata-se de um normativo de natureza interpretativa, que, por isso, rege para as situações anteriores ao início da vigência daquele diploma que devam ser apreciadas posteriormente (artigo 13º, nº 1, do Código Civil).
Trata-se de situações em que ocorre uma relação triangular consubstanciada em dupla transmissão pelo mesmo alienante de um bem imóvel ou de um bem móvel sujeito a registo a um primeiro transmissário, que não inscreve no registo a aquisição, e depois a um segundo, que opera a respectiva inscrição registal.
São situações de conflito entre dois adquirentes, é válido o primeiro negócio de transmissão e não o segundo, mas o primeiro adquirente não pode opor ao segundo a sua aquisição, porque ela não constava no registo e o último não podia, dada a fé pública derivada do registo, conhecer que o alienante já não era o titular do direito em causa.
Mas este conceito de terceiro para efeito do registo, tal como acima se referiu, não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, aqui a estabilidade dos negócios jurídicos em termos de excepção ao disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil.

6.
Atentemos agora na consequência do regime legal enunciado sob 5 em relação à problemática em litígio.
A recorrente adquiriu validamente o direito de propriedade de raiz sobre o prédio em causa por virtude do contrato de compra e venda que celebrou com AA e BB no dia 30 de Outubro de 1995 (artigos 408º, nº 1 e 879º, alínea a), do Código Civil).
Extinto o direito de usufruto que incidia sobre o referido prédio por virtude do decesso do usufrutuário DD, no dia 8 de Novembro de 1998, consolidou-se o direito de propriedade plena sobre ele na esfera jurídica da recorrente (artigo 1476º, nº 1, alínea a), do Código Civil).
Como a recorrente passou a ser titular do direito de propriedade sobre o referido prédio por virtude da celebração do referido contrato de compra e venda e da extinção do direito de usufruto, a alienação do direito de propriedade sobre o mesmo prédio por AA e BB a favor da recorrida Empresa-B por contrato de compra e venda celebrado no dia 8 de Janeiro de 1999 configura-se como de venda de bens alheios.
É um contrato de compra e venda nulo no confronto de AA e de BB e de Empresa-B e afectado de ineficácia em relação à recorrente (artigos 408º, nº 1, e 892º do Código Civil).
A referida nulidade em relação a quem o celebrou e a concernente ineficácia face à recorrente não pode implicar, porém, o deferimento da sua pretensão consubstanciada nos pedidos que formulou.
É que não é aplicável ao caso em análise - duplo contrato de compra e venda da mesma coisa celebrado pelo mesmo vendedor a compradores diversos - o disposto no nº 2 do artigo 291º do Código Civil, certo que este normativo só é aplicável às situações em que o comprador da coisa invalidamente alienada, por seu turno, a alienar a outrem, a quem a lei concede a protecção.
Por isso, o disposto no nº 2 do artigo 291º do Código Civil, não pode sustentar a pretensão formulada pela recorrente no confronto da recorrida Empresa-B.
Como a recorrente não fez inscrever no registo predial a sua aquisição do direito de nua propriedade sobre o prédio em causa, e a recorrida, que adquiriu depois o direito de propriedade sobre o mesmo prédio, dos mesmos alienantes, procedeu à respectiva inscrição registal, subsiste a favor dela a presunção derivada do registo, por virtude de a primeira não lhe poder opor a sua aquisição.
Assim, por virtude das regras do registo predial, o contrato de compra e venda celebrado entre a recorrente, por um lado, AA e BB, por outro, porque não foi levado ao registo predial, não produz efeitos em relação à recorrida Empresa-B.
Não pode, por isso, proceder a pretensão formulada pela recorrente no confronto da recorrida Empresa-B.

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie, decorrente dos factos provados e da lei.
O disposto no artigo 690º-A. nº 2, do Código de Processo Civil decorrente do Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, é aplicável nos processos instaurados antes de 1 de Janeiro de 2001 em que as provas sejam requeridas depois desta última data.
Por isso, a Relação cumpriu a lei ao considerar a impugnação da matéria de facto formulada pela recorrida sem a transcrição dos depoimentos gravados.
No recurso, não pode sindicar-se a alteração da decisão da matéria de facto pela Relação, porque ela ocorreu com base na prova de livre apreciação judicial.
Alterada a matéria de facto pela Relação, nos termos em que o foi, deixou de relevar a aquisição pela recorrente do direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, tal como a má-fé dos representantes da recorrida no que concerne ao contrato de compra e venda em que interveio como compradora e a eventual no conformação do registo.
AA e BB e a recorrente celebraram um contrato de compra e venda, com os efeitos que lhe são próprios, não afectado de qualquer vício, nomeadamente de simulação ou reserva mental.
Não releva, no caso, o contrato fiduciário - compra e venda em garantia - que eles pretenderam celebrar, porque as declarações negociais relativas ao pacto fiduciário não constam da escritura de compra e venda, pelo que são nulas e não podiam ser objecto de prova testemunhal.
O disposto no artigo 291º do Código Civil não é aplicável no caso vertente. A nulidade do contrato de compra e venda celebrado no dia 8 de Janeiro de 1999 cede perante as regras do registo predial, das quais decorre que a transmissão do direito de propriedade sobre imóveis não registada não produz efeitos em relação a terceiros que tenham inscrito a aquisição subsequente do mesmo vendedor.
Assim, com fundamento diverso do adoptado no acórdão recorrido, improcede o recurso.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 11 de Maio de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís