Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5425/03.7TBSXL.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ARRENDAMENTO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Doutrina: - Dias Marques, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1979 (edição policopiada), pg 168.
- Cunha e Sá, Caducidade do Contrato de Arrendamento, pág. 90/91.
- Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, nota 18 da pág. 140.
- Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, pág. 30
- Mota Pinto, Direitos Reais, págs. 135 e 149.
- Oliveira Ascensão, ROA, 1985, ano 45, pág. 355.
- Romano Martinez, Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 1996, pg. 158.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC) : - ARTIGOS 824.º, N.º 2, 1022.º, 1051.º, 1057.º, 1276.º E SEGUINTES.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 3.12.1998, BMJ, 482º, 219;
- DE 6.7. 2000, COL. JUR/ STJ, 2000, T II, 150;
- DE 31.10. 2006, Pº 06A3241, DISPONÍVEL IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15.11. 2007, Pº 07B3456, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I- Mesmo considerando, na esteira da largamente maioritária jurisprudência portuguesa, que o arrendamento se reveste de natureza obrigacional, a verdade é que, como nota Romano Martinez. «importa reconhecer que a finalidade conseguida por este contrato pode ser atingida mediante o recurso a direitos reais menores», em primeiro lugar e, em segundo lugar, que «retira-se ( do artº 1022º do C. Civil) que a locação é uma forma de proporcionar o gozo temporário de uma coisa» ( Romano Martinez, Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 1996, pg. 158), características essas que, para além da notória semelhança funcional e sócio-económica, têm por denominador comum, a repercussão no valor económico dos bens onerados com um arrendamento ou com outros ónus reais que sobre eles incidam, sendo certo que como ainda refere ainda Romano Martinez, «a transitoriedade, sendo uma característica do contrato de locação, muitas das vezes, pode perdurar por vários anos» (ibidem).
II- Daí que a semelhança das situações, jurídica e sócio-económica, justifique e exija o recurso à aplicação analógica do preceituado no falado nº 2 do artº 824º do CCivil, quanto à caducidade dos contratos de arrendamento nos sobreditos termos.

III- O artº 824º, nº 2 do C.Civil é peremptório no sentido de que os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
IV- No caso em apreço, por um lado, o arrendamento é posterior ao registo da hipoteca sobre o imóvel e, por outro, a hipoteca é indiscutivelmente um direito real da garantia (Mota Pinto, Direitos Reais, 135), não sendo necessária, sequer, a sua equiparação à «penhora antecipada», para os efeitos da aplicação do referido preceito legal.
V- Quanto ao argumento de que não se pode falar de analogia já que a enumeração dos casos de caducidade do contrato de arrendamento prevista no artº 1051º do C.Civil não prevê a venda executiva e tal enumeração é taxativa, argumento esse esgrimido pela Relação no douto Acórdão ora sob recurso, não torna convincente, salvo o devido respeito, a bondade de tal solução

VI- Não se trata aqui do uso da analogia para colmatar lacuna legal (interpretação analógica) mas da semelhança notória do arrendamento com um direito real de gozo tal como o uso e habitação, além da sua tendencial longa duração, como já atrás deixámos expresso e, por isso, a merecer igual tratamento no que concerne à tutela dos direitos do credor com garantia real ( hipoteca) com registo anterior à celebração do arrendamento.
Por isso, quando se fala em analogia, não se quer visar necessariamente a integração das lacunas legais (integração de omissão por interpretação analógica) no regime de arrendamento, mas também a extensão da norma a situações análogas, tendo sempre a teleologia da norma, a ratio legis, que no caso do artº 824º, nº 2 é, sem dúvida, a tutela dos direitos dos credores titulares das garantias reais, registadas com anterioridade relativamente ao estabelecimento da invocada relação locatícia.
Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



RELATÓRIO

AA deduziu Embargos de Terceiro, por apenso à acção executiva em que é Executada BB, LIMITED e Exequente CC, S.A.
Invoca, em síntese, que é a legitima detentora do imóvel em causa nos autos, onde habita, pois celebrou um contrato-promessa de compra e venda do mesmo, com a sua proprietária, ora executada.
Devido a atrasos na celebração do contrato definitivo, por parte da Executada, foi celebrado, em 02 de Janeiro de 2001, contrato de arrendamento.
Entende que tem a qualidade de promitente compradora e de arrendatária, alegando que a sua posse obsta à entrega do imóvel.
A Embargada apresentou contestação e, em síntese, excepciona a ilegitimidade da Embargante, considera que esta não é possuidora nem detentora legítima, desconhece a realização de qualquer contrato promessa de compra e venda ou de arrendamento.
Acrescenta que este, a existir, é posterior à data de constituição e registo da hipoteca a favor da CC, S.A, a qual nunca autorizou ou teve dele conhecimento. Assim, tal contrato caducaria com a venda executiva. Pede a improcedência dos embargos.
No saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade e foi determinado que os autos passassem a ser tramitados como Embargos de Executado, instaurados na sequência de execução para entrega de coisa certa, requerida pela Exequente CC SA, contra a detentora AA, aqui Embargante.
Após a tramitação legal, foi efectuado o julgamento e proferida sentença, na qual se decidiu, em síntese, julgar os embargos procedentes e, em consequência, determinar-se a extinção da acção executiva intentada ao abrigo do disposto no artigo 901º, do Código de Processo Civil, contra a aqui Embargante.

Inconformada, interpôs a Embargada CC, SA, recurso de Apelação da mesma para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, julgando improcedente a Apelação, confirmou, por maioria, a decisão recorrida, com um voto de vencido, acompanhado de declaração no sentido de que daria provimento ao recurso no entendimento defendido no Acórdão daquela Relação de 22.02.2007, de que o subscritor da referida declaração foi Relator.
Novamente inconformada, a mesma veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

1ª- O voto de vencido que consta do Acórdão, ora recorrido, remete para o entendimento defendido pelo Acórdão de 22/02/2007, processo 309/2007-6, do Tribunal da Relação de Lisboa, 6ª Secção, entendimento esse que corresponde ao entendimento do ora Recorrente, cujo sumário se transcreve:
"Na expressão «direitos reais» (gozo) sujeitos a caducarem mercê da venda executiva...encontram-se...abrangidos os contratos de arrendamento, quer naturalmente os sujeitos a registo quer mesmo os não registados, pois que relativamente a estes últimos não se descortinam razões para diversa forma de tratamento, no que respeita à sua oponibilidade a terceiros e à caducidade."


2ª- No presente caso verifica-se que a favor do ora Recorrente (que cumula os papeis de credor hipotecário, exequente e proprietário do aludido imóvel) se encontrava registada hipoteca em data anterior (17/08/1999) à alegada celebração do contrato de arrendamento (02/01/2001).


3º- O Artigo 695º do CCIV ao permitir a livre convenção acerca do vencimento imediato do crédito hipotecário na eventualidade de alienação ou oneração de bens hipotecados inculca que se partiu do princípio de caducidade dos ónus em caso de execução e na expressão "oneração" inclui o próprio arrendamento de bens hipotecados. O Arrendamento constitui um ónus ou gravame que em nada se distingue dos restantes considerados no artº 695 do Código Civil.

4ª- Os bens objecto de garantia real registada anteriormente à celebração de uma relação locatícia, como acontece in casu, transmitem-se para o adquirente, novo proprietário, livres e desembaraçados do ónus locatício, nos termos e para os efeitos do artigo 824 nº 2, do Código Civil.

5ª- Na expressão "direitos reais" a que se reporta o Artigo 824 º ne 2 do CC inclui-se, por analogia, o aludido arrendamento.

6ª- O Artigo 1057º do CCIV é inaplicável à venda de coisa locada em processo executivo, nem se podendo entender-se que o legislador tivesse querido deixar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia, pelo que a venda executiva dos bens penhorados com garantia real anterior ao contrato de arrendamento se transmitirão para o adquirente novo proprietário livres e desembaraçados do ónus locatício, nos termos do n9 2 do artigo 824º do Código Civil.

7ª- E esta tese deve considerar-se incluída na regra do n9 2 do artigo 824 do Código Civil logo o contrato de arrendamento caduca nos termos aí previstos.

8ª- Verificando-se que o arrendamento do aludido imóvel foi celebrado em data posterior à constituição e registo da hipoteca (cfr certidão de ónus e encargos junto aos autos de execução) o mesmo e alegado arrendamento caducou nos termos do artigo 8249 n9 2 do Código Civil.

9ª- O imóvel adquirido pelo ora Recorrente por via de venda judicial deverá ser entregue ao Recorrente expurgado dos diversos ónus ou encargos que sobre ele incidiam até à consumação da venda, nos quais se inclui o alegado e conjectural arrendamento, nos precisos termos do nº 2 do Artigo 824º do CC.


10ª- O Acórdão ora recorrido violou a lei nomeadamente artigos 9º, 10º, 686º, nº l, 695º, 745º nº 2, 824º, nº 2 e 1057º todos do Código Civil e artigo 901º todos do Código Processo Civil.

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a parte contrária pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.


FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem dada, como provada, a seguinte factualidade:

1 - O prédio urbano composto de cave, rés-do-chão e primeiro andar com a área coberta de 193,40 metros quadrados, descoberta de 776,60 metros quadrados, situado na Rua dos ..........., freguesia de Amora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o n.° 000000000, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo 8182°, encontrava-se registado desde 17/08/1999 a favor da executada "BB Limited of Tropic Isle Building" por compra (inscrição 00000000000 1 7) –al. A);

2 - Sobre o prédio urbano descrito em A), encontra-se registada desde 19/11/1999 hipoteca voluntária a favor da exequente e embargada CC S.A. para garantia de todas as obrigações ou responsabilidades constituídas ou a constituir pela sociedade "F...... - Artigos de Desporto S.A." decorrentes de abertura de crédito sob a forma de conta corrente até ao montante de cinquenta milhões de escudos e empréstimo no montante de cinquenta milhões de escudos, juro anual de dez por cento, cláusula penal de quatro por cento e montante máximo de cento e quarenta e seis milhões de escudos (inscrição C-3 Ap. 000000 -al. B);

3 - No âmbito da execução para pagamento de quantia certa, sob a forma ordinária, em que é exequente CC S.A. e executada BBLimited of Isle Building, o prédio descrito em A) foi penhorado em 03/03/2004 e registada em 16/03/2004 para garantia da quantia exequenda de € 583.492,78 (inscrição 00000000) - al. C);

4 - No âmbito da execução referida em C), foi ordenada a convocação dos credores e realizada a afixação de editais em 25/06/2004 e a publicação de anúncios em 09/07/2004 e 10/07/2004 – al .D);

5 - No âmbito da execução referida em C), a embargante veio invocar ser titular de direito de retenção sobre o imóvel alegando que o direito se encontrava a aguardar decisão no âmbito do processo n° 00000 que corre termos no 2.° Juízo de Competência Especializada Cível da Comarca de Almada requerendo a suspensão da instância executiva - al. E);

6 - Por despacho proferido em 16/03/2005 e transitado em julgado, foi indeferido, por intempestivo, o pedido de suspensão da instância executiva formulado pela embargante e ordenado o prosseguimento da execução - al. F);

7 - No âmbito da execução referida em C), realizou-se no dia 07/04/2005 abertura e aceitação de propostas tendo sido proferido despacho ordenando a notificação da embargante para poder exercer direito de preferência na aquisição do prédio descrito em A) e designando-se o dia 21/04/2005 para o efeito - al. G);

8 - A embargante e a sua mandatária foram notificadas do despacho referido em G) em 14/04/2005 - al. H);

9 - No âmbito da execução referida em C), encontrando-se apenas presente o mandatário da exequente, foi proferido despacho em 21/04/2005 e transitado em julgado aceitando a proposta de aquisição do prédio descrito em A) apresentada pela embargada e exequente no montante de € 510.000,00 sendo esta dispensada do depósito do preço na parte em que não exceda as custas do processo - al. I);

10 - Por despacho proferido em 27/04/2005 e transitado em julgado, foi indeferido o pedido formulado pela embargante de concessão do prazo de vinte dias para demonstração da pendência do processo instaurado contra a executada e a suspensão do exercício do direito de preferência - al. J);
11 - Por despacho proferido em 19/05/2005 e transitado em julgado, foi adjudicado à exequente o prédio urbano descrito em A) e ordenado o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam com a venda executiva - al. K);

12 - Corre termos sob o n°2131/04.9TBALM do 2.° Juízo de Competência Especializada Cível da Comarca de Almada acção declarativa sob a forma ordinária em que é autora a embargante e ré a executada na qual foi proferida sentença em 05/05/2006 e transitada em julgado em 16/07/2006, condenando a ré a pagar à autora a quantia de € 147.248,25 e reconhecer o direito de retenção da autora sobre o prédio urbano descrito em A) – al .L);

13 - Entre a executada BB, Limited e a embargante foi ajustado em 02/01/2001 que aquela dava de arrendamento a esta o imóvel descrito em A) pelo prazo de dois anos com início naquela data e sucessivamente renovado por iguais períodos, com destino a habitação e mediante a contrapartida monetária de sessenta mil escudos, carecendo de autorização escrita do senhorio a realização de obras que não sejam de conservação - art. 1°;

14 - A embargante procedeu ao pagamento da contrapartida monetária, no montante mensal de 60.000$00, pelo menos nos meses de Agosto e Dezembro de 2001 e Fevereiro e Dezembro de 2002 – artº s. 2° a 27.

A única questão que se equaciona no presente recurso de Revista, consiste em saber se o contrato de arrendamento invocado pela Embargante, relativo ao imóvel objecto da Execução Hipotecária e em relação à qual foram interpostos os presentes Embargos , na medida em que tal contrato locatício foi celebrado posteriormente ao registo da hipoteca a favor da Embargada, a sociedade CC, S.A., caducou ou não.
Antes de prosseguir a necessária apreciação da questão levantada, cumpre dizer que, inicialmente, a presente oposição à execução havia sido intentada como Embargos de Terceiro, tendo, depois, já no despacho de condensação, mandada seguir, por decisão transitada em julgado, como Embargos de Executado, instaurados na sequência de entrega de coisa certa requerida pela Exequente contra a detentora, aqui Embargante.
Relativamente à questão a decidir, começaremos por advertir de que não se tratando de questão líquida, nem na Doutrina, nem na Jurisprudência, ao nível da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a recente corrente jurisprudencial tem vindo a decidir no sentido de responder afirmativamente à referida questão, sendo esta a corrente maioritária.
Não iremos, aqui e agora, efectuar um recenseamento exaustivo dos arestos existentes, tarefa que se revestiria de parca utilidade, pelo seu carácter repetitivo, pois nos acórdãos que indicaremos, é ampla a referenciação dos arestos num e noutro sentido, podendo ser facilmente consultados para maior aprofundamento desta problemática.
A nossa posição inclina-se, todavia, para o entendimento plasmado nas decisões que têm vindo a perfilar o entendimento de que a venda judicial, em processo executivo, de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento, registado ou não, de tal bem, por força do disposto no nº 2 do artº 824º do Código Civil.
Perfilhamos tal entendimento por isso que não só o argumentário em que se estriba tal posição é deveras convincente, como é o que melhor garante e satisfaz os imperativos de justiça, designadamente dos credores com garantia real registada, como se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 3 de Dezembro de 1998 ( Relator, o Exmº Conselheiro Ferreira de Almeida), desta mesma Secção Cível, assim sumariado na parte que ora interessa:

«I — O arrendamento é um contrato consensual e obrigacional.

II — A faculdade excepcional atribuída ao locatário de usar de acção de defesa da posse prevista nos artigos 1276° e seguintes do Código Civil não obsta a que ele seja detentor ou possuidor em nome alheio.

IV — O referido artigo 1057.° do Código Civil é, semelhantemente, também inaplicável à venda em processo executivo.

V—Na expressão «direitos reais» constante do artigo 824.°, n.º 2, do Código Civil inclui-se, por analogia, o arrendamento, registado ou não.

VI — Assim, a venda judicial, em processo executivo, de um imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento, não registado, dessa coisa celebrado posteriormente à consti­tuição daquela garantia real.» ( BMJ, 482º, 219).

e onde se ponderou, além do mais, o seguinte:

«Apesar de um manifesto intuito de proteger o bem da estabilidade da habitação, não pode en­tender-se que o legislador houvesse querido dei­xar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com ante­rioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia, pelo que os bens arrematados em hasta pública por credor com garantia real anterior se transmitirão para o adquirente novo proprietário livres e desembaraçados do ónus locatício, nos termos e para os efeitos do n.° 2 do artigo 824.° do Código Civil vigente.
Nesta conformidade, não é de aplicar ao caso sub specie — de imóvel hipotecado e alegadamente arrendado por arrendamento não regista­do, celebrado em data posterior à do registo da hipoteca, e convergindo na mesma pessoa as qualidades de credor hipotecário, arrematante judicial e autor em acção de posse judicial avulsa relativa à fracção arrematada — a previsão do artigo 1057.º do Código Civil vigente» ( ibidem)

Mais adiante, ponderou-se no referido aresto:
« ... só por esta via interpretativa se obviará a que a oneração de prédio urbano através da celebração posterior de contrato de arrendamento, impossibilite ou pelo menos dificulte o ressarcimento completo do credor com garantia real», acrescentando que «é geralmente sabida a repercussão negativa em termos de valor-preço que a celebração de um contrato com uma certa vocação de perenidade – traduzida na possibilidade de renovação periódica sucessiva e na dificuldade de resolução –, como é o arrendamento, pode provocar em determinada fracção habitacional. O que poderia, ademais, quiçá com recurso a expedientes de cariz fraudulento, acabar por fazer frustrar a própria essência do crédito hipotecário tal como é definido no artº 686º do Código Civil vigente e prejudicar, de forma drástica, a integridade do direito do novo proprietário» ( ibidem).

Com isto não se está, hic et nunc, a adoptar posição sobre a conhecida querela doutrinária acerca da natureza obrigacional ou real do direito ao arrendamento, que como é consabido tem os seus coriféus em cada uma das posições discutidas, com argumentos de tomo de ambos os lados.
Não é disso que agora se trata!
Embora a posição jurisprudencial e dogmática maioritárias, na qual nos enfileiramos, sejam no sentido de que tal direito tem natureza obrigacional, com ponderosas razões in hoc sensu, a verdade é que o que acaba de se afirmar, isto é, a aplicação do disposto no nº 2 do artº 824º do CCivil relativamente à caducidade dos arrendamentos celebrados em data posterior à do registo da hipoteca, não significa atribuição de natureza real a tal negócio jurídico.
Trata-se, isso sim, de aplicação analógica do preceito indicado a tais arrendamentos, como se sentenciou doutamente no Acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Julho de 2000, subscrito pelos Exmºs Conselheiros Torres Paulo, Aragão Seia e Lopes Pinto, assim sumariado:
«A venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada faz caducar seu arrendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão « direitos reais» mencionada no artº 824º nº 2 do CC se incluir, por analogia, aquele arrendamento» (Col. Jur/ STJ, 2000, T II, 150).
Este aresto refere também a posição do Prof. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, nota 18 da pg. 140, para quem o artº 1057º do Código Civil, que consagra o princípio da transmissão da posição do locador, aceite entre nós e colhido do brocardo latino «emptio non tollit locatio», é «inaplicável à venda da coisa tocada em processo executivo» e no mesmo sentido, indica as posições de Oliveira Ascensão ( ROA, 1985, ano 45, pg. 355), referindo também que relativamente ao artº 1051º do C.Civil – artº 66º do RAU – ao contrário do que defende Menezes Cordeiro, não é atribuir carácter taxativo aos casos aí enumerados de caducidade do contrato de locação, e isto porque «o carácter taxativo nunca é de presumir», assim perfilhando a tese defendida por Cunha e Sá em Caducidade do Contrato de Arrendamento, pg. 90/91 e Oliveira Ascensão, op cit, pg 355.
Por isso, o douto aresto a que nos estamos reportando, considera que um dos grandes princípios de uma ordem jurídica «é o de analogia, fundada na regra constitucional do tratamento idêntico de casos semelhantes. Qualquer enumeração ou tipologia legal deve considerar-se meramente exemplificativa», defendendo a aplicação de tal princípio.

Bem mais recentemente, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.10. 2006, de que foi Relator o Exmº Juiz Conselheiro Urbano Dias, decidiu, na parte que ora interessa à decisão do presente recurso:
«À luz do artº 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio.
Daí que, vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca e penhora caduque automaticamente» ( Pº 06A3241, disponível in www.dgsi.pt).
Neste aresto, encontra-se citada uma breve passagem da obra de Miguel Teixeira de Sousa (Acção Executiva Singular, 1998, pg 30), onde o conhecido processualista escreveu o que, data venia, passamos a citar:
« ... em concreto: se a locação dever ser registada, extingue-se aquela que tenha registo posterior ao do arresto, penhora ou garantia;
se a locação não dever ser registada, releva a data da sua constituição e extingue-se a que for constituída após o arresto, penhora ou garantia e que, por isso, é inoponível à execução.».

Finalmente – last but not the least – citaremos o Acórdão de 15.11. 2007, desta mesma Secção Cível do Supremo, de que foi Relator o Exmº Juiz Conselheiro Pereira da Silva, que nos presentes autos intervem como Dig.mo Adjunto, e que assim sentenciou:
«A venda judicial, em processo executivo, de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento de tal bem, não registado, celebrado após a constituição e registo da hipoteca, por na expressão « direitos reais» a que se reporta o artº 824º do CC, haver que incluir, por analogia, o aludido arrendamento» ( Pº 07B3456, disponível em www.dgsi.pt).

Após este breve esboço sobre o panorama jurisprudencial e doutrinal que defende a aplicação do disposto no nº 2 do artº 824º do CCivil relativamente à caducidade dos arrendamentos celebrados em data posterior à do registo da hipoteca, por analogia com os direitos reais (de gozo) a que se refere o mesmo inciso normativo, indaguemos, ainda que necessariamente a vol d’oiseau, da ratio de tal aplicação analógica.
Mesmo considerando, na esteira da largamente maioritária jurisprudência portuguesa, que o arrendamento se reveste de natureza obrigacional, a verdade é que, como aponta Romano Martinez, apesar de se concluir que a locação, não obstante o poder de gozo atribuído ao locatário, é um direito obrigacional, «importa reconhecer que finalidade conseguida por este contrato pode ser atingida mediante o recurso a direitos reais menores» e, em segundo lugar, que «retira-se ( do artº 1022º do C. Civil) que a locação é uma forma de proporcionar o gozo temporário de uma coisa» ( Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 1996, pg. 158) características essas que, para além da notória semelhança funcional e sócio-económica, têm por denominador comum, a repercussão no valor económico dos bens onerados com um arrendamento ou com outros ónus reais que sobre eles incidam, sendo certo que como ainda refere Romano Martinez, «a transitoriedade, sendo uma característica do contrato de locação, muitas das vezes, pode perdurar por vários anos» (ibidem).
Daí que a semelhança das situações, jurídica e sócio-económica, justifique e exija o recurso à aplicação analógica do preceituado no falado nº 2 do artº 824º do CCivil, quanto à caducidade dos contratos de arrendamento nos sobreditos termos.

Dito isto, é tempo de revertermos ao caso sub judicio!
Vem provado definitivamente que a favor do ora Recorrente CC, S.A. se encontrava registada hipoteca sobre o imóvel destes autos em data anterior ( 17/08/1999) ao contrato de arrendamento ( 02/01/2001) em que a Recorrida é sujeito contratual (arrendatária).
O artº 824º, nº 2 do C.Civil é peremptório no sentido de que os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
No caso em apreço, por um lado, o arrendamento é posterior ao registo da hipoteca sobre o imóvel e, por outro, a hipoteca é indiscutivelmente um direito real da garantia (Mota Pinto, Direitos Reais, 135), não sendo necessária, sequer, a sua equiparação à «penhora antecipada», para os efeitos da aplicação do referido preceito legal.
Quanto ao argumento de que não se pode falar de analogia já que a enumeração dos casos de caducidade do contrato de arrendamento prevista no artº 1051º do C.Civil não prevê a venda executiva e tal enumeração é taxativa, argumento esse esgrimido pela Relação no douto Acórdão ora sob recurso, não torna convincente, salvo o devido respeito, a bondade de tal solução.
Não se trata aqui do uso da analogia para colmatar lacuna legal (interpretação analógica) mas da semelhança notória do arrendamento com um direito real de gozo tal como o uso e habitação, além da sua tendencial longa duração, como já atrás deixámos expresso.
Tal é a semelhança, que o saudoso Prof. Mota Pinto não hesitou em ver no arrendamento uma característica dominante dos direitos reais, o direito de sequela ou seguimento, ensinando que: «o direito de sequela existe no arrendamento; o direito do arrendatário está dotado dessa característica dos direitos reais, como claramente o revela o artº 1057º do actual código Civil;
... Quer isto dizer que o locatário pode continuar a exercer os seus poderes sobre a coisa, pode continuar a utilizar a coisa apesar de ela ter sido vendida ou por qualquer forma alienada pelo locador a terceiro. O seu direito, a sua posição jurídica, tem eficácia em relação ao novo adquirente da coisa» ( Op. cit., pg. 149).
É claro que o Ilustre civilista coimbrão não se referia, ao fazer referência ao art° 1057º do C. Civil, à situação excepcional dos arrendamentos efectuados após a hipoteca do prédio em caso de venda executiva, mas à regra geral da transmissão pelo locador dos imóveis arrendados, a outrem que não o locatário.
É por força desta notável semelhança ou analogia das situações de base que se faz a interpretação extensiva do artº 824º, nº 2 do Código Civil, e não para a integração de qualquer lacuna legal.
Trata-se de uma modalidade da denominada interpretação correctiva, que abrange duas subespécies: a interpretação restritiva e a interpretação extensiva, de que ora nos ocupamos.
Esta interpretação tem lugar, como ensinava o nosso saudoso Mestre, o Prof. Dias Marques, quando o legislador «ao exprimir o seu pensamento, o legislador pode ter adoptado uma fórmula que não abranja toda a categoria lógico-jurídica que pretendia alcançar, sendo lícito ao intérprete apoiar-se nos elementos extra-literais e fazer uma interpretação extensiva da lei, despojando o termo por ela usado das circunstâncias restritivas em que se encontrava gramaticalmente circunscrito e tornando-o idóneo para abranger a generalidade das relações que verdadeiramente visa atingir» ( Dias Marques, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1979 ( edição policopiada), pg 168).
Desta forma, quando se fala em analogia, não se quer visar necessariamente a interpretação analógica(integração de omissão por analogia), mas também a extensão da norma a situações análogas, tendo sempre a teleologia da norma, a ratio legis, que no caso do artº 824º, nº 2 é, sem dúvida, a tutela dos direitos dos credores titulares das garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia, como bem refere o Recorrente.
Sem necessidade de maiores considerandos, procedem integralmente as conclusões da douta alegação do Recorrente, o que vale dizer que procede o recurso de Revista interposto.


DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e, em consequência, revogar o Acórdão recorrido, por forma a que o imóvel adquirido pelo Recorrente por via de venda judicial seja entregue expurgado dos diversos ónus ou encargos que sobre ele incidam até à consumação da venda, nos quais se inclui o alegado arrendamento, nos precisos termos do nº 2 do artº 824º do CPC, como vem pedido.

Custas pela Recorrida.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Maio de 2010

Álvaro Rodrigues (Relator)
Bettencout de Faria
Pereira da Silva