Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5407/16.9T8ALM.L1.S1-A
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
COVID-19
SUSPENSÃO
CONTAGEM DE PRAZOS
EXTEMPORANEIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
PROCESSO EQUITATIVO
DIREITO AO RECURSO
NULIDADE DE DESPACHO
FALTA DE ASSINATURA
ASSINATURA DIGITAL CERTIFICADA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I - Da leitura da al. a) do n.º 5 do art. 6.º-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, aditado pelo art. 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01-02, resulta que a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais, a partir de 22-01-2021, decretada pelo n.º 1 do mesmo artigo, designadamente a suspensão dos prazos para a interposição de recursos, não se aplicou à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes.

II - A referência genérica à tramitação dos processos nos tribunais superiores, sem qualquer distinção ou exceção, abrange os atos dos juízes, da secretaria ou das partes, pelo que, todos os prazos dos processos a correr termos no STJ, desde que não exigissem a prática de atos presenciais, não foram suspensos pelo aditamento efetuado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02.

III - A situação pandémica e as consequentes medidas de confinamento que justificaram a suspensão dos prazos processuais determinada pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02, não exigia que essa suspensão abrangesse a tramitação dos processos nos tribunais superiores, designadamente o ato de interposição de recursos de decisões neles proferidas, pelo que, tal opção legislativa não constitui uma exigência intolerável ao exercício do direito ao recurso, encontrando-se plasmada na lei de modo visível, pelo que a interpretação aqui seguida não desrespeita o modelo do processo equitativo a que se refere o art. 20.º, n.º 4, da Constituição.

Decisão Texto Integral:

                                  

                                               *

I - Relatório

O Autor interpôs em recurso de uniformização de jurisprudência do acórdão proferido por este Tribunal em 16.12.2020 e transitado em julgado em 08.01.2021, em recurso de revista, nos autos com o número acima indicado.

Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a possibilidade do recurso não poder ser admitido, por ter sido interposto para além do prazo previsto no artigo 689.º do Código de Processo Civil, o Autor veio alegar que, nos termos determinados pela Lei n.º 4-B/2021, de 01.02.2021, aquele prazo esteve suspenso desde 22.01.2021 até 5.04.2021, pelo que, quando foi interposto recurso ainda não se tinham completado os 30 dias após o trânsito em julgado da decisão recorrida, fixados no artigo 689.º do Código de Processo Civil. Mais alegou que, caso se entenda que o disposto nas alíneas a) e d), do artigo 6.º-B aditado pela Lei n.º 4-B/2021 de 01.02.2021, impede a suspensão do prazo para interpor recurso de uniformização de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça, deve considerar-se que tal solução é inconstitucional por violar o princípio da proteção da confiança.

                                  

O Relator proferiu decisão de não admissão do recurso de uniformização de jurisprudência com a seguinte fundamentação:

II - A Extemporaneidade do recurso

O artigo 689.º do Código de Processo Civil dispõe:

“O recurso para uniformização de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias, contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido.”

Quando o Autor interpôs o presente recurso de uniformização de jurisprudência já tinham decorrido mais de 30 dias após o trânsito do acórdão recorrido.

Alega o Autor que aquele prazo esteve suspenso por força do disposto no artigo 6.º B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, aditado pelo artigo 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.

Lê-se no referido artigo 6.º B:

“1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 - O disposto no número anterior não se aplica aos processos para fiscalização prévia do Tribunal de Contas.

3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.

4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.

5 - O disposto no n.º 1 não obsta:

a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;

b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;

c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;

d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.

(...)”

O artigo 4.º da mesma Lei dispôs que esta norma produzia efeitos a 22 de janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados.

Conforme consta do preâmbulo da proposta de lei n.º 70/XIV, que esteve na origem do disposto no referido artigo 6.º-B, suspendeu-se “o cômputo do prazo dos processos e procedimentos não urgentes, garantindo-se, todavia, a tramitação daqueles que se apresentam como indispensáveis e estabelecendo-se uma série de exceções que permitem mitigar os efeitos genéricos da suspensão ... considerando que os tribunais e a Administração Pública contam já com uma importante experiência na tramitação de processos e procedimentos em formato eletrónico”.

Da leitura da transcrita alínea a), do n.º 5, resulta que a suspensão, a partir do 22 de janeiro de 2021, dos prazos para a prática de atos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, designadamente os prazos para a interposição de recursos, não se aplicou à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes.

A referência genérica à tramitação dos processos nos tribunais superiores, sem qualquer distinção ou exceção, abrange os atos dos juízes, da secretaria ou das partes, pelo que, todos os prazos dos processos a correr termos no Supremo Tribunal de Justiça, desde que não exigissem a prática de atos presenciais, não foram suspensos pelo aditamento efetuado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro [1].

Na verdade, sendo possível o desenvolvimento dessa tramitação, por parte de todos os intervenientes, na fase de recurso em processo civil, através da utilização de meios eletrónicos, a proliferação de casos registados de contágio da pandemia da doença COVID-19 e a consequente adoção de medidas de confinamento, que justificou a suspensão dos prazos processuais determinada pela lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, não exigia que essa suspensão abrangesse a tramitação dos processos nos tribunais superiores, designadamente o ato de interposição de recursos de decisões neles proferidas.

Por estas razões, se conclui que o prazo para interposição de recurso de uniformização de jurisprudência, consagrado no artigo 689.º do Código de Processo Civil, não foi suspenso pelo disposto no artigo 6.º-B, aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, pelo artigo 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, pelo que o presente recurso foi extemporâneo.

III – A constitucionalidade

Invoca o Autor que a conclusão acima retirada viola o princípio da proteção da confiança, ínsito ao modelo do Estado de direito democrático, na medida em que defrauda a legítima expetativa dos cidadãos, pelo que está ferida de inconstitucionalidade.

A garantia da via judiciária estatuída no artigo 20.º, da Constituição, conferida a todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, abrange, não só a atribuição do direito de ação judicial, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um processo equitativo, conforme impõe o n.º 4, do referido artigo 20.º, da Constituição.

Assim, o exercício dos direitos processuais conferidos às partes, designadamente o direito ao recurso, deve ser regulado pela lei processual de modo a garantir a possibilidade de um exercício efetivo, devendo os ónus impostos às partes não se revelarem desproporcionados nem imprevisíveis.

Ora, conforme já acima referimos, sendo possível o desenvolvimento da tramitação processual, por parte de todos os intervenientes, na fase de recurso em processo civil, através da utilização de meios eletrónicos, a proliferação de casos registados de contágio da pandemia da doença COVID-19 e das consequentes medidas de confinamento que justificaram a suspensão dos prazos processuais determinada pela lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, não exigia que essa suspensão abrangesse a tramitação dos processos nos tribunais superiores, designadamente o ato de interposição de recursos de decisões neles proferidas, pelo que, tal opção legislativa não constitui uma exigência intolerável ao exercício do direito ao recurso, não se podendo afirmar que existia uma legitima expetativa das partes que os prazos fossem suspensos nos processos pendentes nas instâncias superiores, apesar de, em anteriores fases do período pandémico, essa suspensão tivesse sido decretada.

Esta opção legislativa também não se revela oculta e, por isso, imprevisível, uma vez que resulta, com evidente clareza, do texto da alínea a), do n.º 5.º, do artigo 6.º-B, aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, pelo artigo 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.

Como tem afirmado o Tribunal Constitucional, em diversos acórdãos, em situações em que não é discernível no texto legal o conteúdo de um ónus que os interessados devem cumprir para poderem recorrer, designadamente a observância de um determinado prazo, mesmo que estes cumpram os deveres de uma conduta processual diligente e observem os ditames de prudência técnica, a sanção do não recebimento de um recurso, com fundamento no incumprimento desse ónus, revela-se uma solução manifestamente injusta. A imposição de um ónus imprevisto, perante a letra de lei, e por isso de difícil cumprimento pelas partes, tendo como consequência para a sua inobservância a perda imediata e irremediável de um importante direito de defesa processual, como é o direito ao recurso, não é seguramente conforme a um fair trial.

Mas, na presente situação, a não suspensão do prazo para interpor recurso de uniformização de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça está bem expressa no referido preceito legal, pelo que a necessidade de o direito ao recurso para uniformização de jurisprudência dever ser exercido no prazo previsto no artigo 689.º do Código de Processo Civil, durante o período em que vigorou a suspensão de prazos processuais, determinada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, não constitui um ónus imprevisível que atente contra o processo justo e equitativo imposto pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, na dimensão em que reflete o princípio estruturante do Estado de direito democrático da proteção da confiança.

Por estas razões, o disposto na alínea a), do n.º 5.º, do artigo 6.º-B, aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, pelo artigo 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ao excluir da medida de suspensão dos prazos processuais determinada no n.º 1, do mesmo artigo, os atos das partes a praticar nos processos pendentes nos tribunais superiores, designadamente a interposição de um recurso de uniformização de jurisprudência de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, não viola qualquer princípio ou disposição constitucional.

IV – Conclusão

Pelas razões expostas o recurso de uniformização de jurisprudência interposto pelo Autor foi interposto muito para além do prazo imposto pelo artigo 689.º do Código de Processo Civil, pelo que não pode ser admitido.

O Recorrente reclamou desta decisão para a Conferência, arguindo a nulidade da decisão reclamada por falta de assinatura e dela discordando através da transcrição ipsis verbis do requerimento que havia apresentando quando se pronunciou sobre a possibilidade do recurso não ser admitido.

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II – Da inadmissibilidade do recurso

1. Da assinatura da decisão reclamada

A decisão reclamada foi proferida pelo juiz Relator do recurso de revista de uniformização de jurisprudência através do CITIUS, encontrando-se assinada eletronicamente, não necessitando de assinatura autógrafa no processo em papel, nos termos previstos pelo artigo 153.º do Código de Processo Civil, e artigo 19.º, n.º 1, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, na redação conferida pela Portaria n.º 267/2018, de 20 de setembro, pelo que não se verifica a nulidade invocada.

2. Do mérito do despacho reclamado

A decisão reclamada não admitiu o recurso de uniformização de jurisprudência, por este ter sido deduzido muito para além do prazo previsto no artigo 689.º do Código de Processo Civil.

A Recorrente sustenta que a contagem desse prazo esteve suspensa por determinação do n.º 1, do artigo 6.º-B, aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, pelo artigo 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.

Conforme bem se explica no despacho reclamado, essa suspensão não é aplicável aos atos das partes a praticar nos processos pendentes nos tribunais superiores, o que inclui a interposição de um recurso de uniformização de jurisprudência, conforme consta da alínea a), do n.º 5.º, do mesmo artigo 6.º-B [2], não violando esta leitura do referido preceito legal qualquer princípio ou regra constitucional, designadamente o princípio do processo equitativo, quando reflete o princípio da proteção da confiança.

Na reclamação para esta Conferência, o Recorrente não deduziu qualquer argumento que não tivesse sido já objeto de ponderação pelo despacho reclamado, tendo-se limitado a transcrever a opinião que já havia manifestado previamente à pronúncia daquele despacho.

Por se concordar integralmente com a fundamentação do despacho reclamado, que acima se transcreve, deve ser indeferida a reclamação apresentada.

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em indeferir a reclamação apresentada pelo Recorrente do despacho que não admitiu o recurso de uniformização de jurisprudência.

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Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 unidades de conta.

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Notifique.

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Nos termos do artigo 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A, de 13 de março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

                                               *

Lisboa, 8 de setembro de 2021

João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

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[1] A igual conclusão chegaram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.04.2021, Proc. n.º 263/19 (Rel. Ferreira Lopes) e de 25.05.2021, Proc. n.º 11888/15 (Rel. Pedro Gonçalves) ainda não publicados.
[2] Entretanto, também vieram a decidir no mesmo sentido os recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.06.2021, Proc. 26302/02 (Fernando Baptista) e de 30.06.2021, Proc. 3175/07 (Olindo Geraldes).