Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
959/15.3T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
RETRIBUIÇÃO
RETRIBUIÇÃO VARIÁVEL
DESPESAS
AJUDAS DE CUSTO
Data do Acordão: 03/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – As regras da responsabilidade civil visam a reposição do status quo ante e a reparação integral dos danos, a fim de tornar indemne o lesado.

II – Neste domínio aplica-se um conceito amplo de retribuição, semelhante ao fixado no regime de reparação dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais, que inclui «todas as prestações recebidas pelo sinistrado com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios» (artigo 71º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

III – Uma prestação mensal média de 900,00 euros, regular e periódica, auferida de forma permanente, ainda que formalmente classificada como “despesas/ajudas de custo” nos recibos de vencimento, constitui contrapartida da atividade profissional do trabalhador, destinada a compensar o esforço e dispêndio de tempo com viagens semanais no país e no estrangeiro, e não reembolso de despesas.

IV – A perda desta prestação, em virtude das incapacidades para realizar a atividade profissional em causa, é um dano patrimonial indemnizável, sendo a indemnização devida a este título sujeita aos impostos legais, incluindo os descontos legais para efeitos de reforma.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



 I – Relatório


1 AA, e BB, ambos residentes na Rua ..., ..., Lote ..., ..., MUNDIMAT – SOCIEDADE de CONSTRUÇÕES, LDA., com sede na Zona Industrial Vila Amélia, Lote 125, Fração G, Quinta do Anjo, Palmela, intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra LIBERTY SEGUROS, S.A. (presentemente, LIBERTY SEGUROS Y REASSEGUROS, SUCURSAL em PORTUGAL), com sede na Avenida Fontes Pereira de Melo, nº. 6, 11º, Lisboa, deduzindo petitório no sentido de a Ré ser condenada a pagar-lhes:

a) ao Autor AA, 411.000.00 euros (quatrocentos e onze mil euros);

b) à Autora BB, 20.475.00 euros (vinte mil quatrocentos e setenta e cinco euros);

c) à Autora MUNDIMAT – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES LDA 175.000.00 euros (cento e setenta e cinco mil euros);

d) juros de mora à taxa legal até integral e efetivo pagamento sobre os valores mencionados.

 

Para tanto, alegaram, em resumo, o seguinte:

- o Autor AA foi vítima de acidente de viação, cuja responsabilidade pela produção se deveu ao segurado na Ré;

- na decorrência de tal acidente, o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que devem ser ressarcidos;

- por sua vez, a Autora BB, por força do acidente de viação sofrido pelo seu marido, ora Autor, reflexamente sofreu danos, os quais devem ser devidamente indemnizados;

- nomeadamente, danos não patrimoniais reflexos, de natureza sexual;

- bem como danos patrimoniais referentes a despesas de refeições que teve de suportar quando esteve deslocada em ... em acompanhamento do marido;

- a Autora Mundimat – Sociedade de Construções, Lda. também sofreu danos decorrentes da ausência do Autor AA ao trabalho devido ao acidente que vitimou este seu trabalhador, o que se refletiu numa diminuição da sua faturação, pois o mesmo era um elemento chave, que foi impossível substituir.


Os Autores pretendem, assim, o ressarcimento dos seguintes danos:

a) Ao Autor AA, a título de:

 Dano Patrimonial Emergente, a quantia no valor de € 13.500,00;

 Dano Patrimonial Futuro (Lucro Cessante), a quantia no valor de € 300.000,00;

 Dano Não Patrimonial (quantum doloris) presente e futuro, a quantia no valor de € 60.000,00;

 Dano Não Patrimonial - Estético Permanente, a quantia no valor de € 7.500,00;

 Dano Não Patrimonial - Prejuízo de Afirmação Pessoal, a quantia no valor de €10.000,00;

 Dano Não Patrimonial - Dano Sexual, a quantia no valor de € 20.000,00,

Total: € 411.000,00


b) A Autora BB, a título de:

 Dano Não Patrimonial - Dano Sexual, a quantia no valor de € 20.000,00;

 Dano Patrimonial Emergente – Despesas – a quantia no valor de € 475,44;

Total: € 20.475,44


c) A Autora Mundimat – Sociedade Técnica de Materiais de Construção Civil Lda., a título de Dano Patrimonial Emergente, decorrente da ausência ou ausência parcial do Autor AA, que se deve contabilizar:

 Prejuízo do ano 2012 – € 40.000,00;

 Prejuízo do ano 2013 – € 30.000,00;

 Obras que deixaram de ser adjudicadas – € 25.000,00;

 Obra de ... inacabada – 80.000,00 €,

Total: € 175.000,00.


2 – Devidamente citada, veio a Ré apresentar contestação, alegando, em súmula, que:

- Por exceção, serem as Autoras BB e Mundimat partes ilegítimas nos presentes autos, não tendo interesse direto em demandá-la, pelo que deve ser absolvida da instância;

- Por impugnação, aceitando a responsabilidade culposa do condutor do veículo seguro, mas impugnando parte das sequelas e períodos e graus de incapacidade alegados;

-  Bem como reportando como exagerados os valores apresentados.


3 – Conforme despacho de fls. 384 foi dispensada a audiência prévia e determinada a notificação dos Autores para, querendo, responderem, por escrito, à exceção de ilegitimidade ativa deduzida.


4 – Os Autores vieram pronunciar-se, conforme fls. 389 a 391, pugnando no sentido das 2ª e 3ª Autoras serem consideradas partes legítimas.


5 – Conforme despacho de fls. 392 a 400:

- Foi fixado o valor da causa;

- Foi proferido saneador stricto sensu;

- Foi julgada improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa das Autoras;

- Foram fixados o objeto do litígio e os temas da prova;

- Foram apreciados os requerimentos probatórios.


6 – Após realização da prova pericial, procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, em três sessões, conforme atas de fls. 663 a 668 e 715 a 717, com observância do formalismo legal.


7 – Posteriormente, foi proferida sentença – cf., fls. 718 a 758 -, traduzindo-se a Decisão nos seguintes termos:

“IV – DECISÃO

Face ao exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) condeno a Ré Liberty Seguros, S.A. a pagar ao Autor AA:

1. €200.700,00 (duzentos mil e setecentos euros) a título de dano patrimonial (perda de rendimentos de trabalho), acrescida de juros de mora, à taxa legal de juros civis, a contar desde a data de citação da Ré e até efectivo e integral pagamento.;

2. €90.000,00 (noventa mil euros) a título de indemnização pelo “dano biológico”, acrescida de juros de mora, à taxa legal de juros civis, a contar desde a prolação da presente decisão;

3. €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de juros civis, a contra desde a prolação da presente sentença.

b) condeno a Ré Liberty Seguros, S.A. a pagar à Autora BB:

1. €5.000,00 (cinco mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de juros civis, a contra desde a prolação da presente decisão. c) absolvo a Ré Liberty Seguros, S.A. de todos os restantes pedidos contra ela deduzidos.

As custas da acção ficarão a cargo dos Autores e da Ré na proporção dos respectivos decaimentos, dispensando-se desde já Autores e Ré, atenta a sua conduta processual, do pagamento do remanescente da taxa de justiça – artigo 6º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique”.


8 – Inconformada com o decidido, interpôs recurso de apelação, por referência à sentença prolatada, a Ré LIBERTY SEGUROS Y REASSEGUROS, SUCURSAL em PORTUGAL, questionando que o montante médio mensal de 900,00 euros tenha sido qualificado como retribuição e pugnando pela sua qualificação como “reembolso de despesas e não como qualquer «lucro» ou acréscimo de rendimento da actividade do A. como ...”.


9 – O Tribunal da Relação proferiu acórdão com o seguinte dispositivo:

«Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Apelante/Recorrente/Ré LIBERTY SEGUROS, S.A. (presentemente, LIBERTY SEGUROS Y REASSEGUROS, SUCURSAL em PORTUGAL) e, consequentemente, determinar a seguinte alteração à sentença recorrida/apelada:

a. a revogação da sentença apelada, na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor AA o montante de 200.700,00 € - nº. 1, da alínea a), da decisão condenatória – a título de dano patrimonial (perda de rendimentos de trabalho), acrescido dos juros moratórios arbitrados;

II) com excepção de tal alteração, confirma-se, no demais, a sentença apelada/recorrida;

III) as custas da presente apelação ficam a cargo da Recorrente/Apelante/Ré e Recorrido/Apelado/Autor AA, na proporção, respectivamente, de 24,5% e 75,5%».


10 – Inconformado, o Autor AA, interpõe recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação, que modificou a sentença do tribunal de 1.ª instância no que respeita à indemnização por danos patrimoniais (perda de rendimentos de trabalho), formulando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões:

«I - É justa, equilibrada e equitativa a indemnização pelo dano patrimonial futuro de 200.700,00 euros conforme Douta Sentença da Tribunal de 1ª Instância.

II- A indemnização a arbitrar pelos danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital mas “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (cerca de 0,5%), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento, e, por outro, a dramática situação em que a Autora ficou em que avulta a privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente em razão das graves sequelas que a afetam, bem como no esforço acrescido que o relevante grau de incapacidade irá envolver para o desempenho de quaisquer tarefas por banda daquela... (Acórdão do STJ de 19 de abril de 2018 – Processo nº 196/11.6TCGMR.G2.S1)

III – O montante da indemnização arbitrada pelo Douto Tribunal de 1ª Instância foi fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, o disposto nos artigos 494º, 496º, 562º, 564 nº 1 e 2 e 566º nº 3 e 4 e ainda o artigo 8º nº 3 todos do Código Civil.

IV – Do Douto Acórdão da Relação ressalta que os Senhores Juízes Desembargadores decidiram, extrapolando, os parâmetros do Recurso de Apelação, indo para além das pretensões conclusivas da Ré Apelante, não respeitando o disposto nos artigos 637º nº 2 1ª parte, 639º nº 2 alínea a) b) e c) e 663º nº 2 do Código de Processo Civil.

V - Das conclusões do Recurso de Apelação da Ré, nada se retira que coloque em causa uma perda de rendimento do Autor e que essa perda de rendimento não tenha decorrido do acidente que versam os autos, ao contrário da matéria de facto considerada provada.

VI - Autor Recorrente, deixou de auferir um rendimento médio de 900,00 euros mensais, valor que, fazia parte do seu rendimento mensal, valor que era recebido de forma regular, constante e periódica.

VII - Os seus recibos de vencimento do ora Recorrente foram juntos aos autos, não tendo da parte da Ré sido impugnados quanto à sua veracidade e autenticidade.

VIII - À data do acidente o Autor exercia as funções de ... da firma Mundimat Lda., nomeadamente, na vertente de obras e manutenção e auferia uma remuneração mensal, composta por uma retribuição fixa de €1.200,00 mensais e de uma retribuição variável regular e permanente designada por “deslocações” /ajudas de custo de €900,00 de média mensal.

IX - A natureza dessa retribuição deve, obviamente, prevalecer sobre a “designação” a qual terá eventuais justificações no plano contabilístico, mas isso não pode fazer descaracterizá-la.

X – O ora Recorrente desde que retomou o trabalho, nunca mais recebeu o valor mensal médio de €900,00 relativo a “deslocações”.

XI - O valor de 900,00 euros mensais era, um valor que o Autor recebia por, além do seu trabalho normal, ter de atender a outras exigências, tais como deslocações, e recebia esse valor de forma regular, por ter de fazer tais deslocações, por estar deslocado e pelos incómodos inerentes a tais deslocações.

XII - Do facto provado (UU) não se pode retirar a premissa de que os 900,00 euros mensais tinham como objetivo pagar os custos inerentes, as despesas de “deslocações”.

XIII - O valor de 900,00 euros recebidos pelo Autor, como consta da matéria de facto provada, não corresponde (tal como pretendeu a Ré afirmar nas suas doutas alegações) a “reembolso de despesas”.

XIV - Como ficou convicto pela prova produzida, esse valor perdido é uma componente salarial, integrante da retribuição mensal, recebido de regular e permanente, porque o Autor tinha nas suas atribuições fazer deslocações diversas pelo país e pelo estrangeiro.

XV - O valor recebido pelo ora Recorrente integra o conceito de retribuição conforme decorre do artigo 258º do Código de trabalho, porquanto o valor recebido, não se destinava a pagar as despesas de deslocação, individualmente consideradas, mas a compensar o ora Recorrente, como ... da empresa para a qual trabalhava, pelas deslocações que fazia, e como contrapartida do seu trabalho em se deslocar:

(cfr factos provados RR. O exercício da actividade profissional pelo Autor, antes do acidente, implicava, deslocações constantes, no país e no estrangeiro, umas vezes de carro, outras vezes de avião; em média, o Autor deslocava-se, semanalmente, uma vez. SS. Depois do acidente, o Autor AA, deixou de fazer essas deslocações e, aquelas que efectua, raramente, só o consegue com enorme dificuldade).

XVI - Este valor (900,00 euros) não pagava as despesas inerentes a respetiva deslocação, pagava sim, a função do Autor em se deslocar como ... da entidade empregadora.

(cfr facto provado RR. “O exercício da actividade profissional pelo Autor, antes do acidente, implicava, deslocações constantes, no país e no estrangeiro, umas vezes de carro, outras vezes de avião; em média, o Autor deslocava-se, semanalmente, uma vez SS. Depois do acidente, o Autor AA, deixou de fazer essas deslocações e, aquelas que efectua, raramente, só o consegue com enorme dificuldade”).

XVII - As conclusões da Apelante determinam o âmbito do recurso e é em função desse âmbito que o Tribunal da Relação deve proferir o seu Acórdão.

O Douto Acórdão considerou improcedente a invocada nulidade da sentença (ponto I da fundamentação).

XVIII - Refere o Douto Acórdão: “o que a Ré questiona é que o Autor tenha sofrido uma qualquer perda salarial justificativa da indemnização arbitrada a título de perdas de rendimento de trabalho … antes defendendo tratar-se de um montante correspondente ao reembolso de despesas de deslocações (sublinhado de realce).

XIX - da matéria de facto provada não resulta que o valor de 900,00 euros tivesse como objetivo o “pagamento de despesas”, ou seja “o reembolso de despesas” custeadas pelo ora Recorrente.

XX - Esse facto, é um mero argumento conclusivo da Apelante Ré, que não encontra na matéria de facto considerada provada qualquer sustentação.

XXI - O tribunal teve como provados os factos constantes das alíneas PP) e UU) com a fundamentação na conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD e o teor dos documentos juntos a folhas 80 a 86, 92 a 98 e 100 a 111 dos autos. Da conjugação destes meios probatórios ficou o Tribunal convicto que o Autor AA à data do acidente auferia mensalmente uma quantia média de 900,00 euros, quantia essa que deixou de auferir depois do acidente, pois apenas manteve apenas a retribuição base de 1.200,00 euros. Mais ficou convicto que a quantia média mensal de 900,00 euros apesar de ser discriminada nos recibos de vencimento como “deslocações”, correspondia a uma retribuição variável e não a quantias inerentes a deslocações efetuadas / ajudas de custo”

XXII - A convicção do tribunal de 1ª Instância, não pode ser abalada por outro entendimento e deve manter-se, na medida em que o Douto Tribunal da Relação, considerou improcedente o apelo da Ré Apelante, para que o Douto Tribunal da Relação considerasse a factualidade em causa como “reembolso de despesas”.

XXIII - Também não pode ser posta em causa, por força da mencionada improcedência da alegada nulidade da sentença, a conclusão da Sentença de 1ª instância sobre a matéria em causa quando refere:

“No caso que aqui cuidamos resulta à saciedade a regularidade e periodicidade do pagamento das designadas “deslocações” que, não obstante o seu valor variável (muito pouco variável) integram o conceito de retribuição e que o Autor AA deixou de auferir quando retomou o exercício da sua atividade profissional após o acidente a que aludem os presentes autos”

XXIV - O Douto Tribunal da Relação, na sua Douta Decisão, cingiu-se à literalidade do termo “deslocações”, para daí proferir entendimento de esse valor antes recebido, não constitui uma perda remuneratória, porque não integra o conceito de retribuição.

XXV – O valor deixado de receber pelo ora Recorrente é uma “perda de rendimentos” mensal, constante e regular por causa do acidente de viação de que foi vítima.

XXVI - A designação “deslocações” expressa no recibo de vencimento do ora Recorrente, não deve ser tomada, pura e simplesmente, no sentido literal, mas sim à luz da razão de ser da sua existência expressa na convicção do tribunal de 1ª instância quando refere:

“o tribunal teve como provados os factos constantes das alíneas PP) e UU) com a fundamentação na conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD e o teor dos documentos juntos a folhas 80 a 86, 92 a 98 e 100 a 111 dos autos. Da conjugação destes meios probatórios ficou o Tribunal convicto que o Autor AA à data do acidente auferia mensalmente uma quantia média de 900,00 euros, quantia essa que deixou de auferir depois do acidente, pois apenas manteve apenas a retribuição base de 1.200,00 euros. Mais ficou convicto que a quantia média mensal de 900,00 euros apesar de ser discriminada nos recibos de vencimento como “deslocações”, correspondia a uma retribuição variável e não a quantias inerentes a deslocações efetuadas / ajudas de custo” (sublinhado realce) … “No caso que aqui cuidamos resulta à saciedade a regularidade e periodicidade do pagamento das designadas “deslocações” que, não obstante o seu valor variável (muito pouco variável) integram o conceito de retribuição e que o Autor AA deixou de auferir quando retomou o exercício da sua atividade profissional após o acidente a que aludem os presentes autos” (sublinhado realce).

XXVII – O Douto Acórdão considerou ainda não conhecer da impugnação da matéria de facto apresentada pela Apelante Ré (cfr ponto II do Acórdão).

“… se bem entendemos a pretensão da Recorrente, o aditamento factual traduziria a plena perceção de que, terminado o período de incapacidade absoluta para o trabalho, o Autor retomou plenamente o cargo de ... da Mundimat, em exclusividade, tal como até aí sucedia … E, por outro lado, conforme argumentação da Recorrente, tal acrescento teria, aparentemente, relevância, na pretendida não consideração daquele montante médio mensal de 900,00 euros como sendo parte da remuneração ou retribuição do trabalho do Autor, mas antes como reembolso de despesas efetuadas, quando ao serviço daquela (ajudas de custo)(sublinhado realce).

XXVIII - A tipificação do aludido montante de 900,00 euros recebido pelo ora Recorrente – parte integrante da retribuição ou “reembolso de despesas de deslocação” como pretendia a Ré Apelante – tem de cingir-se, mais uma vez, aos factos provados, plasmados na Douta Sentença em resultado da convicção deste Tribunal.

XXIX - O termo “deslocações” é extremamente vago, para daí se retirar uma conclusão que desvirtua a “perda de um ganho” efetiva do ora Recorrente.

XXX - A sua interpretação, condicionada à expressão “reembolso de despesas” é uma interpretação que não tem qualquer alicerce ao nível dos factos provados pelo Tribunal de 1ª Instância e mantidos sem qualquer acrescento ou retificação pelo Douto Tribunal da Relação.

XXXI - Ressalta, também, das conclusões da Ré Apelante, omissão, quando ao significado do termo “deslocações” nos recibos de vencimento do ora Recorrente (documentos que não foram impugnados, quanto à sua veracidade e autenticidade).

XXXII – O Tribunal da Relação não podia explanar páginas e páginas sobre o conceito de retribuição e basear-se, sem mais, no termo “deslocações”, daí concluindo que o valor de 900,00 euros não constitui uma perda efetiva nos rendimentos do ora Recorrente, porque, na sua opinião, não integra o conceito de retribuição.

XXXIII - A Ré Apelante, não apresentou uma conclusão, sequer, sobre a necessidade de se decidir diferente da convicção manifestada pelo Tribunal de 1ª Instância, quanto à natureza do valor de 900,00 euros recebido de forma regular, constante e permanente.

XXXIV - Uma certeza que o DIREITO e a JUSTIÇA como seu fim visa prosseguir tem de resolver, tendo em conta o disposto nos artigos 566º e seguintes do Código Civil e não tanto as normas constantes do Código de Trabalho quanto ao que deve ou não ser considerado retribuição:

a) O Autor Recorrente, deixou de receber mensalmente o valor de 900,00 euros que constava, sempre, do seu recibo de vencimento que nunca foi impugnado.

b) Esse valor, na verdade, era recebido, como se fosse parte da sua retribuição, em função do seu cargo como ... da Mundimat e porque era ele que fazia deslocações constantes.

XXXV - Depois do acidente, o Autor AA, deixou de fazer essas deslocações e, aquelas que efetua, raramente, só o consegue com enorme dificuldade.

XXXVI - O Autor desde que retomou o trabalho, nunca mais recebeu o valor mensal médio de €900,00 relativo a “deslocações”.

TERMOS EM QUE,

Deve o presente Recurso de Revista ser considerado procedente e, em consequência, ser revogado o Acórdão do Tribunal da Relação ... quanto à decisão: Revogação da Sentença apelada, na parte em que condenou a Ré a pagar ao Recorrente/Autor AA o montante de 200.700,00 euros – nº 1 da alínea a) da decisão condenatória – a título de dano patrimonial (perda de rendimentos de trabalho) acrescidos dos juros moratórios arbitrados”.

E, consequentemente, ser mantida a Decisão proferida na Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância, como é de merecida J U S T I Ç A».


11. A ré, Liberty Seguros, notificada da interposição pelo A. de recurso de revista do acórdão proferido em sede da apelação, veio apresentar contra-alegações, que aqui se consideram transcritas, em que pugna pela manutenção do decidido quanto à sua não condenação no montante de 200,700 euros de indemnização por danos patrimoniais, “(…) não só porque se encontra o mesmo estribado em matéria de facto provada que a tal conduz, mas também porque a solução de direito relativa à questão da não condenação da recorrida ora alegante no montante de €200.700, tem pleno e inatacável respaldo na Lei”.


12. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a única questão a decidir é a de saber se o montante médio de 900,00 euros, que consta dos recibos de vencimento do autor a título de “deslocações”, deve ou não ser qualificado como retribuição para o efeito de cálculo da indemnização por danos patrimoniais a que tem direito, em virtude da perda de rendimentos do trabalho causada por acidente de viação. 


Cumpre apreciar e decidir.



II – Fundamentação

A – Os factos

As instâncias deram como PROVADOS os seguintes factos: 

A. No dia 28 de julho de 2012, pelas 17H20, na Avenida ..., em ..., Freguesia ..., Concelho ..., ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram: a) O veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., com matrícula ...-IU-..., propriedade de EE e conduzido por FF – doravante, veículo nº 1;

b) O motociclo, de marca ..., com matrícula ...-LN-..., na altura, propriedade da Y... SA e conduzido pelo Autor AA – doravante, veículo nº 2.

B. No local do acidente existe um cruzamento de vias, a) Sentido Herdade ... / ... b) Sentido Fonte ... / ....

C. Ambas as vias de trânsito têm traçado reto com perfil em patamar e sem número de polícia.

D. O tempo estava bom, o acidente ocorreu em pleno dia e a visibilidade era boa para ambos os condutores.

E. A condutora do veículo nº 1 circulava no Sentido Herdade ... / ....

F. O Autor, condutor do veículo nº 2 circulava no Sentido Fonte ... /....

G. No sentido em que circulava a condutora do veículo nº 1, antes do cruzamento, existia e existe, ainda, um sinal de STOP.

H. Ao entrar no cruzamento a condutora do veículo nº 1 não parou no STOP.

I. Invadiu a faixa de rodagem no sentido em que, na altura, circulava o Autor, condutor do veículo nº 2.

J. O embate da moto no veículo automóvel foi inevitável.

K. O embate da moto dá-se na lateral esquerda do veículo automóvel (guarda lama da roda esquerda e porta esquerda).

L. O Autor foi projetado após o embate e ficou caído no chão.

M. Por Contrato de Seguro a Demandada aceitou o risco relativo à responsabilidade civil emergente de acidentes de viação da viatura de matrícula ...-IU-... (veículo nº 1) conforme Apólice nº ..., conforme cópia de fls. 340 e 341.

N. No decurso da tramitação do processo de sinistro aberto em consequência da participação do acidente de viação, a Demandada informou por carta datada de 07 de setembro de 2012 que assumia a responsabilidade civil decorrente do referido acidente.

O. Em consequência do embate, o Autor AA foi projectado da moto e caiu na estrada do lado contrário, tendo em conta o seu sentido de marcha.

P. Transportado de ambulância para o Hospital ... em ..., deu aí entrada, no serviço de urgência, pelas 18 horas e 30 minutos.

Q. O Autor AA entrou no Hospital ... – traumatizado tendo-lhe sido diagnosticado as seguintes lesões: a) Traumatismo crânio encefálico; b) Traumatismo torácico, com fractura de vários arcos costais à direita, com hemopneumotorax; c) Fractura da bacia em “Open book” e disrupção pélvica; d) Fratura da extremidade distal do rádio esquerdo; e) Orquiepididimite.

R. De imediato, o Autor AA foi intervencionado tendo o processo cirúrgico terminado pelas 02:00 horas do dia seguinte ao acidente.

S. Após a intervenção cirúrgica o Autor AA ficou em situação de pós-operatório ligado a máquinas e tubos de drenar com fixador externo na bacia (armação com 4 ferros com altura de 15 centímetros).

T. Foi submetido a drenagem Torácica direita durante o internamento.

U. Foi sujeito a exames TAC e RX.

V. Esteve imóvel e deitado durante vários dias.

W. Em 01.08.2012 o Autor saiu dos cuidados intensivos e no dia 06.08.2012 foi informado de que poderia regressar a casa com permanência de total repouso e deitado.

X. Essa informação – regressar a casa – foi recusada, inequivocamente, uma vez que o Autor AA não se podia mexer: permanecia na situação de deitado e não conseguia, sozinho, colocar-se sentado.

Y. Permanecendo no hospital em face dessa situação, não conseguia dormir com dores e mau estar, e por isso, foi sujeito a medicação de calmantes.

Z. Durante a sua estadia no Hospital ..., nunca se levantou da cama.

AA. No dia 10 de agosto de 2012, o Autor AA foi transferido para os serviços clínicos contratados pela Demandada - Clínica ....

BB. Na Clínica ... o Autor AA continuou em tratamentos com vista à sua recuperação, em especial, sujeitando-se a sessões diárias de terapia e fisioterapia.

CC. No dia 25 de agosto de 2012 o Autor AA foi transportado de ambulância para sua casa, com indicação de repouso no leito em cama especial articulada e com indicação de deslocações no interior da casa em somente em cadeira de rodas.

DD. Teve uma visita diária de terceira pessoa, durante 45 dias, para lhe prestar assistência especializada, com as despesas inerentes pagas pela Demandada.

EE. Durante o seu internamento na Clínica ..., o Autor AA começou a ser treinado a passar sozinho para uma cadeira de rodas fornecida pela Demandada.

FF. Uma semana após circular em cadeira de rodas o Autor AA começou a sentir dores insuportáveis na região da bacia, uma vez que, o fixador externo de fixação deslocou-se da sua posição original e estava a espetar-se, progressivamente, nos tecidos moles.

GG. Em consequência dessa anomalia, deu entrada, novamente, nos serviços de urgência da Clínica ... (03.09.2012) onde foi sujeito a exames e aí permaneceu imobilizado e medicado devido as dores insuportáveis que padecia, até proceder à retirada do referido fixador externo.

HH. Nessa data foi-lhe diagnosticado: a) Infeção no local dos pinos; b) Staphilococus.

II. No dia 10 de setembro era a data de aniversário da sua outra filha, mas, desta vez, não foi possível deslocar-se a casa, uma vez que continuava acamado na Clínica ....

JJ. No dia 19 de setembro de 2012 o Autor AA teve alta hospitalar e regressou a casa, onde teve várias sessões fisioterapia e hidroterapia, em recuperação lenta e prolongada, sempre com dores e sempre com ajuda e movimentação em cadeira de rodas.

KK. Em consequência da recuperação, a partir de 16.10.2012 começou a ter treino de marcha parcial com ajuda de duas muletas de apoio auxiliar, situação que se manteve até 15.11.2012.

LL. Retirou a imobilização antebraquipalmar esquerda após 4 semanas do acidente.

MM. O Autor AA foi assistido em Urologia (DR. GG) desde 29.10.2012 até 20.06.2013, devido as seguintes sequelas: a) Disfunção Eréctil b) Ejaculação retrógrada.

NN. Fez EMG dos membros inferiores que revelou “lesão do nervo femoral direito acima da virilha, com redução da velocidade de condução e lesão do quadricípite e lesão traumática da inserção dos adutores e do recto abdominal” e RMN da bacia, pelo que em 14.12.2012 teve consulta com o Neurocirurgião Dr. HH.

OO. O Autor AA devido às lesões físicas sofridas teve, e tem, enorme sofrimento doloroso e sequelas, entre as quais se destacam: a) Dor na região sagrada; b) Dor na virilha direita c) Dor com desvio e encurtamento radial e dificuldade funcional do punho esquerdo d) Dificuldade funcional da anca direita com tremor e depressão na região adutora e) Disfunção eréctil f) Dificuldade em ficar sentado por tempo prolongado g) Cicatrizes operatórias: uma no hemitorax direito com 3 cm, quatro cicatrizes na bacia à direita e à esquerda com 2m cada e todas retraídas.

PP. À data do acidente o Autor exercia as funções de ... da firma Mundimat Lda., nomeadamente, na vertente de obras e manutenção e auferia uma remuneração mensal, composta por uma retribuição fixa de €1.200,00 mensais e de uma retribuição variável regular e permanente designada por “deslocações”/ajudas de custo de €900,00 de média mensal.

QQ. A Ré pagou ao Autor a título de perdas salariais por incapacidade temporária e absoluta para o trabalho a quantia total de €20.496,09, tendo em conta apenas a retribuição base auferida pelo Autor no valor mensal de €1.200,00.

RR. O exercício da atividade profissional pelo Autor, antes do acidente, implicava, deslocações constantes, no país e no estrangeiro, umas vezes de carro, outras vezes de avião; em média, o Autor deslocava-se, semanalmente, uma vez.

SS. Depois do acidente, o Autor AA, deixou de fazer essas deslocações e, aquelas que efectua, raramente, só o consegue com enorme dificuldade.

TT. O Autor AA era saudável, trabalhador, desportista e tinha esperança de viver e desenvolver a sua atividade económica, durante muito tempo.

UU. O Autor desde que retomou o trabalho, nunca mais recebeu o valor mensal médio de €900,00 relativo a “deslocações”.

VV. Por força do acidente de viação, o Autor padece das seguintes sequelas:

- Tórax 1 – cicatriz de ferida contusa na porção média do manubium esternal, com homoenxerto cutâneo, com vestígios de ponto de sutura, de contorno arboriforme;

- Abdómen: 1 – A nível da cintura pélvica: 4 cicatrizes na anca – 2 sobre as cristas iliacas antero-superiores e 2 sobre as regiões troncantericas;

- Membro superior direito: 1 – cicatriz de zona dadora de enxerto cutâneo, na porção superior da região deltoideia à direita com uma área de 4cm x 2cm;

- Membro superior esquerdo: 1 – ligeira atrofia da porção superior do tricipede braquial e porção média do deltóide; 2 – desvio radial do braço; 3 – sem, contudo, alterações da cinética osteoarticular;

- Membro inferior direito: 1 – amiotrofia do vasto medial (com depressão visível da sua área de inserção; 2 – limitação moderada da abdução da coxo femural; 3 – limitação ligeira da adução da coxo femural;

- Membro inferior esquerdo: 1 – cicatriz na face anterior do joelho e porção contigua da face medial da pena.

XX. A data de consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor AA é fixável em 24 de dezembro de 2013.

ZZ. O Autor AA padeceu e padece dos seguintes défices:

- Período de défice funcional temporário total – 84 dias – entre 28/07/2012 e 19/10/2012;

- Período de défice funcional temporário parcial – 431 dias – entre 20/10/2012 e 24/12/2013;

- Período de repercussão Temporária na atividade profissional total – 515 dias – entre 28/07/2012 e 24/12/2012;

- Quantum doloris – 5/7;

- Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica: 27 pontos – que já engloba a repercussão permanente na atividade sexual do Autor;

- Repercussão permanente na atividade profissional: as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;

- Dano estético permanente é fixável no grau 4/7;

- Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas.

AAA. O Autor AA sofreu dores intensas, no período da sua cura clínica – até à sua alta médica e continuou a padecer de dores intensas após essa data.

BBB. O Autor demonstra impaciência e preocupação por tomar consciência da gravidade das lesões e saber que não mais seria a pessoa que era antes do acidente.

CCC. O Autor sofreu dores intensas no período pós-operatório, esteve acamado durante vários meses sem se poder movimentar, precisou de ajuda de terceiros, para proceder as mais elementares tarefas do ser humano, tais como higiene, alimentação, vestir-se e despir-se.

DDD. O Autor deslocou-se durante muito tempo em cadeiras de rodas e sofreu esse desconforto e mais tarde, para se deslocar, suportou o incómodo de muletas.

EEE. O Autor é uma pessoa triste e nunca se conformou com a situação de enfermo, nem com as suas sequelas.

FFF. O Autor tem momentos de grande irritabilidade, depressão e ansiedade.

GGG. O Autor AA durante toda a sua vida vai sentir dores, desconforto e vai ter de ser medicado com medicamentos.

HHH. O Autor AA antes do acidente era um desportista nato, apaixonado pela prática de desporto, cultivava a forma física, o desporto para ele era uma atividade essencial, como estilo de vida, escape para o stresse do dia-a-dia.

III. O Autor jogava futebol, praticava Windsurf, bicicleta, participando em algumas provas amadoras.

JJJ. O Autor AA ficou com limitações a nível de desempenho / gratificação de natureza sexual, decorrente das sequelas físicas e psíquicas.

LLL. O Autor AA toma “...” para poder ter relações sexuais, mesmo assim, com muita dificuldade mantém uma ereção, considerando-se incapaz e impotente, o que lhe causa complexos, retração e abalo psicológico.

MMM. Antes do acidente o Autor AA era um homem sexualmente ativo com a sua esposa.

NNN. A vida sexual do Autor nunca mais foi a mesma

OOO. A Autora BB e o Autor AA contraíram matrimónio no dia 24 de setembro de 2005 e até ao dia do acidente eram um casal feliz; do casal nasceram três filhas e sempre, na vida conjugal, houve amor e felicidade.

PPP. O Acidente de que foi vítima o Autor AA fez com que a vida do casal não fosse a mesma, dado que a Autora esteve e está sujeita às maiores tristezas e irritação do Autor, vivenciando e sofrendo também com as disfunções erécteis do seu marido.

QQQ. O Autor AA foi sócio fundador da firma Mundimat Lda.

RRR. A Autora Mundimat, Lda. exerce a sua atividade na elaboração de estudos técnicos de materiais de construção civil e sua comercialização, importação e exportação de materiais para a construção civil, construção civil e obras públicas.

SSS. Em 21 de Julho de 2011 o Autor AA alienou a sua participação social, mas continuou na empresa a exercer funções de ....

TTT. A sua continuidade na empresa teve como pressuposto as relações pessoais e conhecimento que adquiriu ao longo dos anos como dono da empresa.

UUU. Sendo o Autor AA ..., principalmente, na vertente das obras e manutenção era ele que mantinha uma ligação estreita com todos os clientes, sendo a empresa ora Autora conhecida no mercado pela competência sempre demonstrada pelo Autor AA, mas principalmente, pela confiança depositada na sua pessoa.

VVV. Fazia parte das funções do Autor AA, entre outras, angariar obras e fazer o seu acompanhamento integral e mesmo quando os novos clientes ao procurar os serviços da empresa, faziam-no, tendo como referência o Autor AA, tendo em conta as suas boas referências comerciais, conhecimentos técnicos e resultados conseguidos.

XXX. Na altura do acidente a firma ora Autora tinha como principais clientes: L.…, N.… e D.…, entre outros.

ZZZ. Após o Autor AA ter sido vítima do acidente de viação, a empresa ressentiu-se em quebras.

AAAA. Após o acidente, nos seis meses seguintes, a Autora Mundimat, Lda. teve uma faturação média mensal de 227.499,54 euros, sendo que a faturação decresceu, mensalmente, em média: €121.355,48.

BBBB. A diminuição média mensal a que alude a alínea AAAA. coincide com a ausência total do Autor AA, no exercício das suas funções.

CCCC. No ano de 2013, nos cinco meses seguintes o volume de faturação continuou a diminuir coincidindo ainda com a ausência total do Autor AA, no exercício das suas funções, com uma faturação media mensal de €188.897,93.

DDDD. No ano de 2013, já com o Autor AA a trabalhar, o volume de facturação subiu apresentando-se com uma média mensal de €222.836,68.

EEEE. A Autora Mundimat, Lda. deixou de receber o valor de €80.000.00 relativo a uma obra específica em ... já negociada e com trabalhos executados que devia ser acompanhada pelo Autor AA, mas que devido à impossibilidade de acompanhamento pelo Sr. AA, foi entregue a um subempreiteiro contratado especificamente para a execução dessa obra, criando um custo não previsto.

FFFF. O Autor nasceu no dia .../.../1964.

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Foram considerados como NÃO PROVADOS os seguintes factos:

1 - O embate e queda no solo provocaram ao Autor perda de conhecimento.

2 - Para além do constante na alínea V), o Autor também não conseguia falar.

3 - O Autor mantém tratamento de hidroterapia e piscina, regularmente, até à data de entrada da petição inicial em Tribunal.

4 - O Autor evita deslocar-se e quando se desloca, tem fortes dores; de avião não consegue manter-se estável no seu assento durante muito tempo; de carro, tem dificuldade em manter-se sentado na posição correta de condutor, tem de parar constantemente e tem enorme dificuldade em caminhar após essas deslocações.

5 - O Autor AA coxeia e evita pegar em pesos.

6 - Antes do acidente, o Autor AA no seu dia-a-dia de trabalho era um trabalhador ágil, subia e descia escadas depressa e devagar, sentava-se e levantava-se sem qualquer limitação, participava em reuniões durante o tempo que fosse necessário e efectuava todas as deslocações.

7 - Atualmente, o Autor AA tem muita dificuldade em subir escadas, não conseguindo subir um lanço de 10 escadas sem parar: tem de ter apoio e não pode subir e descer escadas sem fazer pausa utilizando na subida e descida mais força sobre uma das pernas.

8 - O Autor não consegue permanecer sentado em reuniões, durante muito tempo e tem muita dificuldade em deslocar-se rápido.

9 - Antes do acidente o Autor AA dobrava-se sem limitações e agora, não consegue fazê-lo, de seguida e sem dor.

10 - O Autor não consegue pegar em pesos como antes do acidente devido a dor e dificuldade funcional do punho esquerdo e sequela na bacia.

11 - O Autor não trabalha tantas horas seguidas como acontecia antes do acidente.

12 - O Autor ainda mantém piscina e tratamentos de hidroterapia, bem como ainda tem dificuldades em dormir.

13 - O Autor por vezes ainda recorre a muletas.

14 - Durante o período de incapacidade temporária o Autor foi diversas vezes assistido por psicólogo, teve insónias, ficando noites sem dormir e só o conseguindo com recurso a medicação.

15 - O Autor AA teve, após embate, perda de conhecimento.

16 - O Autor AA apresenta, na sua marcha, claudicação à direita.

17 - O Autor sente vergonha, constrangimentos quanto às cicatrizes com que ficou procurando evitar que se notem.

18 - O Autor AA vai ter de se submeter ainda a tratamentos de urologia e de fisioterapia.

19 - O Autor AA antes do acidente praticava futebol no clube ..., interveio em vários campeonatos de Windsurf, no Karting conquistou vários troféus, nomeadamente uma taça de Portugal, chegando mesmo a ser internacional na modalidade.

20 - O Autor participava todas as semanas em itinerários BTT ou estrada bem como Triatlo.

21 - O Autor não consegue fazer uma simples corrida a pé de vários metros, bem como não consegue fazer uma simples brincadeira de praia, com os filhos (arremesso de bola ou argola).

22 - O Autor AA após ter tido alta clínica, passados três meses, tentou ter relações sexuais, mas não conseguiu, tendo-se submetido a tratamentos específicos, o que conduziu ainda à existência de problemas no casal.

23 - O Autor tinha muitas dores a nível dos órgãos sexuais.

24 - O Autor AA chegou a afirmar que já não gostava dele no desempenho sexual, inventava desculpas e mais desculpas e começou a ter, perante o seu cônjuge, sintomas de desconfiança, não aceitando que ela saísse de casa sem a sua presença.

25 - Para o Autor AA foi muito complicado ter de falar desses problemas sexuais com o médico.

26 - O Autor continua a ter dores quando ejacula, ou seja, deixou de ter prazer nas relações sexuais, e em contrapartida sente dores.

27 - A Autora BB despendeu a quantia de €475,44 em refeições quando se encontrava deslocada em ... em acompanhamento do marido.

28 - Na altura do acidente a firma ora Autora tinha como principais clientes: W.…, C.…, M.…, DP..., A.…, J.…, Co... e Ci....

29 - A substituição do Autor na firma Mundimat, Lda. tornou-se, de todo, impossível.

30 - A diminuição média mensal a que alude a alínea AAAA. teve como causa a ausência do Autor no desempenho das suas funções profissionais.

31 - Na altura do acidente existiam negociações a decorrer de obras que não foram concluídas e consultas de obra às quais nunca foram dadas respostas, devido a ausência do Autor AA e da falta de apoio técnico inerente.

32 - Durante a ausência do Autor AA esteve em risco a viabilidade e sobrevivência da Autora Mundimat, Lda.

33 - Do volume de orçamentos que foram entregues (€1.645.814,60) com hipótese de serem adjudicados haveria uma margem de resultado ilíquido esperado de €458.351,30, o que não sucedeu em virtude da Autora Mundimat, Lda. não ter podido dispor em termos efetivos do Autor AA.



B – O Direito


1. A questão a decidir é a de saber se o montante fixo de novecentos euros que constava do recibo de vencimento do autor como “despesas” integra ou não o conceito de rendimento do trabalho para o efeito de cálculo da indemnização por danos patrimoniais causados por acidente de viação.

O tribunal de 1.ª instância deu como provado no facto PP) que este montante de 900,00 euros, mensalmente auferido pelo autor a título de despesas, se tratava de uma retribuição variável de caráter permanente, fundamentando assim a decisão de facto:

«O Tribunal teve como provados os factos constantes das alíneas PP) e UU) com fundamento na conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD e no teor dos documentos juntos a folhas 80 a 86, 92 a 98 e 100 a 111 dos autos.

Da conjugação destes meios probatórios ficou o Tribunal convicto que o Autor AA à data do acidente auferia mensalmente uma quantia média de €900,00, quantia essa que deixou de auferir depois do acidente, pois apenas manteve apenas a retribuição base de €1.200,00. Mais ficou convicto que a quantia média mensal de €900,00 apesar de ser discriminada nos recibos de vencimento como “deslocações”, correspondia a uma retribuição mensal variável e não a quantias inerentes a deslocações efectuadas/ajudas de custo».


No que diz respeito à questão de direito, decidiu este tribunal que este valor médio mensal de 900,00 euros integra o conceito de retribuição nos termos conjugados dos artigos 258.º e 260.º, n.º 1, al. a), do Código de Trabalho, e, como o Autor deixou de auferir esse valor quando retomou o exercício da sua atividade profissional, a sentença de 1.ª instância contabilizou-o como dano patrimonial futuro indemnizável.

«De modo breve, pode dizer-se da conjugação destes normativos, que a retribuição do trabalho se assumirá como o conjunto de valores, pecuniários ou não, que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desempenhada, sendo a retribuição integrada não só pela remuneração de base como ainda por outras prestações regulares e periódicas, feitas directa ou indirectamente, incluindo as remunerações por trabalho extraordinário, quando as mesmas, sendo de carácter regular e periódico, criem no trabalhador a convicção de que elas constituem um complemento do seu salário.

No caso que aqui cuidamos resulta à saciedade a regularidade e periodicidade do pagamento das designadas “deslocações” que, não obstante o seu valor variável (muito pouco variável), integram o conceito de retribuição e que o Autor AA deixou de auferir quando retomou o exercício da sua actividade profissional após o acidente a que aludem os presentes autos».


Entendeu-se, ainda, na citada sentença, que, integrando o conceito de retribuição, tem o Autor o direito a havê-la em tais termos, ou seja, “como parte da retribuição que auferia, e como tal sujeita aos impostos legais, incluindo os descontos legais para efeitos de reforma”. E, acrescenta, se até ao momento o mesmo montante não era sujeito aos impostos e descontos legais, conclui-se “que se tratava de uma prática ilegal e fraudulenta”, não aceitável. Considerou-se, então, ser tal montante devido até à idade de reforma, que se fixou nos 66 anos e 5 meses e, procedendo-se ao devido cálculo, chegou-se ao valor total de 200.700,00 euros, correspondente ao período entre setembro de 2012 a março e 2031 (ambos inclusive).

Já o acórdão recorrido, em sentido diverso, considerou, após excurso jurisprudencial e doutrinal sobre o conceito de retribuição, que a circunstância de o facto PP) fazer expressamente referência à noção de “retribuição variável” para nela enquadrar a rubrica “despesas” do recibo do vencimento mensal do autor, “não traduz que se esteja a enquadrá-la tecnicamente como tal, nos termos em que esta é conceptualizada na lei laboral”, entendendo que em sede de matéria de facto não se pode “proceder à qualificação da natureza daquela prestação auferida, integrando-a no conceito de retribuição legalmente definido”, pois a matéria de facto “não deve comportar ou abarcar conceitos de direito ou eivados de juridicidade”.  

Prossegue o acórdão recorrido, afirmando que o que releva para a classificação da rubrica “despesas” não é a sua periodicidade ou regularidade, como entendeu o tribunal de 1.ª instância, mas a classificação formal, como despesas/ajudas de custo, dessas prestações tal como se evidencia pelos documentos juntos aos autos, designadamente, as cópias dos recibos de vencimento juntas a fls. 80 a 86, donde constam tais deslocações com os valores variáveis de 1.008,00 euros (4 meses), 972,00 euros, 990,00 euros e 1.152,00 euros.

Em conclusão, o acórdão recorrido entendeu que a rubrica despesas tinha uma causa específica e individualizada, que eram as viagens feitas pelo autor, que se tornaram raras após o acidente, e, portanto, não constituía uma contrapartida do trabalho prestado.


Quid iuris?

 

2. A lei laboral diz o seguinte sobre o conceito de retribuição:

 «Artigo 258.º

Princípios gerais sobre a retribuição

1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.

2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.

3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.

4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.

Especificamente sobre ajudas de custo, afirma o artigo 260.º, n.º 1, al. a), do Código de Trabalho, sob a epígrafe “Prestações incluídas ou excluídas da retribuição”, que:

«1 - Não se consideram retribuição:

a) As importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador».

 O artigo 258.º, n.ºs 1 e 2, afirma que se entende por retribuição “aquilo a que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho” e que a mesma “compreende a retribuição base” e todas as outras “prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie”.

Significa isto que não são de considerar retribuição todas e quaisquer atribuições do empregador ao trabalhador, mas apenas aquelas que revistam certas características, que a doutrina e a jurisprudência identificam como elementos do conceito legal: regularidade e periodicidade, patrimonialidade, obrigatoriedade para o empregador e correspetividade relativamente à prestação do trabalho.

Afirma Joana Vasconcelos (“Anotação ao artigo 258.º do Código de Trabalho”, in Código de Trabalho Anotado, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 587), que «Numa descrição necessariamente breve de cada um destes elementos, dir-se-á que a regularidade indicia uma prestação não arbitrária, mas que segue uma regra permanente, sendo, por isso, constante, enquanto a periodicidade aponta para o seu vencimento em momentos certos no tempo, em consonância com a repetência própria da relação laboral e com as necessidades recíprocas do empregador e do trabalhador, em especial com as deste último, que a mesma visa satisfazer. O carácter regular e periódico da retribuição exprime, afinal, uma ideia de normalidade, que leva a afastar do respectivo conceito as atribuições anormais, esporádicas ou casuais».

Há que considerar também para que efeitos releva, no caso vertente, o conceito de retribuição. Trata-se de proceder à reparação dos danos sofridos pelo lesado no decurso de um acidente de viação, de acordo com as regras da responsabilidade civil, que visam a reposição do status quo ante e a reparação integral dos danos, a fim de tornar indemne o lesado. Neste domínio, a própria lei contém um conceito amplo de retribuição, conforme resulta do nº 2 do artigo 71º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (regime de reparação dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais), aqui usado como lugar paralelo integrado no elemento sistemático de interpretação, que afirma que constituem retribuição «todas as prestações recebidas pelo sinistrado com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios». Neste sentido, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, (cfr. Acórdão de 17-03-2010, Recurso n.º 436/09.1YFLSB- 4.ª Secção), se entendeu que, «Resultando provado que o sinistrado auferia, a título de ajudas de custo, valores fixos e diários – logo, independentes de quaisquer custos ou despesas aleatórias – devidos por cada dia de trabalho – no que se evidencia a sua correspectividade com o trabalho desenvolvido pelo trabalhador, seguramente mais penoso por estar deslocado – sem necessidade de qualquer documento comprovativo, é de concluir integrarem tais valores o conceito de retribuição e, nessa medida, integrarem, igualmente, o cálculo das prestações reparatórias emergentes do acidente de trabalho».


3. A questão controversa no caso dos autos é a de saber se o valor mensal médio de 900 euros por mês, que reúne as caraterísticas da regularidade e da periodicidade (facto PP), tem a caraterística da correspetividade, ou seja, se constitui contrapartida do trabalho prestado, ou antes uma mera ajuda de custo destinada a reembolsar despesas motivadas pela realização da prestação (p. ex. transportes, alimentação, alojamento, etc.), que não integra o conceito de retribuição.

No que se reporta ao ónus probatório da verificação dos pressupostos condicionantes da atribuição de natureza retributiva a qualquer prestação pecuniária paga pelo empregador ao trabalhador, a lei consagra um regime favorável aos trabalhadores, dispondo no n.º 3 do artigo 258.º do Código do Trabalho que “se presume constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade empregadora ao trabalhador”.

Pelo que, desta forma, cabe ao trabalhador provar a perceção das prestações pecuniárias, não tendo de provar que as mesmas são contrapartida do seu trabalho. Uma vez que estamos perante uma presunção iuris tantum que favorece o trabalhador, terá de ser o empregador ou quem nisso tenha interesse a provar que as prestações pecuniárias percebidas pelo trabalhador não revestem carácter de retribuição (artigo 350.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil).

Ora, partindo a lei laboral de uma presunção de que toda e qualquer prestação da entidade empregadora, caraterizada pela regularidade e pela periodicidade, constitui retribuição, não podemos, como fez o acórdão recorrido, desvalorizar o facto PP) que estipula o seguinte: «PP. À data do acidente o Autor exercia as funções de ... da firma Mundimat Lda., nomeadamente, na vertente de obras e manutenção e auferia uma remuneração mensal, composta por uma retribuição fixa de €1.200,00 mensais e de uma retribuição variável regular e permanente designada por “deslocações”/ajudas de custo de €900,00 de média mensal».

Neste facto provado, incluiu-se um conceito de direito – o de retribuição – o que, por não constituir um procedimento adequado na fixação da matéria de facto, a qual não deve conter conceitos de direito, fundamentou a tese do acórdão recorrido de atender apenas à classificação formal da rubrica “despesas” que constava do recibo de vencimento. Todavia, o conceito de direito contido no ponto PP) é irrelevante, pois nele estão igualmente dados como provados os factos integradores desse mesmo conceito: a regularidade e a periodicidade. Em consequência, mesmo eliminando a expressão “retribuição variável” do ponto PP) não desaparece a natureza periódica e regular da prestação, elementos que permitem chegar à conclusão de direito de que estamos perante uma retribuição.

Assim, cabendo ao julgador proceder à qualificação jurídica dessa prestação monetária, de acordo com as suas caraterísticas – regularidade e periodicidade – resulta também, em sede de fundamentação de direito, a sua natureza de retribuição. 

Todavia, a circunstância de estar em causa uma rubrica do vencimento designada como “despesas/ajudas de custo” convoca a aplicação do artigo 260.º, n.º 1, al. a), do CT, que proclama a regra do caráter não retributivo do reembolso de despesas feitas em serviço, de caráter esporádico e eventual (viagens, deslocações de serviço), com a ressalva de que, se tais despesas forem frequentes e se o seu valor exceder largamente o gasto que pretende compensar (cfr. Joana Vasconcelos, “Anotação ao artigo 260.º”, ob. cit., p. 592), serão consideradas retribuição, na parte que exceda os respetivos montantes normais, quando tal resultar do contrato ou dos usos. O cálculo do excedente, na falta de informação, faz-se de acordo com o prudente arbítrio do julgador, conforme se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19-02-2013, Recurso n.º 79-B/1994.L1.S1 - 4.ª Secção, onde se sumariou o seguinte: «O apuramento do quantitativo da retribuição, consubstanciada na parte da ajuda de custo fixa paga ao trabalhador que mensalmente excedia as despesas que aquela visava custear, não sendo praticável nenhum dos meios de cálculo da retribuição variável, o mesmo deve ser feito mediante recurso ao prudente arbítrio do julgador (…)».


4. O julgador tem, pois, de conciliar duas regras de sentido oposto: a regra de que todas as prestações recebidas pelo trabalhador, de forma regular e periódica, integram o conceito de retribuição (artigo 258.º, n.ºs 1 e 2, do CT) e a regra segundo a qual o pagamento de ajudas de custo não constitui retribuição, salvo casos excecionais cujo ónus da prova cabe ao trabalhador (artigo 260.º, n.º 1, al. a), do CT e Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2020, proc. n.º 4212/18.2T8CBR.C1.S1).

Ora, da factualidade provada nos presentes autos decorre que a designação de despesas/ajudas de custo era uma designação meramente formal, e que aquela rubrica que constava nos recibos de vencimento, pela sua regularidade e periodicidade, constituía uma correspetividade do trabalho prestado, paralela ao salário declarado como tal, como reconhece o tribunal de 1.ª instância. Foi, pois, realizado o ónus da prova que cabia ao trabalhador de demonstrar que não estavam em causa ajudas de custo ocasionais, mas uma verdadeira retribuição resultante do contrato ou dos usos e inserida no sinalagma do contrato de trabalho.

A natureza jurídica desta prestação define-se pelas suas caraterísticas de regularidade e periodicidade. Esta dupla conformação da prestação significa que o trabalhador contava com esse montante para satisfazer as suas necessidades fundamentais e da sua família, ou seja, como fonte de rendimento para a sua sobrevivência e nível de vida, o que afasta a designação como despesas/ajudas de custo.

O Tribunal da Relação não conheceu a impugnação da matéria de facto peticionada pela apelante no recurso de apelação, que consistia em aditamento de factos, que o tribunal recorrido entendeu ser um ato inútil para a decisão do caso, nem procedeu a qualquer modificação da matéria de facto, designadamente do facto PP), que não foi impugnado pela seguradora apelante.

Da subsunção da matéria de facto aos conceitos legais (artigo 258.º, n.ºs 1 e 2, e 260.º, n.º 1, al. a), última parte, ambos do Código de Trabalho) resulta que o Autor/Recorrente deixou de auferir, depois do acidente, um rendimento médio de 900,00 euros mensais, valor que era recebido de forma regular, constante e periódica antes das sequelas resultantes do evento lesivo. Esse rendimento mensal fazia parte dos seus recibos de remuneração mensal, documentos juntos aos autos, que a ré não impugnou quanto à sua veracidade e autenticidade. Assim, esse montante de 900,00 euros mensais era um valor que o Autor recebia porque, além do seu trabalho normal, tinha de atender a outras exigências profissionais, que incluíam deslocações e viagens, o que implicava esforço, investimento pessoal, dispêndio de tempo e disponibilidade, a que correspondia como contrapartida uma quantia média mensal de 900,00 euros. Do facto PP conjugado com a restante matéria de facto, designadamente RR, SS e UU, resulta que o objetivo dessa quantia não era o reembolso das despesas da deslocação, comprovadas, individualizadas e justificadas, mas uma compensação monetária pelo desgaste físico e incómodos inerentes à circunstância de ter que fazer as deslocações como prestação do seu trabalho. Assim, está presente o conceito de contrapartida da atividade laboral, como decorre claramente do facto RR que inclui no exercício da atividade profissional prestada pelo autor, as deslocações, no país e no estrangeiro, em ritmo semanal (RR - «O exercício da actividade profissional pelo Autor, antes do acidente, implicava, deslocações constantes, no país e no estrangeiro, umas vezes de carro, outras vezes de avião; em média, o Autor deslocava-se, semanalmente, uma vez»).

Tem, pois, razão o recorrente quendo defende que o valor recebido integra o conceito de retribuição, conforme decorre do artigo 258º do Código de Trabalho, pois não se destinava ao reembolso de despesas de deslocação, individualmente consideradas, mas a compensar o Autor de, na sua função de ..., ter de se deslocar, constituindo uma contrapartida do tempo e do esforço despendidos nessas deslocações.

Esta prática remuneratória em cargos de direção é relativamente comum nas empresas. Neste sentido, admitindo que uma prestação regular e periódica paga, como contrapartida do exercício de um cargo de direção, constitui retribuição para o efeito de cálculo da indemnização por despedimento ilícito, independentemente da sua designação formal, se pronunciou o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 04-07-2018 (proc. n.º 4981/16.4T8VIS.C1.S1), em cujo sumário se decidiu que: «A atribuição ao trabalhador de uma remuneração complementar paga todos os meses, desde que assumiu as funções de Diretor Regional em 2006, e inclusive no subsídio de Férias e de Natal, integra o conceito de retribuição base, independentemente da designação que lhe tenha sido atribuída pelo empregador». Defendendo um conceito amplo de retribuição, v. também o Acórdão de 22-05-2013, Recurso n.º 5164/07.0TTLSB.L1.S1- 4.ª Secção, onde se sumariou o seguinte: «II - É à entidade empregadora que incumbe fazer a prova de que determinada prestação patrimonial por ela feita ao trabalhador não assume natureza retributiva, antes reveste outro carácter. III - Resultando provado que o trabalhador auferia, do empregador, a quantia de € 860,30, 14 vezes ao ano, sob a denominação «ajudas de custo», e não resultando provado que essa prestação tivesse uma causa específica e individualizável diferente da remuneração do trabalho, terá tal verba que entrar no cálculo dos créditos laborais atinentes a remunerações intercalares, retribuições de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, emergentes do despedimento ilícito que o autor foi alvo»


5. Depois do acidente, em virtude das sequelas sofridas, o Autor deixou de ter capacidade para prestar esse trabalho, as deslocações semanais, deixando de auferir essa fração do rendimento laboral, conforme se atesta no facto SS («Depois do acidente, o Autor AA, deixou de fazer essas deslocações e, aquelas que efectua, raramente, só o consegue com enorme dificuldade») e no facto UU, que demonstra a existência do dano patrimonial em causa («O Autor desde que retomou o trabalho, nunca mais recebeu o valor mensal médio de 900,00 euros relativo a deslocações»).


6. Assim, da conjugação dos factos PP), RR), SS) e UU) conclui-se que ficou demonstrado que a quantia mensal de 900,00 euros constitui contrapartida do trabalho prestado pelo autor e assume a natureza de retribuição do trabalho, nos termos do artigo 258.º, n.ºs 1 e 2, e 260, n.º 1, al. a), última parte, ambos do Código de Trabalho.

Decide-se, pois, que este valor médio mensal integra o conceito de rendimento do trabalho e a sua perda deve ser objeto de indemnização enquanto dano patrimonial decorrente do acidente que vitimou o Autor, nos termos decididos pelo tribunal de 1.ª instância, e como tal, sujeita aos impostos legais, incluindo os descontos legais para efeitos de reforma.


7. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – As regras da responsabilidade civil visam a reposição do status quo ante e a reparação integral dos danos, a fim de tornar indemne o lesado.

II – Neste domínio aplica-se um conceito amplo de retribuição, semelhante ao fixado no regime de reparação dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais, que inclui «todas as prestações recebidas pelo sinistrado com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios» (artigo 71º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

III – Uma prestação mensal média de 900,00 euros, regular e periódica, auferida de forma permanente, ainda que formalmente classificada como “despesas/ajudas de custo” nos recibos de vencimento, constitui contrapartida da atividade profissional do trabalhador, destinada a compensar o esforço e dispêndio de tempo com viagens semanais no país e no estrangeiro, e não reembolso de despesas.

IV – A perda desta prestação, em virtude das incapacidades para realizar a atividade profissional em causa, é um dano patrimonial indemnizável, sendo a indemnização devida a este título sujeita aos impostos legais, incluindo os descontos legais para efeitos de reforma.


III – Decisão

Pelo exposto, decide-se conceder a revista e repristinar a sentença do tribunal de 1.ª instância.

Custas pela recorrida.


Lisboa, 9 de março de 2022


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.ª Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)